Ouvimos, no Evangelho (Mt 2, 1-12), que os Magos começam por manifestar a intenção que os move: «Vimos a sua estrela no Oriente e viemos adorá-Lo» (2, 2). Adorar é o objetivo do seu percurso, a meta do seu caminho. De facto, chegados a Belém, quando «viram o Menino com Maria, sua mãe, prostrando-se, adoraram-No» (2, 11). Se perdermos o sentido da adoração, falta-nos o sentido de marcha da vida cristã, que é um caminho rumo ao Senhor, e não a nós. O risco existe, como nos adverte o Evangelho, quando, a par dos Magos, mostra personagens incapazes de adorar.
O primeiro deles é o rei Herodes, que usa o verbo «adorar», mas de maneira falaciosa. Com efeito, pede aos Magos que o informem do local onde encontrarem o Menino, «para – diz ele – ir também eu adorá-Lo» (2, 8). Na realidade, Herodes adorava apenas a si mesmo e por isso, com uma mentira, o que ele queria era livrar-se do Menino. Que nos ensina isto? Que o homem, quando não adora a Deus, é levado a adorar-se a si mesmo; e a própria vida cristã, sem adorar o Senhor, pode tornar-se uma forma educada de se louvar a si mesmo e a sua habilidade: cristãos que não sabem adorar, não sabem rezar adorando. É um risco sério: servir-se de Deus, em vez de servir a Deus. Quantas vezes trocamos os interesses do Evangelho pelos nossos; quantas vezes revestimos de religiosidade aquilo que a nós nos convém; quantas vezes confundimos o poder segundo Deus, que é servir os outros, com o poder segundo o mundo, que é servir-se a si mesmo!
Além de Herodes, há outras pessoas no Evangelho que não conseguem adorar: são os sumos sacerdotes e os escribas do povo. Com extrema precisão, indicam a Herodes o local onde havia de nascer o Messias: em Belém da Judeia (cf. 2, 5). Conhecem as profecias, citam-nas de forma exata. Sabem aonde ir – são grandes teólogos, mesmo grandes! –, mas não vão. Disto, também podemos tirar uma lição: na vida cristã, não basta saber. Sem sair de si mesmo, sem ir ao encontro de Deus, sem O adorar, não O conhecemos. De pouco ou nada servem a teologia e a ação pastoral, senão se dobram os joelhos; senão se faz como os Magos, que não se limitaram a ser sábios organizadores duma viagem, mas caminharam e adoraram. Quando se adora, apercebemo-nos de que a fé não se reduz a um belo conjunto de doutrinas, mas é a relação com uma Pessoa viva, que devemos amar. É permanecendo face a face com Jesus que conhecemos o seu rosto. Quando O adoramos, descobrimos que a vida cristã é uma história de amor com Deus, onde não basta ter boas ideias sobre Ele, mas é preciso colocá-Lo em primeiro lugar, como faz um namorado com a pessoa amada. Assim deve ser a Igreja: uma adoradora enamorada de Jesus, seu esposo.
Ao principiar este ano, descubramos de novo a adoração como exigência da fé. Se soubermos ajoelhar diante de Jesus, venceremos a tentação de olhar apenas aos nossos interesses. De facto, adorar é fazer o êxodo da maior escravidão: a escravidão de si mesmo. Adorar é colocar o Senhor no centro, para deixarmos de estar centrados em nós mesmos. É predispor as coisas na sua justa ordem, reservando o primeiro lugar para Deus. Adorar é antepor os planos de Deus ao meu tempo, aos meus direitos, aos meus espaços. É aceitar o ensinamento da Escritura: «Ao Senhor, teu Deus, adorarás» (Mt 4, 10). «Teu Deus»: adorar é sentir que nos pertencemos mutuamente, eu e Deus. É tratá-Lo por «Tu» na intimidade, é depor a seus pés a nossa vida, permitindo-Lhe entrar nela. É fazer descer sobre o mundo a sua consolação. Adorar é descobrir que, para rezar, basta dizer «Meu Senhor e meu Deus!» (Jo 20, 28) e deixar-me invadir pela sua ternura.
Adorar é ir ter com Jesus, não com uma lista de pedidos, mas com o único pedido de estar com Ele. É descobrir que a alegria e a paz crescem com o louvor e a ação de graças. Quando adoramos, permitimos a Jesus que nos cure e transforme; adorando, damos ao Senhor a possibilidade de nos transformar com o seu amor, iluminar as nossas trevas, dar-nos força na fraqueza e coragem nas provações. Adorar é ir ao essencial: é o caminho para se desintoxicar de tantas coisas inúteis, de dependências que anestesiam o coração e estonteiam a mente. De facto, adorando, aprende-se a rejeitar o que não deve ser adorado: o deus dinheiro, o deus consumo, o deus prazer, o deus sucesso, o nosso eu arvorado em deus. Adorar é fazer-se pequenino na presença do Altíssimo, descobrir diante d’Ele que a grandeza da vida não consiste em ter, mas em amar. Adorar é descobrir-nos como irmãos e irmãs face ao mistério do amor que ultrapassa todas as distâncias: é beber o bem na fonte, é encontrar no Deus próximo a coragem de nos aproximarmos dos outros. Adorar é saber calar diante do Verbo divino, para aprender a dizer palavras que não magoem, mas consolem.
Adorar é um gesto de amor que muda a vida. É fazer como os Magos: levar ao Senhor o ouro, para Lhe dizer que nada é mais precioso do que Ele; oferecer-Lhe o incenso, para Lhe dizer que só com Ele se eleva para o alto a nossa vida; apresentar-Lhe a mirra – com ela se ungiam os corpos feridos e dilacerados – como promessa a Jesus de que socorreremos o próximo marginalizado e sofredor, porque nele está o Senhor. Habitualmente, ao rezar, sabemos pedir, agradecer ao Senhor; mas a Igreja deve progredir ainda mais na oração de adoração. Devemos crescer na adoração; a oração de adoração é uma ciência que temos de aprender todos os dias: rezar adorando.
Amados irmãos e irmãs, hoje cada um de nós pode interrogar-se: «Sou um cristão adorador?» A pergunta impõe-se-nos, pois muitos cristãos que rezam, não sabem adorar. Encontremos momentos para a adoração ao longo do nosso dia e criemos espaço para a adoração nas nossas comunidades. Cabe a nós, como Igreja, colocar em prática as palavras que acabamos de rezar no Salmo: «Adorar-Vos-ão, Senhor, todos os povos da terra». Adorando, descobriremos também nós, como os Magos, a direção certa do nosso caminho. E sentiremos, como os Magos, uma «imensa alegria» (Mt 2, 10).
Papa Francisco
Homilia na Solenidade da Epifania do Senhor 06.01.2020
«Habitavam numa terra de sombras, mas uma luz brilhou sobre eles» (Is 9, 1). Esta profecia da Primeira Leitura realizou-se no Evangelho: de facto, enquanto os pastores velavam de noite nas suas terras, «a glória do Senhor refulgiu em volta deles» (Lc 2, 9). Na noite da terra, apareceu uma luz vinda do Céu. Que significa esta luz que se manifestou na escuridão? No-lo sugere o apóstolo Paulo quando diz: «Manifestou-se a graça de Deus». Nesta noite, a graça de Deus, «portadora de salvação para todos os homens» (Tt 2, 11), envolveu o mundo.
Mas, que é esta graça? É o amor divino, o amor que transforma a vida, renova a história, liberta do mal, infunde paz e alegria. Nesta noite, foi-nos mostrado o amor de Deus: é Jesus. Em Jesus, o Altíssimo fez-Se pequenino, para ser amado por nós. Em Jesus, Deus fez-Se Menino, para Se deixar abraçar por nós. Mas podemos ainda perguntar-nos: Porque é que São Paulo chama «graça» à vinda de Deus ao mundo? Para nos dizer que é completamente gratuita. Enquanto aqui, na terra, tudo parece seguir a lógica do dar para receber, Deus chega de graça. O seu amor ultrapassa qualquer possibilidade de negócio: nada fizemos para o merecer, e nunca poderemos retribuí-lo.
Manifestou-se a graça de Deus. Nesta noite, damo-nos conta de que, não sendo nós capazes da altura d’Ele, por amor nosso desceu à nossa pequenez; vivendo preocupados apenas com os nossos interesses, veio Ele habitar entre nós. O Natal lembra-nos que Deus continua a amar todo o homem, mesmo o pior. Hoje diz a mim, a ti, a cada um de nós: «Amo-te e sempre te amarei; és precioso aos meus olhos». Deus não te ama, porque pensas certo e te comportas bem; ama-te… e basta! O seu amor é incondicional, não depende de ti. Podes ter ideias erradas, podes tê-las combinado de todas as cores, mas o Senhor não desiste de te querer bem. Quantas vezes pensamos que Deus é bom, se formos bons; e castiga-nos, se formos maus; mas não é assim! Nos nossos pecados, continua a amar-nos. O seu amor não muda, não é melindroso; é fiel, é paciente. Eis o dom que encontramos no Natal: com maravilha, descobrimos que no Senhor está toda a gratuidade possível, toda a ternura possível. A sua glória não nos encandeia, nem a sua presença nos assusta. Nasce pobre de tudo, para nos conquistar com a riqueza do seu amor.
Manifestou-se a graça de Deus. Graça é sinónimo de beleza. Nesta noite, na beleza do amor de Deus redescobrimos também a nossa beleza, porque somos os amados de Deus. No bem e no mal, na saúde e na doença, felizes ou tristes, sempre aparecemos lindos a seus olhos: não pelo que fazemos, mas pelo que somos. Em nós, há uma beleza indelével, intangível; uma beleza incancelável, que é o núcleo do nosso ser. Deus no-lo recorda hoje, tomando amorosamente a nossa humanidade e assumindo-a, «desposando-a» para sempre.
A «grande alegria», anunciada aos pastores nesta noite, é verdadeiramente «para todo o povo». Naqueles pastores, que santos não eram certamente, estamos também nós, com as nossas fragilidades e fraquezas. Deus, tal como chamou a eles, chama a nós também, porque nos ama. E, nas noites da vida, diz-nos como a eles: «Não temais» (Lc 2, 10). Coragem, não percais a confiança nem a esperança; não penseis que amar seja tempo perdido! Nesta noite, o amor venceu o medo, manifestou-se uma nova esperança; a luz gentil de Deus venceu as trevas da arrogância humana. Humanidade, Deus ama-te e, por ti, fez-Se homem; já não estás sozinha.
Amados irmãos e irmãs, que fazer perante esta graça? Uma coisa só: acolher o dom. Antes que ir à procura de Deus, deixemo-nos procurar por Ele, que nos procura primeiro. Não partamos das nossas capacidades, mas da sua graça, porque é Ele, Jesus, o Salvador. Fixemos o olhar no Menino e deixemo-nos envolver pela sua ternura. As desculpas para não nos deixarmos amar por Ele, desapareceram: aquilo que está torto na vida, aquilo que não funciona na Igreja, aquilo que corre mal no mundo não poderá mais servir-nos de justificação. Passou a segundo plano, pois frente ao amor louco de Jesus, a um amor todo ele mansidão e proximidade, não há desculpas. E, assim, a questão no Natal é esta: «Deixo-me amar por Deus? Abandono-me ao seu amor que vem salvar-me?»
Um dom tão grande merece tanta gratidão! Acolher a graça é saber agradecer. Frequentemente, porém, as nossas vidas transcorrem alheias à gratidão. Hoje é o dia justo para nos aproximarmos do sacrário, do presépio, da manjedoura, e dizermos obrigado. Acolhamos o dom que é Jesus, para depois nos tornarmos dom como Jesus. Tornar-se dom é dar sentido à vida, sendo este o melhor modo para mudar o mundo: nós mudamos, a Igreja muda, a história muda, quando começamos a querer mudar, não os outros, mas a nós mesmos, fazendo da nossa vida um dom.
Assim no-lo mostra Jesus nesta noite: não mudou a História forçando alguém ou à força de palavras, mas com o dom da sua vida. Não esperou que nos tornássemos bons para nos amar, mas deu-Se gratuitamente a nós. Por nossa vez, não esperemos que o próximo se torne bom para lhe fazermos bem, que a Igreja seja perfeita para a amarmos, que os outros tenham consideração por nós para os servirmos. Comecemos nós. Isto é acolher o dom da graça. E a santidade consiste precisamente em preservar esta gratuidade.
Conta uma graciosa história que, no nascimento de Jesus, os pastores acorriam à gruta com vários dons. Cada um levava o que tinha, ora os frutos do seu trabalho, ora algo precioso. Mas, enquanto todos se prodigalizavam com generosidade, havia um pastor que não tinha nada. Era muito pobre, não tinha nada para oferecer. E enquanto todos se emulavam na apresentação dos seus dons, ele mantinha-se aparte, com vergonha. A dada altura, São José e Nossa Senhora sentiram dificuldade para receber todos os dons – eram tantos – , especialmente Maria que devia segurar nos braços o Menino. Então, vendo com as mãos vazias aquele pastor, pediu-lhe que se aproximasse e colocou-lhe Jesus nas mãos. Ao acolhê-Lo, aquele pastor deu-se conta de ter recebido aquilo que não merecia: ter nas mãos o maior dom da História. Olhou para as suas mãos, aquelas mãos que lhe pareciam sempre vazias: tornaram-se o berço de Deus. Sentiu-se amado e, superando a vergonha, começou a mostrar aos outros Jesus, porque não podia guardar para si o dom dos dons.
Querido irmão, querida irmã, se as tuas mãos te parecem vazias, se vês o teu coração pobre de amor, esta é a tua noite. Manifestou-se a graça de Deus, para resplandecer na tua vida. Acolhe-a e brilhará em ti a luz do Natal.
Catequese sobre os Atos dos Apóstolos - 14
Bom dia, estimados irmãos e irmãs!
Lendo os Atos dos Apóstolos vê-se que o Espírito Santo é o protagonista da missão da Igreja: é Ele quem guia o caminho dos evangelizadores, mostrando-lhes a vereda a seguir.
