Daqui a seis dias será Natal. As árvores, os ornamentos e as luzes em todo o lado recordam que também este ano haverá festa. A máquina publicitária convida à troca de presentes sempre novos para fazer surpresa. Mas pergunto-me: é esta a festa que agrada a Deus? Que Natal gostaria Ele, que presentes e surpresas?
Olhemos para o primeiro Natal da história para descobrir os gostos de Deus. Esse primeiro Natal da história foi repleto de surpresas. Começa-se com Maria, que era noiva de José: chega o anjo e muda-lhe a vida. De virgem será mãe.
Prossegue com José, chamado a ser pai de um filho sem o gerar. Um filho que – golpe de cena – chega no momento menos indicado, isto é, quando Maria e José eram noivos, e segundo a Lei não podiam coabitar. Diante do escândalo, o bom senso do tempo convidava José a repudiar Maria e salvar o seu bom nome, mas ele, apesar do direito que tinha, surpreende: para não prejudicar Maria, pensa repudiá-la em segredo, com o custo de perder a reputação. Depois, outra surpresa: Deus, em sonhos, muda-lhe os planos e pede-lhe para tomar consigo Maria. Nascido Jesus, quando tinha os seus projetos para a família, igualmente em sonho é-lhe dito para se erguer e ir para o Egito.
Em resumo, o Natal traz mudanças de vida inesperadas (…). Mas é na noite de Natal que chega a surpresa: o Altíssimo é um pequenino bebé. A Palavra divina é um infante, que literalmente significa “incapaz de falar”. (…) A acolher o Salvador não estão as autoridades do tempo (…), mas simples pastores que, surpreendidos pelos anjos enquanto trabalhavam de noite, acorrem sem demora. Quem esperaria que assim fosse?
Natal é celebrar o inédito de Deus, ou melhor, um Deus inédito, que vira do avesso as nossas lógicas e as nossas expetativas.
Fazer Natal, então, é acolher na Terra as surpresas do Céu. Não se pode viver “terra a terra” quando o Céu trouxe a sua novidade ao mundo. O Natal inaugura um tempo novo, onde a vida não se programa, mas dá-se; onde já não se vive para si, com base nos próprios gostos, mas para Deus; e com Deus, porque desde o Natal Deus é o Deus-connosco.
Viver o Natal é deixar-se sacudir pela sua surpreendente novidade. O Natal de Jesus não oferece os reconfortantes calores da lareira, mas o frémito divino que sacode a história. O Natal é a desforra da humildade sobre a arrogância, da simplicidade sobre a abundância, do silêncio sobre o barulho, da oração sobre o “meu tempo”, de Deus sobre o meu eu.
Fazer Natal é fazer como Jesus, vindo para nós, necessitados, e descer para aqueles que necessitam de nós. É fazer como Maria: confiar, dóceis a Deus, ainda que sem compreender o que Ele fará. É fazer como José: erguer-se para realizar o que Deus quer, mesmo que não seja segundo os nossos planos. S. José é surpreendente: no Evangelho nunca fala (…), e o Senhor fala-lhe precisamente no silêncio, no sono. Natal é preferir a voz silenciosa de Deus aos tumultos do consumismo. Se soubermos estar em silêncio diante do presépio, o Natal será também para nós uma surpresa, não uma coisa já vista. (…)
Infelizmente, no entanto, pode falhar-se a festa, e preferir às novidades do Céu as coisas habituais da Terra. Se o Natal permanece apenas uma bela festa tradicional, onde no centro estamos nós e não Ele, será uma ocasião perdida. Por favor, não mundanizemos o Natal. Não coloquemos de parte o Festejado, como então, quando «veio para entre os seus, e os seus não o acolheram» (João 1, 11).
Desde o primeiro Evangelho do Advento, o Senhor alertou-nos, pedindo para que não ficarmos pesados com «dissipações» e «afazeres da vida» (Lucas 21, 34). Nestes dias corre-se, talvez como nunca durante o ano. Mas assim faz-se o oposto daquilo que Jesus quer. Culpamos as muitas coisas que enchem o dia, o mundo que vai depressa. E todavia Jesus não culpou o mundo, pediu-nos para não sermos arrastados, para vigiar em cada momento orando.
Então, será Natal se, como José, dermos espaço ao silêncio; se, como Maria, dissermos «eis-me aqui» a Deus; se, como Jesus, estivermos próximos de quem está só; se, como os pastores, sairmos dos nossos redis para estar com Jesus.
Será Natal se encontrarmos a luz na pobre gruta de Belém.
Não será Natal se procurarmos os flashes ofuscantes do mundo, se nos enchermos de presentes, almoços e jantares mas não ajudarmos pelo menos um pobre, que se assemelha a Deus, porque no Natal Deus veio pobre.
Queridos irmãos e irmãs, desejo-vos um bom Natal, um Natal rico das surpresas de Jesus! Poderão parecer surpresas incômodas, mas são os gostos de Deus. Se os desposarmos, faremos a nós mesmos uma esplêndida surpresa. Cada um de nós tem oculta no coração a capacidade de deixar-se surpreender. Deixemo-nos surpreender por Jesus!
Audiência geral, 19.12.2018, Vaticano
Trad.: Rui Jorge Martins
Publicado em 19.12.2018 no SNPC (Portugal)
Catequese sobre o Pai Nosso - 2
Prossigamos o caminho de catequeses sobre o “Pai-Nosso”, iniciado na semana passada. Jesus põe nos lábios dos seus discípulos uma prece breve, audaz, formada por sete pedidos — um número que na Bíblia não é casual, indica plenitude. Digo audaz, porque se Cristo não a tivesse sugerido, provavelmente nenhum de nós — aliás, nenhum dos teólogos mais famosos! — ousaria rezar a Deus desta maneira.
Com efeito, Jesus convida os seus discípulos a aproximar-se de Deus e a fazer-lhe com confidência alguns pedidos: antes de tudo em relação a Ele e depois em relação a nós. Não há prefácios no “Pai-Nosso”. Jesus não ensina fórmulas para “adular” o Senhor, aliás, convida a pedir-lhe abatendo as barreiras da reverência e do medo. Não diz para se dirigir a Deus chamando-lhe “Onipotente”, “Altíssimo”, “Tu, que estás tão distante de nós, eu sou miserável”: não, não diz assim, mas simplesmente “Pai”, com toda a simplicidade, como as crianças se dirigem ao pai. E esta palavra “Pai", expressa a confidência e a confiança filial.
A oração do “Pai-Nosso” afunda as suas raízes na realidade concreta do homem. Por exemplo, faz-nos pedir o pão de cada dia: pedido simples mas essencial, o qual diz que a fé não é uma questão “decorativa”, separada da vida, que intervém quando todas as outras necessidades foram satisfeitas. No máximo, a oração começa com a própria vida. A prece — ensina-nos Jesus — não começa na existência humana quando o estômago está cheio: ao contrário, existe onde quer que haja um homem, um homem qualquer que tem fome, que chora, que luta, que sofre e se pergunta “porquê”. A nossa primeira prece, num certo sentido, foi o gemido que acompanhou o primeiro respiro. Naquele choro de recém-nascido anunciava-se o destino de toda a nossa vida: a nossa fome contínua, a nossa sede perene, a nossa busca de felicidade.
Jesus, na oração, não quer apagar o humano, não o quer anestesiar. Não quer que moderemos as perguntas nem os pedidos aprendendo a suportar tudo. Ao contrário, quer que cada sofrimento, qualquer preocupação, se projete rumo ao céu e se torne diálogo.
Ter fé, dizia uma pessoa, significa acostumar-se ao brado.
Todos deveríamos ser como o Bartimeu do Evangelho (cf. Mc 10, 46-52) — recordemos aquele excerto do Evangelho, Bartimeu, o filho de Timeu — aquele homem cego que mendigava às portas de Jericó. Tinha à sua volta tantas pessoas bondosas que lhe impunham o silêncio: “Cala-te! O Senhor passa. Cala-te. Não incomodes. O Mestre tem muitas coisas a fazer; não o aborreças. Tu importunas com os teus gritos. Não perturbes”. Mas ele não ouvia aqueles conselhos: com santa insistência, pretendia que a sua mísera condição pudesse finalmente encontrar Jesus. E bradava mais alto! E as pessoas educadas: “Não, é o Mestre, por favor! Ficas mal visto!”. E ele bradava porque queria ver, queria ser curado: «Jesus, tem piedade de mim!» (v. 47). Jesus restitui-lhe a vista e diz-lhe: «A tua fé te salvou» (v. 52), como que para explicar que o mais decisivo para a sua cura foi aquela prece, aquela invocação bradada com fé, mais forte que o “bom senso” de muitas pessoas que queriam que ele se calasse. A oração não só precede a salvação, mas de certa forma já a contém, pois liberta do desespero de quem não acredita numa saída para tantas situações insuportáveis.
Depois, certamente, os crentes sentem também a necessidade de louvar a Deus. Os evangelhos contêm a exclamação de júbilo que promana do Coração de Jesus, cheio de grata admiração pelo Pai (cf. Mt 11, 25-27). Os primeiros cristãos sentiram até a exigência de acrescentar ao texto do “Pai-Nosso” uma doxologia: «Porque teu é o poder e a glória nos séculos» (Didaqué, 8, 2).
Mas nenhum de nós é obrigado a aceitar a teoria que no passado alguém propôs, isto é, que a oração de pedido seja uma forma tíbia da fé, enquanto que a oração mais autêntica seria o louvor puro, aquele que procura Deus sem o peso de pedido algum. Não, isto não é verdade. A prece de pedido é autêntica, espontânea, é um ato de fé em Deus que é Pai, que é bom, omnipotente. Trata-se de um ato de fé em mim, que sou pequenino, pecador, necessitado. E por isso a oração para pedir algo é muito nobre. Deus é o Pai que tem imensa compaixão por nós, e deseja que os seus filhos lhe falem sem medo, chamando-lhe diretamente “Pai”; ou nas dificuldades dizendo: “Mas Senhor, o que me fizeste?”. Por isso podemos contar-lhe tudo, até aquilo que na nossa vida permanece distorcido e incompreensível. E prometeu-nos ficar conosco para sempre, até ao último dia que vivermos nesta terra. Rezemos o Pai-Nosso, começando assim, simplesmente: “Pai” ou “Papá”. E Ele compreende-nos e ama-nos muito.
Papa Francisco
Catequese na Audiência Geral
12.12.2018
Prezados irmãos e irmãs, bom dia!
Hoje iniciamos um ciclo de catequeses sobre o “Pai-Nosso”.
Os Evangelhos transmitiram-nos alguns retratos muito vivos de Jesus como homem de oração: Jesus rezava. Não obstante a urgência da missão e a premência de tantas pessoas que o reivindicavam, Jesus sentia a necessidade de se afastar na solidão e de orar. O Evangelho de Marcos narra-nos este pormenor desde a primeira página do ministério público de Jesus (cf. 1, 35). O dia inaugural de Jesus em Cafarnaum concluiu-se de modo triunfal. Ao anoitecer, uma multidão de doentes chegou à porta onde Jesus estava: o Messias prega e cura. Realizam-se as antigas profecias e as expetativas de muitos sofredores: Jesus é o Deus próximo, o Deus que nos liberta. Mas aquela multidão ainda é pequena se for comparada a muitas outras multidões que se reunirão em volta do profeta de Nazaré; em certos momentos trata-se de assembleias oceânicas, e Jesus permanece no centro de tudo, o esperado pelo povo, o êxito da esperança de Israel.
E no entanto ele afastava-se; não permanecia refém das expetativas de quem o elegeu líder. Este é um perigo para os líderes: apegar-se demasiado às pessoas, não manter as distâncias. Jesus dá-se conta disto e não permanece refém do povo. Desde a primeira noite de Cafarnaum demonstra que é um Messias original. Na última parte da madrugada, quando já se anunciava a aurora, os discípulos procuravam-no mas não conseguiam encontrá-lo. Onde está? Até que Pedro finalmente o encontra num lugar isolado, completamente absorto em oração. E diz-lhe: «Todos te procuram!» (Mc 1, 37). A exclamação parece ser a cláusula ligada a um sucesso plebiscitário, a prova do bom êxito de uma missão.
Mas Jesus diz aos seus discípulos que deve ir para outro lugar; que não é o povo que o procura mas, antes de tudo, é Ele que procura os outros. Por isso não pode ganhar raízes, mas permanece continuamente peregrino pelas estradas da Galileia (vv. 38-39). E peregrino também rumo ao Pai, isto é: rezando. A caminho em oração. Jesus reza. E tudo acontece numa noite de oração.
Nalgumas páginas da Escritura parece que principalmente é a oração de Jesus, a sua intimidade com o Pai, que governa tudo. Por exemplo, será assim sobretudo na noite do Getsemani. O último trecho do caminho de Jesus (absolutamente o mais difícil entre os que tinha percorrido) parece encontrar o seu sentido na escuta contínua que Jesus oferece ao Pai. Uma oração certamente não fácil, aliás, uma verdadeira “agonia”, no sentido agonístico dos atletas, e no entanto uma prece capaz de apoiar o caminho da cruz.
