Ciclo de Catequese. O Espírito e a Esposa. O Espírito Santo conduz o povo de Deus ao encontro de Jesus, nossa esperança. 9. "Eu acredito no Espírito Santo". O Espírito Santo na fé da Igreja
Com a catequese de hoje, passamos daquilo que nos foi revelado sobre o Espírito Santo na Sagrada Escritura, para o modo como Ele está presente e age na vida da Igreja, na nossa vida cristã.
Nos primeiros três séculos, a Igreja não sentiu a necessidade de formular explicitamente a sua fé no Espírito Santo. Por exemplo, no mais antigo Credo da Igreja, o chamado Símbolo apostólico, depois de proclamar: “Creio em Deus Pai, criador do céu e da terra, e em Jesus Cristo, que nasceu, morreu, desceu aos infernos, ressuscitou e subiu aos céus”, acrescenta-se: “[Creio] no Espírito Santo”, nada mais, sem especificação alguma.
Mas foi a heresia que impeliu a Igreja a definir esta sua fé. Quando este processo teve início - com Santo Atanásio, no século IV - foi precisamente a sua experiência da ação santificadora e divinizadora do Espírito Santo que levou a Igreja à certeza da plena divindade do Espírito Santo. Isto aconteceu no Concílio Ecuménico de Constantinopla, em 381, que definiu a divindade do Espírito Santo com as conhecidas palavras que ainda hoje repetimos no Credo: «Creio no Espírito Santo, que é Senhor e dá a vida, e procede do Pai e do Filho. Com o Pai e o Filho é adorado e glorificado, e falou por meio dos profetas».
Dizer que o Espírito Santo “é Senhor” era como afirmar que Ele compartilha o “Senhorio” de Deus, que pertence ao mundo do Criador, não ao das criaturas. A afirmação mais vigorosa é que a Ele são devidas as mesmas glória e adoração que ao Pai e ao Filho. É o argumento da igualdade na honra, caro a São Basílio Magno, que foi o principal artífice desta fórmula: o Espírito Santo é Senhor, é Deus!
A definição conciliar não era um ponto de chegada, mas de partida. E, com efeito, uma vez superados os motivos históricos que tinham impedido uma afirmação mais explícita da divindade do Espírito Santo, ela foi tranquilamente proclamada no culto da Igreja e na sua teologia. Já São Gregório de Nazianzo, após aquele Concílio, afirmará sem ulterior hesitação: «O Espírito Santo é, então, Deus? Certamente! É consubstancial? Sim, se é verdadeiro Deus» (Oratio 31, 5.10).
O que nos diz, a nós crentes de hoje, o artigo de fé que proclamamos todos os domingos na Missa: “Creio no Espírito Santo”? Dele, no passado, falava-se principalmente a propósito da afirmação de que o Espírito Santo “procede do Pai”. A Igreja latina completou depressa esta afirmação, acrescentando, no Credo da Missa, que o Espírito Santo procede “também do Filho”. Dado que em latim a expressão “e do Filho” se chama “Filioque”, daqui surgiu a disputa conhecida com este nome, que foi a razão (ou o pretexto) de muitas contendas e divisões entre a Igreja do Oriente e a Igreja do Ocidente. Certamente não é o caso de abordar aqui esta questão que, de resto, no clima de diálogo que se estabeleceu entre as duas Igrejas, perdeu a dureza do passado e hoje permite esperar numa plena aceitação recíproca, como uma das principais “diferenças reconciliadas”. Gosto de dizer isto: “diferenças reconciliadas”. Entre os cristãos, existem muitas diferenças: este é desta escola, da outra; este é protestante, aquele... O importante é que estas diferenças sejam reconciliadas, no amor de caminhar juntos.
Superado este obstáculo, hoje podemos valorizar a prerrogativa mais importante para nós, proclamada no artigo do Credo, ou seja, que o Espírito Santo é “vivificante”, isto é, dá a vida. Perguntemo-nos: que vida dá o Espírito Santo? No início, na criação, o sopro de Deus dá a Adão a vida natural; de uma estátua de barro, faz dele “um ser vivo” (cf. Gn 2, 7). Agora, na nova criação, é o Espírito Santo que dá aos crentes uma vida nova, a vida de Cristo, a vida sobrenatural de filhos de Deus. Paulo pode exclamar: «A lei do Espírito, que dá vida em Cristo Jesus, libertou-vos da lei do pecado e da morte» (Rm 8, 2).
Onde está, em tudo isto, a grande e consoladora notícia para nós? É que a vida que nos é dada pelo Espírito Santo é vida eterna! A fé liberta-nos do horror de ter que admitir que tudo acaba aqui, que não há resgate algum para o sofrimento e a injustiça que reinam soberanas na terra. É o que nos garante outra palavra do Apóstolo: «Se o Espírito de Deus, que ressuscitou Jesus de entre os mortos, habita em vós, aquele que ressuscitou Cristo de entre os mortos também dará vida aos vossos corpos mortais pelo seu Espírito, que habita em vós» (Rm 8, 11). O Espírito habita em nós, está dentro de nós.
Cultivemos esta fé também por aqueles que, muitas vezes sem culpa própria, estão desprovidos dela e não conseguem dar um sentido à vida. E não nos esqueçamos de dar graças Àquele que, com a sua morte, nos alcançou esta dádiva inestimável!
Papa Francisco
Audiência Geral
16.10.24
Ciclo de Catequese. O Espírito e a Esposa. O Espírito Santo conduz o povo de Deus ao encontro de Jesus, nossa esperança. 8. “Todos ficaram cheios do Espírito Santo”. O Espírito Santo nos Atos dos Apóstolos
No nosso itinerário de catequeses sobre o Espírito Santo e a Igreja, hoje referimo-nos ao Livro dos Atos dos Apóstolos.
A narração da descida do Espírito Santo no Pentecostes começa com a descrição de alguns sinais preparatórios - o vento impetuoso e as línguas de fogo - mas conclui-se com a afirmação: «E todos ficaram cheios do Espírito Santo» (At 2, 4). São Lucas - que escreveu os Atos dos Apóstolos – realça que o Espírito Santo é Aquele que assegura a universalidade e a unidade da Igreja. O efeito imediato de ficar “cheios do Espírito Santo” é que os Apóstolos «começaram a falar noutras línguas» e saíram do Cenáculo para anunciar Jesus Cristo à multidão (cf. At 2, 4 ss.).
Agindo assim, Lucas quis frisar a missão universal da Igreja, como sinal de uma nova unidade entre todos os povos. Vemos de duas maneiras que o Espírito trabalha pela unidade. Por um lado, impele a Igreja para fora, a fim de que possa acolher cada vez mais pessoas e povos; por outro, reúne-a no seu interior para consolidar a unidade alcançada. Ensina-a a dilatar-se na universalidade e a reunir-se na unidade. Universal e una: este é o mistério da Igreja.
O primeiro dos dois movimentos - a universalidade - vemo-lo em ação no capítulo 10 dos Atos, no episódio da conversão de Cornélio. No dia de Pentecostes, os Apóstolos tinham anunciado Cristo a todos os judeus e observantes da lei mosaica, independentemente do povo a que pertencessem. É preciso outro “pentecostes”, muito semelhante ao primeiro, o da casa do centurião Cornélio, para induzir os Apóstolos a dilatar o horizonte e derrubar a última barreira, aquela que separa judeus e pagãos (cf. At 10-11).
A esta expansão étnica acrescenta-se a geográfica. Paulo – lê-se ainda nos Atos dos Apóstolos (cf. 16, 6-10) - queria anunciar o Evangelho numa nova região da Ásia Menor; mas, está escrito, «o Espírito Santo impediu-o»; queria ir à Bitínia «mas o Espírito de Jesus não o permitiu». Descobre-se imediatamente a razão destas surpreendentes proibições do Espírito: na noite seguinte, em sonho, o Apóstolo recebeu a ordem de passar à Macedónia. Assim, o Evangelho saiu da Ásia natal e entrou na Europa.
O segundo movimento do Espírito Santo - aquele que cria a unidade - vemo-lo em ação no capítulo 15 dos Atos, durante a realização do chamado Concílio de Jerusalém. O problema é como fazer com que a universalidade alcançada não comprometa a unidade da Igreja. O Espírito Santo nem sempre realiza a unidade de maneira repentina, com intervenções milagrosas e decisivas, como no Pentecostes. Fá-lo também - e na maior parte dos casos - com um trabalho discreto, respeitador dos tempos e das divergências humanas, passando por pessoas e instituições, oração e confronto. De uma forma, diríamos hoje, sinodal. Foi o que aconteceu, efetivamente, no Concílio de Jerusalém, sobre a questão das obrigações da Lei mosaica a impor aos convertidos do paganismo. A sua solução foi anunciada a toda a Igreja, com as conhecidas palavras: «Decidimos, o Espírito Santo e nós...» (At 15, 28).
Santo Agostinho explica a unidade realizada pelo Espírito Santo com uma imagem que se tornou clássica: «O que a alma é para o corpo humano, o Espírito Santo é para o corpo de Cristo, que é a Igreja» (Discursos, 267, 4). Esta imagem ajuda-nos a compreender algo importante. O Espírito Santo não realiza a unidade da Igreja a partir de fora; não se limita a mandar que se unam. Ele mesmo é o “vínculo de unidade”. É Ele quem faz a unidade da Igreja.
Como sempre, concluímos com um pensamento que nos ajuda a passar do conjunto da Igreja para cada um de nós. A unidade da Igreja é a unidade entre pessoas e não se realiza de modo abstrato, mas na vida. Realiza-se na vida! Todos nós queremos a unidade, todos a desejamos do mais íntimo do coração; no entanto, ela é tão difícil de alcançar que, até no seio do matrimónio e da família, a união e a concórdia estão entre as coisas mais difíceis de conseguir, e ainda mais difíceis de manter.
O motivo - pelo qual a unidade entre nós é difícil - é que cada um quer, sim, que a unidade seja alcançada, mas em volta do próprio ponto de vista, sem pensar que o outro que está à sua frente pensa exatamente o mesmo sobre o “seu” ponto de vista. Por este caminho, a unidade só se afasta. A unidade de vida, a unidade do Pentecostes, segundo o Espírito, só se alcança quando nos esforçamos por colocar Deus, e não a nós próprios, no centro. Também a unidade dos cristãos se constrói assim: não esperando que os outros venham ao nosso encontro, onde estamos, mas caminhando juntos rumo a Cristo.
Peçamos ao Espírito Santo que nos ajude a ser instrumentos de unidade e de paz.
Papa Francisco
Audiência Geral
09.10.24
Ciclo de Catequese. O Espírito e a Esposa. O Espírito Santo conduz o povo de Deus ao encontro de Jesus, nossa esperança. 7. Jesus foi conduzido pelo Espírito ao deserto. O Espírito Santo é o nosso aliado na luta contra o espírito do mal
Imediatamente após o seu batismo no Jordão, Jesus «foi conduzido pelo Espírito para o deserto, a fim de ser tentado pelo diabo» (Mt 4, 1) - assim reza o Evangelho de Mateus. A iniciativa não é de satanás, mas de Deus. Indo para o deserto, Jesus obedece a uma inspiração do Espírito Santo, não cai numa armadilha do inimigo, não! Uma vez superada a provação, Ele - está escrito – voltou para a Galileia «com o poder do Espírito Santo» (Lc 4, 14).
No deserto, Jesus livrou-se de satanás e agora pode libertar de satanás. É isto que os Evangelistas realçam com as numerosas histórias de libertação de endemoninhados. Jesus diz aos seus opositores: «Se é em virtude do Espírito de Deus que expulso demónios, então o Reino de Deus chegou entre vós» (Mt 12, 27).
Hoje assistimos a um estranho fenómeno relativo ao diabo. A um certo nível cultural, considera-se que ele simplesmente não existe. Seria um símbolo do inconsciente coletivo, ou da alienação, em síntese, uma metáfora. Mas «a maior astúcia do demónio é levar a crer que ele não existe», como alguém escreveu (Charles Baudelaire). É astuto: faz-nos crer que não existe e assim domina tudo. É ardiloso! E, no entanto, o nosso mundo tecnológico e secularizado está repleto de magos, ocultismo, espiritismo, astrólogos, vendedores de feitiços e amuletos e, infelizmente, de verdadeiras seitas satânicas. Expulso pela porta, o diabo voltou a entrar, dir-se-ia, pela janela. Expulso pela fé, volta a entrar com a superstição. E se fores supersticioso, inconscientemente dialogas com o diabo. Com o diabo não se conversa!
A provação mais forte da existência de satanás não está nos pecadores, nem nos endemoninhados, mas nos santos! “E porquê, Padre?”. Sim, é verdade que o diabo está presente e age mediante certas formas extremas e “desumanas” de maldade e perversidade que vemos à nossa volta. Mas por este caminho, nos casos individuais, é praticamente impossível chegar à certeza de que se trata precisamente dele, dado que não podemos saber exatamente onde termina a sua ação e onde começa a nossa própria maldade. Por isso, a Igreja é muito prudente e rigorosa no exercício do exorcismo, ao contrário do que se verifica, infelizmente, em certos filmes!
É na vida dos santos, precisamente ali, que o diabo é obrigado a manifestar-se, a pôr-se “contra a luz”. Uns mais, outros menos, todos os santos, todos os grandes crentes, dão testemunho da sua luta contra esta realidade obscura, e não se pode honestamente supor que todos eram iludidos ou simples vítimas dos preconceitos do seu tempo.
A batalha contra o espírito maligno vence-se como Jesus a venceu no deserto: com a força da palavra de Deus. Vede que Jesus não conversa com o diabo, nunca dialoga com o demónio. Ou o expulsa, ou o condena, mas nunca dialoga. E, no deserto, não responde com a sua palavra, mas com a palavra de Deus. Irmãos e irmãs, nunca dialogueis com o diabo! Quando ele vem com tentações: “mas isto seria bom, aquilo seria bom”, detém-te! Eleva o teu coração ao Senhor, reza a Nossa Senhora e expulsa-o, como Jesus nos ensinou a expulsá-lo. São Pedro sugere também outro meio, de que Jesus não necessitava, mas nós sim, a vigilância: «Sede sóbrios, vigiai. O vosso inimigo, o diabo, anda às voltas como leão que ruge, procurando a quem devorar» (1 Pd 5, 8). E São Paulo diz-nos: «Não deis ocasião ao diabo» (Ef 4, 27).
