Sempre figura nos dicionários, como um dos significados possíveis para “solidariedade”, a ideia de uma adesão à causa de outrem, de uma solicitude desinteressada e generosa disposta a ajudar e acompanhar alguém em uma determinada situação. Indo além, nos recorda o Papa Francisco:
“Embora um pouco desgastada e, por vezes, até mal interpretada, a palavra ‘solidariedade’ significa muito mais do que alguns atos esporádicos de generosidade; supõe a criação duma nova mentalidade que pense em termos de comunidade, de prioridade da vida de todos (...)” (Evangelii Gaudium, 188)
Desta forma, é possível compreender a forma com que Deus se solidariza à humanidade. Na história da salvação, não agiu somente em favor de alguns, isoladamente, mas visava sempre o bem comum, priorizando, como bem disse o Papa Francisco, a “vida de todos”. Na “plenitude dos tempos” (Gl 4,4), quando esta vida estava ameaçada veementemente pelo pecado da insolidariedade humana (e ainda está!), Deus se fez solidário à nossa causa: “não usou de seu direito de ser tratado como um deus, mas esvaziou-se a si mesmo, assumindo a condição de escravo, fazendo-se semelhante aos homens” (Fl 2,6-7), para nos servir o dom da salvação.
Com o Natal de Jesus, Deus se solidarizou e se solidariza à nossa condição frágil, pequena, limitada, nos ajudando a perceber que somente pela mútua solidariedade é que nasceremos, um dia, para a vida eterna, pois nascendo em nossa vida, nos faz nascer para a Vida d´Ele; humanizando-se, diviniza-nos; rebaixando-se, eleva-nos; esvaziando-se, preenche-nos. É o que rezamos no prefácio da Liturgia Eucarística do Natal:
“(...) Por Ele, realiza-se hoje o maravilhoso encontro que nos dá vida nova em plenitude. No momento em que vosso Filho assume nossa fraqueza, a natureza humana recebe uma incomparável dignidade: ao tornar-se Ele um de nós, nós nos tornamos eternos.”
Esta belíssima forma de Deus se solidarizar conosco tem uma marca fundamental: a gratuidade. A pseudossolidariedade que muitas vezes experimentamos, é carregada de um interesse retributivo, onde se oferece ajuda a alguém para com ela se criar um crédito, a ser futuramente cobrado e executado, desfigurando assim o genuíno sentido da solidariedade. Com Deus, a Graça é de graça, e se assim a recebemos, assim devemos dá-la (cf. Mt 10,8b). O que se busca é ser solidário, de forma desinteressada e altruísta, pois dessa forma, nos diz Jesus, “serás feliz porque eles não têm com o que retribuir” (Lc 14,14a).
Se Deus se solidarizou à nossa causa, é hora de nos solidarizarmos à causa de Deus, que é a causa do Reino. É hora de também assumirmos a carne empobrecida dos nossos irmãos e irmãs marginalizados, fragilizados, esquecidos, para devolver-lhes a dignidade; é hora de nos encarnarmos no mundo, para que, como Jesus, salvá-lo a partir de dentro, e não mais vivermos como se estivéssemos acima d´Ele; é hora de passar da mera solidariedade mental à solidariedade manual, que arregaça as mangas e vai à luta, como mais uma vez nos ensina o Papa Francisco:
“A solidariedade, entendida no seu sentido mais profundo e desafiador, torna-se assim um estilo de construção da história, um âmbito vital onde os conflitos, as tensões e os opostos podem alcançar uma unidade multifacetada que gera nova vida.” (Evangelii Gaudium, n. 228)
É hora de unir o Natal à Páscoa, como oportunidade de nascer e renascer para uma vida nova, construir uma nova história e fazer deste um mundo novo!
Daniel Reis
Daniel Reis é bacharel em Direito e em Teologia pela PUC Minas. Cursou Especialização em Liturgia, pelo Centro de Liturgia Dom Clemente Isnard e Universidade Salesiana de São Paulo (UNISAL). Membro do Secretariado Arquidiocesano de Liturgia (SAL) e Auditor do Tribunal Eclesiástico da Arquidiocese de Belo Horizonte. Membro da Comissão de Liturgia da CNBB-Leste II. Membro da Associação dos Liturgistas do Brasil (ASLI).
O Natal de Jesus traz em si uma pedagogia que deveria ser compreendida e experimentada por todos nós, para que iluminados por ela, dissipássemos as trevas que insistem em nos rodear.
Diferentemente da proposta cristã de unidade, da soma de esforços tendo em vista o bem comum, a sociedade contemporânea promove um nocivo individualismo, projetando em nossas relações a meta de sermos os melhores, maiores, mais ricos materialmente, os primeiros e superiores. Buscando sua apoteose desta forma, a humanidade se perde nas trevas do egoísmo, da indiferença, da ganância, da arrogância e do desamor.
Paulo aponta em sua epístola aos romanos que devemos “proceder honestamente como em pleno dia” (cf. Rm 13,13), onde a luz do sol ilumina nossas ações e nos faz enxergar melhor qual a direção acertada a tomar. Ao revés, durante a noite, onde a escuridão impera, testemunhamos o verdadeiro inferno (ausência de luz) com uma maior incidência de assassinatos, estupros, roubos, agressões, tráfico de drogas, acidentes, também de conluios para a aprovação de projetos perversos, escurecendo ainda mais as vidas dos que já se encontram nas margens sombrias da sociedade. Assim, como Paulo, constatamos que “a noite já vai adiantada”, mas confiantes e esperançosos professamos: “O dia vem chegando!” (cf. Rm 13,12).