Eis o ponto essencial: ali Jesus rezava.
Jesus orava com intensidade nos momentos públicos, partilhando a liturgia do seu povo, mas procurava também lugares afastados, separados do turbilhão do mundo, lugares que permitissem entrar no segredo da sua alma: é o profeta que conhece as pedras do deserto e sobe aos cimos dos montes. As últimas palavras de Jesus, antes de expirar na cruz, foram palavras dos salmos, isto é da oração, da prece dos judeus: rezava com as orações que a mãe lhe ensinara.
Jesus orava como todos os homens do mundo. E no entanto, no seu modo de rezar, havia também um mistério, algo que certamente não escapava aos olhos dos seus discípulos, se nos Evangelhos encontramos aquela súplica tão simples e imediata: “Senhor, ensina-nos a rezar” (Lc 11, 1). Eles viam Jesus rezar e tinham vontade de aprender a orar: “Senhor, ensina-nos a rezar”. E Jesus não se recusou, não era ciumento da sua intimidade com o Pai, pois veio precisamente para nos introduzir nesta relação com o Pai. E assim torna-se mestre de oração dos seus discípulos, como certamente quer sê-lo para todos nós. Também nós devemos dizer: “Senhor, ensina-me a rezar. Ensina-me”.
Mesmo se rezamos há muitos anos, devemos aprender sempre! A oração do homem, este anseio que nasce de maneira tão natural da nossa alma, talvez seja um dos mistérios mais impenetráveis do universo. E não sabemos sequer se as preces que dirigimos a Deus são efetivamente aquelas que Ele quer que lhe dirijamos. A Bíblia dá-nos inclusive testemunho de orações inoportunas, que no fim são recusadas por Deus: é suficiente recordar a parábola do fariseu e do publicano. Somente este último, o publicano, volta justificado do templo para casa, porque o fariseu era orgulhoso e gostava que as pessoas o vissem rezar e fingia que orava: o coração era frio. E Jesus disse: este não é justificado «porque quem se exalta será humilhado e quem se humilha será exaltado» (Lc18, 14). O primeiro passo para rezar é ser humilde, ir ter com o Pai e dizer: “Olha para mim, sou pecador, débil, malvado”, cada um sabe o que dizer. Mas começa-se sempre com a humildade, e o Senhor ouve. A prece humilde é ouvida pelo Senhor.
Portanto, ao iniciar este ciclo de catequeses sobre a oração de Jesus, o melhor e mais correto que todos deveríamos fazer seria repetir a invocação dos discípulos: “Mestre, ensina-nos a rezar!”. Será bom, neste tempo de Advento, repetir: “Senhor, ensina-me a rezar”. Todos podemos ir além e rezar melhor; mas pedindo-o ao Senhor: “Senhor, ensina-me a rezar”. Façamos isto neste tempo de Advento e Ele certamente não deixará cair no vazio a nossa invocação.
Papa Francisco
Catequese da Audiência Geral 5.12.2018
Bom dia, queridos irmãos e irmãs!
Na catequese de hoje, que conclui o percurso sobre os Dez Mandamentos, podemos utilizar como tema-chave o dos desejos, que nos permite percorrer de novo o caminho trilhado e resumir as etapas alcançadas, lendo o texto do Decálogo, sempre à luz da plena revelação em Cristo.
Começamos pela gratidão, como base da relação de confiança e de obediência: como vimos, Deus, nada pede antes de ter dado muito mais. Ele convida-nos à obediência para nos resgatar do engano das idolatrias que têm um grande poder sobre nós. Com efeito, procurar a própria realização nos ídolos deste mundo esvazia-nos e escraviza-nos, enquanto o que confere estatura e consistência é a relação com Aquele que, em Cristo, nos torna filhos a partir da sua paternidade (cf. Ef 3, 14-16).
Isto implica um processo de bênção e de libertação, as quais são o descanso verdadeiro, autêntico. Como reza o Salmo: «Só em Deus repousa a minha alma, só dele me vem a salvação» (Sl 62 [61], 2).
Esta vida livre torna-se aceitação da nossa história pessoal e reconcilia-nos com aquilo que vivemos desde a infância até ao presente, tornando-nos adultos e capazes de atribuir a devida importância às realidades e às pessoas da nossa vida. Por este caminho entramos em relação com o próximo que, a partir do amor que Deus mostra em Jesus Cristo, é uma chamada à beleza da fidelidade, da generosidade e da autenticidade.
Mas para viver assim — ou seja, na beleza da fidelidade, da generosidade e da autenticidade — precisamos de um coração novo, habitado pelo Espírito Santo (cf. Ez 11, 19; 36, 26). Pergunto-me: como acontece este “transplante” de coração, do coração velho para o coração novo? Através da dádiva de desejos novos (cf. Rm 8, 6), que são semeados em nós pela graça de Deus, de maneira especial mediante os Dez Mandamentos, levados a cumprimento por Jesus, como Ele ensina no “sermão da montanha” (cf. Mt 5, 17-48). Com efeito, na contemplação da vida descrita pelo Decálogo, isto é, uma existência grata, livre, autêntica, abençoada, adulta, protetora e amante da vida, fiel, generosa e sincera, nós, quase sem nos darmos conta, voltamos a encontrar-nos diante de Cristo. O Decálogo é a sua “radiografia”, descreve-o como um negativo fotográfico que deixa transparecer a sua face, como no santo Sudário. E assim o Espírito Santo fecunda o nosso coração, inserindo nele os desejos que são seu dom, os desejos do Espírito. Desejar segundo o Espírito, desejar ao ritmo do Espírito, desejar com a música do Espírito.
Olhando para Cristo, vemos a beleza, o bem e a verdade. E o Espírito gera uma vida que, atendendo a estes seus desejos, desencadeia em nós a esperança, a fé e o amor.
Deste modo descobrimos melhor o que significa que o Senhor Jesus não veio para abolir a lei, mas para lhe dar cumprimento, para a fazer crescer, e enquanto a lei segundo a carne era uma série de prescrições e proibições, segundo o Espírito esta mesma lei torna-se vida (cf. Jo 6, 63; Ef 2, 15), porque já não é uma norma, mas a carne do próprio Cristo, que nos ama, procura, perdoa, consola e, no seu Corpo, volta a compor a comunhão com o Pai, perdida por causa da desobediência do pecado. E assim a negatividade literária, a negatividade na expressão dos mandamentos — “não roubarás”, “não insultarás”, “não matarás” — aquele “não” transforma-se numa atitude positiva: amar, abrir espaço para os outros no meu coração, todos desejos que semeiam positividade. E esta é a plenitude da lei que Jesus veio trazer-nos.
Em Cristo, e unicamente n’Ele, o Decálogo deixa de ser condenação (cf. Rm 8, 1), tornando-se a verdade autêntica da vida humana, ou seja, desejo de amor — aqui nasce um desejo de bem, de praticar o bem — desejo de alegria, desejo de paz, de magnanimidade, de benevolência, de bondade, de fidelidade, de mansidão e de temperança. Daqueles “nãos” passa-se para este “sim”: a atitude positiva de um coração que se abre com a força do Espírito Santo.
Eis para que serve procurar Cristo no Decálogo: para fecundar o nosso coração, a fim de que esteja repleto de amor e se abra à ação de Deus. Quando o homem atende ao desejo de viver segundo Cristo, então abre a porta à salvação, a qual não pode deixar de vir, porque Deus Pai é generoso e, como afirma o Catecismo, «tem sede de que nós tenhamos sede d’Ele» (n. 2560).
Se são os maus desejos que arruínam o homem (cf. Mt 15, 18-20), o Espírito insere no nosso coração os seus santos desejos, que constituem o germe da vida nova (cf. 1 Jo 3, 9). Efetivamente, a vida nova não é um esforço titânico para ser coerente com uma norma, mas a vida nova é o Espírito do próprio Deus, que começa a orientar-nos para os seus frutos, numa feliz sinergia entre a nossa alegria de sermos amados e a sua alegria de nos amar. Encontram-se as duas alegrias: a alegria de Deus de nos amar e a nossa alegria de sermos amados.
Eis no que consiste o Decálogo para nós, cristãos: contemplar Cristo a fim de nos abrirmos para receber o seu coração, para receber os seus desejos, para receber o seu Espírito Santo.
Papa Francisco
Catequese na Audiência Geral 28.12.2018
A Palavra de Deus apresenta-nos hoje uma alternativa. Na primeira leitura (Gênesis 3, 9-15. 20; Salmo 97, 1. 2-3ab. 3cd-4) é o ser humano que nas origens diz não a Deus. No Evangelho (Lucas 1, 26-38) está Maria que, na anunciação diz sim a Deus. Em ambas as leituras, é Deus que procura o ser humano. Mas no primeiro caso vai ao encontro de Adão, após o pecado, e pergunta-lhe: «Onde estás?»; e ele responde: «Escondi-me». No segundo caso, ao contrário, vai até Maria, sem pecado, que responde: «Eis a serva do Senhor». «Aqui estou» é o contrário de «escondi-me». O «aqui estou» abre a Deus, enquanto que o pecado fecha, isola, faz ficar a sós consigo próprio.
«Aqui estou» é a expressão-chave da vida. Marca a passagem de uma vida horizontal, centrada em si e nas próprias necessidades, para uma vida vertical, impelida para Deus. «Aqui estou» é estar disponível para o Senhor, é a cura para o egoísmo, o antídoto para uma vida insatisfeita, a que falta sempre alguma coisa. «Aqui estou» é o remédio contra o envelhecimento do pecado, é a terapia para permanecer jovem interiormente. «Aqui estou» é acreditar que Deus conta mais do que o meu eu. É escolher apostar no Senhor, dóceis às suas surpresas. Por isso, dizer-lhe «aqui estou» é o maior louvor que podemos oferecer-lhe.
Por que não começar assim o dia? Seria belo dizer a cada manhã: «Aqui estou, Senhor, cumpra-se hoje em mim a tua vontade». Vamos dizê-lo na oração do “Angelus”, mas podemos repeti-lo já, juntos: Aqui estou, Senhor, cumpra-se hoje em mim a tua vontade!
Maria acrescenta: «Aconteça em mim segundo a tua palavra». Não diz: «aconteça segundo eu», mas «segundo Tu». Não põe limites a Deus. Não pensa: «Dedico-me um pouco a Ele, despacho-me e depois faço aquilo que quero». Não, Maria não ama o Senhor aos soluços. Vive confiando-se a Deus em tudo e por tudo. Eis o segredo da vida. Pode tudo quem confia em Deus em tudo.
O Senhor, todavia, queridos irmãos e irmãs, sofre quando lhe respondemos como Adão: «Tive medo e escondi-me». Deus é Pai, o mais terno dos pais, e deseja a confiança dos filhos. Quantas vezes suspeitamos dele, suspeitamos de Deus, pensamos que pode enviar-nos alguma provação, privar-nos da liberdade, abandonar-nos. Mas este é um grande engano, é a tentação das origens, a tentação do diabo: insinuar a desconfiança em Deus. Maria vence esta primeira tentação com o seu «aqui estou». E hoje olhamos para a beleza de Nossa Senhora, nascida e vivida sem pecado, sempre dócil e transparente a Deus.
Isto não quer dizer que para ela a vida tenha sido fácil. Não, não! Estar com Deus não resolve magicamente os problemas. Recorda-o a conclusão do Evangelho de hoje: «O anjo afastou-se dela». Afastou-se: é um verbo forte. O anjo deixa a Virgem sozinha numa situação difícil. Ela conhecia de que maneira particular se tornaria Mãe de Deus, o anjo tinha-o dito, mas o anjo não o tinha explicado aos outros. E os problemas começaram desde logo: pensemos na situação irregular segundo a lei, no tormento de S. José, nos planos de vida acabados, no que as pessoas iriam dizer…
Mas Maria põe a confiança em Deus perante os problemas. Foi deixada pelo anjo, mas acredita que com ela, nela, permaneceu Deus. E confia. Confia em Deus. Está certa de que com o Senhor, ainda que de maneira inesperada, tudo correrá bem. Eis a atitude sábia: não viver dependendo dos problemas – terminado um, outro surgirá! –, mas fiando-se em Deus e confiando-se cada dia a Ele: «Aqui estou». «Aqui estou» é a frase, a oração. Peçamos à Imaculada a graça de viver assim.
Papa Francisco
Meditação antes da oração do "Angelus", Vaticano, 8.12.2018
Catequese sobre os Mandamentos - 14
Bom dia, prezados irmãos e irmãs!
Os nossos encontros sobre o Decálogo levam-nos hoje ao último mandamento. Ouvimo-lo na introdução. Estas não são as últimas palavras do texto, mas muito mais: são o cumprimento da viagem através do Decálogo, tocando o coração de tudo aquilo que nele nos é transmitido. Com efeito, vendo bem, não acrescentam um conteúdo novo: as indicações «não cobiçarás a mulher [...], nem coisa alguma que pertença ao teu próximo» estão pelo menos latentes nos mandamentos sobre o adultério e sobre o furto; então, qual é a função destas palavras? É um resumo? É algo mais?