Depois que Cristo, na cruz, derrotou para sempre o poder do «príncipe deste mundo» ( Jo 12, 31), o diabo - dizia um Padre da Igreja - «está preso, como um cão acorrentado; não pode morder ninguém, a não ser aqueles que, desafiando o perigo, se aproximam dele... Pode ladrar, pode insistir, mas não pode morder, exceto quem o quiser». [1] Se fores tolo e disseres ao diabo: “Ah, como estás?”, ele arruinar-te-á. O diabo? À distância! Com o diabo não se dialoga. Devemos afugentá-lo. Distância. E todos nós, todos, temos a experiência de como o diabo se aproxima com alguma tentação, sobre os dez mandamentos. Quando sentirmos isto, paremos, distância! Não nos aproximemos do cão acorrentado!
A tecnologia moderna, por exemplo, além de muitos recursos positivos que devem ser apreciados, oferece também inúmeros meios para “dar ocasião ao diabo”, e muitos caem nela. Pensemos na pornografia na internet, por detrás da qual existe um mercado deveras florescente, todos o sabemos. É o diabo que trabalha ali. Trata-se de um fenómeno muito difundido, que, no entanto, os cristãos devem ter em conta e rejeitar vigorosamente. Pois qualquer telemóvel tem acesso a esta brutalidade, a esta linguagem do diabo: a pornografia na internet.
A consciência da ação do diabo na história não deve desencorajar-nos. O pensamento final deve ser, até neste caso, de confiança e segurança: “Estou com o Senhor, vai-te embora!”. Cristo venceu o demónio e concedeu-nos o Espírito Santo para fazer nossa a sua vitória. A própria ação do inimigo pode tornar-se vantajosa para nós se, com a ajuda de Deus, a pusermos ao serviço da nossa purificação. Peçamos, pois, ao Espírito Santo, com as palavras do hino Veni Creator:
“Afasta de nós o inimigo
e concede-nos depressa a paz.
Contigo que nos guias
evitaremos todo o mal!”.
Prestai atenção, pois o diabo é astuto. Mas nós, cristãos, com a graça de Deus, somos mais espertos do que ele. Obrigado!
___________
[1] São Cesário de Arles, Discursos 121, 6: CC 103, p. 507.
Papa Francisco
Audiência Geral
25.09.24
Ciclo de Catequese. O Espírito e a Esposa. O Espírito Santo conduz o povo de Deus ao encontro de Jesus, nossa esperança. 6. “O Espírito do Senhor está sobre mim.” O Espírito Santo no Batismo de Jesus
Hoje reflitamos sobre o Espírito Santo que desce sobre Jesus no batismo do Jordão e, d’Ele, se difunde no seu corpo, que é a Igreja. No Evangelho de Marcos, a cena do batismo de Jesus é assim descrita: «Naqueles dias, Jesus veio de Nazaré da Galileia e foi batizado no Jordão por João. E assim que saiu da água, viu os céus abertos e o Espírito que desceu sobre Ele como uma pomba. E do céu ouviu-se uma voz: “Tu és o meu Filho muito amado: em ti pus toda a minha complacência”» (Mc 1, 9-11).
Toda a Trindade marcou encontro, naquele momento, nas margens do Jordão! É o Pai que se faz presente com a sua voz; é o Espírito Santo que desce sobre Jesus sob forma de pomba; e é aquele que o Pai proclama como seu Filho amado, Jesus. É um momento muito importante da Revelação, é um momento importante da história da salvação. Far-nos-á bem reler esta passagem do Evangelho.
O que aconteceu de tão importante no batismo de Jesus, para induzir todos os evangelistas a narrá-lo? Encontramos a resposta nas palavras que Jesus pronuncia, pouco tempo depois, na sinagoga de Nazaré, com clara referência ao acontecimento do Jordão: «O Espírito do Senhor está sobre mim; foi por isto que me consagrou com a unção» (Lc 4, 18).
No Jordão, Deus Pai “ungiu com o Espírito Santo”, ou seja, consagrou Jesus como Rei, Profeta e Sacerdote. Com efeito, no Antigo Testamento, os reis, os profetas e os sacerdotes eram ungidos com óleo perfumado. No caso de Cristo, em vez do óleo físico, há o óleo espiritual que é o Espírito Santo; em vez do símbolo, há a realidade: é o próprio Espírito que desce sobre Jesus.
Jesus está cheio do Espírito Santo desde o primeiro instante da sua Encarnação. Mas esta era uma “graça pessoal”, incomunicável; agora, pelo contrário, com esta unção, recebe a plenitude do dom do Espírito, mas para a sua missão que, como cabeça, comunicará ao seu corpo, que é a Igreja, e a cada um de nós. Por isso, a Igreja é o novo “povo real, povo profético, povo sacerdotal”. O termo hebraico “Messias” e o vocábulo correspondente em grego “Cristo” - Christós - ambos referidos a Jesus, significam “ungido”: foi ungido com o óleo da alegria, ungido com o Espírito Santo. O nosso próprio nome “cristãos” será explicado pelos Padres em sentido literal: cristãos significa “ungidos à imitação de Cristo”.1
Na Bíblia um Salmo fala de um óleo perfumado derramado sobre a cabeça do sumo sacerdote Aarão e que desce até à orla da sua veste (cf. Sl 133, 2). Esta imagem poética do óleo que desce, usada para descrever a felicidade de viver juntos como irmãos, tornou-se realidade espiritual e realidade mística em Cristo e na Igreja. Cristo é a cabeça, o nosso Sumo Sacerdote; o Espírito Santo é o óleo perfumado e a Igreja é o corpo de Cristo no qual se difunde.
Vimos porque, na Bíblia, o Espírito Santo é simbolizado pelo vento e, aliás, recebe dele o próprio nome, Ruah - vento. Vale a pena perguntar-nos também porque é simbolizado pelo óleo e que ensinamento prático podemos obter deste símbolo. Na Missa de Quinta-Feira Santa, consagrando o óleo chamado “Crisma”, o bispo, referindo-se a quantos receberão a unção no Batismo e na Confirmação, diz: «Que esta unção os penetre e santifique, para que, libertados da corrupção nativa e consagrados como templo da sua glória, propaguem o perfume de uma vida santa». É uma aplicação que remonta a São Paulo, que aos Coríntios escreve: «Sim, diante de Deus nós somos o perfume de Cristo» (2 Cor 2, 15). A unção faz de nós perfume, e também uma pessoa que vive com alegria a sua unção perfuma a Igreja, perfuma a comunidade, perfuma a família com este aroma espiritual.
Sabemos que, infelizmente, às vezes os cristãos não difundem o perfume de Cristo, mas o mau cheiro do próprio pecado. E nunca nos esqueçamos: o pecado afasta-nos de Jesus, o pecado transforma-nos em óleo mau. E o diabo - não vos esqueçais disto - normalmente, o diabo entra pelos bolsos - tende cuidado! E isto, no entanto, não nos deve desviar do compromisso de realizar, na medida do possível e cada um no seu ambiente, esta sublime vocação de ser o bom perfume de Cristo no mundo. O perfume de Cristo emana dos “frutos do Espírito”, que são «amor, alegria, paz, magnanimidade, benignidade, bondade, fidelidade, mansidão, domínio de si» (Gl 5, 22). Paulo disse-o, e como é bom encontrar uma pessoa com estas virtudes: uma pessoa com amor, uma pessoa alegre, uma pessoa que cria a paz, uma pessoa magnânima, não mesquinha, uma pessoa benevolente que acolhe todos, uma pessoa bondosa. É bom encontrar uma pessoa boa, uma pessoa fiel, uma pessoa mansa, não orgulhosa... Se nos esforçarmos por cultivar estes frutos e quando encontrarmos estas pessoas, então, sem nos darmos conta, alguém sentirá ao nosso redor um pouco da fragrância do Espírito de Cristo. Peçamos ao Espírito Santo que nos torne mais conscientes, ungidos, ungidos por Ele.
Papa Francisco
Audiência Geral 21.08.2024
1 Cf. São Cirilo de Jerusalém, Catequese mistagógica, III,1.
Ciclo de Catequese. O Espírito e a Esposa. O Espírito Santo conduz o povo de Deus ao encontro de Jesus, nossa esperança. 5. “Encarnado por obra do Espírito Santo pela virgem Maria”. Como conceber e dar à luz Jesus
Com a catequese de hoje entramos na segunda fase da história da salvação. Depois de ter contemplado o Espírito Santo na obra da Criação, contemplá-lo-emos durante algumas semanas na obra da Redenção, isto é, de Jesus Cristo. Passemos, então, ao Novo Testamento e vejamos o Espírito Santo no Novo Testamento.
O tema de hoje é o Espírito Santo na Encarnação do Verbo. No Evangelho de Lucas, lemos: «O Espírito Santo descerá sobre ti» - ou Maria - «o poder do Altíssimo estenderá sobre ti a sua sombra» (1, 35). O evangelista Mateus confirma este dado fundamental sobre Maria e o Espírito Santo, dizendo que Maria «ficou grávida por obra do Espírito Santo» (1, 18).
A Igreja acolheu este facto revelado e colocou-o muito cedo no coração do seu Símbolo de fé. No Concílio Ecuménico de Constantinopla de 381 - o mesmo que definiu a divindade do Espírito Santo - este artigo entrou na fórmula do “Credo”.
Portanto, trata-se de um dado de fé ecuménico, pois todos os cristãos professam juntos esse mesmo Símbolo da fé. A piedade católica, desde tempos imemoráveis, extrai dele uma das suas orações quotidianas, o Angelus.
Este artigo de fé é o fundamento que permite falar de Maria como a Esposa por excelência, que é figura da Igreja. Com efeito, Jesus - escreve São Leão Magno - «dado que Ele nasceu por obra do Espírito Santo de uma mãe virgem, assim torna a Igreja, sua Esposa imaculada, fecunda com o sopro vital do mesmo Espírito» [1]. Este paralelismo é retomado na Constituição Dogmática Lumen gentium, que diz: «Pela sua fé e obediência, Maria gerou na terra o mesmo Filho de Deus, sem contacto com homem, mas envolta pelo Espírito Santo. [...] Agora, contemplando a santidade milagrosa da Virgem, imitando a sua caridade e cumprindo fielmente a vontade do Pai através da Palavra fielmente recebida, a Igreja torna-se também mãe, pois, pela pregação e pelo batismo, gera os seus filhos, concebidos pelo Espírito Santo e nascidos de Deus, para uma vida nova e imortal» (nn. 63, 64).
Concluímos com uma reflexão prática para a nossa vida, sugerida pela insistência da Escritura nos verbos “conceber” e “dar à luz”. Na profecia de Isaías, ouvimos: «Eis que a virgem conceberá e dará à luz um filho» (7, 14); e o Anjo diz a Maria: «Conceberás e darás à luz um filho» (Lc 1, 31). Maria primeiro concebeu, depois deu à luz Jesus: primeiro recebeu-o em si, no seu coração e na sua carne, depois deu-o à luz.
É o que acontece com a Igreja: primeiro acolhe a Palavra de Deus, deixa-a “falar ao seu coração” (cf. Os 2, 16) e “encher as suas entranhas” (cf. Ez 3, 3), segundo duas expressões bíblicas, e depois dá-a à luz com a vida e a pregação. Esta última é estéril sem a primeira.
Também a Igreja, face às tarefas que superam as suas forças, se coloca espontaneamente a mesma questão: “Como é possível isto?”. Como é possível anunciar Jesus Cristo e a sua salvação a um mundo que parece procurar apenas o bem-estar? A resposta é também a mesma de outrora: «Recebereis a força do Espírito Santo [...]». Sem o Espírito Santo, a Igreja não pode ir em frente, a Igreja não cresce, a Igreja não pode pregar.
O que se diz da Igreja em geral aplica-se também a nós, a cada batizado. Cada um de nós encontra-se por vezes, na vida, em situações maiores do que as próprias forças e pergunta-se: “Como posso enfrentar esta situação?”. Nesses casos, é útil repetir para si mesmo o que o anjo disse à Virgem: «A Deus nada é impossível» (Lc 1, 37).
Irmãos e irmãs, retomemos também nós o nosso caminho, cada vez com esta certeza reconfortante no coração: “Nada é impossível a Deus”. E se acreditarmos nisto, faremos milagres. Nada é impossível a Deus.
Papa Francisco
Audiência Geral 07.08.2024
___________________
[1] Discurso 12º sobre a Paixão, 3, 6: PL 54, 356.
Ciclo de Catequese. O Espírito e a Esposa. O Espírito Santo conduz o povo de Deus ao encontro de Jesus, nossa esperança. 4. O Espírito ensina a Noiva a orar. Os Salmos, sinfonia de oração na Bíblia
Em preparação para o próximo Jubileu, convidei a dedicar o ano de 2024 «a uma grande “sinfonia” de oração». [1] Com a catequese de hoje, gostaria de recordar que a Igreja já possui uma sinfonia de oração, cujo compositor é o Espírito Santo, e é o Livro dos Salmos.
Como em cada sinfonia, nele há vários “movimentos”, ou seja, diferentes tipos de oração: louvor, ação de graças, súplica, lamentação, narração, reflexão sapiencial e outros, tanto na forma pessoal como na forma coral de todo o povo. São os cânticos que o próprio Espírito pôs nos lábios da Esposa, a Igreja. Como recordei da última vez, todos os Livros da Bíblia são inspirados pelo Espírito Santo, mas o Livro dos Salmos também o é, no sentido de que está cheio de veia poética.