“A Luz resplandeceu em plena escuridão, jamais irão as trevas vencer o seu clarão!” Assim compôs Reginaldo Veloso em seu “Hino ao Verbo de Deus”. Na noite do Natal as trevas não prevaleceram, pois foram vencidas pela Luz Divina que, rompendo a escuridão, se encarnou e fez brilhar para nós o caminho da salvação. Tal como à Maria e José, aos reis magos, pastores e à toda criação foi dada naquela noite a sublime graça de contemplar o Mistério do Deus que se fez Homem, também a nós é concedido, a cada Natal, reaprendermos e nos iluminarmos com esta grande lição de humildade, assimilada maravilhosamente bem por Paulo, que a ensinou aos Filipenses:
“Tende em vós o mesmo sentimento de Cristo Jesus: Ele, sendo na forma de Deus, não usou de seu direito de ser tratado como um deus, mas esvaziou-se a si mesmo, assumindo a condição de escravo, fazendo-se semelhante aos homens. Reconhecido em seu aspecto como um homem, humilhou-se a si mesmo, sendo obediente até a morte, e morte de cruz.” (cf. Fl 2,5-8).
Ora, se o próprio Deus onipotente, onisciente e onipresente não quis se valer de suas prerrogativas divinas, mas sendo de tudo o Criador se fez criatura como nós e para nós, aí está o farol norteador da humanidade, que também deverá esvaziar-se de suas frivolidades, assumir o serviço amoroso recíproco e humilhar-se perante os paradigmas superficiais estabelecidos pelos poderosos deste mundo, fazendo-se assim obediente até a morte, para que possamos, um dia, sermos mais um ponto de luz que brilhará na eternidade.
A partir da lógica cristã inaugurada no Natal de Jesus, compreendemos toda a sua vida e missão: vida que se encarnou e ainda se encarna nas fragilidades e misérias humanas, a fim de fazer com que esta renasça em sua condição criatural genuína: a de ser “imagem e semelhança de Deus” (cf. Gn 1,26). Destarte, a celebração da noite de Natal está visceralmente ligada à noite que testemunhou a Páscoa de Jesus, reacendendo em nós uma chama nova para que correspondêssemos à afirmação do Senhor: “Vós sois a luz do mundo” (cf. Mt 5,14a).
É assumindo o modelo do Menino Luz que a humanidade encontrará o meio para sua verdadeira deificação, pois se Deus fez-se homem, rebaixando-se, humilhando-se, a ponto de inclinar-se para defender uma condenada à morte por seu pecado (cf. Jo 8, 6b), para lavar os pés de seus discípulos (cf. Jo 13, 4-10) e, do alto da cruz, para dar sua vida por todos, assim também devemos nos inclinar e nos encarnar no mundo, para o iluminarmos de dentro, com a certeza de que nos humilhando é que seremos elevados, e que para sermos os primeiros, deveremos nos fazer servos de todos (cf. Mt 20, 26-27; Mc 10, 43-45; Lc 22, 24-27). E nisto consiste o esplendor da divindade de Jesus, Luz que se fez carne, iluminando o caminho para a humanidade.
“Ó luz radiosa e multiforme,
Brotada das águas do batismo
E descida do céu,
Nós te adoramos!”
(“Luz adorável” – Jaci Maraschin)
Daniel Reis
Daniel Reis é bacharel em Direito e em Teologia pela PUC Minas. Cursou Especialização em Liturgia, pelo Centro de Liturgia Dom Clemente Isnard e Universidade Salesiana de São Paulo (UNISAL). Membro do Secretariado Arquidiocesano de Liturgia (SAL) e Auditor do Tribunal Eclesiástico da Arquidiocese de Belo Horizonte. Membro da Comissão de Liturgia da CNBB-Leste II. Membro da Associação dos Liturgistas do Brasil (ASLI).
A palavra “advento” é de origem latina e significa “chegada”, “aproximação”, “vinda”. No Ano Litúrgico, o Advento é um tempo de preparação para a segunda maior festa cristã: o Natal do Senhor. Este tempo é marcado por uma vivência mais profunda da vida de oração. A leitura orante deste período nos coloca em contato com as profecias de salvação do Antigo Testamento, com a expectativa que os cristãos da Igreja primitiva tinham da Parusia e com os eventos principais que antecederam o nascimento de Jesus.
A liturgia do tempo do advento contém uma autêntica espiritualidade litúrgica, centrada na vinda do Senhor e sua espera; a vinda do Senhor na carne e no fim dos tempos, assim como sua constante presença na Igreja que é prefigurada de modo particular em Maria, virgem, mãe da esperança.
Três figuras bíblicas nos são apresentadas e ganham destaque na celebração do Advento: todos os personagens do Antigo Testamento que expressam o anseio pela vinda do Messias, especialmente o livro de Isaías e os Salmos 79 e 84; João Batista, porque foi vocacionado a ser o precursor do Messias; Maria, porque foi escolhida por Deus para ser a mãe do Salvador.