Vemos isto claramente no momento em que o Apóstolo Paulo, ao chegar a Troade, tem uma visão. Um Macedônio suplica-lhe: «Vem à Macedônia e ajuda-nos!» (At 16, 9). O povo da Macedônia do Norte é orgulhoso disto, muito orgulhoso de ter chamado Paulo, para que ele anunciasse Jesus Cristo. Lembro-me muito bem daquele bonito povo, que me recebeu com tanto entusiasmo: oxalá conserve a fé que Paulo lhe anunciou! O Apóstolo não hesita e parte para a Macedônia, certo de que é o próprio Deus que o envia, e chega a Filipos, «colônia romana» (At 16, 12) na Via Egnácia, para pregar o Evangelho. Paulo passa ali vários dias. São três os acontecimentos que caraterizam a sua permanência em Filipos, naqueles três dias: três acontecimentos importantes. 1) A evangelização e o batismo de Lídia e da sua família; 2) a prisão que sofreu, com Silas, depois de ter exorcizado uma escrava explorada pelos seus senhores; 3) a conversão e o batismo do seu carcereiro e da sua família. Vemos estes três episódios na vida de Paulo.
O poder do Evangelho visa sobretudo as mulheres de Filipos, em particular Lídia, uma comerciante de púrpura, na cidade de Tiatira, uma crente em Deus a quem o Senhor abre o coração «para aderir às palavras de Paulo» (At 16, 14). Com efeito, Lídia acolhe Cristo, recebe o Batismo com a sua família e hospeda aqueles que pertencem a Cristo, acolhendo Paulo e Silas na sua casa. Aqui temos o testemunho da chegada do cristianismo à Europa: o início de um processo de inculturação que continua até hoje. Ele veio da Macedônia.
Depois do entusiasmo experimentado na casa de Lídia, Paulo e Silas têm que enfrentar a dureza da prisão: passam da consolação da conversão de Lídia e da sua família para a desolação do cárcere, onde foram lançados por terem libertado, em nome de Jesus, «uma serva que tinha um espírito de adivinhação» e que «dava muito lucro aos seus senhores» com o trabalho de adivinha (At 16, 16). Os seus senhores ganhavam muito dinheiro e aquela pobre escrava fazia o que os adivinhos fazem: adivinhava o futuro, lia as mãos — como diz a canção, “prendi questa mano, zingara” [“pega nesta mão, cigana”] — e as pessoas pagavam por isto. Prezados irmãos e irmãs, ainda hoje há pessoas que pagam por isto. Lembro-me que na minha diocese, num parque muito grande, havia mais de 60 mesinhas, diante das quais estavam sentados os adivinhos e as adivinhas, que liam as mãos e as pessoas acreditavam nessas coisas! E pagavam. E isto acontecia também na época de São Paulo. Por retaliação, os seus senhores denunciam Paulo e conduzem os Apóstolos perante os magistrados com a acusação de desordem pública.
Mas o que acontece? Paulo está na prisão e, durante a sua detenção, verifica-se algo surpreendente. Está desolado, mas em vez de se queixar, Paulo e Silas cantam louvores a Deus e este louvor desencadeia um poder que os liberta: durante a oração, um tremor de terra abala os fundamentos da prisão, as portas abrem-se e as correntes de todos caem (cf. At 16, 25-26). Como a oração de Pentecostes, também a prece recitada na prisão provoca efeitos prodigiosos.
Julgando que os prisioneiros tinham escapado, o carcereiro estava prestes a suicidar-se, pois quando um prisioneiro escapava, os carcereiros pagavam com a própria vida; mas Paulo brada-lhe: «Estamos todos aqui!» (At 16, 27-28). Então, ele pergunta: «Que devo fazer para ser salvo?» (v. 30). A resposta é: «Acredita no Senhor Jesus, e assim tu e os teus sereis salvos» (v. 31). É neste ponto que se verifica a mudança: no meio da noite, o carcereiro e a sua família ouvem a palavra do Senhor, acolhem os Apóstolos, lavam as suas feridas — porque tinham sido espancados — e, com a sua família, recebem o Batismo; então, ele «entrega-se, com a família, à alegria de ter acreditado em Deus» (v. 34), prepara a mesa e convida Paulo e Silas a permanecer com eles: o momento da consolação! No meio da noite deste carcereiro anônimo, a luz de Cristo brilha e vence as trevas: as correntes do coração caem e, nele e na sua família, floresce uma alegria nunca experimentada. É assim que o Espírito Santo cumpre a missão: desde o início, do Pentecostes em diante, Ele é o protagonista da missão. E leva-nos adiante; devemos ser fiéis à vocação que o Espírito nos impele a abraçar. Para anunciar o Evangelho!
Peçamos também nós hoje ao Espírito Santo um coração aberto, sensível a Deus e hospitaleiro para com os nossos irmãos, como o de Lídia, e uma fé arrojada, como a de Paulo e de Silas, e inclusive um coração aberto, como o do carcereiro que se deixa tocar pelo Espírito Santo.
Papa Francisco
Catequese na audiência geral 30.10.2019
Catequese sobre os Atos dos Apóstolos - 13
O livro dos Atos dos Apóstolos nos diz que São Paulo, depois daquele encontro transformador com Jesus, é acolhido pela Igreja de Jerusalém graças à mediação de Barnabé e começa a anunciar Cristo. Mas, devido à hostilidade de alguns, ele é forçado a se mudar para Tarso, sua cidade natal, onde Barnabé se junta a ele para envolvê-lo na longa jornada da Palavra de Deus . Pode-se dizer que o livro dos Atos dos Apóstolos, que estamos comentando nesta catequese, é o livro do longo caminho da Palavra de Deus: a Palavra de Deus deve ser anunciada e anunciada em todos os lugares. Esta jornada começa após uma forte perseguição (cf. Hch 11,19); mas isso, em vez de ser uma medida de espera pela evangelização, torna-se uma oportunidade de expandir o campo onde semear a boa semente da Palavra. Os cristãos não têm medo. Eles devem fugir, mas fogem com a Palavra, e a espalham por toda parte.
Paulo e Barnabé chegaram pela primeira vez a Antioquia da Síria, onde ficam um ano inteiro para ensinar e ajudar a comunidade a criar raízes (cf. At 11,26). Eles anunciaram à comunidade judaica, aos judeus. Antioquia torna-se assim o centro da propulsão missionária, graças à pregação com a qual os dois evangelistas - Paulo e Barnabé - alcançam o coração dos crentes, que aqui em Antioquia são chamados pela primeira vez de "cristãos" (cf. . At 11, 26).
O livro de Atos revela a natureza da Igreja, que não é uma fortaleza, mas uma loja capaz de expandir seu espaço (cf. Is 54,2) e acomodar a todos. A Igreja está "saindo" ou não é uma igreja, ou está a caminho, sempre expandindo seu espaço para que todos possam entrar, ou ela não é uma igreja. «Uma igreja de portas abertas» (Exortação. Ap. Evangelii Gaudium , 46), sempre com as portas abertas. Quando vejo uma pequena igreja aqui, nesta cidade, ou quando a vejo na outra diocese de onde vim, com as portas fechadas, acho que é um mau sinal. As igrejas devem sempre ter suas portas abertas, porque são o símbolo do que é uma igreja: sempre aberta. A Igreja é chamada a ser sempre a casa aberta do Pai. [...] Dessa forma, se alguém quiser seguir um movimento do Espírito e vier buscar a Deus, não encontrará a frieza das portas fechadas »( ibid . , 47).
Mas essa novidade das portas se abre para quem ? Para os pagãos , porque os apóstolos pregavam aos judeus, mas também os pagãos bateram à porta da Igreja; e essa novidade de portas abertas aos pagãos desencadeia uma controvérsia muito viva. Alguns judeus afirmam a necessidade de se tornarem judeus através da circuncisão para salvar a si mesmos e depois receber o batismo. Eles dizem: "Se você não se circuncidar de acordo com o mosaico personalizado, não poderá se salvar" ( Atos 15,1), ou seja, você não pode receber o batismo mais tarde. Primeiro o rito judaico e depois o batismo: essa era a sua posição. E para resolver o problema, Paulo e Barnabé consultam o conselho dos apóstolos e dos anciãos em Jerusalém, e o que é considerado o primeiro conselho na história da Igreja, o conselho ou assembléia de Jerusalém , que Paulo é refere-se na Carta aos Gálatas (2,1-10).
Uma questão teológica, espiritual e disciplinar muito delicada é abordada: isto é, a relação entre a fé em Cristo e a observância da Lei de Moisés. No decurso da assembléia, os discursos de Pedro e Tiago, "colunas" da Igreja Matriz, são decisivos (cf. Atos 15.7-21; Gl 2.9). Eles convidam a não impor a circuncisão aos pagãos, mas apenas a pedir que rejeitem a idolatria e todas as suas expressões. Da discussão vem o caminho comum, e essa decisão, ratificada com a chamada carta apostólica enviada a Antioquia.
A assembléia de Jerusalém lança luz significativa sobre como lidar com as diferenças e buscar a "verdade na caridade" ( Ef 4:15). Lembra-nos que o método eclesial de resolução de conflitos se baseia no diálogo, constituído pela escuta atenta e paciente e pelo discernimento feito à luz do Espírito. De fato, é o Espírito que ajuda a superar os fechamentos e tensões e age nos corações para que alcancem a verdade e a bondade, para que alcancem a unidade. Este texto nos ajuda a entender a sinodalidade. É interessante, enquanto escrevem a Carta: os apóstolos começam dizendo: «O Espírito Santo e pensamos o que ... É típico da sinodalidade, da presença do Espírito Santo, caso contrário, não é sinodalidade, é parlamentar, parlamento, outra coisa.
Peçamos ao Senhor que fortaleça em todos os cristãos, especialmente nos bispos e sacerdotes, o desejo e a responsabilidade da comunhão. Que nos ajuda a viver o diálogo, a escuta e o encontro com nossos irmãos e irmãs na fé e com os que estão longe, a gostar e manifestar a fecundidade da Igreja, chamada a ser em todos os momentos «mãe jubilosa» da muitos filhos (cf. Sl 113, 9).
Papa Francisco
Catequese na audiência geral 23.10.2019
imagem: site do Vaticano
(texto traduzido do espanhol no site do Vaticano)
Catequese sobre os Atos dos Apóstolos - 11
Queridos irmãos e irmãs, bom dia!
Partindo do episódio do apedrejamento de Estêvão, aparece uma figura que, ao lado de Pedro, é a mais presente e incisiva dos Atos dos Apóstolos: a de «um jovem chamado Saulo» (At 7, 58). Ele é descrito no início como aquele que aprova a morte de Estêvão e quer «destruir a Igreja» (cf. At 8, 3); mas depois tornar-se-á o instrumento escolhido por Deus para anunciar o Evangelho às nações (cf. At 9, 15; 22, 21; 26, 17).
Com a autorização do sumo sacerdote, Saulo perseguia os cristãos e capturava-os. Vós, que pertenceis a alguns povos que foram perseguidos por ditaduras, compreendeis bem o que significa perseguir pessoas e capturá-las. Foi o que o Saulo fez. E ele fez isso pensando que estava a servir a lei do Senhor. Lucas diz que Saulo “respirava” sempre «ameaças e mortes contra os discípulos do Senhor» (At 9, 1): nele há um sopro que cheira a morte, não a vida.
O jovem Saulo é retratado como um intransigente, isto é, alguém que manifesta intolerância para com aqueles que pensam de modo diferente, absolutiza a sua identidade política ou religiosa e reduz o outro a um inimigo potencial a ser combatido. Um ideólogo. Em Saulo, a religião foi transformada em ideologia: ideologia religiosa, ideologia social, ideologia política. Só depois de ter sido transformado por Cristo, então ensinará que a verdadeira batalha «não é contra os seres humanos [...], mas contra [...] os Dominadores deste mundo de trevas, e contra os espíritos do mal» (Ef 6, 12). Ele ensinará que não se devem combater as pessoas, mas o mal que inspira as suas ações.
A condição raivosa — porque Saulo era raivoso — e conflituosa de Saulo convida todos a questionar-se: como vivo eu a minha vida de fé? Vou ao encontro dos outros ou ponho-me contra os outros? Pertenço à Igreja universal (bons e maus, todos) ou tenho uma ideologia seletiva? Adoro Deus ou adoro formulações dogmáticas? Como é a minha vida religiosa? A fé em Deus que professo torna-me amigável ou hostil àqueles que são diferentes de mim?
Lucas diz-nos que, enquanto Saulo se dedica totalmente a erradicar a comunidade cristã, o Senhor está nas suas pegadas para comover o seu coração e convertê-lo a si. É o método do Senhor: comove o coração. O Ressuscitado toma a iniciativa e manifesta-se a Saulo no caminho de Damasco, acontecimento narrado três vezes no Livro dos Atos (cf. At 9, 3-19; 22, 3-21; 26, 4-23). Através da combinação de “luz” e “voz”, típica das teofanias, o Ressuscitado aparece a Saulo e pede-lhe que responda pela sua fúria fratricida: «Saulo, Saulo, porque me persegues?» (At 9, 4). Aqui o Ressuscitado manifesta o seu ser um só com aqueles que crêem n'Ele: atacar um membro da Igreja é como atacar o próprio Cristo! Também quantos são ideólogos porque querem a “pureza” — entre aspas — da Igreja, atacam Cristo.
A voz de Jesus diz a Saulo: «Ergue-te, entra na cidade e dir-te-ão o que tens a fazer» (At 9, 6). Mas Saulo, quando se levanta, já não vê nada, está cego, e de homem forte, autoritário e independente, torna-se fraco, necessitado e dependente dos outros, porque não vê. A luz de Cristo ofuscou-o e tornou-o cego: «assim vê-se também exteriormente o que era a sua realidade interior, a sua cegueira em relação à verdade, à luz que é Cristo» (Bento xvi, Audiência Geral, 3 de Setembro de 2008).
Deste “corpo a corpo” entre Saulo e o Ressuscitado, tem início uma transformação que mostra a “páscoa pessoal” de Saulo, a sua passagem da morte para a vida: o que antes era glória torna-se «lixo» a ser rejeitado para adquirir o verdadeiro ganho que é Cristo e a vida nele (cf. Fl 3, 7-8).
Paulo é batizado. O batismo marca assim para Saulo, como para cada um de nós, o início de uma nova vida, e é acompanhado por um novo olhar sobre Deus, sobre Si mesmo e sobre os outros, que de inimigos se tornam irmãos em Cristo.