Recordemos que todos os mandamentos têm a tarefa de indicar o confim da vida, o limite para além do qual o homem se destrói a si mesmo e ao próximo, danificando a sua relação com Deus. Se fores mais além, destruir-te-ás a ti mesmo, destruirás também a relação com Deus e o relacionamento com os outros. Os mandamentos indicam isto. Através desta última palavra põe-se em evidência o facto de que todas as transgressões nascem de uma comum raiz interior: os desejos maléficos. Todos os pecados nascem de um desejo maligno. Todos! É ali que o coração começa a mover-se; assim a pessoa entra naquela onda e acaba numa transgressão. Mas não numa transgressão formal, legal: numa transgressão que fere a si mesmo e ao próximo.
No Evangelho, o Senhor Jesus diz explicitamente: «É do interior do coração dos homens que procedem os maus pensamentos: devassidões, roubos, assassinatos, adultérios, cobiças, perversidades, fraudes, desonestidade, inveja, difamação, orgulho e insensatez. Todos estes vícios procedem de dentro e tornam impuro o homem» (Mc 7, 21-23).
Portanto, compreendemos que todo o percurso feito pelo Decálogo não teria utilidade alguma, se não chegasse a alcançar este nível, o coração do homem. De onde nascem todas estas perversidades? O Decálogo mostra-se lúcido e profundo a tal propósito: o seu ponto de chegada — o último mandamento — é o coração; e se ele, se o coração não for libertado, o resto de nada serve. Eis o desafio: libertar o coração de todas estas perversidades. Os preceitos de Deus podem reduzir-se unicamente à bonita fachada de uma vida que, contudo, permanece uma existência de escravos, não de filhos. Frequentemente, por detrás da máscara farisaica da retidão asfixiante esconde-se algo de perverso e não resolvido.
Pelo contrário, devemos deixar-nos desmascarar por estes mandamentos sobre a cobiça, porque nos mostram a nossa pobreza, para nos levar a uma santa humilhação. Cada um de nós pode interrogar-se: mas quais desejos malvados tenho com frequência? A inveja, a cobiça, as tagarelices? Todos estes vícios que procedem de dentro. Cada um pode questionar-se, e isto far-lhe-á bem. O homem precisa desta bendita humilhação, aquela pela qual descobre que não se pode libertar sozinho, aquela pela qual clama a Deus para ser salvo. São Paulo explica-o de modo insuperável, referindo-se exatamente ao mandamento não cobiçarás (cf. Rm 7, 7-24).
É inútil pensarmos que nos podemos corrigir a nós mesmos, sem o dom do Espírito Santo. É inútil pensarmos em purificar o nosso coração unicamente com o esforço titânico da nossa vontade: isto não é possível. É necessário abrir-se à relação com Deus, na verdade e na liberdade: só assim as nossas fadigas podem dar fruto, porque é o Espírito Santo que nos leva em frente.
A tarefa da Lei bíblica não consiste em iludir o homem que uma obediência literal o leva a uma salvação artificial e, de resto, inatingível. A tarefa da Lei consiste em conduzir o homem à sua verdade, ou seja, à sua pobreza, que se torna abertura autêntica, abertura pessoal à misericórdia de Deus, que nos transforma e nos renova. Deus é o único capaz de renovar o nosso coração, contanto que lhe abramos o coração: eis a única condição; Ele faz tudo, mas devemos abrir-lhe o coração.
As últimas palavras do Decálogo educam todos a reconhecer-se mendigos; ajudam a colocar-nos diante da desordem do nosso coração, para deixarmos de viver de modo egoísta e para nos tornarmos pobres de espírito, autênticos na presença do Pai, deixando-nos redimir pelo Filho e instruir pelo Espírito Santo. O Espírito Santo é o Mestre que nos guia: deixemo-nos ajudar. Sejamos mendigos, peçamos esta graça!
«Bem-aventurados os pobres de espírito, porque deles é o Reino dos Céus!» (Mt 5, 3). Sim, felizes aqueles que deixam de se iludir, julgando que se podem salvar da própria debilidade sem a misericórdia de Deus, a única que pode curar. Somente a misericórdia de Deus cura o coração. Ditosos aqueles que reconhecem os seus desejos malvados e, com um coração arrependido e humilhado, não se apresentam a Deus e aos outros homens como pessoas justas, mas como pecadores. É bonito o que Pedro disse ao Senhor: “Afasta-te de mim, Senhor, porque sou um pecador”. Como é bonito este pedido: “Afasta-te de mim, Senhor, porque sou um pecador”.
Estas pessoas sabem ter compaixão, misericórdia pelos outros, porque a experimentam em si mesmos.
Papa Francisco
Catequese na audiência Geral de 21.11.2018
Catequese sobre os Mandamentos - 13
Bom dia, queridos irmãos e irmãs!
Na catequese de hoje abordaremos a oitava Palavra do Decálogo: «Não levantarás falso testemunho contra o teu próximo».
Este mandamento — reza o Catecismo — «proíbe falsificar a verdade nas relações com outrem» (n. 2.464). Viver de comunicações não autênticas é grave, porque impede os relacionamentos e, por conseguinte, também o amor. Onde há mentira não há amor, não pode haver amor. E quando falamos de comunicação entre as pessoas, entendemos não apenas as palavras, mas inclusive os gestos, as atitudes, até os silêncios e as ausências. Uma pessoa fala com tudo aquilo que é e que faz. Todos nós estamos em comunicação, sempre. Todos nós vivemos comunicando e estamos continuamente em equilíbrio entre a verdade e a mentira.
Mas o que significa dizer a verdade? Significa ser sincero? Ou exato? Na realidade, isto não é suficiente, porque podemos estar sinceramente em erro, ou podemos ser exatos no detalhe, mas não entender o sentido do conjunto. Às vezes justificamo-nos dizendo: “Mas eu disse o que sentia!”. Sim, mas absolutizaste o teu ponto de vista. Ou então: “Eu simplesmente disse a verdade!”. Talvez, mas revelaste dados pessoais ou reservados. Quantas bisbilhotices destroem a comunhão por inoportunidade ou falta de delicadeza! Aliás, os mexericos matam, e quem o disse foi o Apóstolo Tiago na sua Carta. Os tagarelas, as tagarelas são pessoas que matam: matam o próximo, porque a língua mata como uma facada. Estai atentos! Um bisbilhoteiro ou uma bisbilhoteira é um terrorista, pois com a sua língua lança a bomba e vai embora tranquilo, mas aquilo que diz aquela bomba lançada destrói a reputação de outrem. Não vos esqueçais: mexericar significa matar.
Mas então: o que é a verdade? Eis a pergunta formulada por Pilatos, precisamente quando Jesus, diante dele, realizava o oitavo mandamento (cf. Jo 18, 38). Com efeito, as palavras «Não levantarás falso testemunho contra o teu próximo» pertencem à linguagem forense. Os Evangelhos culminam na narração da Paixão, Morte e Ressurreição de Jesus; e esta é a narração de um processo, da execução da sentença e de uma consequência inaudita.
Interrogado por Pilatos, Jesus diz: «Foi para dar testemunho da verdade que nasci e vim ao mundo: para dar testemunho da verdade» (Jo 18, 37). E Jesus dá este «testemunho» mediante a sua Paixão e Morte. O Evangelista Marcos narra que «o centurião que estava diante de Jesus, ao ver que Ele tinha expirado assim, disse: “Este homem era realmente o Filho de Deus!”» (15, 39). Sim, porque era coerente, foi coerente: com esse seu modo de morrer, Jesus manifesta o Pai, o seu amor misericordioso e fiel.
A verdade encontra a sua plena realização na própria pessoa de Jesus (cf. Jo 14, 6), no seu modo de viver e de morrer, fruto da sua relação com o Pai. Ele, Ressuscitado, oferece também a nós esta existência de filhos de Deus, enviando o Espírito Santo, que é Espírito de verdade, o qual confirma ao nosso coração que Deus é nosso Pai (cf. Rm 8, 16).
Em cada um dos seus gestos, o homem, as pessoas afirmam ou negam esta verdade. Desde as pequenas situações diárias até às escolhas mais exigentes. Mas é a mesma lógica, sempre: aquele que os pais e os avós nos ensinam, quando nos dizem para não mentir.
Questionemo-nos: quais obras, palavras e escolhas de nós cristãos comprovam a verdade? Cada um pode perguntar-se: sou uma testemunha da verdade, ou sou mais ou menos um mentiroso disfarçado de verdadeiro? Cada qual se interrogue. Nós cristãos não somos homens e mulheres extraordinários. No entanto, somos filhos do Pai celestial, que é bom e não nos desilude, instilando no nosso coração o amor pelos irmãos. Esta verdade não se diz tanto com discursos, é um modo de existir, uma maneira de viver, que se vê em cada gesto (cf. Tg 2, 18). Este homem é verdadeiro, aquela mulher é verdadeira: vê-se! Mas como, se não abre a boca? Contudo, comporta-se como verdadeiro, como verdadeira. Diz a verdade, age de modo verdadeiro. Um bom modo de vivermos!
A verdade é a maravilhosa revelação de Deus, da sua Face de Pai, é o seu amor ilimitado. Esta verdade corresponde à razão humana mas supera-a infinitamente, porque constitui um dom que desceu sobre a terra e se encarnou em Cristo Crucificado e Ressuscitado; ela é revelada por quem lhe pertence e tem as suas mesmas atitudes.
Não levantarás falso testemunho significa viver como filho de Deus, que nunca, nunca se desmente, jamais diz mentiras; viver como filhos de Deus, deixando sobressair em cada gesto esta grande verdade: que Deus é Pai e que podemos confiar n’Ele. Eu confio em Deus: esta é a grande verdade. Da nossa confiança em Deus, que é Pai e me ama, nos ama, nasce a minha verdade, o ser verdadeiro e não mentiroso.
Papa Francisco
Catequese na audiência geral 14.11.2018
imagem: site do Vaticano
Catequese sobre os Mandamentos - 12
Bom dia, prezados irmãos e irmãs!
Continuando a explicação do Decálogo, hoje chegamos à sétima Palavra: «Não roubarás».
Ouvindo este mandamento, pensamos no tema do roubo e no respeito pela propriedade alheia. Não existe cultura na qual o furto e a prevaricação dos bens sejam lícitos; com efeito, a sensibilidade humana é muito suscetível relativamente à defesa da posse.
Mas vale a pena abrir-se a uma leitura mais ampla desta Palavra, focalizando o tema da propriedade dos bens à luz da sabedoria cristã.
Na doutrina social da Igreja fala-se de destino universal dos bens. Que significa? Ouçamos o que diz o Catecismo: «No princípio, Deus confiou a terra e os seus recursos à gestão comum da humanidade, para que dela cuidasse, a dominasse pelo seu trabalho e gozasse dos seus frutos. Os bens da criação são destinados a todo o gênero humano» (n. 2.402). E ainda: «O destino universal dos bens continua a ser primordial, embora a promoção do bem comum exija o respeito pela propriedade privada, pelo direito a ela e pelo respetivo exercício» (n. 2.403).(1)
No entanto, a Providência não dispôs um mundo “em série”; existem diferenças, variadas condições, diferentes culturas, de modo que se pode viver provendo uns aos outros. O mundo é rico de recursos para assegurar os bens primários a todos. E contudo, muitos vivem numa indigência escandalosa e os recursos, usados sem critério, vão-se deteriorando. Mas o mundo é um só! (2) A humanidade é única! Hoje, a riqueza do mundo está nas mãos da minoria, de poucos, e a pobreza, aliás, a miséria e o sofrimento atingem tantos, a maioria.
Se há fome na terra, não é porque falta alimento! Ao contrário, devido às exigências do mercado, às vezes chega-se a destruí-lo, a deitá-lo fora. O que falta é um empresariado livre e clarividente, que garanta uma produção adequada, e uma abordagem solidária, que garanta uma distribuição equitativa. O Catecismo diz ainda: «Quem usa esses bens, não deve considerar as coisas exteriores, que legitimamente possui, só como próprias, mas também como comuns, no sentido de que possam beneficiar, não só a si mesmo, mas também aos outros» (n. 2.404). Para ser boa, toda a riqueza deve ter uma dimensão social.
É nesta perspectiva que se revela o significado positivo e amplo do mandamento «não roubarás». «A propriedade de um bem faz do seu detentor um administrador da Providência» (ibid.). Ninguém é senhor absoluto dos bens: é um administrador dos bens. A posse é uma responsabilidade: “Mas eu sou rico de tudo...” — esta é uma responsabilidade que tens. E cada bem subtraído à lógica da Providência de Deus é atraiçoado, é traído no seu sentido mais profundo. O que realmente possuo é aquilo que sei doar. Esta é a medida para avaliar como consigo gerir as riquezas, se bem ou mal; esta palavra é importante: o que realmente possuo é aquilo que sei doar. Se eu souber doar, se for aberto, então sou rico não apenas daquilo que possuo, mas também em generosidade, generosidade inclusive como dever de distribuir a riqueza, a fim de que todos beneficiem dela. Com efeito, se não consigo doar algo é porque o bem que possuo tem poder sobre mim e sou escravo dele. A posse dos bens constitui uma ocasião para os multiplicar com criatividade e utilizá-los com generosidade, e assim crescer em caridade e liberdade.