A espiritualidade do Advento também é marcada por algumas atitudes básicas: a preparação para receber o Cristo; a oração e a vivência da esperança cristã. A preparação para receber o Senhor se dá na vivência da conversão e da ascese. Precisamos ter um olhar atento sobre nós e a realidade que nos cerca e nos empenharmos para correspondermos com a ação do Espírito de Deus que quer restaurar todas as coisas.
Para John Henry Newman o nome do cristão é “aquele que espera o Senhor”. Porém, devemos reconhecer que durante séculos, no Ocidente, a expectativa da vinda do Senhor tem sido uma dimensão ausente na vida de fé dos cristãos. Alguém já escreveu: “Estou cansado de ver os cristãos que esperam a vinda de seu Senhor com a mesma indiferença com que esperam a chegada do ônibus”.
O revelador dessa realidade é a maneira habitual de compreensão e vivência do Advento. Estou convencido de que o Advento hoje, é o tempo litúrgico menos compreendido em seu valor e significado. Foi reduzido apenas ao tempo de preparação para a festa de Natal. Que triste! Não se entende que o Advento é a chave de todo o ano litúrgico: a escatologia é a verdade esquecida de todo o ano litúrgico.
O Advento é a chave para entender a celebração das festas da manifestação do Senhor em carne e osso: os fatos que imediatamente precederam o nascimento de Jesus Cristo, seu nascimento em Belém, a demonstração aos Magos, o batismo no Jordão…. Compreendidos em sua inteligência espiritual, os textos litúrgicos do Advento não expressam apenas a expectativa de um nascimento já ocorrido na história de uma vez por todas, mas sim a expectativa da vinda definitiva de Cristo em sua glória.
O modo de viver o Advento é símbolo da perda generalizada da dimensão escatológica que é uma das características distintas do cristianismo ocidental moderno e contemporâneo. A espiritualização progressiva da escatologia levou a existência cristã a sofrer de um grave mal: a amnésia da Parusia. Observamos como a doença do nosso tempo é a vontade de esquecer o advento de Deus, mas devemos recordar que somos homens e mulheres do Advento, que têm em seus corações a urgência da vinda de Cristo, e com olhos que espiam, buscando nos horizontes de suas vidas seu rosto amanhecendo.
Hoje, devemos reconhecer, que há uma patologia no modo de viver o Advento. Na realidade, o Advento é o único e específico tempo cristão, isto porque um tempo de jejum e penitência como a Quaresma compartilhamos com o Islã, o tempo da Páscoa com o judaísmo, mas a expectativa da vinda do Kyrios é apenas cristã. Só nós cristãos aguardamos o retorno de Cristo prometido: “Sim, eu venho em breve. Amém!” (Ap 22,20). Por essa razão, privar o ano litúrgico de sua dimensão escatológica constitutiva significa subtrair da fé cristã a dimensão da esperança.
Assim compreendido e vivido, o Advento seria um momento muito mais eloquente no ano litúrgico para os fiéis de hoje. Homens e mulheres que lutam para ter esperança porque são privados de toda a esperança, às vezes até incapazes de esperar. Por essa razão, é necessário prestar atenção às liturgias que são muito festivas chegando ao limite do superficial, excessiva em tons e acentos, como se devemos sempre e a qualquer custo fazer festa.
Precisamos de liturgias capazes de dar razões para esperançar corações cansados e fatigados, capazes de reerguer todos que, como os discípulos de Emaús, param “com um rosto triste”. Sabemos que a dificuldade em acreditar e em confiar nos outros, na vida, no futuro, é um dos traços que caracterizam os homens e as mulheres do nossos dias e isso não pode deixar de impactar e marcar a fé do crente contemporâneo.
Entendendo o ano litúrgico não apenas como um ciclo, um anel fechado em si mesmo, mas como um movimento helicoidal que coloca a fé no caminho, no preciso contexto antropológico, cultural e social em que vivemos, para entender que nossas liturgias, e mais geralmente as celebrações dos sacramentos, são hoje chamadas a hospedar uma maneira de viver a fé, mesmo entre os crentes mais assíduos, que não é mais, como no passado, a soma de certezas inabalável, mas a expressão de um desejo por algo e de alguém em quem se pode esperar, de modo que acreditar signifique abrir-se e apegar-se a uma esperança.
De fato, hoje a fé precisa ser vivida principalmente como abertura à esperança. Nutrir a esperança, essa é hoje a primeira tarefa do ano litúrgico, dando razões para alimentar e exercitar-se no crer que não se é realidade visível, e essas realidades são nossa salvação. Sair da precariedade em que se encontra para entrar um dia na condição de beatitude em Deus. “Só a esperança na vida eterna nos torna devidamente cristãos”, escreveu Agostinho.
Hoje é muito difícil falar de esperança, dar razões da esperança, mas essa é a tarefa atual do ano litúrgico, porque a falta de esperança torna o homem estranho ao tempo, irremediavelmente ausente deste tempo presente. A esperança é exatamente esta: querer infinitamente o finito, é viver eternamente o tempo. Como Emmanuel Mounier escreveu em um ensaio dedicado a Péguy, a esperança “recria o que o hábito desfaz. É a fonte de todos os nascimentos espirituais, de toda liberdade, de toda a novidade. Precisamos semear começos onde o hábito leva à morte”.
O tempo do Advento é um tempo propício para animar a virtude da esperança, com a consciência de que somente Deus é o Salvador do mundo e que n’Ele reside o sentido de toda a existência. A virtude da esperança, suscitada pela vinda de Cristo, encontra no tempo do Advento um complemento necessário: a vigilância.