Peçamos ao Pai que faça experimentar também a nós, como Saulo, o impacto com o seu amor, o único que pode transformar um coração de pedra num coração de carne (cf. Ez 11, 15), capaz de acolher em si mesmo «os mesmos sentimentos, que estão em Cristo Jesus» (Fl 2, 5).
Papa Francisco
Catequese na audiência geral 9.10.2019
Catequese sobre os Atos dos Apóstolos - 12
Amados irmãos e irmãs, bom dia!
A viagem do Evangelho no mundo, que São Lucas narra nos Atos dos Apóstolos está acompanhada pela máxima criatividade de Deus que se manifesta de maneira surpreendente. Deus quer que os seus filhos superem qualquer particularismo para se abrirem à universalidade da salvação. Esta é a finalidade: superar os particularismos e abrir-se à universalidade da salvação, pois Deus deseja salvar todos. Quantos renasceram da água e do Espírito — os batizados — são chamados a sair de si mesmos e a abrir-se aos outros, a viver a proximidade, o estilo do viver juntos, que transforma qualquer relação interpessoal numa experiência de fraternidade (cf. Exort. ap. Evangelii gaudium, 87).
Pedro, protagonista nos Atos dos Apóstolos juntamente com Paulo, é a testemunha deste processo de “fraternização” que o Espírito deseja introduzir na história. Pedro vive um evento que assinala uma mudança decisiva para a sua existência. Enquanto reza, recebe uma visão que serve de “provocação” divina, para suscitar nele uma mudança de mentalidade. Vê uma grande toalha que desce do alto, dentro da qual há vários animais: quadrúpedes, répteis e aves, e ouve uma voz que o convida a alimentar-se com aquelas carnes. Ele, sendo bom judeu, responde afirmando que nunca comeu nada de impuro, como exigido pela Lei do Senhor (cf. Lv 11). Então a voz insiste vigorosamente: «O que foi purificado por Deus não o consideres tu impuro» (At 10, 15).
Com este facto o Senhor quer que Pedro deixe de avaliar os eventos e as pessoas segundo as categorias do puro e do impuro, mas que aprenda a ir adiante, a fim de considerar a pessoa e as intenções do seu coração. Com efeito, o que torna o homem impuro não vem de fora mas só de dentro, do coração (cf. Mc 7, 21). Jesus disse isto claramente.
Depois daquela visão, Deus envia Pedro a casa de um estrangeiro não circuncidado, Cornélio, «centurião da coorte itálica [...] Piedoso e temente a Deus» que dava largas esmolas ao povo e orava continuamente a Deus (cf. At 10, 1-2), mas não era judeu.
Naquela casa de pagãos, Pedro anuncia Cristo crucificado e ressuscitado e o perdão dos pecados a todo aquele que crê n’Ele. E enquanto Pedro fala, sobre Cornélio e os seus familiares efunde-se o Espírito Santo. E Pedro batiza-os em nome de Jesus Cristo (cf. At 10, 48).
Este acontecimento extraordinário — é a primeira vez que se verifica uma coisa deste gênero — difunde-se em Jerusalém, onde os irmãos escandalizados com o comportamento de Pedro, o reprovam asperamente (cf. At 11, 1-3). Pedro fez algo que ia além dos costumes, que ia além da lei, e por isso o censuraram. Mas depois do encontro com Cornélio, Pedro sente-se mais livre de si mesmo e mais em comunhão com Deus e com os demais, pois viu a vontade de Deus na ação do Espírito Santo. Portanto, pode compreender que a eleição de Israel não é a recompensa devido a méritos, mas o sinal da chamada gratuita a ser mediação da bênção divina entre os povos pagãos.
Queridos irmãos, aprendamos do príncipe dos Apóstolos que um evangelizador não pode ser um impedimento para a obra criadora de Deus, o qual «quer que todos os homens sejam salvos» (1 Tm 2, 4), mas alguém que favorece o encontro dos corações com o Senhor. E nós, como nos comportamos com os nossos irmãos, sobretudo com quantos não são cristãos? Somos impedimento para o encontro com Deus? Obstaculamos o seu encontro com o Pai ou favorecemo-lo?
Peçamos hoje a graça de nos deixarmos impressionar com as surpresas de Deus, de não impedir a sua criatividade, mas de reconhecer e favorecer as vias sempre novas através das quais o Ressuscitado efunde o seu Espírito no mundo e atrai os corações fazendo-se conhecer como o «Senhor de todos» (At 10, 36). Obrigado.
Papa Francisco
Catequese na audiência geral 16.10.2019
Catequese sobre os Atos dos Apóstolos - 10
Queridos irmãos e irmãs!
Depois do martírio de Estêvão, a “corrida” da Palavra de Deus parece ter chegado a um impasse, devido ao desencadeamento de «uma terrível perseguição contra a Igreja de Jerusalém» (At 8, 1). Por causa disto, os Apóstolos permanecem em Jerusalém, enquanto muitos cristãos se dispersam por outros lugares da Judeia e da Samaria.
No Livro dos Atos, a perseguição manifesta-se como a condição permanente da vida dos discípulos, de acordo com o que Jesus disse: «Se me perseguiram a mim, também vos hão-de perseguir a vós» (Jo 15, 20). Mas em vez de apagar o fogo da evangelização, a perseguição alimenta-o ainda mais.
Ouvimos o que fez o diácono Filipe, que começa a evangelizar as cidades da Samaria, e são numerosos os sinais de libertação e de cura que acompanham o anúncio da Palavra. Neste ponto, o Espírito Santo marca uma nova etapa no caminho do Evangelho: impele Filipe a ir ao encontro de um estrangeiro com o coração aberto a Deus. Filipe levanta-se e parte com ímpeto e, numa estrada deserta e perigosa, encontra um alto funcionário da rainha da Etiópia, administrador dos seus tesouros. Este homem, um eunuco, depois de ter passado por Jerusalém para o culto, regressa ao seu país. Era um prosélito judeu da Etiópia. Sentado numa carruagem, lê o pergaminho do profeta Isaías, em particular o quarto cântico do “servo do Senhor”.
Filipe aproxima-se da carruagem e pergunta-lhe: «Compreendes, verdadeiramente, o que estás a ler?» (At 8, 30). O Etíope responde: «E como poderei compreender, sem alguém que me oriente?» (At 8, 31). Esse homem poderoso reconhece que tem necessidade de ser guiado para entender a Palavra de Deus. Era o grande banqueiro, o ministro da economia, tinha todo o poder do dinheiro, mas sabia que sem a explicação não conseguia entender, era humilde.
E esse diálogo entre Filipe e o Etíope faz refletir também sobre a constatação de que não é suficiente ler as Escrituras, pois precisamos de entender o seu significado, encontrar o “sumo”, indo mais além da “casca”, haurindo o Espírito que anima a letra. Como o Papa Bento XVI disse no início do Sínodo sobre a Palavra de Deus, «a exegese, a verdadeira leitura da Sagrada Escritura, não é apenas um fenômeno literário [...] É o movimento da minha existência» (Meditação, 6 de outubro de 2008). Entrar na Palavra de Deus significa estar disposto a sair dos próprios limites para encontrar e se conformar com Cristo, que é a Palavra viva do Pai.
Então, quem é o protagonista do que lia o Etíope? Filipe oferece ao seu interlocutor a chave de leitura: aquele manso servo sofredor, que não reage ao mal com o mal e que, não obstante seja considerado fracassado, estéril e, por fim afastado, liberta o povo da iniquidade e dá fruto para Deus é precisamente aquele Cristo que a Igreja inteira e Filipe anunciam! E que nos redimiu todos através da Páscoa. No final, o Etíope reconhece Cristo, pede o Batismo e professa a fé no Senhor Jesus. É uma linda narração, mas quem levou Filipe ao deserto para se encontrar com aquele homem? Quem levou Filipe a aproximar-se da carruagem? Foi o Espírito Santo. O Espírito Santo é o protagonista da evangelização. «Padre, eu vou evangelizar” — “Sim, o que fazes?” — “Ah, anuncio o Evangelho e digo quem é Jesus, procuro convencer as pessoas de que Jesus é Deus”. Amigo, isso não é evangelização, se não houver o Espírito Santo, não haverá evangelização! Isso pode ser proselitismo, publicidade... Mas evangelizar significa deixar-se guiar pelo Espírito Santo, que seja Ele que te estimula ao anúncio, ao anúncio com o testemunho, inclusive com o martírio, até com a palavra.
Depois de ter levado o Etíope a encontrar o Ressuscitado — o Etíope encontra Jesus Ressuscitado porque compreende aquela profecia — Filipe desaparece; o Espírito arrebata-o e envia-o para fazer outra coisa. Eu disse que o protagonista da evangelização é o Espírito Santo, e qual é o sinal de que tu cristã, cristão, és evangelizador? A alegria! Até no martírio. E, cheio de alegria, Filipe partiu para outra região, a fim de anunciar o Evangelho.
Que o Espírito faça dos batizados homens e mulheres que anunciam o Evangelho para atrair os outros, não para si, mas para Cristo, que saibam abrir espaço para a ação de Deus, que saibam tornar os outros livres e responsáveis perante o Senhor!
Papa Francisco
Catequese na audiência geral de 2.10.2019
Catequese sobre os Atos dos Apóstolos - 9
Bom dia, estimados irmãos e irmãs!
Através do Livro dos Atos dos Apóstolos, continuamos a percorrer um caminho: o caminho do Evangelho no mundo. São Lucas mostra com grande realismo tanto a fecundidade deste caminho como o surgimento de alguns problemas no seio da comunidade cristã. Desde o princípio, sempre houve problemas. Como harmonizar as diferenças que coexistem no seu interior, sem que se verifiquem contrastes e divisões?
A comunidade não acolhia só judeus, mas também gregos, isto é, pessoas provenientes da diáspora, não-judeus, com as próprias culturas e sensibilidades e com outra religião. Hoje, dizemos “pagãos”. E eles eram acolhidos. Essa convivência determina equilíbrios frágeis e precários; mas diante das dificuldades nasce o “joio”, e qual é o pior joio que destrói uma comunidade? O joio da murmuração, o joio da tagarelice: os gregos murmuram devido à desatenção da comunidade em relação às suas viúvas.
Os Apóstolos encetam um processo de discernimento que consiste em considerar bem as dificuldades e em procurar juntos soluções. Encontram uma saída, distribuindo as várias tarefas para um crescimento sereno de todo o corpo eclesial e para evitar negligenciar tanto a “corrida” do Evangelho como o cuidado dos membros mais pobres.
Os Apóstolos estão cada vez mais conscientes de que a sua vocação principal é a oração e a pregação da Palavra de Deus: rezar e anunciar o Evangelho; e resolvem a questão instituindo um núcleo de «sete homens de boa reputação, cheios do Espírito e de sabedoria» (At 6, 3) que, depois de terem recebido a imposição das mãos, se ocuparão do serviço nos refeitórios. Trata-se de diáconos, que são criados para isto, para o serviço. Na Igreja o diácono não é um sacerdote de segundo plano, é outra coisa; não é para o altar, mas para o serviço. É o guardião do serviço na Igreja. Quando um diácono gosta demasiado de ir ao altar, está enganado. Este não é o seu caminho. Esta harmonia entre serviço à Palavra e serviço à caridade representa o fermento que faz levedar o corpo eclesial.
E os Apóstolos criam sete diáconos, e entre os sete “diáconos”, destacam-se em particular Estêvão e Filipe. Estêvão evangeliza com força e parrésia, mas a sua palavra encontra as resistências mais obstinadas. Dado que não encontra outra maneira para o levar a desistir, o que fazem os seus adversários? Escolhem a solução mais mesquinha para aniquilar um ser humano: isto é, a calúnia, ou falso testemunho. E sabemos que a calúnia mata sempre. Este “tumor diabólico”, que deriva da vontade de destruir a reputação de uma pessoa, fere também o resto do corpo eclesial, danificando-o gravemente quando, por interesses desprezíveis ou para encobrir as suas próprias faltas, as pessoas unem-se para difamar alguém.
Conduzido ao Sinédrio e acusado por falsas testemunhas — fizeram o mesmo com Jesus e farão o mesmo com todos os mártires através de falsas testemunhas e calúnias — Estêvão proclama uma releitura da história sagrada, centrada em Cristo, para se defender. E a Páscoa de Jesus morto e ressuscitado é a chave de toda a história da aliança. Perante esta superabundância do dom divino, Estêvão denuncia corajosamente a hipocrisia com que os profetas e o próprio Cristo foram tratados. E recorda-lhes a história, dizendo: «Qual foi o profeta que os vossos pais não perseguiram? Eles mataram os que predisseram a vinda do Justo, a Quem agora traístes e assassinastes» (At 7, 52). Ele não usa meias-palavras, mas fala claramente, diz a verdade.
Isto provoca a reação violenta dos ouvintes, e Estêvão é condenado à morte, à lapidação. Mas ele manifesta o verdadeiro “talento” do discípulo de Cristo. Ele não procura subterfúgios, não apela a personalidades que o possam salvar, mas volta a colocar a sua vida nas mãos do Senhor e naquele momento a oração de Estêvão é muito bonita: «Senhor Jesus, recebe o meu Espírito» (At 7, 59), e morre como um filho de Deus, perdoando: «Senhor, não lhes atribuas este pecado» (At 7, 60).
Estas palavras de Estêvão ensinam-nos que não são os belos discursos que revelam a nossa identidade de filhos de Deus, mas somente o abandono da própria vida nas mãos do Pai e o perdão para aqueles que nos ofendem mostram-nos a qualidade da nossa fé.
Hoje há mais mártires do que nos primórdios da vida da Igreja, e os mártires estão em toda a parte. A Igreja de hoje é rica de mártires, é irrigada pelo seu sangue, que é «semente de novos cristãos» (Tertuliano, Apologeticum, 50, 13) e assegura crescimento e fecundidade ao Povo de Deus. Os mártires não são “santinhos”, mas homens e mulheres de carne e osso que — como diz o Apocalipse — «lavaram as suas túnicas e as branquearam no sangue do Cordeiro» (7, 14). Eles são os verdadeiros vencedores!
Peçamos também nós ao Senhor que, olhando para os mártires de ontem e de hoje, possamos aprender a levar uma vida plena, aceitando o martírio da fidelidade diária ao Evangelho e da conformidade com Cristo.