Mesmo sendo Deus, o próprio Cristo «não considerou como uma usurpação ser igual a Deus, mas aniquilou-se a si mesmo» (Fl 2, 6-7), enriquecendo-nos com a sua pobreza (cf. 2 Cor 8, 9).
Enquanto a humanidade fadiga para ter mais, Deus redime-a tornando-se pobre: aquele Homem Crucificado pagou por todos um resgate inestimável da parte de Deus Pai, «rico em misericórdia» (Ef 2, 4; cf. Tg 5, 11). O que nos torna ricos não são os bens, mas o amor. Ouvimos muitas vezes aquilo que o povo de Deus diz: “O diabo entra pelos bolsos”. Começa-se pelo amor ao dinheiro, pela fome de possuir; depois, vem a vaidade: “Ah, eu sou rico e tenho orgulho disto”; e, no final, o orgulho e a soberba. É assim que o diabo age em nós. Mas a porta de entrada são os bolsos!
Estimados irmãos e irmãs, Jesus Cristo revela-nos mais uma vez o pleno sentido das Escrituras. «Não roubarás» quer dizer: ama com os teus bens, tira proveito dos teus meios para amar como podes. Então, a tua vida torna-se boa e a posse torna-se verdadeiramente uma dádiva. Pois a vida não é o tempo para possuir, mas para amar. Obrigado!
Papa Francisco
Catequese na audiência Geral 7.11.2018
imagem: pexels.com
1 Cf. Enc. Laudato si’, 67: «Cada comunidade pode tomar da bondade da terra aquilo de que necessita para a sua sobrevivência, mas tem também o dever de a proteger e garantir a continuidade da sua fertilidade para as gerações futuras. Em última análise, “ao Senhor pertence a terra” (Sl 24 [23], 1), a Ele pertence “a terra e tudo o que nela existe” (Dt 10, 14). Por isso, Deus proíbe-nos toda a pretensão de posse absoluta: “Nenhuma terra será vendida definitivamente, porque a terra me pertence, e vós sois apenas estrangeiros e meus hóspedes” (Lv 25, 23)».
2 Cf. São Paulo VI, Enc. Populorum progressio, 17: «Mas cada homem é membro da sociedade: pertence à humanidade inteira. Não é apenas tal ou tal homem; são todos os homens, que são chamados a este pleno desenvolvimento [...] Herdeiros das gerações passadas e beneficiários do trabalho dos nossos contemporâneos, temos obrigações para com todos, e não podemos desinteressar-nos dos que virão depois de nós para aumentar o círculo da família humana. A solidariedade universal é para nós não só um facto e um benefício, mas também um dever».
Catequese sobre os Mandamentos - 11/B
Amados irmãos e irmãs, bom dia!
Hoje gostaria de completar a catequese sobre a Sexta Palavra do Decálogo — “Não cometerás adultério” — evidenciando que o amor fiel de Cristo é a luz para viver a beleza da afetividade humana. Com efeito, a nossa dimensão afetiva é uma chamada ao amor, que se manifesta na fidelidade, no acolhimento e na misericórdia. Isto é muito importante. Como se manifesta o amor? Na fidelidade, no acolhimento e na misericórdia.
Contudo, não se deve esquecer que este mandamento se refere explicitamente à fidelidade matrimonial, e portanto é bom refletir mais a fundo acerca do significado esponsal. Este trecho da Escritura, este excerto da Carta de São Paulo, é revolucionário! Refletir, com a antropologia daquele tempo, e dizer que o marido tem que amar a esposa como Cristo ama a Igreja: mas é uma revolução! Talvez, naquela época, seja o aspeto mais revolucionário que foi dito acerca do matrimônio. Sempre pelo caminho do amor. Podemos questionar-nos: a quem se destina este mandamento de fidelidade? Só aos esposos? Na realidade, este mandamento é para todos, é uma Palavra paterna de Deus dirigida a cada homem e mulher.
Recordemo-nos que o caminho da maturação humana é o próprio percurso do amor que vai do receber cuidados à capacidade de oferecer cuidados, do receber a vida à capacidade de dar a vida. Tornar-se homens e mulheres adultos significa chegar a viver a capacidade esponsal e parental, que se manifesta nas várias situações da vida como a capacidade de assumir sobre si o peso de outra pessoa e amá-la sem ambiguidades. Trata-se, por conseguinte, de uma atitude global da pessoa que sabe assumir a realidade e sabe entrar numa relação profunda com os demais.
Por conseguinte, quem é o adúltero, o luxurioso, o infiel? É uma pessoa imatura, que conserva para si a própria vida e interpreta as situações com base no seu bem-estar e satisfação. Portanto, para se casar, não é suficiente celebrar o matrimônio! É necessário percorrer um caminho do eu para o nós, do pensar sozinho para o pensar a dois, do viver sozinho para o viver a dois: é um bonito percurso, é um bonito percurso. Quando conseguimos descentralizar-nos, então cada ação é esponsal: trabalhamos, falamos, decidimos, encontramos os outros com a atitude acolhedora e oblativa.
Cada vocação cristã, neste sentido — agora podemos alargar um pouco a perspectiva e dizer que qualquer vocação cristã, neste sentido, é esponsal. É o caso do sacerdócio, porque é uma chamada, em Cristo e na Igreja, a servir a comunidade com todo o afeto, o cuidado concreto e a sabedoria que o Senhor concede. A Igreja não precisa de candidatos para desempenhar o papel de sacerdotes — não, não servem, é melhor que fiquem em casa — mas servem homens aos quais o Espírito Santo toca o coração com um amor sem reservas pela Esposa de Cristo. No sacerdócio ama-se o povo de Deus com toda a paternidade, a ternura e a força de um esposo e de um pai. Assim também a virgindade consagrada em Cristo deve ser vivida com fidelidade e alegria como relação esponsal e fecunda de maternidade e paternidade.
Repito: cada vocação cristã é esponsal, pois é fruto do vínculo de amor no qual todos somos regenerados, o vínculo de amor com Cristo, como nos recordou o trecho de Paulo lido no início. A partir da sua fidelidade, da sua ternura, da sua generosidade olhemos com fé para o matrimônio e para cada vocação, e compreendamos o sentido pleno da sexualidade.
A criatura humana, na sua inseparável unidade de espírito e corpo, e na sua polaridade masculina e feminina, é uma realidade muito boa, destinada a amar e a ser amada. O corpo humano não é um instrumento de prazer, mas o lugar da nossa chamada ao amor, e no amor autêntico não há espaço para a luxúria nem para a sua superficialidade. Os homens e as mulheres merecem mais do que isto!
Portanto, a Palavra «Não cometerás adultério», mesmo se em forma negativa, orienta-nos para a nossa chamada originária, ou seja, para o amor esponsal total e fiel, que Jesus Cristo nos revelou e doou (cf. Rm 12, 1).
Papa Francisco
Catequese na audiência Geral 31.10.2018
Prezados irmãos e irmãs, bom dia!
No nosso itinerário de catequeses sobre os Mandamentos, hoje chegamos à sexta Palavra, que se refere à dimensão afetiva e sexual, e recita: «Não cometerás adultério».
A exortação imediata é à fidelidade e, com efeito, nenhum relacionamento humano é autêntico sem fidelidade e lealdade.
Não se pode amar só enquanto for “conveniente”; o amor manifesta-se precisamente além do limite da própria vantagem, quando se doa tudo incondicionalmente. Como afirma o Catecismo: «O amor quer ser definitivo. Não pode ser “até nova ordem”» (n. 1.646). A fidelidade é a caraterística da relação humana livre, madura, responsável. Até um amigo se demonstra autêntico, porque permanece tal em qualquer eventualidade, caso contrário não é um amigo. Cristo revela o amor autêntico, Ele que vive do amor ilimitado do Pai, e em virtude disto é o Amigo fiel que nos acolhe mesmo quando erramos e quer sempre o nosso bem, até quando não o merecemos.
O ser humano tem necessidade de ser amado sem condições, e quem não recebe este acolhimento tem em si uma certa incompletude, muitas vezes sem o saber. O coração humano procura preencher este vazio com sucedâneos, aceitando compromissos e mediocridades que só têm um gosto vago do amor. O risco consiste em chamar “amor” a relações acerbas e imaturas, com a ilusão de encontrar luz de vida em algo que, no melhor dos casos, é apenas um seu reflexo.
Assim acontece, por exemplo, que sobrestimamos a atração física, a qual em si é uma dádiva de Deus, mas finalizada a preparar o caminho para uma relação autêntica e fiel com a pessoa. Como dizia São João Paulo II, o ser humano «é chamado à plena e madura espontaneidade dos relacionamentos», que «é o fruto gradual do discernimento dos impulsos do próprio coração». É algo que se conquista, uma vez que cada ser humano, «com perseverança e coerência, deve aprender qual é o significado do corpo» (cf. Catequese, 12 de novembro de 1980).
Portanto, a chamada à vida conjugal exige um discernimento atento sobre a qualidade da relação e um período de noivado para a averiguar. A fim de aceder ao Sacramento do Matrimónio, os noivos devem amadurecer a certeza de que no seu vínculo está a mão de Deus, que os precede e acompanha, permitindo-lhes dizer: «Com a graça de Cristo, prometo ser-te sempre fiel». Não podem prometer-se fidelidade «na alegria e na dor, na saúde e na doença», nem amar-se e honrar-se todos os dias da sua vida, unicamente com base na boa vontade ou na esperança de que “isto funcione”. Precisam de se fundamentar no terreno firme do Amor fiel de Deus. E per isso, antes de receber o Sacramento do Matrimónio, é necessária uma preparação atenta, diria um catecumenato, porque a vida inteira depende do amor, e com o amor não se brinca. Não se pode definir “preparação para o casamento” três ou quatro encontros realizados na paróquia; não, isto não é preparação: é falsa preparação. E a responsabilidade de quem faz isto cai sobre ele: sobre o pároco, sobre o bispo que permite tais situações. A preparação deve ser madura e leva tempo. Não é um ato formal: é um Sacramento. Mas deve-se preparar com um verdadeiro catecumenato.
Com efeito, a fidelidade é um modo de ser, um estilo de vida. Trabalha-se com lealdade, fala-se com sinceridade, permanecendo fiel à verdade nos próprios pensamentos, nas próprias ações. Uma vida tecida de fidelidade exprime-se em todas as dimensões e leva a ser homens e mulheres fiéis e confiáveis em todas as circunstâncias.
Mas para chegar a uma vida tão bonita não é suficiente a nossa natureza humana, é preciso que a fidelidade de Deus entre na nossa existência, nos contagie. Esta sexta Palavra chama-nos a dirigir o olhar para Cristo que, com a sua fidelidade, pode tirar de nós um coração adúltero e doar-nos um coração fiel. N’Ele, e somente n’Ele, existe o amor sem reservas nem arrependimentos, a doação completa, sem parênteses, e a tenacidade do acolhimento total.
A nossa fidelidade deriva da sua morte e ressurreição, a constância nos relacionamentos deriva do seu amor incondicional. A comunhão entre nós e o saber viver na fidelidade os nossos vínculos derivam da comunhão com Ele, com o Pai e com o Espírito Santo.
Papa Francisco
Audiência Geral 24 de outubro de 2018.
Catequese sobre os Mandamentos - 10
Gostaria de prosseguir a catequese sobre a Quinta Palavra do Decálogo, «não matar». Já sublinhamos como este mandamento revela que aos olhos de Deus a vida humana é precisa, sagrada e inviolável. Ninguém pode desprezar a vida alheia ou a própria; o ser humano, com efeito, traz consigo a imagem de Deus e é objeto do seu amor infinito, qualquer que seja a sua condição em que foi chamado à existência. (…)
Jesus revela-nos deste mandamento um sentido ainda mais profundo. Ele afirma que, diante do tribunal de Deus, até a ira contra um irmão é uma forma de homicídio. Por isso o apóstolo João escreverá: «Aquele que odeia o seu irmão é homicida». Mas Jesus não se fica por aqui, e na mesma lógica acrescenta que também o insulto e o desprezo podem matar. E nós estamos habituados a insultar, é verdade. E o insulto acontece-nos como se fosse uma respiração. E Jesus diz-nos: «Parai, porque o insulto faz mal, mata». O desprezo. «Esta gente desprezo». E esta é uma forma de matar a dignidade da pessoa. E belo seria que este ensinamento de Jesus entrasse na mente e no coração, e cada um de nós dissesse: «Não voltarei a insultar alguém». Seria um belo propósito, porque Jesus diz-nos: «Olha, se tu desprezas, se tu insultas, se tu odeias, isso é homicídio».