Os salmos ocuparam um lugar privilegiado no Novo Testamento. Com efeito, houve e ainda há edições que contêm o Novo Testamento e os Salmos juntos. Na minha escrivaninha tenho uma edição em ucraniano do Novo Testamento e dos Salmos, de um soldado que morreu durante a guerra, que me foi enviada; ele rezava na frente com este livro. Nem todos os salmos - nem tudo de cada salmo - podem ser repetidos e feitos próprios pelos cristãos e ainda menos pelo homem moderno. Às vezes eles refletem uma situação histórica e uma mentalidade religiosa que já não são nossas. Isto não significa que não sejam inspirados mas que, sob certos aspetos, estão ligados a um período e a uma fase provisória da revelação, como acontece também com grande parte da legislação antiga.
O que mais nos recomenda a aceitação dos salmos é que eles constituíram a oração de Jesus, de Maria, dos Apóstolos e de todas as gerações cristãs que nos precederam. Quando os recitamos, Deus ouve-os com aquela grandiosa “orquestração”, que é a comunhão dos santos. Segundo a Carta aos Hebreus, Jesus entra no mundo com o versículo de um salmo no coração: «Eis que venho, ó Deus, para cumprir a tua vontade» (cf. Hb 10, 7; Sl 40, 9); e, segundo o Evangelho de Lucas, deixa o mundo com outro salmo nos lábios: «Pai, nas tuas mãos entrego o meu espírito» (Lc 23, 46; cf. Sl 31, 6).
Ao uso dos salmos no Novo Testamento segue-se o dos Padres e de toda a Igreja, que fazem deles um elemento fixo na celebração da Missa e na Liturgia das horas. «Toda a Sagrada Escritura exala a bondade de Deus - diz Santo Ambrósio - mas de modo particular o doce Livro dos Salmos». [2] O doce livro dos salmos. Pergunto-me: recitais às vezes os salmos? Lede a Bíblia e recitai um salmo. Por exemplo, quando estais um pouco tristes por ter pecado, recitais o salmo 50? Há muitos salmos que nos ajudam a ir em frente. Adquiri o hábito de recitar os salmos, garanto-vos que no final sereis felizes.
Mas não podemos viver apenas da herança do passado: é necessário fazer dos salmos a nossa oração. Escreveu-se que, num certo sentido, devemos tornar-nos nós mesmos “autores” dos salmos, fazendo-os nossos e rezando com eles. [3] Se há salmos, ou apenas versículos, que falam ao nosso coração, é bom repeti-los e recitá-los durante o dia. Os salmos são orações “para todas as estações”: não há estado de espírito nem necessidade que não encontre neles as melhores palavras para os transformar em oração. Diversamente de todas as outras preces, os salmos não perdem a eficácia por causa da repetição, aliás, aumentam-na. Porquê? Porque são inspirados por Deus e “exalam” Deus cada vez que alguém os lê com fé.
Se nos sentimos sobrecarregados de remorsos e culpas, pois somos pecadores, podemos repetir com David: «Tende piedade de mim, ó Deus, no vosso amor; / na vossa grande misericórdia» (Sl 51, 3). Se quisermos exprimir uma forte ligação pessoal com Deus, digamos: «Ó Deus, Vós sois o meu Deus, / procuro-vos desde a aurora, / a minha alma tem sede de Vós, / a minha carne anseia por Vós / numa terra árida, sedenta, sem água» (Sl 63, 2). Não foi por acaso que a Liturgia inseriu este salmo nas Laudes do Domingo e das solenidades. E se o medo e a angústia nos assaltam, vêm em nosso socorro aquelas palavras maravilhosas: «O Senhor é o meu pastor [...]. Ainda que eu atravesse um vale escuro, / nada temerei» (Sl 23, 1.4).
Os salmos permitem-nos não empobrecer a nossa oração, reduzindo-a apenas a pedidos, a um contínuo “dai-me, dai-nos...”. Aprendamos com o nosso Pai, que antes de pedir o “pão nosso de cada dia” diz: “Santificado seja o vosso nome, venha a nós o vosso reino, seja feita a vossa vontade”. Os salmos ajudam-nos a abrir-nos a uma prece menos centrada em nós mesmos: uma oração de louvor, de bênção, de ação de graças; e ajudam-nos também a tornar-nos voz de toda a criação, envolvendo-a no nosso louvor.
Irmãos e irmãs, que o Espírito Santo, que ofereceu à Igreja Esposa as palavras para rezar ao seu divino Esposo, nos ajude a fazê-las ressoar na Igreja de hoje e a fazer deste ano de preparação para o Jubileu uma verdadeira sinfonia de oração.
Papa Francisco
Audiência geral 12.06.2024
________________________
[1] Carta a D. Fisichella para o Jubileu de 2025 (11 de fevereiro de 2022).
[2] Comentário aos Salmos I, 4, 7: CSEL 64, 4-7.
[3] JOÃO CASSIANO, Conlationes, X, 11: SCh 54, 92-93.
Ciclo de Catequese. O Espírito e a Esposa. O Espírito Santo conduz o povo de Deus ao encontro de Jesus, nossa esperança. 3. “Toda a Escritura é inspirada por Deus”. Conhecer o amor de Deus nas palavras de Deus
Continuemos as catequeses sobre o Espírito Santo, que guia a Igreja para Cristo, nossa esperança. Ele é o guia! Da última vez contemplamos a obra do Espírito na criação; hoje vejamo-lo na revelação, da qual a Sagrada Escritura é testemunho inspirado por Deus e fidedigno.
A segunda carta de São Paulo a Timóteo contém esta afirmação: «Toda a Escritura é inspirada por Deus» (3, 16). E outra passagem do Novo Testamento diz: «Inspirados pelo Espírito Santo é que os homens... falaram em nome de Deus» (2 Pd 1, 21). Esta é a doutrina da inspiração divina da Escritura, aquela que proclamamos como artigo de fé no Credo, quando dizemos que o Espírito Santo «falou através dos profetas». A inspiração divina da Bíblia!
O Espírito Santo, que inspirou as Escrituras, é também Aquele que as explica e as torna perenemente vivas e ativas. De inspiradas, torna-as inspiradoras. «As Sagradas Escrituras, inspiradas por Deus - diz o Concílio Vaticano II - e redigidas de uma vez para sempre, comunicam imutavelmente a palavra do próprio Deus, fazendo ressoar a voz do Espírito Santo nas palavras dos profetas e dos apóstolos» (Dei Verbum, 21). Deste modo, o Espírito Santo continua, na Igreja, a ação de Jesus Ressuscitado que, depois da Páscoa, «abriu a mente dos discípulos à compreensão das Escrituras» (cf. Lc 24, 45).
Com efeito, pode acontecer que um determinado trecho da Escritura, que lemos muitas vezes sem qualquer emoção particular, um dia o leiamos num clima de fé e oração, e que, repentinamente, aquele texto se ilumine, nos fale, lance luz sobre um problema que vivemos, tornando clara a vontade de Deus para nós numa certa situação. A que se deve esta mudança, a não ser a uma iluminação do Espírito Santo? As palavras da Escritura, sob a ação do Espírito, tornam-se luminosas; e, em tais casos, toca-se com as próprias mãos como é verdadeira a afirmação da Carta aos Hebreus: «A palavra de Deus é viva, eficaz e mais penetrante do que qualquer espada de dois gumes [...]» (4,12).
Irmãos e irmãs, a Igreja alimenta-se da leitura espiritual da Sagrada Escritura, isto é, da leitura feita sob a orientação do Espírito Santo que a inspirou. No seu centro, como farol que tudo ilumina, está o evento da morte e ressurreição de Cristo, que cumpre o desígnio da salvação, realiza todas as figuras e profecias, revela todos os mistérios escondidos, oferecendo a verdadeira chave de leitura de toda a Bíblia. A morte e a ressurreição de Cristo são o farol que ilumina toda a Bíblia, mas também a nossa vida. O Apocalipse descreve todo isto com a imagem do Cordeiro que rompe os selos do livro “escrito por dentro e por fora, mas sigilado com sete selos” (cf. 5, 1-9), a Escritura do Antigo Testamento. A Igreja, Esposa de Cristo, é intérprete fidedigna do texto inspirado da Escritura, a Igreja é medianeira da sua proclamação autêntica. Dado que a Igreja é dotada do Espírito Santo - por isso é intérprete - é «coluna e sustentáculo da verdade» (1 Tm 3, 15). Porquê? Porque é inspirada, corroborada pelo Espírito Santo. E a tarefa da Igreja consiste em ajudar os fiéis e quantos procuram a verdade a interpretar corretamente os textos bíblicos.
Um modo de fazer a leitura espiritual da Palavra de Deus chama-se lectio divina, uma expressão que talvez não entendamos o que significa. Consiste em dedicar um momento do dia à leitura pessoal e meditativa de uma passagem da Escritura. E isto é muito importante: todos os dias reservar um tempo para escutar, para meditar, lendo um trecho da Escritura. E por isso recomendo: tende sempre um Evangelho de bolso e levai-o na bolsa, no bolso... Assim, quando viajardes ou quando tiverdes um pouco de tempo livre, lede-o... Isto é muito importante para a vida! Pegai num Evangelho de bolso e, durante o dia, lede-o uma, duas vezes, quando for preciso. Mas a leitura espiritual da Escritura por excelência é a leitura comunitária que se faz na Liturgia, na Missa. Ali vemos como um acontecimento ou um ensinamento, dado no Antigo Testamento, encontra o seu pleno cumprimento no Evangelho de Cristo. E a homilia, o comentário que o celebrante faz, deve ajudar a transferir a Palavra de Deus do livro para a vida. Por isso, a homilia há de ser breve: uma imagem, um pensamento e um sentimento. A homilia não deve durar mais de oito minutos, porque depois, com o tempo, perde-se a atenção e as pessoas adormecem, e com razão. A homilia deve ser assim. E é isto que quero dizer aos sacerdotes, que tantas vezes falam muito, e não se entende o que dizem. Homilia breve: um pensamento, um sentimento e uma pista para a ação, para o modo de agir. Não mais de oito minutos. Pois a homilia deve ajudar a transferir a Palavra de Deus do livro para a vida. E entre as numerosas palavras de Deus que ouvimos todos os dias na Missa ou na Liturgia das horas, há sempre uma destinada em particular a nós. Algo que toca o coração! Acolhida no coração, pode iluminar o nosso dia, animar a nossa oração. Trata-se de não a deixar cair no vazio!
Concluamos com um pensamento que pode ajudar-nos a apaixonar-nos pela Palavra de Deus. Como certas peças musicais, também a Sagrada Escritura tem uma nota de fundo que a acompanha do princípio ao fim, e esta nota é o amor de Deus. «Toda a Bíblia - observa Santo Agostinho – só narra o amor de Deus». [1] E São Gregório Magno define a Escritura «uma carta de Deus todo-poderoso à sua criatura», como uma carta do Esposo à esposa, exortando-nos a «aprender a conhecer o coração de Deus nas palavras de Deus». [2] «Em virtude desta revelação – diz o Vaticano II - Deus invisível, na riqueza do seu amor fala aos homens como amigos e convive com eles para os convidar e admitir à comunhão com Ele» ( Dei Verbum, 2).
Prezados irmãos e irmãs, ide em frente com a leitura da Bíblia! Mas não vos esqueçais do Evangelho de bolso: levai-o na bolsa, no bolso e lede uma passagem num momento do dia. Isto aproximar-vos-á muito do Espírito Santo que está na Palavra de Deus. O Espírito Santo, que inspirou as Escrituras e agora emana das Escrituras, nos ajude a sentir este amor de Deus nas situações concretas da vida. Obrigado!
Papa Francisco
12.06.2024
Audiência Geral
___________________________________________________
[1] De catechizandis rudibus, I, 8, 4: PL 40, 319.
[2] Registrum Epistolarum, V, 46 (ed. Ewald-Hartmann, pp. 345-346).
Ciclo de Catequese. O Espírito e a Esposa. O Espírito Santo conduz o povo de Deus ao encontro de Jesus, nossa esperança. 2. “O vento sopra onde quer”. Onde há o Espírito de Deus há liberdade
Na catequese de hoje, gostaria de refletir convosco sobre o nome com que o Espírito Santo é chamado na Bíblia.
O primeiro aspeto que conhecemos de uma pessoa é o nome. É com ele que a chamamos, que a distinguimos e a recordamos. A terceira pessoa da Trindade também tem um nome: chama-se Espírito Santo. Mas “Espírito” é a versão latinizada. O nome do Espírito, aquele com que os primeiros destinatários da revelação o conheceram, com que os profetas, os salmistas, Maria, Jesus e os Apóstolos o invocaram, é Ruach, que significa sopro, vento, respiro.
Na Bíblia, o nome é tão importante que quase se identifica com a própria pessoa. Santificar o nome de Deus significa santificar e honrar o próprio Deus. Nunca é uma designação meramente convencional: diz sempre algo sobre a pessoa, a sua origem, a sua missão. Assim é também no caso do nome Ruach. Ele contém a primeira revelação fundamental sobre a pessoa e a função do Espírito Santo.
Foi precisamente observando o vento e as suas manifestações que os escritores bíblicos foram orientados por Deus a descobrir um “vento” de natureza diferente. Não foi por acaso que, no Pentecostes, o Espírito Santo desceu sobre os Apóstolos acompanhado pelo “ruído de um vento impetuoso” (cf. At 2, 2). Era como se o Espírito Santo quisesse assinar o que acontecia.
Então, o que nos diz o seu nome Ruach sobre o Espírito Santo? A imagem do vento serve sobretudo para manifestar o poder do Espírito Santo. “Espírito e poder”, ou “poder do Espírito” é um binómio frequente em toda a Bíblia. Com efeito, o vento é uma força impetuosa, uma força indomável, capaz de mover até os oceanos.
Mas também neste caso, para descobrir o sentido pleno das realidades da Bíblia, não podemos limitar-nos ao Antigo Testamento, mas devemos chegar a Jesus. Além do poder, Jesus colocará em evidência outra caraterística do vento, a da sua liberdade. A Nicodemos, que o visita à noite, Jesus diz solenemente: «O vento sopra onde quer, e ouves a sua voz, mas não sabes de onde vem, nem para onde vai; assim é todo aquele que nasceu do Espírito» (Jo 3, 8).