Maranathá, Vem Senhor Jesus!
Washington Paranhos SJ é professor e pesquisador no departamento de Teologia da Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia
O Tempo Quaresmal é o mais exigente Retiro, com o qual devemos estar comprometidos, todos os anos. A Liturgia da Igreja reza e ensina que na Quaresma o Pai reabre para a Igreja “a estrada do Êxodo, para que ela (…) humildemente tome consciência de sua vocação como povo da aliança.”1
Essa oração estabelece a significação mais profunda do Tempo Quaresmal, situando-a no quadro do acontecimento pascal. Assim como o povo de Deus peregrinou quarenta anos no deserto após a libertação do jugo egípcio, purificando seus hábitos, atitudes, pensamentos, sentimentos e ações, a fim de que estivesse apto a firmar com Deus o pacto, também a Igreja caminha – espiritualmente – pelo deserto no intuito de ser restituída como povo da aliança. Durante este período, o deserto é recriado, sobretudo, mediante a sobriedade e silêncio nas celebrações e os quarenta anos expressos nos quarenta dias necessários à intensa penitência e conversão do coração.
Assim como se deseja que um Retiro Espiritual recrie o ânimo e o vigor no testemunho do Evangelho, a Quaresma orienta-nos para um profundo despertar do senso batismal, que se exprimirá na Renovação das Promessas Batismais realizadas na Celebração da Vigília Pascal, durante o Tríduo Sacro. A experiência da via quaresmal é fundamental para que, na fidelidade, a assembleia santa responda à exortação do Apóstolo: “Será que ignorais que todos nós, batizados em Jesus Cristo, fomos na sua morte que fomos batizados? (…) pois se fomos identificados a Jesus Cristo por uma morte semelhante à sua, seremos semelhantes a ele também pela ressurreição.”
É importante ressaltar que a morte de Cristo é um evento “filial” conforme comenta Françõis-Xavier Durwell.2 O autor compreende que seria sombrio demais atribuir a morte de Jesus à causa de nossos pecados, no sentido de que “Deus o colocou em lugar de nossos pecados, atribuindo a ele a culpabilidade universal, transformando-o na encarnação do pecado, ‘o homem feito pecado’. Jesus teria esgotado, por seus sofrimentos, as exigências da justiça divina, até a experiência do inferno, do abandono, da rejeição de Deus.”3 E essa teologia – superada – tem encontrado, de novo, espaço entre alguns bancos de nossas igrejas.
É superada porque a missão do Filho entre nós foi e continua sendo a condução de toda pessoa à dignidade de ser chamado “Filho de Deus” por adoção. Sua vitória sobre o pecado e a morte foi a condição sine qua non para que se chegasse a essa conclusão salvífica. Usando ainda a terminologia do autor, a morte de Jesus foi uma “morte glorificante” porque por ela seu Espírito nos foi comunicado, como muito bem nos relata João em seu Evangelho. E esse Espírito é Espírito de filiação.4 A morte de Jesus da qual participamos pelo Batismo, conforme nos lembra Paulo, significou sua entrada na plenitude do Pai. Quando celebramos – sobretudo na Quaresma em que acentuamos a dimensão de nossa mortalidade ou finitude – unimo-nos a Cristo nesta experiência e assumimos nEle e dEle a mesma dinâmica de passar deste mundo para o Pai. Morremos como ele morreu, para ressuscitarmos como Ele ressuscitou: como filhos no Filho. Filhos que assumem sua vida redentora. Assim, tem muita razão o mesmo Prefácio V da Quaresma: “é justo e necessário (…) louvar-vos, Pai Santo, rico em misericórdia, e bendizer o vosso nome, enquanto caminhamos para a Páscoa, seguindo as pegadas de Jesus Cristo, vosso Filho e Senhor nosso, mestre e modelo de humanidade, reconciliada e pacificada no amor.”
De fato, a Quaresma é o melhor e mais importante Retiro que um cristão deve experimentar.
Pe. Márcio Pimentel
Liturgista
In: site da Arquidiocese de BH - Opinião e notícias - 14.02.2021
Imagem: site da Arquidiocese de BH
1Prefácio da Quaresma
2Cf. DURWELL, Françõis-Xavier. A morte do Filho. O mistério de Jesus e do homem. São Paulo: Loyola, 2009, p. 20.
3Idem, p. 17.
4Cf. Idem, p. 22.
Premissa
Não é novidade para nenhum de nós que o cristianismo herdou da tradição religiosa de seus irmãos mais velhos, os judeus, o culto à Palavra. A consequência ritual mais legítima e o efeito espiritual mais forte são, respectivamente, uma tendência à escuta e uma insistência na obediência como forma original da religiosidade cristã. Escutar e obedecer tornaram-se sinônimos em nossos caminhos religiosos – dos judeus e dos cristãos. O credo do povo de Israel se abre com um convite à escuta da Palavra Divina – Shemà Ishrael! A fé cristã, acolhendo este modo de experimentar a relação com Deus que “autocomunicando-se” ou “revelando-se” também é tida como exercício de obediência (cf. CIC 114). Nos evangelhos sinóticos de Mateus e Lucas, o evento que chamamos “encarnação” tem seu início com dois relatos de anunciação nos quais a fé de Maria e de José são experiência de escuta e obediência. De Lucas, colhemos o mais comentado e talvez o mais famoso para pautar a nossa conversa sobre a espiritualidade do Advento.