Nenhum códice humano equipara atos tão diferentes marcando-os com o mesmo grau de juízo. E coerentemente Jesus convida até a interromper a oferta do sacrifício no tempo se a pessoa se nos recordamos que um irmão foi por nós ofendido, de maneira a irmos procura-lo e reconciliarmo-nos com ele. Também nós, quando vamos à missa, devemos ter esta atitude de reconciliação com as pessoas com as quais tivemos problemas. Mesmo se pensamos mal delas, se as insultamos. Mas muitas vezes, enquanto esperamos que venha o sacerdote para dizer a missa, murmura-se um bocado e fala-se mal dos outros. Isto não se pode fazer. Pensemos na gravidade do insulto, do desprezo, do ódio: Jesus coloca-nos na linha da morte.
O que quer dizer Jesus ao estender até este ponto o campo da Quinta Palavra? O ser humano tem uma vida nobre, muito sensível, e possui um “eu” recôndito não menos importante que o seu ser físico. Com efeito, para ofender a inocência de uma criança, basta uma frase inoportuna. Para ferir uma mulher pode bastar um gesto frio. Para espezinhar o coração de um jovem é suficiente negar-lhe a confiança. Para aniquilar um homem basta ignorá-lo. A indiferença mata. É como dizer de outra pessoa: «Tu estás morta para mim», porque a mataste no teu coração. Não amar é o primeiro passo para matar; e não matar é o primeiro passo para amar.
Na Bíblia, ao início, lê-se aquela frase terrível saída da boca do primeiro homicida, Caim, depois de o Senhor lhe perguntar onde estava o seu irmão. Caim responde: «Não sei. Serei eu, porventura, o guardião do meu irmão?». Assim falam os assassinos: «Não me diz respeito», «é problema teu», e coisas semelhantes. Experimentemos responder a esta pergunta: somos nós os guardiões dos nossos irmãos? Sim, somos? Somos guardiões uns dos outros! E este é o caminho da vida, é o caminho do não matar.
A vida humana precisa de amor. E qual é o amor autêntico? É aquele que Cristo nos mostrou, isto é, a misericórdia. O amor de que não podemos prescindir é aquele que perdoa, que acolhe quem fez mal. Nenhum de nós pode sobreviver sem misericórdia, todos precisamos do perdão. Por isso, se matar significa destruir, suprimir, eliminar alguém, então não matar quererá dizer curar, valorizar, incluir. E também perdoar.
Ninguém pode iludir-se pensando: «Estou a postos porque não faço nada de mal». Um mineral ou uma planta têm este tipo de existência, mas um ser humano não. Uma pessoa – um homem ou uma mulher – não. A um homem ou a uma mulher é pedido mais. Há bem a fazer, preparado para cada um de nós, a cada um o seu, que nos torna nós mesmos até ao fundo. «Não matar» é um apelo ao amor e à misericórdia, é um chamamento a viver segundo o Senhor Jesus, que deu a vida por nós e por nós ressuscitou. Uma vez repetimos todos juntos, aqui na Praça de S. Pedro, uma frase de um santo sobre isto. Talvez nos ajude: «Não fazer mal é coisa boa. Mas não fazer o bem não é bom». Devemos sempre fazer o bem. Ir mais além.
Ele, o Senhor, que ao incarnar-se santificou a nossa existência; Ele, que com o seu sangue a tornou inestimável; Ele, o autor da vida, graças a quem cada um é um presente do Pai. Nele, no seu amor mais forte que a morte, e pelo poder do Espírito que o Pai nos dá, podemos acolher a Palavra «não matar» como o apelo mais importante e essencial: ou seja, não matar significa um chamamento ao amor.
Fonte: Sala de Imprensa da Santa Sé
Trad.: Rui Jorge Martins in: SNPC
Catequese sobre os Mandamentos - 10
Bom dia, estimados irmãos e irmãs!
A catequese de hoje é dedicada à quinta Palavra: não matarás. O quinto mandamento: não matarás. Já estamos na segunda parte do Decálogo, aquela que diz respeito às relações com o próximo; e este mandamento, com a sua formulação concisa e categórica, ergue-se como uma muralha em defesa do valor básico nos relacionamentos humanos. E qual é o valor fundamental nas relações humanas? O valor da vida.(1) Por isso, não matarás!
Poder-se-ia dizer que todo o mal cometido no mundo se resume nisto: o desprezo pela vida. A vida é agredida pelas guerras, pelas organizações que exploram o homem — lemos nos jornais ou vemos nos noticiários muitas coisas — a partir das especulações sobre a criação e da cultura do descarte, e de todos os sistemas que submetem a existência humana a cálculos de oportunidade, enquanto um número escandaloso de pessoas vive em condições indignas do homem. Isto significa desprezar a vida, ou seja, de certo modo, matar.
Uma abordagem contraditória permite também a supressão da vida humana no ventre materno, em nome da salvaguarda de outros direitos. Mas como pode ser terapêutico, civil ou simplesmente humano um ato que suprime a vida inocente e inerme no seu desabrochar? Pergunto-vos: é justo “eliminar” uma vida humana para resolver um problema? É correto contratar um sicário para resolver um problema? Não se pode, não é justo “eliminar” um ser humano, por mais pequenino que seja, para resolver um problema. É como pagar a um assassino para resolver um problema.
De onde vem tudo isto? No fundo, de onde nascem a violência e a rejeição da vida? Do medo. Com efeito, o acolhimento do outro é um desafio ao individualismo. Pensemos, por exemplo, em quando se descobre que uma vida nascente é portadora de deficiência, até grave. Nestes casos dramáticos, os pais precisam de verdadeira proximidade, de autêntica solidariedade, para enfrentar a realidade superando os compreensíveis temores. Ao contrário, muitas vezes recebem conselhos apressados para interromper a gravidez, ou seja, é um modo de dizer: “interromper a gravidez” significa “eliminar alguém” diretamente.
Uma criança doente é como qualquer necessitado da terra, como um idoso que precisa de assistência, como tantos pobres que têm dificuldade de ir em frente: aquele, aquela que se apresenta como um problema, na realidade constitui um dom de Deus, que pode tirar-me do egocentrismo e fazer-me crescer no amor. A vida vulnerável indica-nos a saída, o caminho para nos salvar de uma existência fechada em si mesma, e descobrir a alegria do amor. E aqui gostaria de parar para dar graças, agradecer a tantos voluntários, agradecer ao vigoroso voluntariado italiano, o mais forte que conheci. Obrigado!
E o que leva o homem a rejeitar a vida? São os ídolos deste mundo: o dinheiro — é melhor eliminar isto, porque custará — o poder, o sucesso. Estes são parâmetros errados para valorizar a vida. Qual é a única medida autêntica da vida? É o amor, o amor com que Deus a ama! O amor com o qual Deus ama a vida: esta é a medida. O amor com que Deus ama cada vida humana.
Com efeito, qual é o sentido positivo da Palavra: «Não matarás»? Que Deus é «amante da vida», como há pouco ouvimos da Leitura bíblica.
O segredo da vida é-nos revelado pelo modo como a tratou o Filho de Deus, que se fez homem a ponto de assumir na cruz a rejeição, a debilidade, a pobreza e a dor (cf. Jo 13, 1). Em cada criança enferma, em cada idoso débil, em cada migrante desesperado, em cada vida frágil e ameaçada, é Cristo que está à nossa procura (cf. Mt 25, 34-46), está em busca do nosso coração, para nos revelar a alegria do amor.
Vale a pena acolher todas as vidas, porque cada homem vale o sangue do próprio Cristo (cf. 1 Pd 1, 18-19). Não se pode desprezar o que Deus tanto amou!
Devemos dizer aos homens e às mulheres do mundo: não desprezeis a vida! A vida do próximo, mas inclusive a própria, porque também para ela é válido o mandamento: «Não matarás». É preciso dizer a tantos jovens: não desprezes a tua existência! Deixa de rejeitar a obra de Deus! Tu és uma obra de Deus! Não te subestimes, não te desprezes com as dependências, que te hão de arruinarão e te levarão à morte!
Que ninguém meça a vida segundo os enganos deste mundo, mas que cada qual se acolha a si mesmo e aos outros, em nome do Pai que nos criou. Ele é «amante da vida»: isto é bonito, “Deus é amante da vida”. E todos nós lhe somos tão queridos, que Ele enviou o seu Filho por nós. «Com efeito — diz o Evangelho — Deus amou de tal modo o mundo, que lhe deu o seu único Filho, para que todo o que nele crer não pereça, mas tenha a vida eterna» (Jo 3, 16).
Papa Francisco
Catequese na audiência geral
10.10.2018
Catequese sobre os Mandamentos - 9
Bom dia, prezados irmãos e irmãs!
Na viagem no interior das Dez Palavras, hoje chegamos ao mandamento sobre o pai e a mãe. Fala-se da honra devida aos pais. Em que consiste esta “honra”? O termo hebraico indica a glória, o valor, à letra, o “peso”, a consistência de uma realidade. Não é questão de formas exteriores, mas de verdades. Nas Escrituras, honrar a Deus quer dizer reconhecer a sua realidade, fazer as contas com a sua presença; isto exprime-se também mediante os ritos, mas implica sobretudo atribuir a Deus o lugar certo na existência. Portanto, honrar o pai e a mãe significa reconhecer a sua importância até com gestos concretos, que manifestam dedicação, afeto e esmero. Mas não se trata apenas disto.
A Quarta Palavra tem uma sua caraterística: é o mandamento que contém um êxito. Com efeito, reza: «Honra teu pai e tua mãe, como te mandou o Senhor teu Deus, para que se prolonguem os teus dias e prosperes na terra que te deu o Senhor teu Deus» (Dt5, 16). Honrar os pais leva a uma vida longa e feliz. No Decálogo, a palavra “felicidade” só aparece ligada ao relacionamento com os pais.
Esta sabedoria multimilenária declara aquilo que as ciências humanas souberam elaborar só há pouco mais de um século: ou seja, que a marca da infância se reflete sobre a vida inteira. Muitas vezes pode ser fácil entender se alguém cresceu num ambiente saudável e equilibrado. Mas igualmente perceber se uma pessoa provém de experiências de abandono ou de violência. A nossa infância é um pouco como uma tinta indelével, exprime-se nos gostos, nos modos de ser, não obstante alguns procurem esconder as feridas das próprias origens.
Mas o quarto mandamento diz ainda mais. Não fala da bondade dos pais, não exige que os pais e as mães sejam perfeitos. Fala de um gesto dos filhos, prescindindo dos méritos dos pais, e diz algo extraordinário e libertador: embora nem todos os pais sejam bons e nem todas as infâncias sejam tranquilas, todos os filhos podem ser felizes, porque o êxito de uma vida plena e feliz depende do justo reconhecimento por aqueles que nos deram a vida.
Pensemos como esta Palavra pode ser construtiva para tantos jovens que provêm de histórias de dor e para todos aqueles que sofreram na própria juventude. Muitos santos — e numerosos cristãos — depois de uma infância dolorosa, levaram uma vida luminosa porque, graças a Jesus Cristo, se reconciliaram com a vida. Pensemos no jovem Sulprizio, hoje Beato e no próximo mês Santo, que com 19 anos concluiu a sua vida reconciliado com muitas dores, com tantas situações, porque o seu coração estava sereno e nunca tinha renegado os seus pais. Pensemos em São Camilo de Lellis que, de uma infância desordenada, construiu uma vida de amor e de serviço; em Santa Josefina Bakhita, que cresceu numa escravidão horrível; ou no Beato Carlos Gnocchi, órfão e pobre; e no próprio São João Paulo II, marcado pela perda da mãe em tenra idade.
Independentemente da história da sua proveniência, o homem recebe deste mandamento a orientação que conduz a Cristo: com efeito, é n’Ele que se manifesta o verdadeiro Pai, que nos oferece o “renascimento do Alto” (cf. Jo 3, 3-8). Os enigmas das nossas vidas iluminam-se quando se descobre que Deus nos prepara desde sempre para uma vida como seus filhos, onde cada gesto é uma missão recebida d’Ele.
As nossas feridas começam a ser potencialidades quando, por graça, descobrimos que o verdadeiro enigma já não é “porquê?”, mas “por quem?”, por quem me aconteceu isto. Em vista de qual obra Deus me forjou, através da minha história? Aqui tudo se inverte, tudo se torna precioso, tudo se torna construtivo. A minha experiência, ainda que seja triste e dolorosa, à luz do amor, como se torna para os outros, para quem, fonte de salvação? Então, podemos começar a honrar os nossos pais com liberdade de filhos adultos e com misericordiosa aceitação dos seus limites.[1]
Honrar os pais: eles deram-nos a vida! Se tu te afastaste dos teus pais, faz um esforço e regressa, volta para eles; talvez sejam idosos... Eles deram-te a vida. Além disso, temos o hábito de proferir expressões feias, até palavrões... Por favor, nunca, nunca, nunca insulteis os pais de outrem. Jamais! Nunca se insulta a mãe, nunca se insulta o pai. Jamais! Tomai vós mesmos esta decisão interior: doravante, nunca insultarei a mãe ou o pai de alguém. Foram eles que lhe deram a vida! Não devem ser insultados.