O vento é a única coisa que não pode absolutamente ser limitada, que não pode ser “engarrafada”, nem encaixotada. Procuremos “engarrafar” ou encaixotar o vento: não é possível, ele é livre! Procurar encerrar o Espírito Santo em conceitos, definições, teses ou tratados, como às vezes o racionalismo moderno procurou fazer, significa perdê-lo, anulá-lo ou reduzi-lo a um espírito puramente humano, a um simples espírito. Há, porém, uma tentação semelhante também no campo eclesiástico, que consiste em desejar encerrar o Espírito Santo em cânones, instituições, definições. O Espírito cria e anima as instituições, mas ele próprio não pode ser “institucionalizado”, “coisificado”. O vento sopra “onde quer”, assim o Espírito distribui os seus dons “como quer” (1 Cor 12, 11).
São Paulo fará de tudo isto a lei fundamental do agir cristão: «Onde está o Espírito do Senhor, aí está a liberdade» (2 Cor 3, 17), diz. Uma pessoa livre, um cristão livre, é aquele que tem o Espírito do Senhor. Trata-se de uma liberdade muito especial, deveras diferente da que é geralmente entendida. Não é a liberdade de fazer o que se quer, mas a liberdade de fazer livremente o que Deus quer! Não é a liberdade de praticar o bem ou o mal, mas a liberdade de praticar o bem e de o fazer livremente, isto é, por atração, não por obrigação. Em síntese, liberdade de filhos, não de escravos!
São Paulo está bem consciente do abuso ou da incompreensão que se pode ter desta liberdade; aos Gálatas, escreve: «Vós, irmãos, fostes chamados à liberdade. Mas que esta liberdade não se torne um pretexto para a carne; através do amor, colocai-vos ao serviço uns dos outros» (Gl 5, 13). Trata-se de uma liberdade que se manifesta naquilo que parece ser o seu contrário, exprime-se no serviço, pois é no serviço que há a verdadeira liberdade.
Sabemos bem quando esta liberdade se torna um “pretexto para a carne”. Paulo apresenta uma lista, sempre atual: «Fornicação, impureza, devassidão, idolatria, feitiçaria, inimizade, discórdia, ciúme, dissensões, divisões, fações, invejas, bebedeiras, orgias e coisas semelhantes» (Gl 5, 19-21). Mas assim é a liberdade que permite aos ricos explorarem os pobres, é uma liberdade negativa, que permite aos fortes explorarem os fracos e a todos explorarem impunemente o meio ambiente. Trata-se de uma liberdade negativa, não é a liberdade do Espírito!
Irmãos e irmãs, onde encontramos esta liberdade do Espírito, tão contrária à liberdade do egoísmo? A resposta está nas palavras que, um dia, Jesus dirigiu aos seus ouvintes: «Se o Filho vos libertar, sereis verdadeiramente livres» (Jo 8, 36). Esta é liberdade que Jesus nos concede. Peçamos a Jesus que, mediante o seu Espírito Santo, faça de nós homens e mulheres verdadeiramente livres. Livres para servir, no amor e naalegria. Obrigado!
Papa Francisco
05.06.2024
Audiência Geral
Ciclo de Catequese. O Espírito e a Esposa. O Espírito Santo conduz o povo de Deus ao encontro de Jesus, nossa esperança. 1. O Espírito de Deus movia-se sobre a superfície das águas
Hoje, com esta catequese, damos início a um ciclo de reflexões sobre o tema “O Espírito e a Esposa - a Esposa é a Igreja. O Espírito Santo conduz o povo de Deus ao encontro de Jesus, nossa esperança”. Faremos este percurso através das três grandes etapas da história da salvação: o Antigo Testamento, o Novo Testamento e o tempo da Igreja. Sempre com o olhar fixo em Jesus, que é a nossa esperança.
Nestas primeiras catequeses sobre o Espírito no Antigo Testamento, não faremos “arqueologia bíblica”. Ao contrário, descobriremos que aquilo que é dado como promessa no Antigo Testamento se realizou plenamente em Cristo. Será como seguir o caminho do sol desde o amanhecer até ao meio-dia.
Comecemos pelos dois primeiros versículos de toda a Bíblia: «No princípio, Deus criou o céu e a terra. A terra era informe e deserta, e as trevas cobriam o abismo, e o Espírito de Deus movia-se sobre a superfície das águas» (Gn 1, 1-2). O Espírito de Deus aparece-nos como a força misteriosa que faz passar o mundo do seu estado inicial informe, deserto e sombrio para o seu estado ordenado e harmonioso. Porque o Espírito faz a harmonia, a harmonia na vida, a harmonia no mundo. Em síntese, é Ele que faz a transição do caos para o cosmos, isto é, da confusão para algo de belo e ordenado. Este é, com efeito, o significado da palavra grega kosmos, bem como da palavra latina mundus, ou seja, algo belo, algo ordenado, puro e harmonioso, porque o Espírito é harmonia.
Este indício ainda vago da ação do Espírito na criação torna-se mais preciso na revelação seguinte. Num salmo, lê-se: «Pela palavra do Senhor foram feitos os céus, pelo sopro dos seus lábios foram criados todos os seus exércitos» (Sl 33, 6); e ainda: «Se lhe enviais o Vosso espírito, voltam à vida, e renovais a face da terra» (Sl 104, 30).
Esta linha de desenvolvimento torna-se muito clara no Novo Testamento, que descreve a intervenção do Espírito Santo na nova criação, utilizando precisamente as imagens que lemos a propósito da origem do mundo: a pomba estava sobre as águas do Jordão no batismo de Jesus (cf. Mt 3,16); Jesus que, no Cenáculo, sopra sobre os discípulos e diz: «Recebei o Espírito Santo» (Jo 20, 22), tal como no princípio Deus soprou sobre Adão (cf. Gn 2, 7).
O apóstolo Paulo introduz um elemento novo nesta relação entre o Espírito Santo e a criação. Fala de um universo que «geme e sofre como que dores de parto» (cf. Rm 8, 22). Sofre por causa do homem, que o submeteu à «escravidão da corrupção» (cf. vv. 20-21). É uma realidade que nos toca de perto e de forma dramática. O Apóstolo vê a causa do sofrimento da criação na corrupção e no pecado da humanidade, que a arrastou para a sua alienação de Deus. Isto continua a ser tão verdadeiro hoje como era então. Vemos o dano que a humanidade fez e continua a fazer na criação, especialmente na parte que tem maior capacidade de explorar os seus recursos.
São Francisco de Assis mostra-nos uma bela solução para regressar à harmonia do Espírito: o caminho da contemplação e do louvor. Ele quis que das criaturas brotasse um cântico de louvor ao Criador. Recordemos: «Louvado sejas, meu Senhor...», o cântico de Francisco de Assis.
Um salmo (18, 2) diz assim: «Os céus narram a glória de Deus», mas precisam que o homem e a mulher deem voz ao seu grito silencioso. E no “Santo” da Missa, repetimos sempre: «Os céus e a terra estão cheios da tua glória». Eles estão, por assim dizer, “grávidos” dela, mas precisam das mãos de uma boa parteira para dar à luz este seu louvor. A nossa vocação no mundo, recorda-nos ainda Paulo, é sermos «louvor da sua glória» (Ef 1, 12). Trata-se de antepor a alegria da contemplação à alegria da posse. E ninguém se alegrou mais com as criaturas do que Francisco de Assis, que não queria possuir nenhuma.
Irmãos e irmãs, o Espírito Santo, que no princípio transformou o caos em cosmos, trabalha para realizar esta transformação em cada pessoa. Através do profeta Ezequiel, Deus promete: «Dar-vos-ei um coração novo, porei em vós um Espírito novo... Porei em vós o meu Espírito» (Ez 36, 26-27). Com efeito, o nosso coração assemelha-se ao abismo deserto e obscuro dos primeiros versículos do Génesis. Nele agitam-se sentimentos e desejos opostos: da carne e do espírito. Num certo sentido, todos nós somos aquele “reino dividido em si mesmo” de que fala Jesus no Evangelho (cf. Mc 3, 24). Ao nosso redor, podemos dizer que existe um caos externo, um caos social, um caos político: pensemos nas guerras, pensemos em tantos meninos e meninas que não têm o que comer, em tantas injustiças sociais, este é o caos externo. Mas há também um caos interior: o caos interior de cada um de nós. Não se pode curar o primeiro, se não se começar a curar o segundo! Irmãos e irmãs, trabalhemos bem para transformar a nossa confusão interior numa claridade do Espírito Santo: é o poder de Deus que o faz; e nós, abramos o coração para que Ele o possa fazer.
Que esta reflexão suscite em nós o desejo de experimentar o Espírito criador. Há mais de mil anos que a Igreja põe nos nossos lábios o clamor, para o pedir: “Veni creator Spiritus!”, Vem, ó Espírito criador! Visita a nossa mente. Enche de graça celeste os corações que criaste! Peçamos ao Espírito Santo que venha a nós e nos torne pessoas novas, com a novidade do Espírito. Obrigado!
Papa Francisco
29.05.2024
Audiência geral
Catequeses. Os vícios e as virtudes. 20. A humildade
Concluímos este ciclo de catequeses meditando sobre uma virtude que não faz parte do septenário de virtudes cardeais e teologais, mas que está na base da vida cristã: esta virtude é a humildade. Ela é a grande antagonista do mais mortal dos vícios, a soberba. Enquanto o orgulho e a soberba inflam o coração humano, fazendo-nos parecer mais do que somos, a humildade repõe tudo na dimensão certa: somos criaturas maravilhosas mas limitadas, com qualidades e defeitos. A Bíblia recorda-nos desde o início que somos pó e ao pó voltaremos (cf. Gn 3, 19); com efeito, “humilde” vem de húmus, ou seja, terra. No entanto, no coração humano surgem com frequência delírios de omnipotência, muito perigosos, e isto fere-nos muito.
Para nos libertarmos do orgulho, bastaria deveras pouco, seria suficiente contemplar um céu estrelado para recuperar a medida certa, como reza o Salmo: «Quando contemplo o firmamento, obra das vossas mãos, a lua e as estrelas que fixastes, que é o homem para que vos lembrardes dele, o filho do homem para dele cuidardes?» (8, 4-5). A ciência moderna permite-nos ampliar muito mais o horizonte e sentir em maior medida o mistério que nos circunda e habita.
Felizes as pessoas que conservam no coração esta consciência da sua pequenez! Estas pessoas são preservadas de um vício tremendo: a arrogância. Nas suas bem-aventuranças, Jesus parte precisamente delas: «Bem-aventurados os pobres em espírito, porque deles é o reino dos céus» (Mt 5, 3). É a primeira bem-aventurança, pois está na base das seguintes: com efeito, a mansidão, a misericórdia, a pureza de coração nascem desta sensação interior de pequenez. A humildade é a porta de entrada para todas as virtudes!
Nas primeiras páginas dos Evangelhos, a humildade e a pobreza de espírito parecem ser a fonte de tudo. O anúncio do anjo não se verifica às portas de Jerusalém, mas num povoado remoto da Galileia, tão insignificante que as pessoas diziam: «Pode vir algo bom de Nazaré?» (Jo 1, 46). Mas é precisamente dali que o mundo renasce. A heroína escolhida não é uma pequena rainha que cresceu na infantilidade, mas uma jovem desconhecida: Maria. A primeira a ficar abismada é ela própria, quando o anjo lhe traz o anúncio de Deus. E no seu cântico de louvor sobressai exatamente este enlevo: «A minha alma engrandece o Senhor e o meu espírito exulta em Deus, meu Salvador, porque olhou para a humildade da sua serva» (Lc 1, 46-48). Deus - por assim dizer - é atraído pela pequenez de Maria, que é sobretudo pequenez interior. E é atraído também pela nossa pequenez, quando a aceitamos.
Daqui em diante, Maria terá o cuidado de não pisar o palco. A sua primeira decisão após o anúncio angélico é ir ajudar, ir servir a prima. Maria vai às montanhas de Judá, para visitar Isabel: assiste-a nos últimos meses de gravidez. Mas quem vê este gesto? Ninguém, a não ser Deus. A Virgem parece nunca querer sair deste escondimento. Como quando, do meio da multidão, a voz de uma mulher proclama a sua bem-aventurança: «Bendito o ventre que te deu à luz e o seio que te amamentou!» (Lc 11, 27). Mas Jesus responde imediatamente: «Bem-aventurados os que ouvem a palavra de Deus e a observam» (Lc 11, 28). Nem sequer a verdade mais sagrada da sua vida - ser Mãe de Deus - se torna para ela motivo de vanglória diante dos homens. Num mundo que busca a aparência, para se demonstrar superior aos outros, Maria caminha com determinação, só com a força da graça de Deus, na direção oposta.
Podemos imaginar que também ela conheceu momentos difíceis, dias em que a sua fé avançava na escuridão. Mas isto nunca fez vacilar a sua humildade, que em Maria era uma virtude granítica. Quero frisá-lo: a humildade é uma virtude granítica! Pensemos em Maria: ela é sempre pequena, sempre despojada de si mesma, sempre livre de ambições. Esta sua pequenez é a sua força invencível: é ela que permanece aos pés da cruz, enquanto se fragmenta a ilusão de um Messias triunfante. Será Maria, nos dias precedentes ao Pentecostes, que reunirá o rebanho dos discípulos que não foram capazes de vigiar uma só hora com Jesus e que o abandonaram quando chegou a tempestade.
Irmãos e irmãs, a humildade é tudo. É ela que nos salva do Maligno e do perigo de nos tornarmos seus cúmplices. E a humildade é a nascente da paz no mundo e na Igreja. Onde não há humildade, há guerra, há discórdia, há divisão. Deus deu-nos o exemplo disto em Jesus e Maria, a fim de que seja a nossa salvação e a nossa felicidade. E a humildade é precisamente a vereda, o caminho da salvação. Obrigado!
Papa Francisco
Audiência Geral 22.05.2024
Catequeses. Os vícios e as virtudes. 19. A caridade
Hoje falaremos da terceira virtude teologal, a caridade. As outras duas, recordemos, são a fé e a esperança: hoje falaremos da terceira, a caridade. Ela é o ápice de todo o itinerário que percorremos nas catequeses sobre as virtudes. Pensar na caridade dilata imediatamente o coração e a mente, segundo as palavras inspiradas de São Paulo na Primeira Carta aos Coríntios. Concluindo aquele maravilhoso hino, São Paulo cita a tríade de virtudes teologais, exclamando: «Agora, pois, subsistem estas três coisas: a fé, a esperança e a caridade. Mas a maior de todas é a caridade» (1 Cor 13, 13).