Evidentemente que a espiritualidade não pode brotar de um texto, mas nasce de uma fonte viva e esta fonte é a Liturgia (SC 2.10). Por mais importante que sejam, as Sagradas Escrituras “não são” em si mesmas Palavra de Deus, mas seu testemunho. Para que as Escrituras nos deem acesso à Revelação e possam ser chamadas de “Palavra de Deus”, é preciso que a história da salvação narrada em suas páginas nos envolva. É preciso que se torne uma espécie de porta para a experiência originária e original da Revelação de Deus a seu povo. A única atividade eclesial capaz de dotar a Escritura desta “qualidade” é a celebração litúrgica devido à sua linguagem simbólica. Na arte de celebrar o ser humano é completa e integralmente envolvido, em todos os níveis que formam sua realidade: psíquico-afetiva, somático-espiritual, cognitivo e interpessoal. Na Liturgia, a Bíblia reencontra o seu berço graças à ritualidade. Pelos ritos os fiéis se apropriam e ingressam no evento que as perícopes bíblicas recordam. Os ritos oferecem à página bíblica um sujeito concreto, uma história real, uma contemporaneidade para encarnar-se. Por isso, não basta partir dos relatos bíblicos para falar de espiritualidade, mas “ a partir” da complexidade do fenômeno da oração litúrgica na qual tais relatos passam a pertencer a um povo com feições definidas e existência palpável.
O quarto domingo do Advento
No quarto domingo do Advento, dia 20 de dezembro deste ano, às portas do dia de Natal, o Anjo Gabriel entrará onde se encontra a Virgem e a saudará com seu “Ave” (cf. Lc 1,26ss). A cena conforme vem narrada no evangelho parece ter sido composta de modo a permitir que as gerações sucessivas à de Maria pudessem testemunhar o mesmo evento. Se observarmos bem, todo o texto gira em torno da saudação do divino mensageiro. Maria reage ao que escuta e não ao que vê. No texto grego se lê “epi toi logoi dietaráchte” isto é, “a respeito da palavra ficou perplexa”. Este detalhe é intrigante: não é a visão de um personagem “sobrenatural” que causa agitação, mas o que é anunciado.
A saudação do anjo não é uma completa novidade. Em Jz 5,11-12 lemos: “Ora, o anjo do Senhor veio sentar-se debaixo de um carvalho em Efra, que pertencia a Joás (…). Gedeão, seu filho, estava debulhando o trigo no lagar (…). Apareceu-lhe, então, o anjo do Senhor e disse: “O Senhor está contigo, valente guerreiro!” Maria se torna herdeira e eleita de Deus. Aquele que no passado elegera homens e mulheres para portar consigo sua Palavra a havia escolhido. O que estava escrito das memórias antigas nos rolos da Escritura que ela, certamente, conhecia de cor, a alcançava. Aquilo parecia não ter qualquer sentido e por isso sua perplexidade. Como uma humilde serva poderia ser envolvida em tão grande evento? Com o desenrolar da narrativa, sabemos que o efeito da Palavra oferecida e acolhida será a concepção virginal do Verbo de Deus.
Como se pode notar, no relato, não é o “texto” da Escritura que surpreende Maria, mas o anúncio do Anjo, isto é, o ato de Deus dirigir-lhe a palavra. Ela sabia das antigas promessas (cf. Lc 1,55), mas agora era diferente, o Senhor se havia recordado de sua humilhada condição. A operação realizada por Lucas é uma “tipologia” e corresponde a um modo muito antigo de ler e interpretar os relatos bíblicos, melhor ainda, de correlacionar eventos narrados na História da Salvação. É um tipo de inteligência que nossos contemporâneos esqueceram e como consequência não sabem mais avizinhar-se das Escrituras. Mas nós ainda temos a oportunidade de encontrá-lo e reaprende-lo porque o sistema tipológico foi transferido das Escrituras para a Liturgia.
Quando celebrarmos o quarto domingo do Advento e ouvirmos a proclamação do Evangelho, o que sucederá? Exatamente o mesmo que ocorreu com a Virgem Maria. Sim. Você ficou perplexo como ela com a notícia, com esta boa notícia? Mas é isso mesmo, participaremos do mesmo evento no qual ela foi envolvida e tudo isso graças aos ritos que transformarão um registro textual em anúncio vital. E assim se forma em nós o espírito cristão. A catequese, a teologia, a doutrina, a moral, a caridade e todas as outras atividades eclesiais não são capazes de gerar este efeito, isto é, de permitir-nos penetrar no Mistério. A catequese pode nos ajudar a compreender, a teologia pode criticamente esclarecer, a doutrina garantirá a verdade e a retidão do que se crê, a moral resguardará os comportamentos e a caridade permitirá à fé desdobrar-se em obras. No entanto, somente a Liturgia possui a qualidade de reunir todos estes “ingredientes” que compõem a existência cristã, sem contudo reduzir-se a quaisquer deles. Mas não estamos falando da teologia litúrgica e sim da ação litúrgica, da celebração, do exercício da ritualidade.