Esta vida maravilhosa é-nos oferecida, não imposta: renascer em Cristo é uma graça a acolher livremente (cf. Jo 1, 11-13), e constitui o tesouro do nosso Batismo no qual, por obra do Espírito Santo, um só é o nosso Pai, aquele que está no Céu (cf. Mt 23, 9; 1 Cor 8, 6; Ef 4, 6). Obrigado!
Papa Francisco
Catequese na audiência geral
19.09.2018
Catequese sobre os Mandamentos - 8
Na catequese de hoje regressamos ao terceiro mandamento, o do dia do repouso. O Decálogo, promulgado no livro [bíblico] do Êxodo, é repetido no livro [bíblico] do Deuteronômio de maneira quase idêntica, à exceção desta terceira palavra, onde surge uma diferença preciosa: enquanto que no Êxodo o motivo do repouso é a bênção da criação, no Deuteronômio, por seu lado, comemora o fim da escravidão. Nesse dia o escravo deve repousar como o dono, para celebrar a memória da Páscoa de libertação.
Os escravos, com efeito, por definição não podem repousar. Mas existem muitos gêneros de escravidão, seja exterior seja interior. Há as constrições externas como as opressões, as vidas sequestradas pela violência e por outros tipos de injustiça. Existem depois as prisões interiores, que são, por exemplo, os bloqueios psicológicos, os complexos, os limites relacionados com o carácter e outros.
Há repouso nestas condições? Um homem recluso ou oprimido pode permanecer mesmo assim livre? E uma pessoa atormentada por dificuldades interiores pode ser libré. Com efeito, há pessoas que, até na prisão, vivem uma grande liberdade de alma. Pensemos, por exemplo, em S. Maximiliano Kolbe ou no cardeal Van Thuan, que transformaram as escuras opressões em lugares de luz. Como também há pessoas marcadas por grandes fragilidades interiores que todavia conhecem o repouso da misericórdia e sabem-no transmitir. A misericórdia de Deus liberta-nos, quando a encontramos sentimo-nos livres.
O que é então a verdadeira liberdade? Consiste talvez na possibilidade de escolha? Com certeza que essa é uma parte da liberdade, e empenhamo-nos para que seja assegurada a cada homem e mulher. Mas sabemos bem que poder fazer aquilo que se deseja não chega para se ser verdadeiramente livre nem feliz. A verdadeira liberdade é muito mais.
De fato, há uma escravidão que encadeia mais do que uma prisão, mais do que uma crise de pânico, mais do que uma imposição de qualquer gênero: a escravidão do próprio ego. Aquelas pessoas que parece que se refletem o dia inteiro no espelho para ver o próprio ego. São escravos do ego. O ego pode tornar-se um tirano que tortura o homem onde quer que esteja e lhe dá a mais profunda opressão, essa que se chama “pecado”, que não é a banal violação de um código, mas fracasso da existência e condição de escravo. No fim de contas, pecado é dizer e fazer ego, fazer aquilo que se quer ignorando os limites, o amor, os mandamentos, isto é o pecado.
O guloso, o lascivo, o avarento, o colérico, o invejoso, o preguiçoso, o orgulhoso são escravos dos seus vícios, que os tiranizam e atormentam. Não há trégua para o guloso, porque a gula é a hipocrisia do estômago, que está cheio e faz-nos crer que está vazio, e para o lascivo, que têm de viver do prazer; a ansiedade da possessão destrói o avarento, sempre a acumular dinheiro e a fazer mal aos outros; o fogo da ira e o verme da inveja arruínam as relações, os escritores dizem que os invejosos têm o corpo e a alma amarelada porque a inveja destrói a alma; a preguiça que evita qualquer esforço torna a pessoa incapaz de viver; o egocentrismo soberbo escava um fosso profundo entre si e os outros.
Caros irmãos e irmãs, quem é por isso o verdadeiro escravo? Quem é aquele que não conhece repouso? O verdadeiro escravo é aquele que não conhece repouso e aquele que não é capaz de amar. Somos escravos de nós mesmos e não somos capazes de amar.
O terceiro mandamento, que convida a celebrar no repouso a libertação, para nós cristãos é profecia do Senhor Jesus, que rompe a escravidão interior do pecado para tornar o ser humano capaz de amar. O amor verdadeiro é a verdadeira liberdade; afasta da possessão, reconstrói as relações, sabe acolher e valorizar o próximo, transforma em dom de alegria cada fadiga e torna-nos capazes da comunhão. O amor torna-nos livres mesmo na prisão, mesmo se fracos e limitados. Esta é a liberdade que recebemos do nosso Redentor, nosso Senhor Jesus Cristo.
Audiência geral | Vaticano, 12.9.2018
Trad.: Rui Jorge Martins
Publicado em 12.09.2018
Catequese sobre os Mandamentos - 7
Prezados irmãos e irmãs, bom dia!
A viagem através do Decálogo leva-nos hoje ao mandamento sobre o dia do repouso. Parece um mandamento fácil de cumprir, mas é uma impressão errada. Descansar verdadeiramente não é simples, porque há o repouso falso e o repouso autêntico. Como podemos reconhecê-los?
A sociedade atual é sedenta de diversões e férias. A indústria da distração é deveras florescente e a publicidade desenha o mundo ideal como um grande parque de diversões onde todos se distraem. O conceito de vida hoje predominante não tem o baricentro na atividade e no empenho, mas na evasão. Ganhar para se divertir, para se satisfazer. A imagem-modelo é aquela de uma pessoa de sucesso, que pode permitir-se amplos e diferentes espaços de prazer. Mas esta mentalidade faz escorregar na insatisfação de uma existência anestesiada pela diversão, que não é repouso, mas alienação e fuga da realidade. O homem nunca descansou tanto como hoje, e no entanto o homem jamais experimentou tanto vazio como hoje! A possibilidade de se divertir, de sair, os cruzeiros, as viagens, muitas coisas não te proporcionam a plenitude do coração. Aliás, não te dão o repouso!
As palavras do Decálogo procuram e encontram o cerne do problema, lançando uma luz diferente sobre o que é o descanso. O mandamento tem um elemento peculiar: oferece uma motivação. O repouso em nome do Senhor tem um motivo específico: «Porque em seis dias o Senhor fez o céu, a terra, o mar e tudo o que eles contêm, e repousou no sétimo dia; e por isso, o Senhor abençoou o dia de sábado e o consagrou» (Êx 20, 11).
Isto remete para o fim da criação, quando Deus diz: «Deus contemplou toda a sua obra, e viu que tudo era muito bom» (Gn 1, 31). E então começa o dia do repouso, que é a alegria de Deus por aquilo que criou. É o dia da contemplação e da bênção!
Portanto, no que consiste o repouso, segundo este mandamento? No momento da contemplação, no momento do louvor, não da evasão. Trata-se do tempo para olhar a realidade e dizer: como é bonita a vida! Ao descanso como fuga da realidade, o Decálogo opõe o repouso como bênção da realidade. Para nós, cristãos, o centro do dia do Senhor, o domingo, é a Eucaristia, que significa “ação de graças”. É o dia para dizer a Deus: Senhor, obrigado pela vida, pela sua misericórdia, por todos os teus dons. O domingo não é o dia para anular os outros dias, mas para os recordar, bendizer e fazer as pazes com a vida. Quantas pessoas têm muitas possibilidades de se divertir, e não estão em paz com a vida! O domingo é o dia para fazer as pazes com a vida, dizendo: a vida é preciosa; não é fácil, às vezes é dolorosa, mas é preciosa.
Ser introduzido no repouso autêntico é uma obra de Deus em nós, mas exige que nos afastemos da maldição e da sua fascinação (cf. Exort. Apost. Evangelii gaudium, 83). Com efeito, é extremamente fácil convencer o coração à infelicidade, ressaltando motivos de descontentamento. A bênção e a alegria implicam uma abertura ao bem, que é um movimento adulto do coração. O bem é amoroso e nunca se impõe. Deve ser escolhido!
A paz escolhe-se, não pode ser imposta e não se encontra por acaso. Afastando-se das dobras amargas do seu coração, o homem tem necessidade de fazer as pazes com aquilo do que foge. É preciso reconciliar-se com a própria história, com os factos que não se aceitam, com as partes difíceis da própria existência. Pergunto-vos: cada um de vós se reconciliou com a própria história? Uma pergunta sobre a qual pensar: reconciliei-me com a minha história? Com efeito, a verdadeira paz não consiste em mudar a própria história, mas em aceitá-la e valorizá-la tal como é!
Quantas vezes encontramos cristãos doentes que nos consolaram com uma serenidade que não se encontra nos foliões, nem nos hedonistas! E vimos pessoas humildes e pobres regozijar com pequenas graças, com uma felicidade com sabor de eternidade!
No Deuteronómio, o Senhor diz: «Ponho diante de ti a vida e a morte, a bênção e a maldição. Escolhe, pois, a vida, para que vivas com a tua posteridade» (30, 19). Esta opção é o “fiat” da Virgem Maria, é uma abertura ao Espírito Santo que nos coloca nos passos de Cristo, Aquele que se entrega ao Pai no momento mais dramático, empreendendo assim o caminho que conduz à Ressurreição.
Quando se torna bela a vida? Quando se começa a pensar bem dela, seja qual for a nossa história. Quando o dom de uma dúvida abre caminho: que tudo seja graça [Como nos recorda Santa Teresa do Menino Jesus, tirada de G. Bernanos, Diario di un curato di campagna [“Diário de um Pároco de Aldeia”] Milão 1965, p. 270] e aquele santo pensamento fragmenta o muro interior da insatisfação, inaugurando o repouso autêntico. A vida torna-se bela quando se abre o coração à Providência e se descobre que é verdade aquilo que reza o Salmo: «Só em Deus repousa a minha alma» (62, 2). Como é bonita esta frase do Salmo: «Só em Deus repousa a minha alma»!
Papa Francisco
Catequese na audiência geral de 5.09.2018
Catequese sobre os Mandamentos - 6
Prezados irmãos e irmãs, bom dia!
Continuemos as catequeses sobre os mandamentos, e hoje abordemos o mandamento «Não pronunciarás em vão o nome do Senhor, teu Deus» (Êx 20, 7). Lemos justamente esta Palavra como o convite a não ofender o nome de Deus e a evitar usá-lo inoportunamente. Este claro significado prepara-nos para aprofundar ulteriormente estas palavras preciosas, para não usar o nome de Deus em vão, inoportunamente.
Ouçamo-las melhor. A versão «Não pronunciarás» traduz uma expressão que significa literalmente, tanto em hebraico como em grego, «não assumirás, não te responsabilizarás».
A expressão «em vão» é mais clara e quer dizer: «debalde, inutilmente». Faz referência a uma embalagem vazia, a uma forma sem conteúdo. É a caraterística da hipocrisia, do formalismo e da mentira, do uso das palavras ou do nome de Deus em vão, sem verdade.
Na Bíblia, o nome é a verdade íntima das coisas e sobretudo das pessoas. O nome representa muitas vezes a missão. Por exemplo, Abraão no Génesis (cf. 17, 5) e Simão Pedro nos Evangelhos (cf. Jo 1, 42) recebem um nome novo para indicar a mudança no rumo da sua vida. E conhecer verdadeiramente o nome de Deus leva à transformação da própria vida: a partir do momento em que Moisés conhece o nome de Deus, a sua história muda (cf. Êx 3, 13-15).
Nos ritos judaicos, o nome de Deus é proclamado solenemente no Dia do Grande Perdão, e o povo é perdoado porque por meio do nome se entra em contacto com a vida do próprio Deus, que é misericórdia.
Então, “tomar sobre si o nome de Deus” quer dizer assumir sobre nós a sua realidade, entrar num relacionamento forte, numa relação íntima com Ele. Para nós, cristãos, este mandamento é a exortação a recordar-nos que somos batizados «em nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo», como afirmamos cada vez que fazemos sobre nós o sinal da cruz, para viver as nossas ações quotidianas em comunhão sentida e real com Deus, ou seja, no seu amor. E sobre isto, de fazer o sinal da cruz, gostaria de repetir mais uma vez: ensinai as crianças a fazer o sinal da cruz. Vistes como as crianças o fazem? Se disserdes às crianças: “Fazei o sinal da cruz”, fazem algo que não sabem o que é. Não sabem fazer o sinal da cruz! Ensinai-as a fazer o nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo. O primeiro ato de fé de uma criança. Dever para vós, tarefa a cumprir: ensinar as crianças a fazer o sinal da cruz.