Paulo dirige estas palavras a uma comunidade muito longe de ser perfeita no amor fraterno: os cristãos de Corinto eram bastante turbulentos, havia divisões internas, havia aqueles que pretendiam ter sempre razão e não ouviam os outros, considerando-os inferiores. Paulo recorda-lhes que a ciência ensoberbece, enquanto a caridade edifica (cf. 1 Cor 8, 1). Além disso, o Apóstolo fala de um escândalo que atinge até o momento de maior união de uma comunidade cristã, ou seja, a “ceia do Senhor”, a celebração eucarística: também aí há divisões, e há quem se aproveite para comer e beber, excluindo os que nada têm (cf. 1 Cor 11, 18-22). Perante isto, Paulo pronuncia um juízo severo: «Quando, pois, vos reunis, já não comeis a ceia do Senhor» (v. 20), tendes outro ritual, que é pagão, não é a ceia do Senhor.
Quem sabe, talvez ninguém na comunidade de Corinto pensasse que tinha cometido pecado e aquelas palavras tão duras do Apóstolo lhes parecessem um pouco incompreensíveis. Provavelmente todos estavam convencidos de que eram pessoas bondosas e, se fossem interrogados sobre o amor, teriam respondido que para eles o amor era certamente um valor muito importante, como a amizade e a família. Até hoje o amor está nos lábios de todos, na boca de muitos “influencers” e nos refrões de numerosas canções. Fala-se muito de amor, mas o que é o amor?
“Mas o outro amor?”, parece perguntar Paulo aos seus cristãos de Corinto. Não o amor que sobe, mas aquele que desce; não o que toma, mas aquele que oferece; não o que aparece, mas aquele que se esconde. Paulo receia que em Corinto - como também entre nós hoje - se crie confusão e que da virtude teologal do amor, que só vem de Deus, não permaneça na realidade vestígio algum. E, embora todos afirmem ser pessoas bondosas, que amam a própria família e os amigos, na verdade sabem muito pouco sobre o amor de Deus.
Os cristãos da antiguidade tinham à disposição várias palavras gregas para definir o amor. No final, surgiu o vocábulo “ágape”, que normalmente traduzimos como “caridade”. Porque, na verdade, os cristãos são capazes de todos os amores do mundo: também eles se apaixonam, mais ou menos como acontece com todos. Também eles experimentam a benevolência da amizade. Também eles vivem o amor à pátria e o amor universal a toda a humanidade. Mas existe um amor maior, um amor que vem de Deus e se dirige a Deus, que nos permite amar a Deus, tornando-nos seus amigos, e nos concede amar o próximo como Deus o ama, com o desejo de partilhar a amizade com Deus. Por causa de Cristo, este amor impele-nos para onde humanamente não iríamos: trata-se do amor pelos pobres, pelo que não é amável, por quem não nos ama e não nos é grato. É o amor pelo que ninguém amaria; até pelo inimigo. Até pelo inimigo. Isto é “teologal”, vem de Deus, é obra do Espírito Santo em nós.
No sermão da montanha Jesus prega: «Se amardes aqueles que vos amam, que gratidão vos será devida? Até os pecadores amam aqueles que os amam. E se fizerdes o bem a quem vos faz o bem, que gratidão vos é devida? Até os pecadores fazem o mesmo» (Lc 6, 32-33). E conclui: «Amai, pois, os vossos inimigos - estamos habituados a falar mal dos inimigos - amai os vossos inimigos, fazei o bem e emprestai sem nada esperar, e a vossa recompensa será grande, e sereis filhos do Altíssimo, porque Ele tem piedade dos ingratos e dos malvados» (v. 35). Recordemo-lo: “Amai, pois, os vossos inimigos, fazei o bem e emprestai sem nada esperar”. Não o esqueçamos!
Nestas palavras, o amor revela-se como virtude teologal, adquirindo o nome de caridade. O amor é caridade! Compreendemos imediatamente que se trata de um amor difícil, aliás, impossível de praticar, se não se vive em Deus. A nossa natureza humana leva-nos a amar espontaneamente o que é bom e belo. Em nome de um ideal ou de um grande afeto, até conseguimos ser generosos e realizar gestos heroicos. Mas o amor de Deus vai além destes critérios. O amor cristão abraça o que não é amável, oferece o perdão - como é difícil perdoar, quanto amor é preciso para perdoar! - o amor cristão abençoa quem amaldiçoa, enquanto nós estamos habituados, perante um insulto ou uma maldição, a responder com outro insulto, com outra maldição. É um amor tão audacioso que parece quase impossível e, no entanto, é a única coisa que restará de nós. O amor é a “porta estreita” através da qual passar para entrar no Reino de Deus. Pois no crepúsculo da vida não seremos julgados pelo amor genérico, seremos julgados precisamente pela caridade, pelo amor que tivermos concretamente. E Jesus diz-nos isto, é muito bonito: «Em verdade vos digo: tudo o que fizestes a um destes meus irmãos mais pequeninos, foi a mim mesmo que o fizestes» (Mt 25, 40). Esta é a beleza, a grandiosidade do amor. Em frente e coragem!
Papa Francisco
Audiência Geral 15.05.2024
Catequeses. Os vícios e as virtudes. 18. A esperança
Na última catequese, demos início à reflexão sobre as virtudes teologais. São três: fé, esperança e caridade. Da última vez refletimos sobre a fé, hoje é a vez da esperança. «A esperança é a virtude teologal pela qual desejamos o Reino dos céus e a vida eterna como nossa felicidade, pondo toda a nossa confiança nas promessas de Cristo e apoiando-nos não nas nossas forças, mas no socorro da graça do Espírito Santo» (Catecismo da Igreja Católica, n. 1817). Estas palavras confirmam-nos que a esperança é a resposta oferecida ao nosso coração, quando brota em nós a pergunta absoluta: “Que será de mim? Qual é a meta da viagem? Qual é o destino do mundo?”.
Todos compreendemos que uma resposta negativa a estas perguntas produz tristeza. Se o caminho da vida não tem sentido, se não há nada no princípio e no fim, então perguntamo-nos por que deveríamos caminhar: daqui nasce o desespero do homem, a sensação da inutilidade de tudo. E muitos poderiam revoltar-se: esforcei-me por ser virtuoso, prudente, justo, forte, temperante. Fui também um homem ou uma mulher de fé... De que serviu o meu combate, se tudo acaba aqui? Se faltar a esperança, todas as outras virtudes correm o risco de se desmoronar e de acabar em cinzas. Se não existisse um amanhã fiável, um horizonte resplandecente, não restaria que concluir que a virtude é um esforço inútil. «Somente quando o futuro é certo como realidade positiva, é que se torna vivível também o presente», dizia Bento XVI (Carta Encíclica Spe salvi, 2).
O cristão tem esperança não por mérito próprio. Se acredita no futuro, é porque Cristo morreu, ressuscitou e nos concedeu o seu Espírito. «A redenção é-nos oferecida no sentido que nos foi dada a esperança, uma esperança fidedigna, graças à qual podemos enfrentar o nosso tempo presente» (ibid., 1). Neste sentido, dizemos mais uma vez que a esperança é uma virtude teologal: não deriva de nós, não é uma obstinação de que nos queremos convencer, mas sim um dom que vem diretamente de Deus.
A muitos cristãos céticos, que não tinham renascido completamente para a esperança, o apóstolo Paulo apresenta a nova lógica da experiência cristã: «Se Cristo não ressuscitou, é vã a vossa fé, e ainda viveis nos vossos pecados. Por isso, até os que morreram em Cristo pereceram. Se tão somente nesta vida esperarmos em Cristo, somos os mais miseráveis de todos os homens» (1 Cor 15, 17-19). É como se dissesse: se acreditares na ressurreição de Cristo, então sabes com certeza que nenhuma derrota, nenhuma morte é para sempre. Mas se não acreditares na ressurreição de Cristo, então tudo se torna vazio, até a pregação dos Apóstolos.
A esperança é uma virtude contra a qual pecamos frequentemente: nas nossas saudades negativas, nas nossas melancolias, quando pensamos que as felicidades do passado estão enterradas para sempre. Pecamos contra a esperança, quando desanimamos diante dos nossos pecados, esquecendo que Deus é misericordioso e é maior do que o nosso coração. Não esqueçamos isto, irmãos e irmãs: Deus perdoa tudo, Deus perdoa sempre. Somos nós que nos cansamos de pedir perdão. Mas não esqueçamos esta verdade: Deus perdoa tudo, Deus perdoa sempre! Pecamos contra a esperança, quando desanimamos perante os nossos pecados; pecamos contra a esperança, quando o outono anula em nós a primavera; quando o amor de Deus deixa de ser um fogo eterno e não temos a coragem de tomar decisões que nos comprometem para toda a vida.
O mundo de hoje tem muita necessidade desta virtude cristã! O mundo precisa da esperança, assim como tem tanta necessidade da paciência, uma virtude que caminha de mãos dadas com a esperança. Os homens pacientes são tecelões de bem. Desejam obstinadamente a paz, e embora alguns tenham pressa e queiram tudo e já, a paciência tem a capacidade da espera. Até quando muitos à sua volta cederam à desilusão, quem é animado pela esperança e é paciente, torna-se capaz de atravessar as noites mais escuras. Esperança e paciência caminham de mãos dadas!
A esperança é a virtude de quem é jovem de coração; e nisto, a idade não conta. Porque existem até velhos com os olhos cheios de luz, que vivem em tensão permanente para o futuro. Pensemos naqueles dois grandes anciãos do Evangelho, Simeão e Ana: nunca se cansaram de esperar e viram o último trecho do seu caminho abençoado pelo encontro com o Messias, que reconheceram em Jesus, levado ao Templo pelos seus pais. Que felicidade, se fosse assim para todos nós! Se, depois de uma longa peregrinação, pousando alforge e cajado, o nosso coração se enchesse de uma alegria nunca antes sentida e também nós pudéssemos exclamar: «Agora, Senhor, podes deixar o teu servo / ir em paz, segundo a tua palavra, / porque os meus olhos viram a tua salvação, / preparada por ti diante de todos os povos: / luz para te revelar às nações / e glória para o teu povo, Israel» (Lc 2, 29-32).
Irmãos e irmãs, vamos em frente e peçamos a graça de ter esperança, esperança com paciência. Olhar sempre para o encontro definitivo; pensar sempre que o Senhor está perto de nós, que a morte nunca, nunca será vencedora! Vamos em frente e peçamos ao Senhor que nos conceda esta grande virtude da esperança, acompanhada pela paciência. Obrigado!
Papa Francisco
Audiência geral 8.05.2024
imagem: pexels.com
Catequeses. Os vícios e as virtudes. 17. A fé
Hoje gostaria de falar sobre a virtude da fé. Com a caridade e a esperança, esta virtude é chamada “teologal”. São três as virtudes teologais: fé, esperança e caridade. Por que são teologais? Porque só podem ser vividas graças ao dom de Deus. As três virtudes teologais são os grandes dons que Deus concede à nossa capacidade moral. Sem elas, poderíamos ser prudentes, justos, fortes e temperantes, mas não teríamos olhos que veem até no escuro, não teríamos um coração que ama até quando não é amado, não teríamos uma esperança que ousa contra toda a esperança.
O que é a fé? O Catecismo da Igreja Católica explica-nos que a fé é o ato com que o ser humano se abandona livremente a Deus (n. 1814). Nesta fé, Abraão foi o grande pai. Quando aceitou deixar a terra dos seus antepassados para se dirigir rumo à terra que Deus lhe teria indicado, provavelmente foi julgado louco: por que deixar o conhecido pelo desconhecido, o certo pelo incerto? Por que fazer isto? É louco? Mas Abraão põe-se a caminho, como se visse o invisível. É o que a Bíblia diz de Abraão: “Partiu, como se visse o invisível”. Isto é lindo! E será ainda este invisível que o fará subir à montanha com o seu filho Isaac, o único filho da promessa, que só no último momento será poupado ao sacrifício. Nesta fé, Abraão torna-se o pai de uma longa linhagem de filhos. A fé tornou-o fecundo.
Homem de fé será Moisés que, aceitando a voz de Deus até quando mais do que uma dúvida o podia abalar, continuou a manter-se firme e a confiar no Senhor, e até a defender o povo a quem, pelo contrário, muitas vezes faltava a fé.
Mulher de fé será a Virgem Maria que, recebendo o anúncio do Anjo, que muitos teriam rejeitado como demasiado exigente e arriscado, responde: «Eis a serva do Senhor: faça-se em mim segundo a tua palavra» (Lc 1, 38). E com o coração cheio de fé, com o coração repleto de confiança em Deus, Maria põe-se a caminho por uma estrada da qual não conhece nem o trajeto nem os perigos.
A fé é a virtude que faz o cristão. Pois ser cristão não consiste antes de mais em aceitar uma cultura, com os valores que a acompanham, mas ser cristão significa acolher e preservar um vínculo, um vínculo com Deus: eu e Deus; a minha pessoa e o rosto amável de Jesus. É este vínculo que nos torna cristãos.
A propósito de fé, vem-me à mente um episódio do Evangelho. Os discípulos de Jesus atravessam o lago e são surpreendidos por uma tempestade. Pensam que conseguirão salvar-se com a força dos seus braços, com os recursos da experiência, mas o barco começa a encher-se de água e entram em pânico (cf. Mc 4, 35-41). Não se dão conta de que têm a solução diante dos olhos: Jesus está ali com eles no barco, no meio da tempestade, e Jesus dorme, diz o Evangelho. Quando finalmente o acordam, assustados e até zangados porque Ele os deixa morrer, Jesus repreende-os: «Por que tendes medo? Ainda não tendes fé?» (Mc 4, 40).