Concepit ex audito
Toda esta conversa traz, então, à memória, uma caríssima expressão da antiguidade cristã, muito difundida na idade média para tratar da concepção virginal do Verbo: a conceptio per aurem. No IV século Efrem é dos primeiros a falar dela. Ao comentar a cena da anunciação, escreve: “Observa o anjo que vem depor a semente no ouvido de Maria. É com uma palavra bem clara que ele começou a semear”. Também, Agostinho, que afirma mais ou menos a mesma coisa: «concipit prius mente quam ventre».[1]
Se dermos uma olhada em algumas “anunciações” retratadas no período medieval, descobriremos detalhes interessantíssimos sobre esta “teologia” da inseminação do Verbo através do “ouvido”:
Seja na forma de sopro da boca do Pai, incluindo a pomba como imagem do Espírito, ou da palavra do Anjo – com a inscrição da Ave Maria, ou com o simples gesto de erguer o véu, as três representações, respectivamente, concentram-se no gesto da saudação.
Passando das artes plásticas à estética litúrgico-musical recolheremos, sobretudo no Ofício Divino, algumas pérolas que nos fazem ajudam a aprofundar a riqueza espiritual da “concipit per aurem”. A primeira delas, o Hino das Vésperas a partir do dia 17 de dezembro: “Recebe, Virgem Maria / no casto seio materno / dos céus o Verbo Divino / Vindo da boca do eterno”[2]; depois temos de autoria de Santo Ambrósio: “Não germe de homem, / mas sopro divino / no seio a gerou. / O Verbo de Deus / se fez nossa carne,/ o ventre deu flor.”[3] As antífonas previstas para a hora média (doze e quinze horas) e que se repetem todos os dias do advento são uma versão do diálogo entre o anjo e Maria, e parecem firmar nossa atenção no evento da concepção como uma experiência ligada ao ouvido: “Disse o anjo à Virgem: Maria, alegra-te, ó cheia de graça, o Senhor é contigo; és bendita entre todas as mulheres da terra” e “E Maria disse ao anjo: o que vem significar essa tua saudação? A minh’alma perturbou-se: serei mãe do grande Rei, conservando a virgindade.”
Penetrar a mente, habitar no ventre e nascer no mundo
A eucologia do Missal Romano também nos apresenta elementos interessantes. Nos concentraremos em uma breve análise da Coleta do quarto domingo, muito popular porque costumamos com ela concluir a oração do Angelus: “Derramai, ó Deus, a vossa graça em nossos corações para que, conhecendo pela mensagem do Anjo a encarnação do vosso Filho, cheguemos por sua paixão e cruz, à glória da ressurreição.”[4]
Primeiramente, é preciso situar esta prece estruturalmente no programa ritual. Infelizmente os nossos fiéis não foram iniciados na catequese à prática da oração litúrgica. Dos muitos “conteúdos” aprendidos, a Liturgia quase nunca é tratada como forma fundamental de rezar. Aprendemos algumas fórmulas, nos são explicados alguns sinais e símbolos, somos “adestrados” sobre alguns comportamentos. No entanto, a arte de entrar no diálogo com o Senhor através da ritualidade ainda parece ser um sonho distante. Mas, imaginemos que todos nós fomos apresentados ao universo da prece litúrgica (que no fundo é eminentemente bíblica). Antes de escutar a proclamação dos textos bíblico-litúrgicos (Leitura I, Salmo, Leitura II e Evangelho), somos predispostos a experiência do diálogo da aliança, que é a Liturgia da Palavra.
Dentre os diversos elementos que constam nos ritos iniciais, um dos essenciais é a oração coleta. Ali encontramos a “intencionalidade” da Igreja ao celebrar naquela ocasião. Atenção: usamos aqui o termo intencionalidade e não meramente “intenção”. A intencionalidade é um conceito da teoria do conhecimento que significa simplesmente que nossa mente está sempre orientada, dirigida a qualquer coisa. É um estado da nossa consciência, muito embora seja tantas vezes inconsciente. Pois bem, a “intencionalidade” de quem celebra – no caso a assembleia – poderá ser reconhecida naquela prece que conclui os ritos iniciais. Ou seja, se deverei perceber a Palavra de Deus ser-me dirigida durante a proclamação dos textos escriturísticos e da tradição, ela deverá ser guiada. Isto é a intencionalidade. E para onde é guiada no quarto domingo? Como vimos, a prece é clara: “conhecendo pela mensagem do Anjo a encarnação do vosso Filho, cheguemos por sua paixão e cruz, à glória da ressurreição”. Para participar da vida de Jesus, para viver segundo o seu Espírito, no quarto domingo do Advento durante a proclamação do Evangelho os fiéis deverão orientar-se à saudação do Anjo. Como sugere a terceira imagem da anunciação, deveremos “erguer o véu” dos nossos ouvidos. Isso significa que a saudação narrada será dirigida não mais ao personagem histórico ou literário, no caso Maria, mas àquela que ela representa, isto é, a Igreja. Naquele domingo, não ouviremos o Evangelho sobre a anunciação, mas o Anjo nos anunciará o Evangelho da concepção do Verbo. A assembleia, imagem perfeita da Igreja, receberá a saudação que outrora foi dirigida a Gildeão e na plenitude dos tempos a Maria. Fomos acolhidos, portanto dentro da História da Salvação.