Papa Francisco
Catequese na audiência geral 25.09.2019
Catequese sobre os Atos dos Apóstolos - 8
Queridos irmãos e irmãs, bom dia!
Continuamos a nossa catequese sobre os Atos dos Apóstolos. Diante da proibição dos judeus de ensinar em nome de Cristo, Pedro e os Apóstolos respondem com coragem que não podem obedecer àqueles que querem interromper o caminho do Evangelho no mundo.
Os Doze mostram assim que possuem aquela «obediência da fé» que depois quererão suscitar em todos os homens (cf. Rm 1, 5). Com efeito, a partir do Pentecostes já não são homens “sozinhos”. Eles experimentam aquela sinergia especial que os faz descentralizar de si mesmos e os leva a dizer: “nós e o Espírito Santo” (At 5, 32) ou “o Espírito Santo e nós”. (At 15, 28). Eles sentem que não podem dizer só “eu”, são homens descentralizados de si mesmos. Fortalecidos por esta aliança, os Apóstolos não se deixam intimidar por ninguém. Tiveram uma coragem impressionante! Pensamos que eram cobardes: todos fugiram, fugiram quando Jesus foi preso. Mas, de cobardes, tornaram-se tão corajosos. Porquê? Porque o Espírito Santo estava com eles. O mesmo acontece connosco: se tivermos o Espírito Santo em nós, teremos a coragem de ir em frente, a coragem de superar tantas lutas, não por nós mesmos, mas pelo Espírito que está em nós. Não retrocedem na sua marcha de intrépidas testemunhas de Jesus ressuscitado, como os mártires de todos os tempos, incluindo o nosso. Os mártires dão a sua vida, não escondem que são cristãos. Pensemos, há alguns anos — ainda hoje há muitos — mas pensemos, há quatro anos, naqueles cristãos coptas ortodoxos, verdadeiros trabalhadores, na praia da Líbia: todos foram degolados. Mas a última palavra que disseram foi “Jesus, Jesus”. Eles não desbarataram a fé, porque o Espírito Santo estava com eles. Estes são os mártires de hoje! Os Apóstolos são os “megafones” do Espírito Santo, enviados pelo Ressuscitado para difundir prontamente e sem hesitação a Palavra que dá a salvação.
E, de facto, esta determinação faz tremer o “sistema religioso” judaico, que se sente ameaçado e responde com violência e sentenças de morte. A perseguição dos cristãos é sempre a mesma: as pessoas que não querem o cristianismo sentem-se ameaçadas e por isso matam os cristãos. Mas, no meio do sinédrio, a voz diferente de um fariseu que opta por conter a reação dos seus: chamava-se Gamaliel, um homem prudente, «doutor da Lei, estimado por todo o povo». Na sua escola, São Paulo aprendeu a observar «a Lei dos Pais» (cf. At 22, 3). Gamaliel toma a palavra e mostra aos seus irmãos como praticar a arte do discernimento diante de situações que vão além dos esquemas usuais.
Ele prova, citando alguns personagens que se fizeram passar pelo Messias, que qualquer projeto humano pode inicialmente ser aprovado mas depois pode naufragar, enquanto tudo o que vem do alto e tem a “marca” de Deus está destinado a durar. Os projetos humanos falham sempre; têm um tempo, como nós. Pensai em tantos projetos políticos, e em como eles mudam de um lado para o outro, em todos os países. Pensai nos grandes impérios, pensai nas ditaduras do século passado: sentiam-se muito poderosas, pensavam que dominavam o mundo. E depois todas elas caíram. Pensai também hoje nos impérios atuais: eles desmoronarão, se Deus não estiver com eles, porque a força que os homens têm em si mesmos não é duradoura. Só a força de Deus dura. Pensai na história dos cristãos, também na história da Igreja, com tantos pecados, com tantos escândalos, com tantas coisas más nestes dois milénios. E por que não colapsou? Porque Deus está nela. Somos pecadores, e muitas vezes também damos escândalo. Mas Deus está connosco. E Deus salva primeiro a nós, e depois a eles; mas o Senhor salva sempre. A força é “Deus connosco”. Gamaliel demonstra, citando algumas personagens que se fizeram passar pelo Messias, que cada projeto humano pode primeiro ser aprovado e depois naufragar. Por isso Gamaliel conclui que, se os discípulos de Jesus de Nazaré acreditam num impostor, estão destinados a desaparecer; mas se eles seguem alguém que vem de Deus, é melhor desistir de lutar contra eles; e adverte: correreis “o risco de entrardes em guerra contra Deus!” (At 5, 39). Ele ensina-nos a fazer este discernimento.
São palavras serenas e clarividentes, que nos permitem ver o acontecimento cristão com uma nova luz e oferecem critérios que “sabem a Evangelho”, porque nos convidam a reconhecer a árvore pelos seus frutos (cf. Mt 7, 16). Elas tocam os corações e alcançam o efeito desejado: os outros membros do Sinédrio seguem o seu conselho e renunciam aos propósitos de morte, isto é, de matar os Apóstolos.
Peçamos ao Espírito Santo que aja em nós para que, pessoalmente e em comunidade, possamos adquirir o habitus do discernimento. Peçamos-lhe que seja sempre capaz de ver a unidade da história da salvação através dos sinais da passagem de Deus no nosso tempo e nos rostos dos que nos rodeiam, para que aprendamos que o tempo e os rostos humanos são mensageiros do Deus vivo.
Papa Francisco
Catequese na Audiência Geral 18.09.2019
Catequese sobre os Atos dos Apóstolos - 7
Queridos irmãos e irmãs, bom dia!
A comunidade eclesial descrita no livro dos Atos dos Apóstolos vive das muitas riquezas que o Senhor põe à sua disposição — o Senhor é generoso! — experimenta crescimento numérico e muita efervescência, apesar dos ataques externos. Para nos mostrar esta vitalidade, Lucas, no Livro dos Atos dos Apóstolos, indica-nos também lugares significativos, por exemplo o pórtico de Salomão (cf. At 5, 12), ponto de encontro dos crentes. O pórtico (stoà) é uma galeria aberta que serve de abrigo, mas também de ponto de encontro e testemunho. Lucas, de facto, insiste nos sinais e maravilhas que acompanham a palavra dos Apóstolos e no cuidado especial dos doentes aos quais eles se dedicam.
No capítulo 5 dos Atos, a Igreja nascente é mostrada como um «hospital de campo» que acolhe os mais débeis, isto é, os doentes. O sofrimento deles atrai os Apóstolos, que não possuem «nem prata nem ouro» (At 3, 6) — assim diz Pedro ao coxo — mas sentem-se fortes pelo nome de Jesus. Aos seus olhos, como aos olhos dos cristãos de todos os tempos, os doentes são destinatários privilegiados da boa nova do Reino, são irmãos nos quais Cristo está presente de modo especial, para que sejam procurados e encontrados por todos nós (cf. Mt 25, 36.40). Os doentes são privilegiados para a Igreja, para o coração sacerdotal, para todos os fiéis. Não devem ser descartados, pelo contrário, devem ser curados, devem ser cuidados: são objeto de preocupação cristã.
Entre os apóstolos, sobressai Pedro, que tem preeminência no grupo apostólico por causa do primado (cf. Mt 16, 18) e da missão recebida do Ressuscitado (cf. Jo 21, 15-17). É ele que inicia a pregação do querigma no dia de Pentecostes (cf. At 2, 14-41) e que no Concílio de Jerusalém desempenhará uma função diretiva (cf. At 15 e Gl 2, 1-10).
Pedro aproxima-se das macas e passa entre os doentes, tal como fizera Jesus, assumindo sobre si enfermidades e doenças (cf. Mt 8, 17; Is 53, 4). E Pedro, o pescador da Galileia, passa, mas deixa que seja Outro a manifestar-se: que seja o Cristo vivo e ativo! A testemunha, de facto, é aquela que manifesta Cristo, tanto por palavras como com a presença corpórea, que lhe permite relacionar-se e ser um prolongamento do Verbo feito carne na história.
Pedro é aquele que realiza as obras do Mestre (cf. Jo 14, 12): olhando para ele com fé, vê-se o próprio Cristo. Cheio do Espírito do seu Senhor, Pedro passa e, sem que ele faça nada, a sua sombra torna-se uma “carícia”, reparadora, uma comunicação de saúde, uma efusão da ternura do Ressuscitado que se inclina sobre os doentes e restaura a vida, a salvação e a dignidade. Deste modo, Deus manifesta a sua proximidade e faz das feridas dos seus filhos «o lugar teológico da sua ternura» (Meditação matutina, Santa Marta, 14.12.2017). Nas chagas dos doentes, nas doenças que impedem o avanço da vida, há sempre a presença de Jesus, as chagas de Jesus. Há Jesus que chama cada um de nós a cuidar deles, a sustentá-los, a curá-los.
A ação curadora de Pedro despertou o ódio e a inveja dos saduceus, que aprisionaram os apóstolos e, perturbados com a sua misteriosa libertação, proibiram-nos de ensinar. Estas pessoas viram os milagres que os apóstolos fizeram não por magia, mas em nome de Jesus; mas não quiseram aceitar isso e aprisionaram-nos, castigaram-nos. Foram depois libertados milagrosamente, mas os corações dos saduceus eram tão duros que não queriam acreditar no que viam. Então Pedro respondeu oferecendo uma chave da vida cristã: «Obedecer a Deus e não aos homens» (At 5, 29), porque eles — os saduceus — dizem: «Não deveis prosseguir com estas coisas, não deveis curar» — “Eu obedeço a Deus e não aos homens”: é a grande resposta cristã. Significa ouvir a Deus sem reservas, sem atrasos, sem cálculos; aderir a Ele para poder fazer aliança com Ele e com aqueles que encontramos no nosso caminho.
Peçamos também ao Espírito Santo a força para não nos amedrontarmos diante daqueles que nos mandam calar, nos caluniam e até atentam contra a nossa vida. Peçamos-lhe que nos fortaleça interiormente para termos a certeza da presença amorosa e reconfortante do Senhor ao nosso lado.
Papa Francisco
Catequese na audiência geral 28.08.2019
Catequese sobre os Atos dos Apóstolos - 6
Queridos irmãos e irmãs, bom dia!
A comunidade cristã nasce da superabundante efusão do Espírito Santo e cresce graças ao fermento da partilha entre irmãos e irmãs em Cristo. Há um dinamismo de solidariedade que constrói a Igreja como família de Deus, onde a experiência da koinonia é central. Que significa esta palavra estranha? É uma palavra grega que significa «pôr em comum», «partilhar», ser uma comunidade, não se isolar. Esta é a experiência da primeira comunidade cristã, isto é, pôr em comum, «partilhar», «comunicar, participar», não isolar-se. Na Igreja das origens, esta koinonia, esta comunidade refere-se sobretudo à participação no Corpo e Sangue de Cristo. Por esta razão, quando fazemos comunhão declaramos, “comunicamos”, entramos em comunhão com Jesus e desta comunhão com Jesus chegamos à comunhão com os nossos irmãos e irmãs. E esta comunhão com o Corpo e Sangue de Cristo que se faz na Santa Missa, traduz-se em união fraterna, e portanto também com o que é mais difícil para nós: partilhar os bens e recolher dinheiro para a coleta a favor da Mãe Igreja de Jerusalém (cf. Rm 12, 13; 2 Cor 8-9) e para as outras Igrejas. Se quiserdes saber se sois bons cristãos, deveis orar, procurar aproximar-vos da comunhão, do sacramento da reconciliação. Mas o sinal de que o vosso coração se converteu é quando a conversão chega aos vossos bolsos, quando toca o vosso interesse: é nisso que se vê se alguém é generoso com os outros, se alguém ajuda os mais débeis, os mais pobres: quando a conversão chegar lá, tendes a certeza de que é uma verdadeira conversão. Se permanecer apenas em palavras, não é uma boa conversão.
A vida eucarística, as orações, a pregação dos Apóstolos e a experiência de comunhão (cf. At 2, 42) fazem dos crentes uma multidão de pessoas que têm — diz o Livro dos Actos dos Apóstolos — «um só coração e uma só alma» e que não consideram sua propriedade aquilo que possuem, mas conservam tudo em comum (cf. At 4, 32). É um modelo de vida tão forte que nos ajuda a ser generosos e não avarentos. Por isso, «entre eles não havia ninguém necessitado, pois todos os que possuíam terras — diz o Livro — ou casas vendiam-nas, traziam o produto da venda e depositavam-no aos pés dos Apóstolos. Distribuía-se, então, a cada um conforme a necessidade que tivesse» (At 4, 34-35). A Igreja sempre teve este gesto dos cristãos que se despojavam das coisas que tinham a mais, das coisas que não eram necessárias para dar aos necessitados. E não apenas dinheiro, mas tempo. Quantos cristãos — vocês, por exemplo, aqui na Itália — quantos cristãos são voluntários! Mas isto é lindo! É comunhão, partilhar o meu tempo com os outros, ajudar os necessitados. E assim o voluntariado, as obras de caridade, as visitas aos doentes; devemos sempre partilhar com os outros, e não apenas procurar o nosso próprio interesse.
A comunidade, ou koinonia, torna-se assim o novo modo de relacionamento entre os discípulos do Senhor. Os cristãos experimentam um novo modo de estar entre si, de se comportar. E é o modo próprio do cristão, a ponto de os pagãos olharem para os cristãos e dizerem: «Vede como se amam»! O amor era o caminho. Mas não amor de palavras, não amor falso: amor de obras, de ajuda mútua, amor concreto, concretude do amor. O vínculo com Cristo estabelece um vínculo entre irmãos que converge e se expressa também na comunhão dos bens materiais. Sim, essa forma de estar juntos, esse amor que vai até aos bolsos, chega a despojar-se do dinheiro para o dar aos irmãos, indo contra o próprio interesse. Ser membros do Corpo de Cristo torna os crentes co-responsáveis uns pelos outros. Ser crentes em Jesus torna-nos todos co-responsáveis uns pelos outros. «Mas olha para aquele, o problema que tem, não me interessa, que se arranje». Não, entre cristãos não podemos dizer: «Pobre homem, tem um problema em casa, está a passar por esta dificuldade familiar». Mas, devo rezar, levo-o comigo, não fico indiferente». Isto é ser cristão. Por isso os fortes sustentam os fracos (cf. Rm 15, 1) e ninguém experimenta a pobreza que humilha e desfigura a dignidade humana, porque vivem esta comunidade: ter o coração em comum. Eles amam-se. Este é o sinal: amor concreto.