Eis, portanto, o grande inimigo da fé: não é a inteligência, não é a razão, como, infelizmente, alguns continuam a repetir obsessivamente, mas o grande inimigo da fé é o medo. Por isso, a fé é o primeiro dom a receber na vida cristã: um dom que deve ser acolhido e pedido diariamente, para que se renove em nós. Aparentemente, é um dom pequeno, mas é essencial. Quando fomos levados à pia batismal, os nossos pais, depois de terem anunciado o nome que tinham escolhido para nós, foram interrogados pelo sacerdote – foi isto que aconteceu no nosso Batismo - «O que pedis à Igreja de Deus?». E os pais responderam: «A fé, o batismo!».
Para um pai cristão, consciente da graça que lhe foi concedida, é este o dom a pedir também para o seu filho: a fé. Com ela, o pai sabe que, até no meio das provações da vida, o seu filho não se afogará no medo. Eis, o inimigo é o medo. Sabe também que, quando deixar de ter um pai nesta terra, continuará a ter um Deus Pai no céu, que nunca o abandonará. O nosso amor é tão frágil, e só o amor de Deus vence a morte!
Certamente, como diz o Apóstolo, a fé não é de todos (cf. 2 Ts 3, 2), e até nós, que somos crentes, muitas vezes sentimos que a temos em pouca quantidade. Muitas vezes, Jesus pode repreender-nos, como fez com os seus discípulos, por sermos “homens de pouca fé”. No entanto, é o dom mais feliz, a única virtude que nos é permitido invejar. Pois quem tem fé é habitado por uma força que não é apenas humana; com efeito, a fé “desencadeia” em nós a graça e abre a mente ao mistério de Deus. Como certa vez Jesus disse: «Se tivésseis fé como um grão de mostarda, poderíeis dizer a esta amoreira: “Desarraiga-te e planta-te no mar”, e ela obedecer-vos-ia» (Lc 17, 6). Por isso, também nós, como os discípulos, lhe repetimos: Senhor, aumenta a nossa fé! (cf. Lc 17, 5) É uma linda oração! Digamo-la todos juntos? “Senhor, aumenta a nossa fé”. Digamo-la juntos: [todos] “Senhor, aumenta a nossa fé”. Demasiado fraco, um pouco mais alto: [todos] “Senhor, aumenta a nossa fé!”. Obrigado!
Papa Francisco
Audiência Geral 02.05.2024
imagem: pexels.com
Catequeses. Os vícios e as virtudes. 16. A vida da graça segundo o Espírito
Nas últimas semanas, refletimos sobre as virtudes cardeais: prudência, justiça, fortaleza e temperança. São estas as quatro virtudes cardeais. Como já salientamos várias vezes, estas quatro virtudes pertencem a uma sabedoria muito antiga, estas quatro virtudes pertencem a uma sabedoria muito antiga, precedente até ao cristianismo. Já antes de Cristo, a honestidade era preconizada como dever cívico, a sabedoria como regra das ações, a coragem como ingrediente fundamental para uma vida que tende para o bem, e a moderação como medida necessária para não se deixar dominar pelos excessos. Esta herança tão antiga, legado da humanidade, não foi substituída pelo cristianismo, mas esclarecida, valorizada, purificada e integrada na fé.
Portanto, no coração de cada homem e mulher existe a capacidade de procurar o bem. O Espírito Santo é concedido para que quantos o recebem possam distinguir claramente o bem do mal, ter a força de aderir ao bem evitando o mal e, agindo assim, alcançar a plena realização pessoal.
Mas no caminho que todos percorremos rumo à plenitude da vida, que pertence ao destino de cada pessoa - o destino de cada pessoa é a plenitude, ser cheia de vida - o cristão goza de uma ajuda especial do Espírito Santo, o Espírito de Jesus. Ela é implementada com o dom de outras três virtudes, distintamente cristãs, que nos escritos do Novo Testamento são frequentemente mencionadas juntas. Estas atitudes fundamentais, que distinguem a vida do cristão, são três virtudes que agora diremos juntos: fé, esperança e caridade. Digamo-las juntos: [juntos] Fé, esperança... não ouço nada, mais alto! [juntos] Fé, esperança e caridade. Muito bem! Os escritores cristãos chamaram-lhes depressa virtudes “teologais”, dado que são recebidas e vividas na relação com Deus, para as diferenciar das outras quatro virtudes chamadas “cardeais”, uma vez que constituem a “charneira” de uma vida boa. Estas três são recebidas no Batismo e derivam do Espírito Santo. Todas, tanto as teologais como as cardeais, confrontadas em muitas reflexões sistemáticas, compuseram assim um maravilhoso septenário, que muitas vezes é oposto ao elenco dos sete vícios capitais. É assim que o Catecismo da Igreja Católica define a ação das virtudes teologais: «Fundamentam, animam e caraterizam o agir moral do cristão. Informam e vivificam todas as virtudes morais. São infundidas por Deus na alma dos fiéis para os tornar capazes de proceder como filhos seus e assim merecerem a vida eterna. São o penhor da presença e da ação do Espírito Santo nas faculdades do ser humano» (n. 1813).
Enquanto o risco das virtudes cardeais consiste em gerar homens e mulheres heroicos na prática do bem, mas em última análise sozinhos, isolados, o grande dom das virtudes teologais é a existência vivida no Espírito Santo. O cristão nunca está sozinho. Pratica o bem não por um esforço titânico de empenhamento pessoal, mas porque, como discípulo humilde, caminha atrás do Mestre Jesus. Ele vai à frente ao longo do caminho. O cristão possui as virtudes teologais que são o grande antídoto contra a autossuficiência. Quantas vezes certos homens e mulheres moralmente irrepreensíveis correm o risco de se tornarem presunçosos e arrogantes aos olhos de quem os conhece! É um perigo contra o qual bem nos alerta o Evangelho, onde Jesus recomenda aos discípulos: «Também vós, quando tiverdes feito tudo o que vos foi ordenado, dizei: “Somos servos inúteis, fizemos o que devíamos fazer”» (Lc 17, 10). A soberba é um veneno, um veneno poderoso: basta uma gota para estragar toda uma vida marcada pelo bem. Uma pessoa pode ter praticado uma montanha de boas ações, pode ter recebido reconhecimentos e louvores, mas se fez tudo isto apenas para si própria, para se exaltar, ainda pode dizer-se uma pessoa virtuosa? Não!
O bem não é apenas um fim, mas também um modo. O bem precisa de muita discrição, de muita gentileza. O bem tem necessidade sobretudo de se despojar desta presença às vezes demasiado incómoda que é o nosso “eu”. Quando o nosso “eu” está no centro de tudo, estraga tudo. Se cada ação que realizarmos na vida for apenas para nós próprios, é realmente tão importante esta motivação? O pobre “eu” apodera-se de tudo e assim nasce a soberba.
Para corrigir todas estas situações, que às vezes se tornam penosas, as virtudes teologais são de grande ajuda. São-no sobretudo nos momentos de queda, pois às vezes até aqueles que têm bons propósitos morais caem. Na vida todos caímos, porque todos somos pecadores. Tal como até os que praticam diariamente a virtude às vezes erram - todos erramos na vida - a inteligência nem sempre é lúcida, a vontade nem sempre é firme, as paixões nem sempre são governadas, a coragem nem sempre vence o medo. Mas se abrirmos o coração ao Espírito Santo - Mestre interior - Ele reaviva em nós as virtudes teologais: assim, se perdemos a confiança, Deus reabre-nos à fé - com a força do Espírito; se estamos desanimados, Deus reabre-nos à fé, se estamos desencorajados Deus desperta em nós a esperança; e se o nosso coração está empedernido, Deus suaviza-o com o seu amor. Obrigado!
Papa Francisco
Audiência geral 24.04.2024
Catequeses. Os vícios e as virtudes. 14. A fortaleza
A catequese de hoje é dedicada à terceira das virtudes cardeais, ou seja, a fortaleza. Comecemos pela descrição dada pelo Catecismo da Igreja Católica: «A fortaleza é a virtude moral que, no meio das dificuldades, assegura a firmeza e a constância na prossecução do bem. Torna firme a decisão de resistir às tentações e de superar os obstáculos na vida moral. A virtude da fortaleza dá capacidade para vencer o medo, até da morte, e enfrentar a provação e as perseguições» (n. 1808). Assim diz o Catecismo da Igreja Católica sobre a virtude da fortaleza.
Eis, pois, a mais “combativa” das virtudes. Enquanto a primeira das virtudes cardeais, isto é, a prudência, estava principalmente associada à razão do homem; e enquanto a justiça encontrava a sua morada na vontade, esta terceira virtude, a fortaleza, é frequentemente ligada pelos autores escolásticos àquilo a que os antigos chamavam o “apetite irascível”. O pensamento antigo não imaginava um homem desprovido de paixões: seria uma pedra. E as paixões não são necessariamente o resíduo de um pecado; mas devem ser educadas, devem ser orientadas, devem ser purificadas com a água do Batismo, ou melhor, com o fogo do Espírito Santo. O cristão sem coragem, que não inclina as próprias forças para o bem, que não incomoda ninguém, é um cristão inútil. Pensemos nisto! Jesus não é um Deus diáfano e assético, que desconhece as emoções humanas. Pelo contrário. Perante a morte do amigo Lázaro, desata em lágrimas; e em algumas das suas expressões transparece o seu espírito apaixonado, como quando diz: «Vim lançar fogo sobre a terra, e como gostaria que já se tivesse ateado!» (Lc 12, 49); e diante do comércio no templo, reage vigorosamente (cf. Mt 21, 12-13). Jesus tinha paixão!
Mas vejamos agora uma descrição existencial desta virtude tão importante que nos ajuda a dar frutos na vida. Os antigos - tanto os filósofos gregos como os teólogos cristãos - reconheciam na virtude da fortaleza um duplo desenvolvimento, um passivo, outro ativo.
O primeiro ocorre dentro de nós mesmos. Há inimigos internos que devemos derrotar, e o seu nome é ansiedade, angústia, medo, culpa: todas estas forças que se agitam no nosso íntimo e que, em certas situações, nos paralisam. Quantos combatentes sucumbem até antes de começar o desafio! Porque desconhecem estes inimigos interiores. A fortaleza é, antes de tudo, uma vitória contra nós próprios. A maior parte dos medos que surgem dentro de nós são irrealistas e não se concretizam de forma alguma. É melhor então invocar o Espírito Santo e enfrentar tudo com fortaleza paciente: um problema de cada vez, como formos capazes, mas não sozinhos! O Senhor está ao nosso lado, se confiarmos nele e procurarmos sinceramente o bem. Então, em todas as situações, podemos contar com a Providência de Deus para nos amparar e blindar.
E depois o segundo movimento da virtude da fortaleza, desta vez de natureza mais ativa. Além das provações internas, existem os inimigos externos, que são as provações da vida, as perseguições, as dificuldades que não esperávamos e que nos surpreendem. Com efeito, podemos procurar prever o que nos vai acontecer, mas a realidade é, em grande medida, feita de acontecimentos imponderáveis e, neste mar, às vezes, o nosso barco é arrastado pelas ondas. Assim, a fortaleza faz de nós marinheiros resistentes, que não se amedrontam nem desanimam.
A fortaleza é uma virtude fundamental porque leva a sério o desafio do mal no mundo. Alguns fingem que ele não existe, que tudo está bem, que a vontade humana não é por vezes cega, que as forças obscuras que trazem a morte não se debatem na história. Mas é suficiente folhear um livro de história, ou infelizmente até os jornais, para descobrir os atos nefastos de que somos em parte vítimas e em parte protagonistas: guerras, violências, escravatura, opressão dos pobres, feridas que nunca cicatrizaram e continuam a sangrar. A virtude da fortaleza faz-nos reagir e gritar “não”, um “não” categórico a tudo isto. No nosso Ocidente confortável, que diluiu um pouco tudo, transformando o caminho da perfeição num simples desenvolvimento orgânico, que não tem necessidade de lutar porque tudo lhe parece igual, às vezes sentimos uma saudável nostalgia dos profetas. Mas as pessoas importunas e visionárias são deveras raras. É preciso que alguém nos faça sair do lugar macio onde nos estabelecemos e nos obrigue a repetir resolutamente o nosso “não” ao mal e a tudo aquilo que conduz à indiferença. “Não” ao mal, “não” à indiferença; “sim” ao caminho, ao caminho que nos leva a progredir, e pelo qual devemos lutar.
Então, voltemos a descobrir no Evangelho a fortaleza de Jesus, aprendendo-a com o testemunho dos santos e santas. Obrigado!
Papa Francisco
Audiência geral 10.04.24
Catequeses. Os vícios e as virtudes. 15. A temperança
Hoje falarei sobre a quarta e última virtude cardeal: a temperança. Com as outras três, esta virtude partilha uma história muito antiga e não pertence unicamente aos cristãos. Para os gregos, a prática das virtudes tinha como objetivo a felicidade. O filósofo Aristóteles escreve o seu mais importante tratado de ética, dirigindo-o ao filho Nicómaco, para o instruir na arte de viver. Por que todos nós procuramos a felicidade e tão poucos a alcançam? Eis a pergunta. Para lhe responder, Aristóteles aborda o tema das virtudes, entre as quais ocupa um espaço de relevo a enkráteia, ou seja, a temperança. O termo grego significa literalmente “poder sobre si mesmo”. A temperança é o poder sobre si mesmo. Portanto, esta virtude é a capacidade de autodomínio, a arte de não se deixar arrebatar por paixões rebeldes, de pôr ordem naquilo a que Manzoni chama a “desordem do coração humano”.
O Catecismo da Igreja Católica diz-nos que «a temperança é a virtude moral que modera a atração dos prazeres e proporciona o equilíbrio no uso dos bens criados». «Assegura, acrescenta o Catecismo, o domínio da vontade sobre os instintos e mantém os desejos nos limites da honestidade. A pessoa temperante orienta para o bem os apetites sensíveis, guarda uma sã discrição e não se deixa arrastar pelas paixões do coração» (n. 1809).