Na primeira súplica da coleta, conforme o texto original, os fiéis em oração imploram ao Pai assim: “A tua graça, Senhor, infunde em nossas mentes”. Embora bem traduzidas, algumas nuances se perdem como ocorre em qualquer versão ao vernáculo. No caso, escolheu-se traduzir infundere por derramar e mens por coração. A noção de verter dentro (in + fundere, no original) não é imediatamente captada na expressão “derrama em nossos corações”. O original latino, no entanto, transmite uma idéia clara com a frase mentibus nostri infunde (“derrama dentro das nossas mentes”). Uma vez que esta prece é proferida em um contexto no qual o “tema” é concepção de uma pessoa, de um filho, “derramar dentro” pode indicar o ato de inseminar, isto é verter o sêmen dentro do útero. É com esta imagem que Efrem joga quando descreve a concepção pelo ouvido, conforme citamos anteriormente. “Derrama em nosso coração a vossa graça” deve significar “Penetra e derrama em nossas mentes a vossa graça”. A expressão latina penetralia nostri cordis não é estranha à eucologia litúrgica, conforme se pode conferir na oração pós-comunhão do sábado na segunda semana da Quaresma de um antigo sacramentário.[5]
Já o termo mens possui, no latim eclesiástico e litúrgico, uma acepção bem técnica e comumente vem traduzido por coração. Mens não é redutível ao significado de pensamento, muito embora o inclua e indique a pessoa (a alma) no ato de conhecer, operando um matrimônio perfeito entre inteligência e sentidos. A mente em si mesma, enquanto realidade autônoma é uma ilusão. A mente é o corpo que conhece e interage com o mundo. Não há mente sem corpo, de modo que a mente é o corpo em estado de interação perceptiva. Neste sentido, o “primeiro a mente e depois o ventre” de Agostinho não pode ser interpretado dualisticamente porque o acesso da mente ao Verbo se dá pela mediação sensorial, no caso, do ouvido, quando Maria escuta o “Ave, Dominus tecum” que a perturba. O que Agostinho deseja é evidenciar a dinâmica eclesial da concepção que pode ser alcançada e participada pelos fiéis, já que a frase pinçada por nós se dá no contexto da explicação do símbolo. Neste texto, Agostinho visa expor que Maria concebe o Cristo através da fé: aquele que é parido pela fé é também concebido na fé. E se pudermos falar de “escopo” ou “finalidade” da eucaristia no quarto domingo do Advento, seria exatamente este: que os fiéis se permitam, mediante os ritos que cumprem, conceberem Cristo que entra em suas vidas através de seus ouvidos.
Se pensarmos a fé a partir da coleta que estamos analisando, reconheceremos nela uma forma de a mente conhecer a Deus enquanto Ele se mostra na carne, acessível ao horizonte humano (ut qui, Angelo nuntiánte, Christi Fílii tui incarnatiónem cognóvimus), no caso da celebração em questão, numa saudação. É uma maneira do discípulo e da discípula de Cristo perceber, experienciar e compreender a visita de Deus. Como sabemos que uma visita é tal e não uma intrusão? Quando somos saudados. Um ladrão não dá bom dia. A saudação do Anjo (o rito) “produz” a fé e esta fé implica orientar-se, tender e aprender sem apreender. A fé é concebida na mente ou no coração e depois no ventre, no útero, isto é toma conta da nossa inteira corporeidade. Mas isso não significa que vem primeiro como pensamento, como uma abstração, mas como um movimento no qual a pessoa inteira se abre para Deus ativando toda a sua sensibilidade, toda a sua habilidade perceptiva até o ponto em que se percebe “gestante” do Mistério, porque deixou-se penetrar por ele.
Padre Márcio Pimentel, presbítero da Arquidiocese de Belo Horizonte, membro do Secretariado Arquidiocesano de Liturgia, doutorando em Liturgia Pastoral pelo Instituto de Liturgia Pastoral da Abadia de Santa Justina em Pádova-Itália
Artigo publicano no site da arquidiocese de BH em 27.11.2020
REFERÊNCIAS:
[1] Efrem, Diatessaron 4,15: SC 121,102; Agostinho, Sermo 215,1: PL 38,1074. Cf. tb. «Maria, sitiens ager, in Nazareth Dominum nostrum concepit ex auditu. Tu quoque, mulier, aquam sitiens concepisti filium ex auditu. Beatae aures tuae, quae fontem suum biberunt, qui mundum potavit. Maria eum seminavit in praesepi; tu in auribus auditorum tuorum.» Efrén, De Virginitate 23. Um estudo iconográfico sobre o tema: SALVADOR GONZÁLEZ, José Maria. “Per aurem intrat Christus in Mariam. Aproximación iconográfica a la conceptio per aurem en la pintura italiana del Trecento desde fuentes patrísticas y teológicas” in ’Ilu. Revista de Ciencias de las Religiones 20 (2015), 193-230.
[2] O texto original latino: “Verbum salutis omnium / Patris ab ore prodiens / Virgo beata, suscipe / casto, Maria, viscere.
[3] O texto original latino: “Non ex virili semine / sed mystico spiramine / Verbum Dei factum est caro / frusctusque ventris floruit.
[4] Grátiam tuam, quǽsumus, Dómine, méntibus nostris infúnde, ut qui, Angelo nuntiánte, Christi Fílii tui incarnatiónem cognóvimus, per passiónem eius et crucem ad resurrectiónis glóriam perducámur.