Tiago, Pedro e João, os três apóstolos que são as «colunas» da Igreja de Jerusalém, estabelecem de modo comum que Paulo e Barnabé evangelizem os pagãos enquanto evangelizam os judeus, e perguntam apenas a Paulo e Barnabé qual é a condição: não esquecer os pobres, recordar os pobres (cf. Gl 2, 9-10). Não só os pobres materiais, mas também os pobres espirituais, as pessoas que têm problemas e precisam da nossa proximidade. Um cristão parte sempre de si mesmo, do seu próprio coração, e aproxima-se dos outros como Jesus se aproximou de nós. Era assim a primeira comunidade cristã.
Um exemplo concreto da partilha e da comunhão dos bens vem-nos do testemunho de Barnabé: ele possui um campo e vende-o para entregar os proventos aos Apóstolos (cf. At 4, 36-37). Mas, ao lado do seu exemplo positivo, aparece outro, infelizmente negativo: Ananias e a sua esposa Safira, venderam um pedaço de terra, decidiram entregar apenas uma parte aos Apóstolos e guardar a outra para si mesmos (cf. At 5, 1-2). Este engano rompe a cadeia da partilha livre, da partilha serena, altruísta e as consequências são trágicas, fatais (At 5, 5.10). O apóstolo Pedro desmascarou a má conduta de Ananias e de sua esposa e disse-lhe: «Por que é que Satanás invadiu o teu coração, a ponto de te levar a mentir ao Espírito Santo e subtraíres uma parte do terreno? Não foi aos homens que tu mentiste, mas a Deus» (At 5, 3-4). Poderíamos dizer que Ananias mentiu a Deus por causa de uma consciência isolada, uma consciência hipócrita, isto é, por causa de uma pertença eclesial “negociada”, parcial e oportunista. A hipocrisia é o pior inimigo desta comunidade cristã, deste amor cristão: aquele fingir que se amam uns aos outros, mas procurar apenas o próprio interesse.
Falhar na sinceridade da partilha, de facto, ou falhar na sinceridade do amor, é cultivar a hipocrisia, distanciar-se da verdade, tornar-se egoísta, apagar o fogo da comunhão e destinar-se ao gelo da morte interior. Aqueles que se comportam assim passam pela Igreja como turistas. Há muitos turistas na Igreja que estão sempre de passagem, mas nunca entram na Igreja: é o turismo espiritual que os faz acreditar que são cristãos, enquanto são apenas turistas nas catacumbas. Não, não devemos ser turistas na Igreja, mas irmãos uns dos outros. Uma vida baseada unicamente em tirar proveito e vantagem de situações em detrimento de outros, provoca inevitavelmente a morte interior. E quantas pessoas dizem que frequentam a Igreja, que são amigos de sacerdotes, bispos, mas procuram apenas o seu próprio interesse. Estas são as hipocrisias que destroem a Igreja!
O Senhor — peço-o para todos nós — derrame sobre nós o seu Espírito de ternura, que supera qualquer hipocrisia e põe em circulação aquela verdade que alimenta a solidariedade cristã, a qual , longe de ser uma atividade de assistência social, é a expressão indispensável da natureza da Igreja, a terna mãe de todos, especialmente dos mais pobres.
Papa Francisco
Catequese na audiência geral 21.08.2019
Nos Atos dos Apóstolos, a pregação do Evangelho não é confiada unicamente às palavras, mas também a gestos concretos, que dão testemunho da verdade do anúncio. Trata-se de «prodígios e milagres» (At 2, 43) realizados pelos Apóstolos, confirmando a sua palavra e demonstrando que eles agem em nome de Cristo. Acontece, pois, que os Apóstolos intercedem e Cristo atua, agindo «com eles» e confirmando a Palavra com os sinais que a acompanham (cf. Mc 16, 20). Muitos prodígios, numerosos milagres que, realizados pelos Apóstolos, eram precisamente uma manifestação da divindade de Jesus.
Hoje deparamo-nos com a primeira narração de cura, diante de um milagre, que é a primeira narração de cura do Livro dos Atos. Ela tem uma clara finalidade missionária, que visa suscitar a fé. Pedro e João vão rezar no Templo, centro da experiência de fé de Israel, à qual os primeiros cristãos ainda estão fortemente ligados. Os primeiros cristãos rezavam no Templo de Jerusalém. Lucas indica a hora: é a hora nona, ou seja, três da tarde, quando o sacrifício era oferecido em holocausto, como sinal da comunhão do povo com o seu Deus; e também a hora em que Cristo morreu, imolando-se a si mesmo «uma vez para sempre» (Hb 9, 12; 10, 10). E à porta do Templo chamada “Formosa” — a porta Formosa — veem um mendigo, um paralítico de nascença. Por que razão aquele homem estava à porta? Porque a Lei mosaica (cf. Lv 21, 18) impedia a oferenda de sacrifícios por parte de quem tivesse deficiências físicas, consideradas como consequências de alguma culpa. Recordemos que diante de um cego de nascença, o povo tinha perguntado a Jesus: «Quem foi que pecou para que este homem nascesse cego, ele ou os seus pais?» (Jo 9, 2). De acordo com essa mentalidade, existe sempre uma culpa na origem de uma malformação. E em seguida foi-lhes negado até o acesso ao Templo. O coxo, paradigma dos numerosos excluídos e descartados da sociedade, está ali a pedir esmolas como todos os dias. Não pode entrar, mas está diante da porta. E eis que acontece algo inesperado: chegam Pedro e João, e desencadeia-se um jogo de olhares. O aleijado fita os dois para pedir uma esmola; os Apóstolos, ao contrário, olham para ele, convidando-o a fitá-los de maneira diversa, para receber outro dom. O coxo olha para eles e Pedro diz-lhe: «Não tenho ouro nem prata, mas o que tenho, isto te dou: em nome de Jesus Cristo, o Nazareno, levanta-te e caminha!» (At 3, 6). Os Apóstolos estabeleceram uma relação, porque este é o modo como Deus gosta de se manifestar, na relação, sempre no diálogo, sempre nas aparições, sempre com a inspiração do coração: trata-se de relações de Deus connosco; através de um encontro real entre as pessoas, que só pode verificar-se no amor.
Além de ser o centro religioso, o Templo era inclusive um lugar de intercâmbios econômicos e financeiros: a esta redução opuseram-se várias vezes os profetas e até o próprio Jesus (cf. Lc 19, 45-46). Mas quantas vezes penso nisto, quando vejo alguma paróquia onde se considera que o dinheiro é mais importante que os sacramentos! Por favor! Igreja pobre: peçamos isto ao Senhor! Quando se depara com os Apóstolos, aquele mendigo não recebe dinheiro, mas encontra o Nome que salva o homem: Jesus Cristo, o Nazareno. Pedro invoca o Nome de Jesus, ordena ao paralítico que se levante, que se ponha da posição dos vivos: de pé, e toca aquele doente, ou seja, pega-lhe pela mão e levanta-o, gesto no qual São João Crisóstomo vê «uma imagem da Ressurreição» (Homilias sobre os Atos dos Apóstolos, 8). E aqui aparece o retrato da Igreja, que vê quantos estão em dificuldade, não fecha os olhos, sabe encarar a humanidade para criar relações significativas, pontes de amizade e de solidariedade em vez de barreiras. Manifesta-se o rosto de «uma Igreja sem fronteiras que se sente mãe de todos» (Evangelii gaudium, 210), que sabe dar a mão e acompanhar para levantar, não para condenar. Jesus estende sempre a mão, sempre procura levantar, fazer com que as pessoas sarem, sejam felizes, encontrem Deus. Trata-se da «arte do acompanhamento», que se distingue pela delicadeza com a qual nos aproximamos da «terra sagrada do outro», dando ao caminho «o ritmo salutar da proximidade, com um olhar respeitoso e cheio de compaixão, mas que ao mesmo tempo cure, liberte e anime a amadurecer na vida cristã» (ibid., n. 169). E é o que estes dois Apóstolos fazem ao coxo: fitam-no, dizem “olhe para nós”, estendem-lhe a mão, fazem-no levantar e curam-no. Assim faz Jesus com todos nós. Pensemos nisto, quando enfrentarmos maus momentos, situações de pecado e de tristeza. Jesus diz-nos: “Olhai para mim: estou aqui!”. Peguemos na mão de Jesus e deixemo-nos levantar.
Pedro e João ensinam-nos a não confiar nos meios, que também são úteis, mas na verdadeira riqueza que é a relação com o Ressuscitado. Com efeito — como diria São Paulo — «somos julgados pobres, porém enriquecemos a muitos; sem posses, nós que tudo possuímos» (2 Cor 6, 10). O nosso tudo é o Evangelho, que manifesta o poder do Nome de Jesus que realiza prodígios.
E nós, cada um de nós, o que possuímos? Qual é a nossa riqueza, qual é o nosso tesouro? Como podemos enriquecer os outros? Peçamos ao Pai o dom de uma memória grata, recordando os benefícios do seu amor na nossa vida, para dar a todos o testemunho do louvor e da gratidão. Não nos esqueçamos: a mão sempre estendida para ajudar o outro a levantar-se; é a mão de Jesus que, através da nossa, ajuda o próximo a erguer-se!
Papa Francisco
Catequese na audiência Geral - 07.08.2019
Catequese sobre os Atos dos Apóstolos: 4
Bom dia, prezados irmãos e irmãs!
O fruto do Pentecostes, a poderosa efusão do Espírito de Deus sobre a primeira comunidade cristã, foi que muitas pessoas sentiram o próprio coração trespassado pelo alegre anúncio — o querigma — da salvação em Cristo e aderiram livremente a Ele, convertendo-se, recebendo o batismo em seu nome e aceitando por sua vez o dom do Espírito Santo. Cerca de três mil pessoas começam a fazer parte daquela fraternidade, que é o habitat dos crentes e constitui o fermento eclesial da obra de evangelização. O fervor da fé destes irmãos e irmãs em Cristo faz da sua vida o cenário da obra de Deus, que se manifesta com prodígios e sinais através dos Apóstolos. O extraordinário faz-se ordinário e o dia a dia torna-se o espaço da manifestação de Cristo vivo!
O Evangelista Lucas narra-nos isto, mostrando-nos a Igreja de Jerusalém como o paradigma de todas as comunidades cristãs, como o ícone de uma fraternidade que fascina e que não deve ser mitificada, nem sequer minimizada. A narração dos Atos permite-nos olhar para dentro das paredes da domus onde os primeiros cristãos se reúnem como família de Deus, espaço da koinonia, ou seja, da comunhão de amor entre irmãos e irmãs em Cristo. Perscrutando no seu interior, podemos ver que eles vivem de uma forma muito específica: são «assíduos no ensinamento dos Apóstolos, na união fraterna, na fração do pão e nas orações» (At 2, 42). Os cristãos ouvem assiduamente a didaqué, ou seja, o ensinamento apostólico; praticam relacionamentos interpessoais de alta qualidade (inclusive através da comunhão dos bens espirituais e materiais); fazem memória do Senhor mediante a “fração do pão”, isto é, a Eucaristia, e dialogam com Deus na oração. São estas as atitudes do cristão, as quatro caraterísticas de um bom cristão.
Contrariamente à sociedade humana, onde se tende a perseguir os próprios interesses, prescindindo ou até em detrimento do próximo, a comunidade dos crentes afasta o individualismo para favorecer a partilha e a solidariedade. Não há lugar para o egoísmo na alma do cristão: se o teu coração for egoísta, não és cristão, és um mundano, que só procuras a tua vantagem, o teu benefício. E Lucas diz-nos que os crentes permanecem juntos (cf. At 2, 44). A proximidade e a unidade são o estilo dos crentes: próximos, preocupados uns pelos outros, não para falar mal do outro, não, para ajudar, para se aproximar.
Portanto, a graça do Batismo revela a íntima união entre os irmãos em Cristo, que são chamados a compartilhar, a identificar-se com os outros e a dar, «de acordo com as necessidades de cada um» (At 2, 45), ou seja, a generosidade, a esmola, preocupar-se pelo próximo, visitar os doentes, ir ao encontro dos necessitados, de quantos precisam de consolação.
E precisamente porque escolhe o caminho da comunhão e da atenção aos carentes, esta fraternidade que é a Igreja pode levar uma vida litúrgica verdadeira e autêntica. Lucas diz: «Frequentavam diariamente o templo, partiam o pão em suas casas e tomavam o alimento com alegria e simplicidade de coração. Louvavam a Deus e tinham a simpatia de todo o povo» (At 2, 46-47).
Enfim, a narração dos Atos recorda-nos que o Senhor garante o crescimento da comunidade (cf. 2, 47): a perseverança dos crentes na aliança genuína com Deus e com os irmãos torna-se força atrativa que fascina e conquista muitas pessoas (cf. Evangelii gaudium, 14), um princípio graças ao qual a comunidade de crentes de todos os tempos vive.
Oremos ao Espírito Santo a fim de que faça das nossas comunidades lugares onde receber e praticar a vida nova, as obras de solidariedade e de comunhão, lugares onde as liturgias sejam um encontro com Deus, que se torna comunhão com os irmãos e irmãs, lugares que sejam portas abertas para a Jerusalém celestial.
Papa Francisco
catequese na audiência geral 26.06.2019
Catequese sobre os Atos dos Apóstolos: 3.
Bom dia, caros irmãos e irmãs!
Cinquenta dias depois da Páscoa, naquele Cenáculo que já é a casa deles e onde a presença de Maria, Mãe do Senhor, constitui o elemento de coesão, os Apóstolos vivem um evento que supera as suas expetativas. Reunidos em oração — a prece é o “pulmão” que dá fôlego aos discípulos de todos os tempos; sem oração não se pode ser discípulo de Jesus; sem oração não podemos ser cristãos! Ela é o ar, o pulmão da vida cristã — são surpreendidos pela irrupção de Deus. Trata-se de uma irrupção que não tolera o fechamento: escancara as portas através da força de um vento que recorda a ruah, o sopro primordial, e cumpre a promessa da “força” feita pelo Ressuscitado antes da sua despedida (cf. At 1, 8). Chega inesperadamente, do alto: «De repente, veio do céu um ruído, como se soprasse um vento impetuoso, e encheu toda a casa onde eles estavam» (At 2, 2).