Por conseguinte, a temperança, como diz a palavra, é a virtude da medida certa. Em todas as situações, comporta-se com sabedoria, porque as pessoas que agem sempre movidas pelo ímpeto ou pela exuberância acabam por ser inconfiáveis. As pessoas sem temperança são sempre inconfiáveis. Num mundo onde tanta gente se gaba de dizer o que pensa, a pessoa temperante prefere, ao contrário, pensar no que diz. Compreendeis a diferença? Não dizer o que me vem à mente, assim... Não, pensar no que devo dizer. Não fazer promessas superficiais, mas assumir compromissos na medida em que os pudermos cumprir.
Inclusive em relação aos prazeres, a pessoa temperante age com juízo. O livre curso dos impulsos e a total licença concedida aos prazeres acabam por se virar contra nós próprios, levando-nos a precipitar num estado de tédio. Quantas pessoas que quiseram experimentar tudo vorazmente acabaram por perder o gosto por tudo! Então, é melhor procurar a medida certa: por exemplo, para apreciar um bom vinho, é melhor saboreá-lo em pequenos goles do que engoli-lo de uma só vez. Todos nós sabemos isto.
A pessoa temperante sabe pesar e dosear bem as palavras. Pensa no que diz. Não permite que um momento de raiva arruíne relacionamentos e amizades que depois só podem ser reconstruídos com dificuldade. Especialmente na vida familiar, onde as inibições diminuem, todos corremos o risco de não controlar tensões, irritações, raivas. Há um tempo para falar e um tempo para calar, mas ambos requerem a medida certa. E isto é válido para muitas coisas, por exemplo, estar com os outros e estar sozinho.
Se a pessoa temperante sabe controlar a sua irascibilidade, não significa necessariamente que a veremos sempre com um rosto pacífico e sorridente. Com efeito, às vezes é necessário indignar-se, mas sempre na medida certa. Eis as palavras: a medida certa, a maneira certa. Uma palavra de repreensão é por vezes mais saudável do que um silêncio azedo e rancoroso. O temperante sabe que nada é mais inconveniente do que corrigir o outro, mas sabe também que é necessário: caso contrário, dar-se-iam rédeas soltas ao mal. Em certos casos, o temperante consegue conciliar os extremos: afirma princípios absolutos, reivindica valores não negociáveis, mas sabe também compreender as pessoas e demonstra empatia por elas. Demonstra empatia.
Portanto, o dom do temperante é o equilíbrio, uma qualidade tanto preciosa quanto rara. Com efeito, tudo, no nosso mundo, impele ao excesso. Ao contrário, a temperança combina bem com atitudes evangélicas como a pequenez, a discrição, o escondimento, a mansidão. Quem é temperante aprecia a estima dos outros, mas não faz dela o único critério de cada ação e de cada palavra. É sensível, sabe chorar e não se envergonha de o fazer, mas não chora sobre si próprio. Derrotado, levanta-se de novo; vitorioso, é capaz de regressar à sua vida escondida de sempre. Não procura aplausos, mas sabe que precisa dos outros.
Irmãos e irmãs, não é verdade que a temperança torna a pessoa cinzenta e desprovida de alegria. Pelo contrário, faz saborear melhor os bens da vida: o estar juntos à mesa, a ternura de certas amizades, a confidência com pessoas sábias, a admiração pelas belezas da criação. A felicidade com temperança é alegria que floresce no coração de quem reconhece e valoriza o que mais conta na vida. Oremos ao Senhor para que nos conceda esta dádiva: o dom da maturidade, da maturidade da idade, da maturidade afetiva, da maturidade social. O dom da temperança!
Papa Francisco
audiência geral 17.04.24
Catequeses. Os vícios e as virtudes. 13. A justiça
Eis-nos na segunda virtude cardeal: hoje falaremos da justiça. É a virtude social por excelência. O Catecismo da Igreja Católica define-a assim: «A virtude moral que consiste na vontade constante e firme de dar a Deus e ao próximo o que lhes é devido» (n. 1807). Eis em que consiste a justiça. Muitas vezes, quando se fala de justiça, cita-se também o lema que a representa: “unicuique suum”, ou seja, “a cada um o que é seu”. É a virtude do direito, que procura regular com equidade as relações entre as pessoas.
É representada alegoricamente pela balança, dado que se propõe “acertar as contas” entre os homens, sobretudo quando elas correm o risco de ser falsificadas por algum desequilíbrio. A sua finalidade é que, numa sociedade, cada um seja tratado de acordo com a própria dignidade. Mas já os antigos mestres ensinavam que para isto são necessárias também outras atitudes virtuosas, como a benevolência, o respeito, a gratidão, a afabilidade e a honestidade: virtudes que contribuem para a boa convivência entre as pessoas. A justiça é uma virtude para a boa convivência entre as pessoas.
Todos nós compreendemos que a justiça é fundamental para a convivência pacífica na sociedade: um mundo sem leis que respeitem os direitos seria um mundo no qual é impossível viver; assemelhar-se-ia a uma selva. Sem justiça, não há paz. Sem justiça, não há paz. Com efeito, se a justiça não for respeitada, geram-se conflitos. Sem justiça, consagra-se a lei da prevaricação do forte sobre os fracos, e isto não é justo!
Mas a justiça é uma virtude que age tanto no grande, como no pequeno: não diz respeito apenas às salas dos tribunais, mas também à ética que distingue a nossa vida diária. Estabelece relações sinceras com os outros: atua o preceito do Evangelho, segundo o qual o falar cristão deve ser: «“Sim, sim”, “Não, não”; o resto vem do Maligno» (Mt 5, 37). As meias-verdades, os discursos subjetivos que procuram enganar o próximo, as reticências que ocultam as verdadeiras intenções não são atitudes conformes com a justiça. O homem justo é reto, simples e direto, não usa máscaras, apresenta-se como é, diz a verdade. A palavra “obrigado” está frequentemente nos seus lábios: sabe que, por mais que nos esforcemos por ser generosos, somos sempre devedores para com o próximo. Se amamos, é também porque primeiro fomos amados.
Na tradição, podem-se encontrar inúmeras descrições do homem justo. Vejamos algumas. O homem justo tem veneração pelas leis e respeita-as, consciente de que elas constituem uma barreira que protege os indefesos da prepotência dos poderosos. O homem justo não se preocupa apenas com o seu bem-estar individual, mas deseja o bem de toda a sociedade. Por isso, não cede à tentação de pensar só em si mesmo e de cuidar dos próprios assuntos, por mais legítimos que sejam, como se fossem a única coisa que existe no mundo. A virtude da justiça torna evidente - e coloca a exigência no coração - que para mim não pode haver verdadeiro bem, se não houver também o bem de todos.
Por isso, o homem justo vela sobre o próprio comportamento para não lesar os outros: quando erra, pede desculpa. O homem justo pede sempre perdão. Em certas situações, chega a sacrificar um bem pessoal para o pôr à disposição da comunidade. Deseja uma sociedade ordenada, onde sejam as pessoas a dar brilho aos cargos, não os cargos a dar brilho às pessoas. Abomina as preferências e não troca favores. Ama a responsabilidade e é exemplar na vida e na promoção da legalidade. Com efeito, ela é o caminho para a justiça, o antídoto contra a corrupção: como é importante educar as pessoas, especialmente os jovens, na cultura da legalidade! É o caminho para prevenir o cancro da corrupção e para debelar a criminalidade, removendo o solo debaixo dos seus pés.
Além disso, o homem justo evita comportamentos nocivos como a calúnia, o falso testemunho, a fraude, a usura, a falsidade e a desonestidade. O homem justo mantém a palavra dada, devolve o que lhe foi emprestado, reconhece o salário correto a todos os operários - o homem que não reconhece o salário correto aos operários não é justo, é injusto - tem o cuidado de não pronunciar juízos temerários em relação ao próximo, defende a reputação e o bom nome dos outros.
Nenhum de nós sabe se no nosso mundo os homens justos são numerosos ou raros como pérolas preciosas. Mas são homens que atraem a graça e as bênçãos, tanto para si como para o mundo em que vivem. Não são perdedores em comparação com aqueles “astutos e espertos”, porque, como diz a Escritura, «quem procura justiça e amor encontrará vida e glória» (Pr 21, 21). Os justos não são moralistas que se revestem de censores, mas pessoas íntegras que «têm fome e sede de justiça» (Mt 5, 6), sonhadores que acalentam no coração o desejo de uma fraternidade universal. E deste sonho, especialmente hoje, todos nós temos grande necessidade. Devemos ser homens e mulheres justos, e é isto que nos tornará felizes!
Papa Francisco
Audiência geral 3 de abril de 2024
Catequeses. Os vícios e as virtudes. A paciência
Hoje, a audiência estava prevista para a praça, mas devido à chuva foi transferida para dentro. É verdade que vai estar um pouco apinhada, mas pelo menos não nos molharemos! Obrigado pela vossa paciência!
No domingo passado, ouvimos a narração da Paixão do Senhor. Aos sofrimentos que padece, Jesus responde com uma virtude que, embora não esteja contemplada entre as tradicionais, é deveras importante: a virtude da paciência. Trata-se da suportação do que se sofre: não é por acaso que paciência tem a mesma raiz de paixão. E é precisamente na Paixão que sobressai a paciência de Cristo, que com mansidão e docilidade aceita ser preso, esbofeteado e condenado injustamente; diante de Pilatos não recrimina; suporta os insultos, os escarros e a flagelação dos soldados; suporta o peso da cruz; perdoa àqueles que o pregam no madeiro e, na cruz, não responde às provocações, mas oferece misericórdia. Esta é a paciência de Jesus! Tudo isto nos diz que a paciência de Jesus não consiste numa resistência estoica ao sofrimento, mas é o fruto de um amor maior.
O Apóstolo Paulo, no chamado “Hino à caridade” (cf. 1 Cor 13, 4-7), une estreitamente amor e paciência. Com efeito, descrevendo a primeira qualidade da caridade, recorre a uma palavra que se traduz por “magnânima”, “paciente”. A caridade é magnânima, é paciente. Ela exprime um conceito surpreendente, que aparece muitas vezes na Bíblia: Deus, perante a nossa infidelidade, mostra-se «lento para a ira» (cf. Êx 34, 6; cf. Nm 14, 18): em vez de desabafar o seu desgosto pelo mal e pelo pecado do homem, revela-se maior, pronto a recomeçar sempre com uma paciência infinita. Este é, para Paulo, o primeiro traço do amor de Deus que, perante o pecado, propõe o perdão. Mas não só: é o primeiro traço de todo o grande amor, que sabe responder ao mal com o bem, que não se fecha na ira nem no desânimo, mas persevera e relança. A paciência que recomeça! Por isso, na raiz da paciência está o amor, como diz Santo Agostinho: «Uma pessoa é tanto mais forte na suportação de qualquer mal, quanto maior for o amor de Deus nela» (De patientia, XVII).
Poder-se-ia então dizer que não há melhor testemunho do amor de Jesus, do que encontrar um cristão paciente. Mas pensemos também em quantas mães e pais, trabalhadores, médicos e enfermeiros, doentes, que todos os dias, no escondimento, agraciam o mundo com uma santa paciência! Como afirma a Escritura, «é melhor a paciência do que a força de um herói» (Pr 16, 32). No entanto, devemos ser honestos: muitas vezes falta-nos a paciência. No dia a dia todos somos impacientes. Precisamos dela como da “vitamina essencial” para ir em frente, mas impacientamo-nos instintivamente e respondemos ao mal com o mal: é difícil manter a calma, controlar os instintos, conter as más respostas, desarmar disputas e conflitos em família, no trabalho ou na comunidade cristã. A resposta chega imediatamente, não somos capazes de ser pacientes.
Recordemos, porém, que a paciência não é apenas uma necessidade, é uma vocação: se Cristo é paciente, o cristão é chamado a ser paciente. E isto faz-nos ir contra a corrente em relação à mentalidade generalizada de hoje, na qual dominam a pressa e o “tudo já”; na qual, em vez de esperar que as situações amadureçam, pressionam-se as pessoas, esperando que mudem instantaneamente. Não esqueçamos que a pressa e a impaciência são inimigas da vida espiritual. Porquê? Deus é amor, e quem ama não se cansa, não é irascível, não impõe ultimatos, Deus é paciente, Deus sabe esperar. Pensemos na história do Pai misericordioso, que espera o filho que saiu de casa: sofre com paciência, impaciente para o abraçar assim que o vê regressar (cf. Lc 15, 21); ou pensemos na parábola do trigo e do joio, com o Senhor que não tem pressa em extirpar o mal antes do tempo, para que nada se perca (cf. Mt 13, 29-30). A paciência faz-nos salvar tudo!
Mas, irmãos e irmãs, como se faz para aumentar a paciência? Sendo ela, como ensina São Paulo, um fruto do Espírito Santo (cf. Gl 5, 22), deve ser pedida precisamente ao Espírito de Cristo. Ele concede-nos a força mansa da paciência – a paciência é uma força mansa – porque «é próprio da virtude cristã não só praticar o bem, mas também saber suportar os males» (Santo Agostinho, Discursos, 46, 13). Sobretudo nestes dias, far-nos-á bem contemplar o Crucificado para assimilar a sua paciência. Um bom exercício é também levar-lhe as pessoas mais importunas, pedindo-lhe a graça de pôr em prática para com elas aquela obra de misericórdia tão conhecida e tão descuidada: suportar pacientemente as pessoas importunas. E não é fácil! Pensemos se agimos assim: suportar pacientemente as pessoas importunas. Começa-se pedindo para as considerar com compaixão, com o olhar de Deus, sabendo distinguir os seus rostos dos seus erros. Temos o hábito de catalogar as pessoas pelos erros que cometem. Não, isto não é bom. Procuremos as pessoas pelos seus rostos, pelos seus corações, não pelos seus erros!
Concluindo, para cultivar a paciência, virtude que dá alento à vida, é bom dilatar o olhar. Por exemplo, não limitando o campo do mundo aos nossos problemas, como nos convida a fazer a Imitação de Cristo:«Deveis, pois, lembrar-vos dos sofrimentos mais graves dos outros, para aprender a suportar os vossos, pequenos», lembrando que «não existe coisa alguma, por mais pequenina que seja, contanto que a suportemos por amor a Deus, que passe sem recompensa diante de Deus» (III, 19). E ainda, quando nos sentimos nas amarras da provação, como ensina Job, é bom abrir-nos com esperança à novidade de Deus, na firme confiança de que Ele não deixa que as nossas expetativas sejam desiludidas. Paciência significa saber suportar os males.