Podemos interrogar-nos: é possível tomar sobre si o nome de Deus de maneira hipócrita, como uma formalidade, em vão? Infelizmente, a resposta é positiva: sim, é possível. Pode-se viver uma relação falsa com Deus. Jesus dizia-o referindo-se àqueles doutores da lei; eles faziam coisas, mas não cumpriam o que Deus queria. Falavam de Deus, mas não faziam a vontade de Deus. E o conselho que Jesus dá é: “Fazei aquilo que eles dizem, mas não o que eles fazem”. Pode-se viver uma relação falsa com Deus, como aquelas pessoas. E esta Palavra do Decálogo é precisamente o convite a uma relação com Deus que não seja falsa, sem hipocrisias, a uma relação em que nos confiamos a Ele com tudo o que somos. No fundo, enquanto não arriscarmos a existência pelo Senhor, tocando com a mão o fato de que nele se encontra a vida, faremos unicamente teorias.
Este é o cristianismo que sensibiliza os corações. Por que são os santos capazes de sensibilizar os corações? Porque os santos não só falam, movem! O nosso coração comove-se, quando uma pessoa santa nos fala, nos diz coisas. E são capazes, porque nos santos vemos aquilo que o nosso coração deseja profundamente: autenticidade, relacionamentos autênticos, radicalidade. E isto vê-se também naqueles “santos da porta ao lado” que são, por exemplo, os numerosos pais que dão aos filhos o exemplo de uma vida coerente, simples, honesta e generosa.
Se multiplicarmos os cristãos que assumem o nome de Deus sem falsidades — praticando assim o primeiro pedido do Pai-Nosso, «santificado seja o vosso nome» — o anúncio da Igreja é mais ouvido e resulta mais credível. Se a nossa vida concreta manifestar o nome de Deus, vê-se quanto é bonito o Batismo e que grande dádiva é a Eucaristia, quão sublime união existe entre o nosso corpo e o Corpo de Cristo: Cristo em nós, e nós nele! Unidos! Isto não é hipocrisia, é verdade. Isto não é falar nem rezar como um papagaio, isto é rezar com o coração, amar o Senhor.
A partir da cruz de Cristo, ninguém pode desprezar-se a si mesmo e pensar mal da própria existência. Ninguém e nunca! Independentemente daquilo que fez. Porque o nome de cada um de nós está sobre os ombros de Cristo. É Ele que nos carrega! Vale a pena tomar sobre nós o nome de Deus, porque Ele assumiu o nosso nome até ao fundo, inclusive o mal que existe em nós; Ele assumiu-o para nos perdoar, para infundir o seu amor no nosso coração. Por isso, neste mandamento Deus proclama: “Toma-me sobre ti, porque Eu te tomei sobre mim”.
Quem quer que seja pode invocar o santo nome do Senhor, que é Amor fiel e misericordioso, em qualquer situação que se encontre. Deus nunca dirá “não” a um coração que o invoca sinceramente. E voltemos às tarefas de casa: ensinar as crianças a fazer bem o sinal da cruz.
Papa Francisco
Catequese na audiência geral 22.08.2018
Catequese sobre os Mandamentos - 5
Prezados irmãos e irmãs, bom dia!
Hoje continuemos a meditar sobre o Decálogo, aprofundando o tema da idolatria, acerca da qual falamos na semana passada. Agora retomemos o tema, porque é muito importante conhecê-lo. E inspiremo-nos precisamente no ídolo por excelência, o bezerro de ouro, do qual fala o Livro do Êxodo (32, 1-8), acabamos de ouvir um trecho dele. Este episódio tem um contexto específico: o deserto, onde o povo está à espera de Moisés, que subiu ao monte para receber as instruções de Deus.
O que é o deserto? É um lugar onde reinam a precariedade e a insegurança — no deserto não há nada — onde faltam água, alimento, abrigo. O deserto é uma imagem da vida humana, cuja condição é incerta e não possui garantias invioláveis. Esta insegurança gera no homem ansiedades primárias, que Jesus menciona no Evangelho: «Que comeremos? Que beberemos? Com que nos vestiremos?» (Mt 6, 31). São as ansiedades primárias. E o deserto provoca tais ansiedades.
E naquele deserto acontece algo que desencadeia a idolatria. «Moisés tardava a descer da montanha» (Êx 32, 1). Permaneceu ali quarenta dias e o povo perdeu a paciência. Falta o ponto de referência que era Moisés: o líder, o chefe, o guia tranquilizador, e isto torna-se insustentável. Então, o povo pede um deus visível — esta é a armadilha na qual o povo cai — para poder identificar-se e orientar-se. E dizem a Araão: «Faz-nos um deus que marche à nossa frente!», “Faz-nos um chefe, um líder!”. Para evitar a precariedade — a precariedade é o deserto — a natureza humana procura uma religião “descartável”: se Deus não se deixa ver, fazemos para nós um deus sob medida. «Diante do ídolo, não corremos o risco de uma possível chamada que nos faça sair das próprias seguranças, porque os ídolos “têm boca, mas não falam” (Sl 115, 5). Compreendemos assim que o ídolo é um pretexto para se colocar a si mesmo no centro da realidade, na adoração da obra das próprias mãos» (Enc. Lumen fidei, 13).
Araão não sabe opor-se ao pedido do povo e cria um bezerro de ouro. No próximo Oriente antigo o bezerro tinha um sentido duplo: por um lado, representava fecundidade e abundância e por outro, energia e força. Mas antes de tudo é de ouro, por isso é símbolo de riqueza, sucesso, poder e dinheiro. São estes os grandes ídolos: sucesso, poder e dinheiro. São as tentações de sempre! Eis o que é o bezerro de ouro: o símbolo de todos os desejos que dão a ilusão da liberdade e, ao contrário, escravizam, porque o ídolo escraviza sempre. Há o fascínio, e tu deixas-te levar. Aquele fascínio da serpente, que fita o passarinho, o passarinho não consegue mover-se e a serpente apanha-o. Araão não soube opor-se.
Mas tudo nasce da incapacidade de confiar sobretudo em Deus, de voltar a colocar as nossas seguranças n’Ele, de deixar que Ele confira verdadeira profundidade aos desejos do nosso coração. Isto permite sustentar até a debilidade, a incerteza e a precariedade. A referência a Deus fortalece-nos na debilidade, na incerteza e até na precariedade. Sem primado de Deus caímos facilmente na idolatria e contentamo-nos com garantias míseras. Mas esta é uma tentação que nós lemos sempre na Bíblia. E pensai bem nisto: para Deus, não foi muito difícil libertar o povo do Egito; fê-lo com sinais de poder, de amor. Mas a grande obra de Deus foi tirar o Egito do coração do povo, ou seja, tirar a idolatria do coração do povo. E Deus ainda continua a agir para a tirar dos nossos corações. Esta é a grande obra de Deus: tirar “aquele Egito” que nós temos dentro, que é o fascínio da idolatria.
Quando se acolhe o Deus de Jesus Cristo, que de rico se fez pobre por nós (cf. 2 Cor 8, 9), descobre-se então que reconhecer a própria fraqueza não é a desgraça da vida humana, mas a condição para se abrir Àquele que é verdadeiramente forte. Assim, a salvação de Deus entra pela porta da debilidade (cf. 2 Cor 12, 10); é em virtude da própria insuficiência que o homem se abre à paternidade de Deus. A liberdade do homem nasce do deixar que o verdadeiro Deus seja o único Senhor. E isto permite aceitar a própria fragilidade e rejeitar os ídolos do nosso coração.
Nós, cristãos, dirigimos o olhar para Cristo Crucificado (cf. Jo 19, 37), que é frágil, desprezado e despojado de qualquer posse. Mas é n’Ele que se revela o rosto do Deus verdadeiro, a glória do amor, e não a do engano cintilante. Isaías diz: «Fomos curados graças às suas chagas» (53, 5). Fomos sarados precisamente pela fraqueza de um homem que era Deus, pelas suas feridas. E a partir das nossas debilidades podemos abrir-nos à salvação de Deus. A nossa cura vem d’Aquele que se fez pobre, que aceitou a falência, que assumiu até ao fundo a nossa precariedade para a encher de amor e de força. Ele vem para nos revelar a paternidade de Deus; em Cristo a nossa fragilidade já não é uma maldição, mas um lugar de encontro com o Pai e nascente de uma nova força do alto.
Papa Francisco
Catequese na audiência Geral 8.08.2018
Catequese sobre os Mandamentos - 4
Prezados irmãos e irmãs, bom dia!
Ouvimos o primeiro mandamento do Decálogo: «Não terás outros deuses diante da minha face» (Êx 20, 3). É bom refletir sobre o tema da idolatria, que é de grande alcance e atualidade. A ordem proíbe que se façam ídolos[1] ou imagens[2] de qualquer tipo de realidade: [3] com efeito, tudo pode ser usado como ídolo. Referimo-nos a uma tendência humana, que não poupa nem crentes nem ateus. Por exemplo, nós cristãos podemos interrogar-nos: qual é verdadeiramente o meu Deus? É o Amor Uno e Trino ou então a minha imagem, o meu sucesso pessoal, talvez dentro da Igreja? «A idolatria não diz respeito apenas aos falsos cultos do paganismo. Continua a ser uma tentação constante para a fé. Ela consiste em divinizar o que não é Deus» (Catecismo da Igreja Católica, n. 2113).
O que é um “deus” no plano existencial? É aquilo que está no cerne da própria vida e do qual depende o que fazemos e pensamos.[4] Podemos crescer numa família cristã de nome, mas na realidade centrada em pontos de referência alheios ao Evangelho.[5] O ser humano não vive sem se centrar em algo. Eis, então, que o mundo oferece o “supermarket” dos ídolos, que podem ser objetos, imagens, ideias, papéis.
Por exemplo, inclusive a oração. Devemos rezar a Deus, nosso Pai. Recordo que certa vez fui a uma paróquia na diocese de Buenos Aires para celebrar uma Missa e depois devia fazer as crismas noutra paróquia, a 1 km de distância. Fui a pé e atravessei um bonito parque. Mas naquele parque havia mais de 50 mesinhas, cada uma com duas cadeiras e as pessoas sentadas uma em frente da outra. O que faziam? Jogo de cartas. Iam ali “para rezar” ao ídolo. Em vez de rezar a Deus, que é providência do futuro, iam ali porque liam as cartas para ler o futuro. Esta é uma idolatria dos nossos tempos. Pergunto-vos: quantos de vós fostes, para que vos lessem as cartas a fim de ver o futuro? Quantos de vós, por exemplo, fostes para que vos lessem as mãos a fim de ler o futuro, em vez de rezar ao Senhor? Esta é a diferença: o Senhor está vivo; os outros são ídolos, idolatrias que não servem.
Como se desenvolve uma idolatria? O mandamento descreve algumas fases: «Não farás para ti escultura, nem figura alguma [...] / Não te prostrarás diante delas / e não lhes prestarás culto» (Êx 20, 4-5). A palavra “ídolo” em grego deriva do verbo “ver”.[6] O ídolo é uma “visão” que tende a tornar-se uma fixação, uma obsessão. Na realidade, o ídolo é uma projeção de nós mesmos nos objetos ou nos projetos. Por exemplo, é desta dinâmica que se serve a publicidade: não vejo o objeto em si, mas concebo aquele automóvel, aquele smartphone, aquele papel — ou outras coisas — como um meio para me realizar e responder às minhas necessidades essenciais. E procuro isto, falo disso, penso naquilo; a ideia de possuir tal objeto ou de realizar aquele projeto, alcançar essa posição, parece uma via maravilhosa para a felicidade, uma torre para chegar ao céu (cf. Gn 11, 1-9), e tudo se torna funcional para esta meta.
Então, entramos na segunda da fase: «Não te prostrarás diante delas». Os ídolos exigem um culto, rituais; a eles as pessoas prostram-se e sacrificam tudo. Faziam-se sacrifícios humanos aos ídolos na antiguidade, mas também hoje: pela carreira sacrificam-se os filhos, descuidando-os ou simplesmente deixando de os gerar; a beleza exige sacrifícios humanos. Quantas horas diante do espelho! Certas pessoas, determinadas mulheres, quanto gastam para se pintar! Também esta é uma idolatria. Não é negativo pintar-se, mas de modo normal, não para se tornar uma deusa. A beleza exige sacrifícios humanos. A fama requer a imolação de si mesmo, da própria inocência e autenticidade. Os ídolos pedem sangue. O dinheiro rouba a vida e o prazer leva à solidão. As estruturas económicas sacrificam vidas humanas para obter maiores lucros. Pensemos em tantas pessoas desempregadas. Porquê? Porque às vezes acontece que os empresários daquela empresa, dessa firma, decidiram despedir as pessoas, para ganhar mais dinheiro. O ídolo do dinheiro. Vive-se na hipocrisia, fazendo e dizendo o que os outros esperam, porque é o deus da própria afirmação que o impõe. E arruínam-se vidas, destroem-se famílias e abandonam-se jovens nas mãos de modelos arrasadores, contanto que aumente o lucro. Também a droga é um ídolo. Quantos jovens estragam a saúde, até a vida, adorando este ídolo da droga.