Depois, ao vento acrescenta-se o fogo que evoca a sarça ardente e o Sinai, com o dom das dez palavras (cf. Êx 19, 16-19). Na tradição bíblica, o fogo acompanha a manifestação de Deus. No fogo Deus concede a sua palavra viva e enérgica (cf. Hb 4, 12) que abre ao futuro; o fogo exprime simbolicamente a sua função de aquecer, iluminar e testar os corações, a sua cura na provação da resistência das obras humanas, na sua purificação e revitalização. Enquanto no Sinai se ouve a voz de Deus, em Jerusalém, na festa de Pentecostes, quem fala é Pedro, a rocha sobre a qual Cristo quis edificar a sua Igreja. A sua palavra, frágil e capaz até de renegar o Senhor, atravessada pelo fogo do Espírito, adquire força, torna-se capaz de trespassar os corações e de impelir à conversão. Com efeito, Deus escolhe aquilo que é fraco no mundo para confundir os fortes (cf. 1 Cor 1, 27).
Por conseguinte, a Igreja nasce do fogo do amor e de um “incêndio” que arde no Pentecostes e que manifesta a força da Palavra do Ressuscitado, imbuída de Espírito Santo. A Aliança nova e definitiva já não está fundamentada numa lei escrita em tábuas de pedra, mas na ação do Espírito de Deus, que renova tudo e é gravado em corações de carne.
A palavra dos Apóstolos impregna-se do Espírito do Ressuscitado e torna-se uma palavra nova, diferente, que no entanto é compreensível, como se fosse traduzida simultaneamente em todas as línguas: com efeito, «cada um os ouvia falar na própria língua» (At 2, 6). Trata-se da linguagem da verdade e do amor, que é a língua universal: até os analfabetos podem entendê-la. Todos compreendem a linguagem da verdade e do amor. Se te apresentares com a verdade do teu coração, com sinceridade, com amor, todos te hão de entender. Mesmo que tu não possas falar, faz uma carícia que seja verídica e amorosa.
O Espírito Santo não só se manifesta mediante uma sinfonia de sons que une e compõe harmoniosamente as diversidades, mas apresenta-se como o maestro que faz executar as partituras dos louvores pelas «grandes obras» de Deus. O Espírito Santo é o artífice da comunhão, é o artista da reconciliação que sabe remover as barreiras entre judeus e gregos, entre escravos e livres, para fazer de todos um só corpo. Ele edifica a comunidade dos crentes, harmonizando a unidade do corpo e a multiplicidade dos membros. Faz crescer a Igreja, ajudando-a a ir mais além dos limites humanos, dos pecados e de qualquer escândalo.
O assombro é grande, e alguém pergunta se aqueles homens estão embriagados. Então, Pedro intervém em nome de todos os Apóstolos e volta a ler aquele acontecimento à luz de Joel 3, onde se anuncia uma nova efusão do Espírito Santo. Os seguidores de Jesus não estão inebriados, mas vivem aquela que Santo Ambrósio define «a sóbria embriaguez do Espírito» que, através de sonhos e visões, acende a profecia no meio do povo de Deus. Esta dádiva profética não está reservada apenas a alguns, mas a todos aqueles que invocam o nome do Senhor.
Dali por diante, a partir desse momento, o Espírito de Deus impele os corações a acolher a salvação que passa através de uma Pessoa, Jesus Cristo, Aquele que os homens pregaram no madeiro da cruz e que Deus ressuscitou dos mortos, «libertando-o dos grilhões da morte» (At 2, 24). Foi Ele quem infundiu aquele Espírito que orquestra a polifonia de louvores e que todos podem ouvir. Como dizia Bento XVI, «o Pentecostes é isto: Jesus, e através dele o próprio Deus, vem a nós e atrai-nos para dentro de si» (Homilia, 3 de junho de 2006). O Espírito realiza a atração divina: Deus seduz-nos com o seu Amor e deste modo envolve-nos, para mover a história e encetar processos através dos quais Ele filtra a vida nova. Com efeito, só o Espírito de Deus tem o poder de humanizar e fraternizar cada contexto, a partir de quantos o recebem.
Peçamos ao Senhor que nos deixe experimentar um novo Pentecostes, que dilate os nossos corações e sintonize os nossos sentimentos com os de Cristo, para anunciarmos sem vergonha a sua palavra transformadora e testemunharmos o poder do amor que chama à vida tudo o que encontra.
Papa Francisco
Catequese na audiência geral 19.06.2019
Catequese sobre os Atos dos Apóstolos: 2.
Amados irmãos e irmãs, bom dia!
Começamos um percurso de catequeses que seguirá a “viagem”: a viagem do Evangelho narrada pelo livro dos Atos dos Apóstolos, pois este livro mostra certamente a viagem do Evangelho, como o Evangelho foi além, além, além... Tudo parte da Ressurreição de Cristo. Com efeito, ele não é um evento entre outros, mas é a fonte da vida nova. Os discípulos sabem-no e — obedientes ao mandamento de Jesus — permanecem unidos, concordes e perseverantes na oração. Estreitam-se a Maria, a Mãe, e preparam-se para receber o poder de Deus não de maneira passiva, mas consolidando a comunhão entre eles.
Aquela primeira comunidade era composta por mais ou menos 120 irmãos e irmãs: um número que contém o 12, emblemático para Israel, pois representa as doze tribos, e emblemático para a Igreja, devido aos doze Apóstolos escolhidos por Jesus. Mas agora, depois dos eventos dolorosos da Paixão, os Apóstolos do Senhor já não são doze, mas onze. Um deles, Judas, já não existe: matou-se esmagado pelo remorso.
Já antes se tinha começado a separar da comunhão com o Senhor e com os demais, a fazer sozinho, a isolar-se, a apegar-se ao dinheiro chegando a instrumentalizar os pobres, a perder de vista o horizonte da gratuidade e da doação de si, chegando a permitir que o vírus do orgulho contaminasse a sua mente e o seu coração transformando-o de «amigo» (Mt 26, 50) em inimigo e em «guia dos que prenderam Jesus» (At 1, 16). Judas tinha recebido a grande graça de fazer parte do grupo dos íntimos de Jesus e de participar do seu ministério, mas a um certo ponto pretendeu “salvar” por si a sua vida com o resultado de a perder (cf. Lc 9, 24). Deixou de pertencer com o coração a Jesus e afastou-se da comunhão com Ele e com os seus. Deixou de ser discípulo e colocou-se acima do Mestre. Vendeu-o e com o «preço do seu crime» comprou um terreno, que não deu frutos mas ficou impregnado com o seu próprio sangue (cf. At 1, 18-19).
Se Judas preferiu a morte e não a vida (cf. Dt 30, 19; Eclo 15, 17) e seguiu o exemplo dos ímpios cuja via é como a obscuridade e cai em ruínas (cf. Pr 4, 19; Sl 1, 6), ao contrário os Onze escolhem a vida e a bênção, tornam-se responsáveis em fazê-la fluir por sua vez na história, de geração em geração, do povo de Israel para a Igreja.
O Evangelista Lucas mostra-nos que diante do abandono de um dos Doze, que causou uma ferida no corpo comunitário, é necessário que o seu cargo passe para outro. E quem o poderia assumir? Pedro indica uma exigência: o novo membro deve ter sido um discípulo de Jesus desde o início, ou seja, desde o Batismo no Jordão, até ao final, isto é, à ascensão ao Céu (cf. At 1, 21-22). É necessário reconstruir o grupo dos Doze. Inaugura-se a este ponto a praxe do discernimento comunitário, que consiste em ver a realidade com os olhos de Deus, na ótica da unidade e da comunhão.
São dois os candidatos: José Barsabás e Matias. Então toda a comunidade reza assim: «Senhor, Tu que conheces o coração de todos, indica-nos qual destes dois escolheste para ocupar... o lugar abandonado por Judas» (At 1, 24-25). E, através do destino, o Senhor indica Matias, que é associado aos Onze. Reconstrói-se assim o corpo dos Doze, sinal da comunhão, e a comunhão vence as divisões, o isolamento, a mentalidade que absolutiza o espaço do particular, sinal de que a comunhão é o primeiro testemunho que os Apóstolos oferecem. Jesus tinha dito: «Por isto é que todos conhecerão que sois meus discípulos: se vos amardes uns aos outros» (Jo 13, 35).
Os Doze manifestam nos Atos dos Apóstolos o estilo do Senhor. São as testemunhas acreditadas da obra de salvação de Cristo e não manifestam ao mundo a sua suposta perfeição mas, através da graça da unidade, fazem sobressair Outro que já vive num mundo novo no meio do seu povo. E quem é ele? É o Senhor Jesus. Os Apóstolos escolhem viver sob o senhorio do Ressuscitado na unidade entre os irmãos, que se torna a única atmosfera possível da doação autêntica de si.
Também nós temos necessidade de redescobrir a beleza de testemunhar o Ressuscitado, abandonando as atitudes autorreferenciais, renunciando a reter os dons de Deus e não cedendo à mediocridade. A recomposição do colégio apostólico mostra que no DNA da comunidade cristã existe a unidade e a liberdade de si mesmo, que permitem não temer a diversidade, não apegar-se às coisas nem aos dons e tornar-se martyres, ou seja, testemunhas luminosas do Deus vivo e ativo na história.
Papa Francisco
Catequese na audiência Geral 12.06.2019
Amados irmãos e irmãs, bom dia!
Começamos hoje um percurso de catequeses sobre o Livro dos Atos dos Apóstolos. Este livro bíblico, escrito por São Lucas evangelista, fala-nos da viagem — de uma viagem: mas de qual viagem? Da viagem do Evangelho no mundo e mostra-nos a maravilhosa ligação entre a Palavra de Deus e o Espírito Santo que inaugura o tempo da evangelização. Os protagonistas dos Atos são precisamente um “casal” vivaz e eficaz: a Palavra e o Espírito.
Deus «envia a sua mensagem à terra» e «a sua palavra corre veloz» — diz o Salmo (147, 4). A Palavra de Deus corre, é dinâmica, irriga todo o terreno sobre o qual cai. E qual é a sua força? São Lucas diz-nos que a palavra humana se torna eficaz não graças à retórica, que é a arte de falar bem, mas graças ao Espírito Santo, que é a dýnamis de Deus, a dinâmica de Deus, a sua força, que tem o poder de purificar a palavra, de a tornar portadora de vida. Por exemplo, na Bíblia há histórias, palavras humanas; mas qual é a diferença entre a Bíblia e um livro de história? Que as palavras da Bíblia são tiradas do Espírito Santo o qual dá uma força muito grande, uma força diversa e ajuda-nos a fim de que aquela palavra seja semente de santidade, semente de vida, seja eficaz. Quando o Espírito visita a palavra humana ela torna-se dinâmica, como “dinamite”, isto é, capaz de acender os corações e de fazer saltar esquemas, resistências e muros de divisão, abrindo caminhos novos e dilatando os confins do povo de Deus. E veremos isto no percurso destas catequeses, no livro dos Atos dos Apóstolos.
Aquele que confere sonoridade vibrante e incisividade à nossa palavra humana tão frágil, capaz até de mentir e de se subtrair às próprias responsabilidades, é unicamente o Espírito Santo, por meio do qual o Filho de Deus foi gerado; o Espírito que o ungiu e amparou na missão; o Espírito graças ao qual escolheu os seus apóstolos e que garantiu ao seu anúncio a perseverança e a fecundidade, como as garante também hoje ao nosso anúncio.
O Evangelho conclui-se com a ressurreição e a ascensão de Jesus, e a narração dos Atos dos Apóstolos começa precisamente por aqui, pela superabundância da vida do ressuscitado infundida na sua Igreja. São Lucas diz-nos que Jesus «apareceu vivo depois da sua paixão e deu-lhes disso numerosas provas com as suas aparições, durante quarenta dias, e falando-lhes também a respeito do Reino de Deus» (At 1, 3). O Ressuscitado, Jesus Ressuscitado realiza gestos humaníssimos, como partilhar a refeição com os seus, e convida-os a viver confiantes na expetativa do cumprimento da promessa do Pai: «sereis batizados no Espírito Santo» (At 1, 5).
Com efeito, o batismo no Espírito Santo é a experiência que nos permite entrar numa comunhão pessoal com Deus e participar na sua vontade salvífica universal, adquirindo o talento da parresia, a coragem, ou seja, a capacidade de pronunciar uma palavra “como filhos de Deus”, não só como homens, mas como filhos de Deus: uma palavra límpida, livre, eficaz, cheia de amor a Cristo e aos irmãos.
Portanto, não é preciso lutar para conquistar ou merecer o dom de Deus. Tudo é concedido gratuitamente e no devido momento. O Senhor dá tudo de graça. A salvação não se compra, não se paga: é um dom gratuito. Diante da ansiedade de conhecer antecipadamente o tempo no qual acontecerão os eventos por Ele anunciados, Jesus responde aos seus: «Não vos compete saber os tempos nem os momentos que o Pai fixou com a sua autoridade. Mas ides receber uma força, a do Espírito Santo, que descerá sobre vós, e sereis minhas testemunhas em Jerusalém, por toda a Judeia e Samaria e até aos confins do mundo» (At 1, 7-8).
O Ressuscitado convida os seus a não viver com ansiedade o presente, mas a fazer aliança com o tempo, a saber esperar o desvendar-se de uma história sagrada que nunca se interrompeu mas que progride, que vai sempre em frente; a saber aguardar os “passos” de Deus, Senhor do tempo e do espaço. O Ressuscitado convida os seus a não “fabricar” sozinhos a missão, mas a aguardar que seja o Pai a dinamizar os seus corações com o seu Espírito, a fim de se poderem engajar num testemunho missionário capaz de se irradiar de Jerusalém até à Samaria e de ultrapassar os confins de Israel e alcançar as periferias do mundo.
Os Apóstolos vivem juntos esta expetativa, vivem-na como família do Senhor, na sala de cima ou cenáculo, cujas paredes ainda são testemunhas do dom com o qual Jesus se entregou aos seus na Eucaristia. E de que modo aguardam a força, a dýnamis de Deus? Rezando com perseverança, como se não fossem muitos mas um só. Rezando em unidade e com perseverança. Com efeito, é com a oração que se vence a solidão, a tentação, a suspeita e se abre o coração à comunhão. A presença das mulheres e de Maria, a mãe de Jesus, intensifica esta experiência: elas foram as primeiras que aprenderam do Mestre a testemunhar a fidelidade do amor e a força da comunhão que vence qualquer receio.