E aqui, hoje, nesta audiência, estão presentes duas pessoas, dois pais: um israelita e um árabe. Ambos perderam as suas filhas nesta guerra e ambos são amigos. Não olham para a inimizade da guerra, mas para a amizade de dois homens que se amam e que passaram pela mesma crucificação. Pensemos no lindo testemunho destas duas pessoas que, nas suas filhas, sofreram a guerra da Terra Santa. Amados irmãos, obrigado pelo vosso testemunho!
Papa Francisco
Audiência geral 27 de março de 2024
Catequeses. Os vícios e as virtudes. 12. A prudência
Dedicamos a catequese de hoje à virtude da prudência. Com a justiça, a fortaleza e a temperança, ela forma as chamadas virtudes cardeais, que não são prerrogativa exclusiva dos cristãos, mas pertencem à herança da sabedoria antiga, em particular dos filósofos gregos. Por isso, um dos temas mais interessantes na obra de encontro e inculturação foi precisamente o das virtudes.
Nos escritos medievais, a apresentação das virtudes não é uma simples enumeração das qualidades positivas da alma. Retomando os autores clássicos à luz da revelação cristã, os teólogos imaginaram o septenário das virtudes - três teologais e quatro cardeais - como uma espécie de organismo vivo, onde cada virtude tem um espaço harmonioso a ocupar. Há virtudes essenciais e virtudes acessórias, como pilares, colunas e capitéis. Sim, talvez nada mais do que a arquitetura de uma catedral medieval possa restituir a ideia da harmonia que existe no homem e da sua contínua tensão para o bem.
Então, comecemos pela prudência. Ela não é a virtude da pessoa medrosa, sempre hesitante acerca da ação a empreender. Não, esta é uma interpretação errada. Também não se trata apenas de cautela. Conceder o primado à prudência significa que a ação do homem está nas mãos da sua inteligência e liberdade. A pessoa prudente é criativa: raciocina, avalia, procura compreender a complexidade da realidade, sem se deixar vencer pelas emoções, pela preguiça, pelas pressões das ilusões.
Num mundo dominado pelas aparências, pelos pensamentos superficiais, pela banalidade, tanto do bem como do mal, a antiga lição da prudência merece ser recuperada.
No sulco de Aristóteles, S. Tomás chamava-lhe “reta ratio agibilium”. Trata-se da capacidade de governar as ações a fim de as orientar para o bem; por isso, é denominada “cocheiro das virtudes”. Prudente é quem sabe escolher: enquanto permanece nos livros, a vida é sempre fácil, mas no meio dos ventos e das ondas do dia a dia a situação é diferente, muitas vezes sentimo-nos inseguros e não sabemos para onde ir. Quem é prudente não escolhe por acaso: em primeiro lugar, sabe o que quer, depois reflete sobre as situações, deixa-se aconselhar e, com visão ampla e liberdade interior, escolhe o caminho a seguir. Não quer dizer que não possa cometer erros - afinal, somos sempre humanos - mas pelo menos evitará grandes disparates. Infelizmente, em todos os ambientes há quem tenda a descartar os problemas com piadas superficiais ou a levantar sempre polémicas. Ao contrário, a prudência é a qualidade de quem é chamado a governar: sabe que administrar é difícil, que há muitos pontos de vista e é preciso procurar harmonizá-los, que não se deve fazer o bem de alguns, mas de todos.
A prudência ensina também que, como se costuma dizer, “o ótimo é inimigo do bem”. Com efeito, o excesso de zelo em certas situações, pode provocar desastres: pode arruinar uma construção que teria exigido gradualismo; pode gerar conflitos e mal-entendidos; pode até desencadear a violência.
A pessoa prudente sabe conservar a memória do passado, não porque tem medo do futuro, mas porque sabe que a tradição é uma herança de sabedoria. A vida é feita de constante sobreposição de realidades antigas e novas, e não é bom pensar sempre que o mundo começa a partir de nós, que devemos enfrentar os problemas a partir de zero. E a pessoa prudente é também previdente. Uma vez decidida a meta a atingir, há que procurar todos os meios para a alcançar.
São tantas as passagens do Evangelho que nos ajudam a educar a prudência. Por exemplo, é prudente quem constrói a casa sobre a rocha e imprudente quem a constrói sobre a areia (cf. Mt 7, 24-27). São sábias as donzelas que levam consigo azeite para as suas lâmpadas e insensatas aquelas que não o fazem (cf. Mt 25, 1-13). A vida cristã é uma combinação de simplicidade e astúcia. Preparando os seus discípulos para a missão, Jesus recomenda: «Eis que vos envio como ovelhas para o meio de lobos; sede, pois, prudentes como as serpentes e simples como as pombas» (Mt 10, 16). Como se quisesse dizer que Deus não nos quer apenas santos, mas santos inteligentes, pois sem prudência é fácil errar o caminho!
Papa Francisco
Audiência geral 20.03.2024
imagem: pexels.com
Catequeses. Os vícios e as virtudes. 11. O agir virtuoso
Depois de ter concluído a panorâmica sobre os vícios, chegou o momento de dirigir o olhar para o quadro simétrico, que se opõe à experiência do mal. O coração do homem pode ceder às más paixões, pode dar ouvidos a tentações nocivas disfarçadas sob vestes convincentes, mas também pode opor-se a tudo isto. Por mais difícil que seja, o ser humano foi feito para o bem, que o realiza verdadeiramente, e pode também praticar esta arte, fazendo com que certas disposições se tornem permanentes nele ou nela. A reflexão sobre esta nossa maravilhosa possibilidade constitui um capítulo clássico da filosofia moral: o capítulo das virtudes.
Os filósofos romanos chamavam-lhe virtus, os gregos, areté. O termo latino realça sobretudo que a pessoa virtuosa é forte, corajosa, capaz de disciplina e ascese; por isso, o exercício das virtudes é fruto de uma longa germinação, que exige esforço e até sofrimento. Por outro lado, a palavra grega aretéindica algo que excede, que emerge, que suscita admiração. Portanto, a pessoa virtuosa é aquela que não se desvirtua, deformando-se, mas é fiel à sua vocação, realiza-se plenamente.
Estaríamos no caminho errado se pensássemos que os santos são exceções da humanidade: uma espécie de círculo restrito de campeões que vivem além dos limites da nossa espécie. Nesta perspetiva que acabamos de introduzir sobre as virtudes, os santos são sobretudo aqueles que se tornam plenamente eles mesmos, que realizam a vocação própria de cada homem. Como o mundo seria feliz, se a justiça, o respeito, a benevolência mútua, a abertura de espírito e a esperança fossem a normalidade compartilhada, e não uma rara anomalia! Por isso, o capítulo do agir virtuoso, nestes nossos tempos dramáticos em que muitas vezes nos confrontamos com o pior do humano, deveria ser redescoberto e praticado por todos. Num mundo deformado, devemos recordar o modo como fomos moldados, a imagem de Deus que está impressa para sempre em nós.
Mas como podemos definir o conceito de virtude? O Catecismo da Igreja Católica oferece-nos uma definição exata e concisa: «A virtude é uma disposição habitual e firme para fazer o bem» (n. 1803). Portanto, não se trata de um bem improvisado e um pouco casual, que cai do céu de maneira episódica. A história diz-nos que até os criminosos, num momento de lucidez, praticaram boas ações; certamente, estas ações estão inscritas no “livro de Deus”, mas a virtude é outra coisa. É um bem que nasce de um lento amadurecimento da pessoa, até se tornar uma sua caraterística interior. A virtude é um habitus da liberdade. Se somos livres em cada ação, e cada vez que somos chamados a escolher entre o bem e o mal, a virtude é o que nos permite ter um hábito para a escolha certa.
Se a virtude é um dom tão bom, coloca-se imediatamente uma interrogação: como é possível adquiri-la? A resposta a esta pergunta não é simples, é complexa.
Para o cristão, a primeira ajuda é a graça de Deus. Com efeito, o Espírito Santo age em nós, batizados, trabalhando na nossa alma para a conduzir a uma vida virtuosa. Quantos cristãos chegaram à santidade através das lágrimas, constatando que não conseguiam superar certas debilidades! Mas experimentaram que Deus completou esta boa obra que para eles era apenas um esboço. A graça precede sempre o nosso compromisso moral!
Além disso, nunca devemos esquecer a riquíssima lição que nos vem da sabedoria dos antigos, que nos diz que a virtude cresce e pode ser cultivada. E para que isto aconteça, o primeiro dom do Espírito a pedir é precisamente a sabedoria. O ser humano não é um território livre para a conquista de prazeres, emoções, instintos, paixões, sem poder fazer nada contra tais forças, às vezes caóticas, que o habitam. Um dom inestimável que possuímos é a abertura mental, é a sabedoria que é capaz de aprender com os erros para orientar bem a vida. Além disso, precisamos da boa vontade: a capacidade de escolher o bem, de nos moldarmos mediante o exercício ascético, evitando os excessos.
Amados irmãos e irmãs, comecemos assim o nosso caminho através das virtudes, neste universo sereno que se apresenta exigente, mas decisivo para a nossa felicidade.
papa Francisco
Audiência geral 13.03.2024
imagem: pexels.com
Catequeses. Os vícios e as virtudes. 10. A soberba
No nosso percurso de catequeses sobre os vícios e as virtudes, hoje chegamos ao último dos vícios: a soberba. Os gregos antigos definiam-na com um vocábulo que poderia ser traduzido como “esplendor excessivo”. Com efeito, a soberba é autoexaltação, presunção, vaidade. O termo consta também daquela série de vícios que Jesus enumera para explicar que o mal deriva sempre do coração do homem (cf. Mc 7, 22). O soberbo é quem se julga muito mais do que é na realidade; quem anseia por ser reconhecido como maior do que os outros, quer ver sempre reconhecidos os seus próprios méritos e despreza os outros, considerando-os inferiores.
A partir desta primeira descrição, vemos que o vício da soberba está muito próximo da vanglória, que já foi apresentada na última vez. No entanto, se a vanglória é uma doença do ego humano, não deixa de ser uma enfermidade infantil quando a comparamos com a devastação de que a soberba é capaz. Analisando as loucuras do homem, os monges da antiguidade reconheciam uma certa ordem na sequência dos males: começa-se pelos pecados mais rudes, como a gula, para depois chegar aos monstros mais inquietantes. De todos os vícios, a soberba é a grande rainha. Não é por acaso que, na Divina Comédia, Dante a insere exatamente no primeiro quadro do purgatório: quem cede a este vício está longe de Deus, e a emenda deste mal exige tempo e esforço, mais do que qualquer outra batalha a que o cristão é chamado.
Na realidade, neste mal esconde-se o pecado radical, a pretensão absurda de ser como Deus. O pecado dos nossos antepassados, narrado no livro do Génesis é, para todos os efeitos, um pecado de soberba. O tentador diz-lhes: «Quando comerdes dele, os vossos olhos abrir-se-ão e sereis como Deus» (Gn 3, 5). Os escritores de espiritualidade estão mais atentos a descrever as repercussões da soberba na vida de todos os dias, a explicar como ele arruína as relações humanas, a realçar como este mal envenena o sentimento de fraternidade que, pelo contrário, deveria unir os homens.
Eis, pois, a longa lista de sintomas que revelam a cedência da pessoa ao vício da soberba. Trata-se de um mal com evidente aspeto físico: o soberbo é altivo, tem a “cerviz dura”, ou seja, um pescoço rígido, que não se dobra. É um homem que julga facilmente e com desdém: por nada emite sentenças irrevogáveis contra outros, que lhe parecem irremediavelmente inábeis e incapazes. Na sua arrogância, esquece-se que, nos Evangelhos, Jesus nos atribuiu poucos preceitos morais, mas num deles mostrou-se intransigente: nunca julgar. Percebemos que lidamos com um orgulhoso quando, fazendo-lhe uma pequena crítica construtiva ou uma observação completamente inofensiva, ele reage de modo exagerado, como se alguém tivesse ofendido a sua majestade: fica furioso, grita, interrompe relações com os outros de maneira ressentida.
Há pouco a fazer com uma pessoa doente de soberba. É impossível falar com ela, e muito menos corrigi-la, porque afinal ela já não está presente em si. É preciso ter paciência com ela, porque um dia o seu edifício desabará. Um provérbio italiano diz: “A soberba vai a cavalo e volta a pé”. Nos Evangelhos, Jesus encontra muitas pessoas soberbas e, muitas vezes, foi desenterrar este vício até em pessoas que o escondiam muito bem. Pedro ostenta a sua fidelidade até ao fim: «Ainda que todos te abandonem, eu não o farei!» (cf. Mt 26, 33). Mas em breve fará a experiência de ser como os outros, também ele assustado perante a morte, que não imaginava tão próxima. E assim o segundo Pedro, aquele que já não levanta o queixo, mas derrama lágrimas salgadas, será medicado por Jesus e estará finalmente em condições de suportar o peso da Igreja. Primeiro, ostentava uma presunção que era melhor não manifestar; agora, pelo contrário, é um discípulo fiel a quem, como diz uma parábola, o senhor pode «confiar todos os seus bens» (Lc 12, 44).
A salvação passa pela humildade, verdadeiro remédio para qualquer ato de soberba. No Magnificat, Maria entoa um cântico ao Deus que, com o seu poder, dispersa os soberbos nos pensamentos doentios do coração. É inútil roubar algo a Deus, como pretendem os soberbos, porque afinal Ele deseja dar-nos tudo. Por isso o apóstolo Tiago, dirigindo-se à sua comunidade ferida por lutas internas derivadas do orgulho, escreve: «Deus resiste aos soberbos, mas aos humildes concede a sua graça» (Tg 4, 6).
Portanto, amados irmãos e irmãs, aproveitemos esta Quaresma para lutar contra a nossa soberba.
Papa Francisco
Audiência geral 06.03.2023
Página 1 de 16