[5] Liber Sacramentorum Engolismensis. Manuscrit B.N. Lat. 816. Le Sacramentaire Gélasien d’Angoulême. Edited by Saint-Roch Patrick. (Corpus Christianorum, ser. Latina, CLIXC.) Turnhout: Brepols, 1987.
Para compreender a coroa do Advento, precisamos mergulhar no mundo dos símbolos. Esse mundo é silencioso e despretensioso, sem muito interesse de convencer, nem de se impor racionalmente. É um mundo transparente que faz parte das camadas mais profundas do nosso ser, escapando entre os dedos, diante de qualquer tentativa de apreensão racional ou intelectualista. Para esse mundo vale mais a capacidade de encantar-se, de se deixar conduzir, de se permitir não entender, de admitir que na vida tem lugar para o belo, o inútil, o desproposital, o segredo, o mistério. O símbolo nos escapa, mas ele sempre vem e compõe a nossa vida. E não há existência que valha a pena sem símbolos… é coisa da alma, dos sonhos, do coração… Sem símbolos, sem gratuidade, sem beleza, a vida fica cinza, opaca e tristemente dura, pragmática, implacável e insuportável.
No tempo em que a energia elétrica não era acessível às casas, quando se fazia noite e a escuridão impedia muitos afazeres, acender uma luz era uma coisa muito importante, até mesmo religiosa. Os meios variavam conforme as regiões e culturas: as candeias, as lamparinas, as velas, os lampiões clareavam a escuridão da noite permitindo caminhar, cumprir as tarefas domésticas, terminar a jornada com aquelas últimas funções do dia: tomar um banho, preparar um jantar, arrumar a cama, recolher as ferramentas de trabalho, conversar um pouco, contar casos, relatar acontecimentos, rezar… Sem nem nos dar conta, lá estava a lamparina acesa, iluminando silenciosamente e fazendo um percurso secreto do corpo para dentro da nossa alma.
Mesmo depois da invenção da lâmpada elétrica, quando se acende uma vela, ou mesmo uma luminária, esse caminho se abre dentro da alma, e aquela luz do pavio, crepitando ao sabor do vento, transporta-nos para tempos idos, lembranças marcantes, experiências profundas e escondidas, coisas inauditas e indescritíveis, belas e verdadeiras… Vale também para aqueles que não viveram nos tempos da lamparina, ou das velas e candeias. É que sua imagem universal tem um enraizamento que supera as gerações, atravessa a genética e a biologia, se junta aos arquétipos mais profundos, herdados e desconhecidos e se afirma ainda capaz de transportar para outro mundo, o mundo onde somos visitados por Deus, pelas grandes intuições e princípios, pelos segredos que regem e adornam o nosso ser.
Toda essa reflexão serve para responder a uma pergunta: “Qual o sentido de cada vela do Advento?” Essa pergunta não pode ser respondida, para a decepção de nossa ânsia de apreender a realidade com os nossos raciocínios. As palavras não dão conta dessa experiência. Símbolo é uma relação; como comer um prato preparado pela mãe. Não se explica. Apenas come-se e enche-se o coração do amor maternal. Ou ainda, como um abraço na hora do pranto. Agarra-se ao outro apenas, sem explicações, permitindo que apenas o corpo fale. Acender uma vela, de domingo a domingo, nas quatro semanas que precedem o Natal, perfaz um ciclo de espera. Tem a ver com a gratuidade (no sentido da absoluta inutilidade), de aguardar alguém desejado no meio da noite. Esse alguém, pode ser aquele que vem iluminar a escuridão mais profunda da vida, como um noivo amado que nos aquece com o seu amor, ou um Senhor zeloso nos deixa guarnecidos para produzir luz, ou ainda um juiz que incendeia nossa lâmpada ou a apaga de vez… Ou nenhuma dessas imagens. Pois o símbolo nos escapa… É ele determina ou deixa de ser.
O risco, comum a todos nós, é alegorizar, tentando atribuir um sentido externo, das ideias para o sinal. O sentido, ao contrário, vem de dentro da vela, da chama, do pavio, da cera que derrete, do escuro incontrolável, sem dizer a hora, pegando desprevenidos, sugerindo e insinuando, encantando delicadamente, como a luz de uma vela no escuro da noite. É preciso entrar no jogo do acendimento, esvaziar-nos das perguntas, não impor respostas, nem arriscar explicações. Abrace a decepção de não ter respostas! Aguente o silêncio. Arrisque contemplar.
A coroa do Advento é originalmente um símbolo da casa, um símbolo doméstico. Quando for preparar uma coroa do Advento, curta a experiência de colher plantinhas verdes do seu quintal, ordená-las entre as quatro velas (de qualquer cor!), numa vasilha circular, onde se possa manter as plantinhas úmidas e viçosas. Se necessário, renove as plantinhas. Aos domingos, antes das refeições, acenda as velas progressivamente, uma a cada domingo, cante um refrão (a nós descei, ou ó luz do Senhor), peça a Deus luz para a sua vida, para sua casa e para sua família. Simples assim.
Padre Danilo César, é presbítero da Arquidiocese de Belo Horizonte – Pároco da Paróquia de Santana, no bairro Serra. Liturgista, formado em Roma, doutorando pela FAJE/CAPES. membro do Secretariado Arquidiocesano de Liturgia e da Rede Celebra.
In: site arquidiocese de BH
28.11.2020
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