Peçamos também nós ao Senhor a paciência de aguardar os seus passos, de não querermos “fabricar” a sua obra e de permanecer dóceis rezando, invocando o Espírito e cultivando a arte da comunhão eclesial.
Papa Francisco
Catequese na audiência geral 29.05.2019
Catequese sobre o "Pai Nosso”: 16
Amados irmãos e irmãs, bom dia!
Hoje concluímos o ciclo de catequeses sobre o “Pai-Nosso”. Podemos dizer que a oração cristã nasce da audácia de chamar Deus com o nome de “Pai”. Esta é a raiz da oração cristã: dizer “Pai” a Deus. Mas é preciso coragem! Não se trata tanto de uma fórmula, quanto de uma intimidade filial na qual somos introduzidos por graça: Jesus é o revelador do Pai e doa-nos a familiaridade com Ele. «Não nos deixa uma fórmula para ser repetida maquinalmente. Como em toda a oração vocal, é pela Palavra de Deus que o Espírito Santo ensina os filhos de Deus a orar ao seu Pai» (Catecismo da Igreja Católica, 2766). O próprio Jesus usou diversas expressões para rezar ao Pai. Se lermos com atenção os Evangelhos, descobrimos que estas expressões de oração que afloram aos lábios de Jesus evocam o texto do “Pai-Nosso”.
Por exemplo, na noite do Getsémani Jesus reza deste modo: «Abbá, Pai, tudo te é possível; afasta de mim este cálice! Mas não se faça o que Eu quero, e sim o que Tu queres» (Mc 14, 36). Já recordamos este texto do Evangelho de Marcos. Como não deixar de reconhecer nesta prece, mesmo sendo breve, um vestígio do “Pai-Nosso”? No meio das trevas, Jesus invoca Deus com o nome de “Abbá”, com confiança filial e, mesmo sentindo medo e angústia, pede que se cumpra a sua vontade.
Noutros trechos do Evangelho Jesus insiste com os seus discípulos, para que cultivem um espírito de oração. A prece deve ser insistente, e sobretudo deve incluir a recordação dos irmãos, sobretudo quando vivem relações difíceis com eles. Jesus diz: «Quando vos levantais para orar, se tiverdes alguma coisa contra alguém, perdoai-lhe primeiro, para que o vosso Pai que está no céu vos perdoe também as vossas ofensas» (Mc 11, 24-25). Como não reconhecer nestas expressões a concordância com o “Pai-Nosso”? E os exemplos poderiam ser numerosos, também para nós.
Nos escritos de São Paulo não encontramos o texto do “Pai-Nosso”, mas a sua presença emerge naquela síntese maravilhosa na qual a invocação do cristão se condensa numa só palavra: “Abbá!” (cf. Rm 8, 15; Gl 4, 6).
No Evangelho de Lucas, Jesus satisfaz plenamente o pedido dos discípulos que, vendo muitas vezes que Ele se afasta e se imerge na oração, um dia decidem-se a pedir-lhe: «Senhor, ensina-nos a orar, como João — o Batista — também ensinou os seus discípulos» (11, 1). E então o Mestre ensinou-lhes a oração ao Pai.
Considerando o Novo Testamento no seu conjunto, vê-se claramente que o primeiro protagonista de cada oração cristã é o Espírito Santo. Mas não esqueçamos isto: protagonista de cada oração cristã é o Espírito Santo. Nós nunca poderíamos rezar sem a força do Espírito Santo. É Ele que reza em nós e nos move a rezar bem. Podemos pedir ao Espírito que nos ensine a rezar, pois ele é o protagonista, aquele que faz a verdadeira oração em nós. Ele sopra no coração de cada um de nós, que somos discípulos de Jesus. O Espírito torna-nos capazes de rezar como filhos de Deus, como realmente somos mediante o Batismo. O Espírito faz-nos rezar no “sulco” que Jesus escavou para nós. Este é o mistério da oração cristã: por graça somos atraídos naquele diálogo de amor da Santíssima Trindade.
Jesus rezava assim. Algumas vezes usou expressões que certamente estão muito distantes do texto do “Pai-Nosso”. Pensemos nas palavras iniciais do salmo 22, que Jesus pronuncia na cruz: «Meu Deus, meu Deus, por que me abandonaste?» (Mt 27, 46). Pode o Pai celeste abandonar o seu Filho? Claro que não. Contudo o amor por nós, pecadores, levou Jesus até este ponto: até experimentar o abandono de Deus, a sua distância, pois assumiu sobre si todos os nossos pecados. Mas também no grito angustiado, permanece o «meu Deus, meu Deus». Naquele “meu” está o núcleo da relação com o Pai, está o fulcro da fé e da oração.
Eis por que, a partir deste fulcro, um cristão pode rezar em qualquer situação. Pode assumir todas as orações da Bíblia, especialmente dos Salmos; mas pode rezar também com tantas expressões que em milênios de história brotaram do coração dos homens. E ao Pai nunca deixemos de falar dos nossos irmãos e irmãs em humanidade, para que nenhum deles, sobretudo os pobres, permaneça sem uma consolação nem uma porção de amor.
No final desta catequese, podemos repetir aquela oração de Jesus: «Bendigo-te, ó Pai, Senhor do Céu e da Terra, porque escondeste estas coisas aos sábios e aos inteligentes e as revelaste aos pequeninos» (Lc 10, 21). Para rezar devemos fazer-nos pequeninos, para que o Espírito Santo venha em nós e seja Ele quem nos guia na oração.
Papa Francisco
Catequese na audiência Geral 22.05.2019
Catequese sobre o "Pai Nosso”: 15
E eis que chegamos ao sétimo pedido do “Pai-Nosso”: «Livrai-nos do mal» (Mt 6, 13b).
Com esta expressão, quem reza não só pede para não ser abandonado no tempo da tentação, mas suplica também para ser libertado do mal. O verbo grego original é muito forte: evoca a presença do maligno que tende a agarrar-nos e a morder-nos (cf. 1 Pd 5, 8) e do qual se pede a Deus a libertação. O apóstolo Pedro diz também que o maligno, o diabo, está à nossa volta como um leão furioso, para nos devorar, e nós pedimos a Deus que nos liberte.
Com esta dúplice súplica “não nos deixeis cair em tentação” e “livrai-nos”, sobressai uma característica essencial da oração cristã. Jesus ensina aos seus amigos a colocar a invocação do Pai diante de tudo, até e sobretudo nos momentos nos quais o maligno faz sentir a sua presença ameaçadora. Com efeito, a oração cristã não fecha os olhos sobre a vida. É uma prece filial e não uma oração infantil. Não está encantada pela paternidade de Deus, a ponto de esquecer que o caminho do homem está cheio de dificuldades. Se não houvesse os últimos versos do “Pai-Nosso” como poderiam rezar os pecadores, os perseguidos, os desesperados, os moribundos? A última petição é precisamente o nosso pedido quando estivermos no limite, sempre.
Há um mal na nossa vida, que é uma presença incontestável. Os livros de história são o desolador catálogo de quanto a nossa existência neste mundo tem sido uma aventura muitas vezes fracassada. Há um mal misterioso, que certamente não é obra de Deus mas que penetra silenciosamente nas dobras da história. Silencioso como a serpente que leva o veneno sorrateiramente. Nalguns momentos parece que domina: em certos dias a sua presença parece até mais nítida do que a da misericórdia de Deus.
O orante não é cego, e vê claramente diante de si este mal tão pesado, e em contradição com o próprio mistério de Deus. Divisa-o na natureza, na história, até no seu coração. Pois não há ninguém entre nós que possa dizer que está livre do mal, ou que não se sente pelo menos tentado. Todos nós sabemos o que é o mal; todos sabemos o que é a tentação; todos experimentamos na nossa pele a tentação, de qualquer pecado. Mas é o tentador que nos move e nos leva ao mal, dizendo-nos: “faz isto, pensa isto, vai por aquele caminho”.
O último brado do “Pai-Nosso” é lançado contra este mal “com orlas amplas”, que mantém debaixo do seu guarda-chuva as experiências mais diversas: os lutos do homem, o sofrimento inocente, a escravidão, a instrumentalização do outro, o pranto das crianças inocentes. Todos estes eventos protestam no coração do homem e tornam-se voz na última palavra da oração de Jesus.
É precisamente nas narrações da Paixão que algumas expressões do “Pai-Nosso” encontram o seu eco mais impressionante. Jesus diz: «Abbá, Pai, tudo te é possível; afasta de mim este cálice! Mas não se faça o que Eu quero, e sim o que Tu queres» (Mc 14, 36). Jesus experimenta totalmente o trespasse do mal. Não só a morte, mas a morte de cruz. Não só a solidão, mas também o desprezo, a humilhação. Não só a má vontade mas também a crueldade, a perseguição contra Ele. Eis o que é o homem: um ser devotado à vida, que sonha o amor e o bem, mas que depois se expõe continuamente ao mal, a si mesmo e aos seus semelhantes, a ponto que podemos ser tentados a perder a esperança no homem.
Queridos irmãos e irmãs, assim o “Pai-Nosso” assemelha-se a uma sinfonia que pede para ser realizada em cada um de nós. O cristão sabe quanto é tentador o poder do mal, e ao mesmo tempo experimenta como Jesus, que nunca cedeu às suas lisonjas, está da nossa parte e vem em nossa ajuda.
Assim a oração de Jesus deixa-nos a herança mais preciosa: a presença do Filho de Deus que nos libertou do mal, lutando para o converter. Na hora do combate final, ordena a Pedro que enfie a espada na bainha, garante ao ladrão arrependido o paraíso, a todos os homens que estavam à sua volta, inconscientes da tragédia que estava a ser consumada, oferece uma palavra de paz: «Pai, perdoa-lhes, pois não sabem o que fazem» (Lc 23, 34).
Do perdão de Jesus na cruz jorra a paz, a verdadeira paz vem da cruz: é dom do Ressuscitado, um dom que Jesus nos concede. Pensai que a primeira saudação de Jesus ressuscitado é “a paz esteja convosco”, a paz nas vossas almas, nos vossos corações, nas vossas vidas. O Senhor concede-nos a paz, dá-nos o perdão mas nós devemos pedir: “livrai-nos do mal”, para não cair no mal. Esta é a nossa esperança, a força que Jesus ressuscitado nos concede, que está aqui, no meio de nós: está aqui. Está aqui com aquela força que nos concede para irmos em frente, e promete que nos liberta do mal.
Papa Francisco
Catequese na audiência Geral 15.05.2019
Catequese sobre o "Pai Nosso”: 14
Queridos irmãos e irmãs, bom dia!
Prosseguimos a catequese sobre o “Pai-Nosso”, chegando hoje à penúltima invocação: «Não nos abandones à tentação» [versão em italiano]. Outra versão diz: «Não nos deixeis cair em tentação» (Mt 6, 13). O “Pai-Nosso” começa de maneira serena: faz-nos desejar que o grande projeto de Deus se possa realizar no meio de nós. Depois lança um olhar à vida, e faz-nos pedir aquilo de que precisamos todos os dias: o “pão de cada dia”. Em seguida, a oração concentra-se nas nossas relações interpessoais, muitas vezes poluídas pelo egoísmo: pedimos o perdão e comprometemo-nos a concedê-lo. Mas é com esta última invocação que o nosso diálogo com o Pai celeste entra, por assim dizer, vai ao cerne do drama, ou seja, ao âmbito do confronto entre a nossa liberdade e as ciladas do maligno.
Como se sabe, a expressão original grega contida nos Evangelhos é difícil de traduzir de maneira exata, e todas as traduções modernas são um pouco imprecisas. Mas sobre um elemento podemos convergir de maneira unânime: seja qual for a interpretação do texto, devemos excluir que é Deus o protagonista das tentações que ameaçam o caminho do homem. Como se Deus estivesse emboscado para armar ciladas e armadilhas aos seus filhos. Uma interpretação deste gênero antes de tudo está em contraste com o próprio texto, e longe da imagem de Deus que Jesus nos revelou. Não esqueçamos: o “Pai-Nosso” começa com “Pai”. E um pai não arma ciladas aos filhos. Os cristãos não têm que lidar com um Deus invejoso, em competição com o homem, ou que se diverte a pô-lo à prova. Estas são as imagens de tantas divindades pagãs. Lemos na Carta de Tiago apóstolo: «Ninguém diga, quando for tentado pelo mal: “É Deus que me tenta”. Porque Deus não é tentado pelo mal, nem tenta ninguém» (1, 13). No máximo é o contrário: o Pai não é o autor do mal, a nenhum filho que pede um peixe ele dá uma serpente (cf. Lc 11, 11) — como ensina Jesus — e quando o mal se insinua na vida do homem, combate ao seu lado, para que possa ser libertado. Um Deus que combate sempre por nós, não contra nós. É o Pai! É neste sentido que rezamos o “Pai-Nosso”.
Estes dois momentos — a prova e a tentação — estiveram misteriosamente presentes na vida de Jesus. Nesta experiência o Filho de Deus fez-se completamente nosso irmão, duma maneira que chega quase ao escândalo. E são precisamente estes excertos evangélicos que nos demonstram que as invocações mais difíceis do “Pai-Nosso”, aquelas que encerram o texto, já foram ouvidas: Deus não nos deixou sozinhos, mas em Jesus Ele manifesta-se como o “Deus-connosco” até às extremas consequências. Está connosco quando nos dá a vida, está connosco durante a vida, está connosco na alegria, está connosco nas provações, está connosco nas tristezas, está connosco nas derrotas, quando pecamos, mas está sempre connosco, porque é Pai e não nos pode abandonar.
Se formos tentados a praticar o mal, negando a fraternidade com os outros e desejando um poder absoluto sobre tudo e sobre todos, Jesus já combateu por nós esta tentação: confirmam-no as primeiras páginas dos Evangelhos. Logo depois de ter recebido o batismo pelas mãos de João, no meio da multidão dos pecadores, Jesus retira-se no deserto e é tentado por Satanás. Começa assim a vida pública de Jesus, com as tentações que vêm de Satanás. Satanás estava presente. Muitas pessoas dizem: “mas por que falar do diabo que é uma coisa antiga? O diabo não existe”. Repara no que te ensina o Evangelho: Jesus confrontou-se com o diabo, foi tentado por Satanás. Mas Jesus afasta qualquer tentação e sai vitorioso. O Evangelho de Mateus tem um aspeto interessante que encerra o duelo entre Jesus e o Inimigo: «Então, o diabo deixou-o e chegaram os anjos e serviram-no» (4, 11).
Mas também no tempo da provação suprema Deus não nos deixa sozinhos. Quando Jesus se retira para rezar no Getsemani, o seu coração é invadido por uma angústia indescritível — assim diz aos discípulos — e Ele experimenta a solidão e o abandono. Sozinho, com a responsabilidade de todos os pecados do mundo sobre os ombros; sozinho, com uma angústia inenarrável. A provação é tão dilacerante que acontece algo inesperado. Jesus nunca mendiga amor para si mesmo, contudo naquela noite sente a sua alma triste até à morte, e então pede a proximidade dos seus amigos: «ficai aqui e vigiai comigo» (Mt 26, 38). Como sabemos, os discípulos, sobrecarregados por um entorpecimento causado pelo medo, adormeceram. No tempo da agonia, Deus pede ao homem que não o abandone, e ao contrário o homem dorme. No tempo em que o homem conhece a sua provação, Deus vigia. Nos momentos mais difíceis da nossa vida, nos momentos de mais sofrimento, nos momentos mais angustiantes, Deus vigia connosco, Deus luta conosco, está sempre próximo de nós. Porquê? Porque é Pai. Começamos assim a oração: “Pai-Nosso”. E um pai não abandona os seus filhos. Aquela noite de dor e de luta são para Jesus o último selo da Encarnação: Deus desce para se encontrar connosco nos nossos abismos e nas aflições que constelam a história.
É o nosso conforto na hora da provação: saber que aquele vale, desde quando Jesus o atravessou, já não está desolado, mas está abençoado pela presença do Filho de Deus. Ele nunca nos abandonará!
Por conseguinte, ó Deus, afasta de nós o tempo da provação e da tentação. Mas quando chegar para nós este tempo, Pai nosso, mostra-nos que não estamos sozinhos. Tu és o Pai. Mostra-nos que Cristo já carregou sobre si também o peso daquela cruz. Mostra-nos que Jesus nos chama a carregá-la com Ele, abandonando-nos confiantes ao teu amor de Pai. Obrigado.
Papa Francisco
Catequese na audiência Geral 01.05.2019
Catequese sobre o "Pai Nosso": 13
Amados irmãos e irmãs, bom dia!
Hoje completamos a catequese sobre o quinto pedido do “Pai-Nosso”, analisando a expressão «assim como nós perdoamos a quem nos tem ofendido» (Mt 6, 12). Vimos que é próprio do homem ser devedor diante de Deus: d’Ele recebemos tudo, em termos de natureza e de graça. A nossa vida não só foi querida, mas foi amada por Deus. Deveras não há espaço para a presunção quando juntamos as mãos para rezar. Não existem na Igreja “self made man”, homens que se fizeram sozinhos. Todos somos devedores para com Deus e para com tantas pessoas que nos proporcionaram condições de vida favoráveis. A nossa identidade constrói-se a partir do bem recebido. O primeiro é a vida.
Quem reza aprende a dizer “obrigado”. E nós muitas vezes esquecemo-nos de dizer “obrigado”, somos egoístas. Quem reza aprende a dizer “obrigado” e pede a Deus para ser benévolo com o próximo. Por muito que nos esforcemos, permanece sempre uma dívida impagável diante de Deus, que nunca poderemos restituir: Ele ama-nos infinitamente mais de quanto nós o amamos. E depois, por muito que nos empenhemos para viver segundo os ensinamentos cristãos, na nossa vida haverá sempre alguma coisa da qual pedir perdão: pensemos nos dias passados na preguiça, nos momentos em que o rancor invadiu o nosso coração e assim por diante... São estas experiências, infelizmente não raras, que nos fazem implorar: “Senhor, Pai, perdoai-nos os nossos pecados”. Deste modo pedimos perdão a Deus.
Pensando bem, a invocação podia até limitar-se a esta primeira parte; teria sido bela. Ao contrário Jesus liquida-a com uma segunda expressão que é um todo com a primeira. A relação de benevolência vertical por parte de Deus desvia-se e é chamada a traduzir-se numa relação nova que vivemos com os nossos irmãos: uma relação horizontal. O Deus bom convida-nos a sermos todos bondosos. As duas partes da invocação ligam-se com uma conjunção impiedosa: pedimos ao Senhor que perdoe os nossos pecados, as nossas faltas, “como” nós perdoamos aos nossos amigos, às pessoas que vivem connosco, aos nossos vizinhos, a quem nos fez alguma coisa desagradável.
Cada cristão sabe que existe para ele o perdão dos pecados, isto todos o sabemos: Deus perdoa tudo e perdoa sempre. Quando Jesus conta aos seus discípulos o rosto de Deus, esboça-o com expressões de terna misericórdia. Diz que há mais alegria no céu por um pecador que se arrepende, do que por uma multidão de justos que não precisam de conversão (cf. Lc 15, 7-10). Nos Evangelhos nada deixa suspeitar que Deus não perdoa os pecados de quem está bem disposto e pede para ser reabraçado.
Mas a graça de Deus, tão abundante, é sempre exigente. Quem recebeu muito deve aprender a dar muito e a não reter só para si aquilo que recebeu. Quem recebeu muito deve aprender a dar muito. Não é ocasional que o Evangelho de Mateus, logo depois de ter oferecido o texto do “Pai-Nosso”, entre as sete expressões usadas frise precisamente a do perdão fraterno: «Porque, se perdoardes aos homens as suas ofensas, também o vosso Pai celeste vos perdoará a vós. Se, porém, não perdoardes aos homens as suas ofensas, também o vosso Pai não vos perdoará as vossas» (Mt 6, 14-15). Mas isto é forte! Eu penso: algumas vezes ouvi quem disse: “Nunca perdoarei aquela pessoa! Nunca perdoarei o que me fez!”. Mas se tu não perdoares, Deus nunca te perdoará. Fechas a porta. Pensemos se nós somos capazes de perdoar ou se não perdoamos. Um sacerdote, quando eu estava na outra diocese, contou-me angustiado que tinha ido conferir os últimos sacramentos a uma idosa que estava em ponto de morte. A pobre senhora não conseguia falar. E o sacerdote disse: “Senhora, arrepende-se dos pecados?”. A senhora acenou que sim; não os podia confessar mas acenou que sim. É suficiente. E depois ainda: “A senhora perdoa os demais?”. E a senhora, em ponto de morte acenou que não. O sacerdote ficou angustiado. Se tu não perdoares, Deus não te perdoará. Pensemos se nós cristãos, aqui, perdoamos, se somos capazes de perdoar. “Padre, eu não consigo, porque aquela gente fez-me tantas”. “Mas se tu não conseguires, pede ao Senhor que te conceda a força para conseguires: Senhor, ajuda-me a perdoar. Encontramos aqui a ligação entre o amor a Deus e o amor ao próximo. Amor chama amor, perdão chama perdão. Ainda em Mateus encontramos outra parábola muito intensa dedicada ao perdão fraterno (cf. 18, 21-35). Ouçamo-la.
Havia um servo que tinha contraído uma dívida enorme com o seu rei: dez mil talentos! Uma quantia impossível de restituir; não sei quanto seria hoje, mas centenas de milhões. Mas aconteceu o milagre, e aquele servo não obtém um prazo mais longo para pagar, mas o perdão total. Uma graça inesperada! Mas eis que precisamente aquele servo, logo a seguir, se volta contra um seu irmão que lhe deve cem denários — pouca coisa — e, mesmo sendo esta uma quantia acessível, não aceita desculpas nem súplicas. Por isso, no final, o dono chama-o e condena-o. Pois se não te esforças por perdoar, não serás perdoado; se não te esforças por amar, também não serás amado.
Jesus insere nas relações humanas a força do perdão. Na vida nem tudo se resolve com a justiça. Não. Sobretudo onde se deve pôr um limite ao mal, alguém tem que amar além do devido, para recomeçar uma história de graça. O mal conhece as suas vinganças, e se ele não for interrompido corre o risco de se alastrar sufocando o mundo inteiro.
Jesus substitui a lei de talião — o que me fizeste, eu restituo-te — com a lei do amor: aquilo que Deus fez a mim, eu restituo-o a ti! Pensemos hoje, nesta semana de Páscoa tão bonita, se eu sou capaz de perdoar. E se não me sentir capaz, devo pedir ao Senhor que me conceda a graça de perdoar, pois saber perdoar é uma graça.
Deus concede a cada cristão a graça de escrever uma história de bem na vida dos seus irmãos, especialmente daqueles que fizeram algo desagradável e errado. Com uma palavra, um abraço, um sorriso, podemos transmitir aos outros aquilo que recebemos de mais precioso. Qual é a coisa preciosa que recebemos? O perdão, que devemos ser capazes de dar também aos demais.
Papa Francisco
Catequese na audiência geral 24.04.2019
Amados irmãos e irmãs, bom dia!
Estamos a refletir nestas semanas sobre a oração do «Pai-Nosso». Agora, na vigília do Tríduo pascal, detenhamo-nos sobre algumas palavras com as quais Jesus, durante a Paixão, rezou ao Pai.
A primeira invocação acontece depois da Última Ceia, quando o Senhor, «levantando os olhos ao céu, exclamou: “Pai, chegou a hora! Manifesta a glória do teu Filho — e depois — manifesta a minha glória junto de ti, aquela glória que Eu tinha junto de ti, antes de o mundo existir”» (Jo 17, 1.5). Jesus pede a glória, um pedido que parece paradoxal quando a Paixão está para acontecer. De qual glória se trata? A glória na Bíblia, indica o revelar-se de Deus, é o sinal distintivo da sua presença salvífica entre os homens. Pois bem, Jesus é Aquele que manifesta de modo definitivo a presença e a salvação de Deus. E fá-lo na Páscoa: erguido na cruz, é glorificado (cf. Jo 12, 23-33). Nela Deus finalmente revela a sua glória: tira o último véu e surpreende-nos como nunca. Com efeito, descobrimos que a glória de Deus é toda amor: amor puro, louco e impensável, além de qualquer limite e medida.
Irmãos e irmãs, façamos nossa a oração de Jesus: peçamos ao Pai para que tire os véus dos nossos olhos a fim de que nestes dias, olhando para o Crucificado, possamos aceitar que Deus é amor. Quantas vezes o imaginamos dono e não Pai, quantas vezes o consideramos juiz severo em vez de Salvador misericordioso! Mas na Páscoa Deus elimina as distâncias, mostrando-se na humildade de um amor que pede o nosso amor. Por conseguinte, nós o glorificamos quando vivemos tudo o que fazemos com amor, quando fazemos tudo de coração, como se fosse por Ele (cf. Cl 3, 17). A verdadeira glória é a glória do amor, pois é a única que dá a vida ao mundo. Claro, esta glória é o contrário da glória mundana, que chega quando somos admirados, louvados, aclamados: quando estamos no centro da atenção. A glória de Deus, ao contrário, é paradoxal: nenhum aplauso, nenhuma audiência. No centro não está o eu, mas o outro: com efeito, na Páscoa vemos que o Pai glorifica o Filho enquanto o Filho glorifica o Pai. Ninguém se glorifica a si mesmo. Nós hoje podemos questionar-nos: “Qual é a glória para a qual vivo? A minha ou a de Deus? Desejo unicamente receber dos outros ou também doar aos demais?».
Depois da Última Ceia Jesus entrou no jardim do Getsemani; também aqui reza ao Pai. Enquanto os discípulos não conseguem permanecer acordados e Judas está para chegar com os soldados, Jesus começa a sentir «medo e angústia». Sente toda a angústia por aquilo que o espera: traição, desprezo, sofrimento, fracasso. Sente-se «triste» e ali, no abismo, naquela desolação, dirige ao Pai a palavra mais terna e meiga: «Abbà», ou seja papá (cf. Mc 14, 33-36). Na provação Jesus ensina-nos a abraçar o Pai, porque na oração a Ele encontra-se a força para ir em frente no sofrimento. Na fadiga a oração é alívio, recomendação, conforto. No abandono de todos, na desolação interior Jesus não está sozinho, está com o Pai. Nós, ao contrário, nos nossos Getsemanis escolhemos com frequência permanecer sozinhos, em vez de dizer «Pai» e confiar-nos a Ele, como Jesus, recomendar-nos à sua vontade, que é o nosso verdadeiro bem. Mas quando na provação permanecemos fechados em nós mesmos escavamos um túnel dentro de nós, um doloroso percurso introverso que tem uma só direção: cada mais no fundo de nós mesmos. O maior problema não é a dor, mas a maneira como a enfrentamos. A solidão não tem saída; a oração sim, porque é relação, é recomendar-se. Jesus recomenda tudo e entrega-se ao Pai, levando-lhe aquilo que sente, apoiando-se n’Ele na luta. Quando entramos nos nossos Getsemanis — cada um de nós tem os próprios Getsemanis ou os teve ou os terá — recordemo-nos disto: quando entramos, quando entraremos no nosso Getsemani, recordemo-nos de rezar assim: “Pai”.
Por fim, Jesus dirige ao Pai uma terceira oração por nós: «Perdoa-lhes, Pai, porque não sabem o que fazem» (Lc 23, 34). Jesus reza por quem foi maléfico com Ele, pelos seus algozes. O Evangelho especifica que esta oração acontece no momento da crucificação. Provavelmente era o momento da dor mais aguda, quando cravaram os pregos nos pulsos e nos pés de Jesus. Aqui, no momento mais doloroso, o amor atinge o ápice: chega o perdão, ou seja, o dom extremo, que interrompe o círculo do mal.
Rezando nestes dias o “Pai-Nosso”, que possamos pedir uma destas graças: viver os nossos dias para glória de Deus, ou seja, viver com amor; saber confiar-nos ao Pai nas provações e dizer “papá” ao Pai e obter no encontro com o Pai o perdão e a coragem para perdoar. Estas duas coisas caminham juntas. O Pai perdoa-nos e infunde-nos a coragem para poder perdoar.
Papa Francisco
Audiência Geral 17.04.2019
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