Aqui chegamos à terceira e mais trágica fase: «...e não lhes prestarás culto», diz. Os ídolos escravizam. Prometem a felicidade, mas não a dão; e passamos a viver por aquela coisa, por essa visão, arrebatados num vórtice autodestruidor, à espera de um resultado que nunca chega.
Caros irmãos e irmãs, os ídolos prometem a vida, mas na realidade tiram-na. O Deus verdadeiro não pede a vida, mas doa-a, concede-a. O Deus verdadeiro não oferece uma projeção do nosso sucesso, mas ensina a amar. O Deus verdadeiro não pede filhos, mas dá o seu Filho por nós. Os ídolos projetam hipóteses futuras e fazem desprezar o presente; o Deus verdadeiro ensina a viver na realidade de cada dia, no concreto, não com ilusões sobre o porvir: hoje, amanhã e depois de amanhã, a caminho do futuro. A concretude do Deus verdadeiro contra a liquidez dos ídolos. Hoje convido-vos a pensar: quantos ídolos tenho, ou qual é o meu ídolo preferido? Pois reconhecer as próprias idolatrias é um início da graça, e põe no caminho do amor. Com efeito, o amor é incompatível com a idolatria: se algo se torna absoluto e intocável, então é mais importante que um cônjuge, um filho ou uma amizade. O apego a um objeto ou a uma ideia torna-nos cegos ao amor. E assim, para ir atrás dos ídolos, de um ídolo, podemos chegar a renegar o pai, a mãe, os filhos, a esposa, o esposo, a família... as coisas mais queridas. O apego a um objeto ou a uma ideia torna-nos cegos ao amor. Levai isto no coração: os ídolos roubam-nos o amor, os ídolos tornam-nos cegos ao amor, e para amar autenticamente é preciso libertar-se de todos os ídolos. Qual é o meu ídolo? Elimina-o e lança-o da janela!
Papa Francisco
Catequese na audiência geral 1.08.2018
[1] O termo Pesel indica «uma imagem divina originariamente esculpida na madeira ou na pedra, e sobretudo no metal» (L. Koehler — W. Baumgartner, The Hebrew and Aramaic Lexicon of the Old Testament, vol. 3, p. 949).
[2] O vocábulo Temunah tem um significado muito vasto, reconduzível a “semelhança, forma”; portanto, a proibição é muito ampla e estas imagens podem ser de todos os tipos (cf. L. Koehler — W. Baumgartner, Op. cit., vol. 1, p. 504).
[3] O comando não proíbe as imagens em si mesmas — o próprio Deus ordenará a Moisés que realize os querubins de ouro para a tampa da arca (cf. Êx 25, 18) e uma serpente de bronze (cf. Nm 21, 8) — mas proíbe adorá-las e prestar-lhes culto, ou seja, todo o processo de deificação de algo, não só a reprodução.
[4] A Bíblia judaica refere-se às idolatrias cananeias com o termo Ba’al, que significa “senhorio, relação íntima, realidade da qual se depende”. O ídolo é o que domina, arrebata o coração e se torna eixo da vida (cf. Theological Lexicon of the Old Testament, vol. 1, pp. 247-251).
[5] Cf. Catecismo da Igreja Católica, n. 2114: «A idolatria é uma perversão do sentido religioso inato no homem. Idólatra é aquele que “refere a sua indestrutível noção de Deus seja ao que for, que não a Deus” (Orígenes, Contra Celsum, 2, 40)».
[6] A etimologia do grego eidolon, derivada de eidos, é da raiz weid, que significa ver (cf. Grande Lessico dell’Antico Testamento, Bréscia 1967, vol. III, p. 127)..
Catequese sobre os Mandamentos - 3
Estimados irmãos e irmãs, bom dia!
Hoje, esta audiência terá lugar como na quarta-feira passada. Na Sala Paulo VI há muitos doentes, e para os proteger do calor, a fim de que estivessem mais confortáveis, estão ali. Mas acompanharão a audiência através do grande ecrã, e também nós com eles, ou seja, não há duas audiências. Há uma só. Saudemos os enfermos na Sala Paulo VI. E continuemos a falar dos mandamentos que, como dissemos, mais do que mandamentos, são as palavras de Deus ao seu povo, para que caminhe bem; palavras amorosas de um Pai. As dez Palavras começam assim: «Eu sou o Senhor teu Deus, que te fez sair do Egito, da casa da servidão» (Êx 20, 2). Este início pareceria não estar relacionado com verdadeiras leis que seguem. Mas não é assim!
Qual o motivo desta proclamação que Deus faz de si mesmo e da libertação? Porque só se chega ao Monte Sinai depois de ter atravessado o Mar Vermelho: primeiro, o Deus de Israel salva, e depois pede confiança.[1] Ou seja: o Decálogo começa pela generosidade de Deus. Deus nunca pede sem dar primeiro. Jamais! primeiro salva, primeiro doa e depois pede. Assim é o nosso Pai, o bom Deus.
E compreendemos a importância da primeira declaração: «Eu sou o Senhor teu Deus». Há um possessivo, existe uma relação, uma pertença. Deus não é um estranho: é o teu Deus.[2] Isto ilumina o Decálogo inteiro e revela também o segredo do agir cristão, porque é a própria atitude de Jesus que diz: «Assim como o Pai me ama, também Eu vos amo» (Jo 15, 9). Cristo é o Amado do Pai e ama-nos com este amor. Ele não começa por si mesmo, mas pelo Pai. Muitas vezes as nossas obras falham, porque começamos por nós mesmos, e não pela gratidão. E onde chega quem começa por si mesmo? Chega a si próprio! É incapaz de progredir, volta para si mesmo. É exatamente aquela atitude egoísta que, brincando, as pessoas dizem: “Essa pessoa é um eu, eu comigo mesmo e para mim”. Sai de si e volta para si.
A vida cristã é antes de tudo a resposta grata a um Pai generoso. Os cristãos que seguem apenas “deveres” denunciam que não têm uma experiência pessoal daquele Deus que é “nosso”. Devo fazer isto, isso, aquilo... Somente deveres. Mas falta-te algo! Qual é o fundamento deste dever? O fundamento deste dever é o amor de Deus Pai, que primeiro dá, depois manda. Colocar a lei antes da relação não ajuda o caminho de fé. Como pode um jovem desejar ser cristão, se nós começamos pelas obrigações, compromissos, coerências, e não pela libertação? Mas ser cristão é um caminho de libertação! Os mandamentos libertam-te do teu egoísmo, e libertam-te porque há o amor de Deus que te faz ir em frente. A formação cristã não está baseada na força de vontade, mas no acolhimento da salvação, no deixar-se amar: primeiro o Mar Vermelho, depois o Monte Sinai. Primeiro a salvação: Deus salva o seu povo no Mar Vermelho; depois, no Sinai diz-lhe que deve fazer. Mas aquele povo sabe que Ele faz tais gestos porque foi salvo por um Pai que o ama.
A gratidão é um traço caraterístico do coração visitado pelo Espírito Santo; para obedecer a Deus é preciso, antes de tudo, recordar os seus benefícios. São Basílio diz: «Quem não deixa que tais benefícios caiam no esquecimento, orienta-se para a boa virtude e para todas as obras de justiça» (Regras breves, 56). Onde nos leva tudo isto? A fazer exercício de memória:[3] quantas maravilhas fez Deus por cada um de nós! Como é generoso o nosso Pai celestial! Agora gostaria de vos propor um pequeno exercício, em silêncio, cada qual responda no seu coração. Quantas maravilhas fez Deus por mim? Esta é a pergunta. Cada um de nós responda em silêncio. Quantas maravilhas fez Deus por mim? E esta é a libertação de Deus. Deus faz muitas maravilhas e liberta-nos.
E no entanto, alguém pode sentir que ainda não viveu uma verdadeira experiência da libertação feita por Deus. Isto pode acontecer. Pode ser que alguém olhe para dentro de si e só encontre sentido de dever, uma espiritualidade de servo, e não de filho. Que fazer em tal caso? Como faz o povo eleito. O livro do Êxodo diz: «Os israelitas, que ainda gemiam sob o peso da servidão, clamaram e, do fundo da própria escravidão, subiu o seu clamor até Deus. Deus ouviu os seus gemidos, lembrando-se da sua aliança com Abraão, Isaac e Jacob. Deus olhou para os israelitas e reconheceu-os» (Êx 2, 23-25). Deus pensa em mim!
A ação libertadora de Deus, inserida no início do Decálogo — ou seja, dos mandamentos — é a resposta a esta lamentação. Nós não nos salvamos sozinhos, mas de nós pode brotar um grito de ajuda: “Senhor, salvai-me; Senhor, ensinai-me o caminho; Senhor, acariciai-me; Senhor, concedei-me um pouco de júbilo”. Trata-se de um clamor que pede ajuda. Compete-nos isto: pedir para ser libertados do egoísmo, do pecado, das correntes da escravidão. Este brado é importante, é oração, é consciência daquilo que ainda existe de oprimido e não libertado em nós. Existem muitas coisas não libertadas na nossa alma. “Salvai-me, ajudai-me, libertai-me!”. Esta é uma bonita prece ao Senhor. Deus espera este grito, porque pode e quer quebrar as nossas correntes; Deus não nos chamou à vida para que permanecêssemos oprimidos, mas para ser livres, e para vivermos na gratidão, obedecendo com alegria Àquele que nos ofereceu tanto, infinitamente mais do que poderíamos dar-lhe. Isto é bonito! Que Deus seja sempre bendito por tudo o que fez, faz e há de fazer em nós!
Papa Francisco
Catequese na audiência Geral
27 de junho de 2018
Notas
[1] Na tradição rabínica encontra-se um texto iluminador a este propósito: «Por que as dez palavras não foram proclamadas no início da Torá? [...] Com o que se pode comparar? A um tal que, assumindo o governo de uma cidade, perguntou aos habitantes: “Posso reinar sobre vós?”. Mas eles replicaram: “Que nos fizeste de bem, para que pretendas reinar sobre nós?”. Então, que fez? Construiu-lhes muros de defesa e uma canalização para abastecer a cidade de água; depois, combateu guerras a favor deles. E quando voltou a perguntar: “Posso reinar sobre vós?”, eles retorquiram-lhe: “Sim, sim!”. Assim também o Lugar fez Israel sair do Egito, dividiu o mar para eles, fez com que lhes descesse o maná e subisse a água do poço, levou até eles codornizes em voo e finalmente combateu para eles a guerra contra Amalec. E quando os interrogou: “Posso reinar sobre vós?”, eles responderam-lhe: “Sim, sim!”» (Il dono della Torah. Commento al decalogo di Es 20 nella Mekilta di R. Ishamael, Roma 1982, p. 49).
[2] Cf. Bento XVI, Carta Enc. Deus caritas est, 17: «A história do amor entre Deus e o homem consiste precisamente no facto de que esta comunhão de vontade cresce em comunhão de pensamento e de sentimento e, assim, o nosso querer e a vontade de Deus coincidem cada vez mais: a vontade de Deus deixa de ser para mim uma vontade estranha que me impõem de fora os mandamentos, mas é a minha própria vontade, baseada na experiência de que realmente Deus é mais íntimo para mim mesmo de quanto o seja eu próprio. Cresce então o abandono em Deus, e Deus torna-se a nossa alegria».
[3] Cf. Homilia da Missa em Santa Marta, 7 de outubro de 2014: «[Que significa rezar?]. É fazer memória diante de Deus da nossa história. Porque a nossa história [é] a história do seu amor por nós». Cf. Detti e fatti dei padri del deserto, Milão 1975, p. 71: «O esquecimento é a raiz de todos os males».
Prezados irmãos e irmãs, bom dia!
Esta audiência realiza-se em dois lugares: nós, aqui na praça; e na sala Paulo VI há mais de 200 doentes, que acompanham a audiência através do grande ecrã. Todos juntos formamos uma comunidade. Saudemos com um aplauso quantos estão na Sala.
Na quarta-feira passada demos início a um novo ciclo de catequeses sobre os mandamentos. Vimos que o Senhor Jesus não veio para abolir a Lei, mas para a cumprir. Contudo, devemos entender melhor esta perspetiva.
Na Bíblia, os mandamentos não vivem por si sós, mas fazem parte de um relacionamento, de uma relação. O Senhor Jesus não veio para abolir a Lei, mas para a cumprir. Existe esta relação da Aliança[1] entre Deus e o seu Povo. No início do capítulo 20 do livro do Êxodo lemos — e isto é importante — «Deus pronunciou todas estas palavras» (v. 1).
Parece uma abertura como outras, mas na Bíblia nada é banal. O texto não diz: “Deus pronunciou estes mandamentos”, mas «estas palavras». A tradição judaica chamará sempre ao Decálogo “as dez Palavras”. E o termo “decálogo” quer dizer exatamente isto.[2]Contudo, têm forma de leis, objetivamente são mandamentos. Portanto, por que o Autor sagrado usa, precisamente aqui, o termo “dez palavras”? Por que não diz “dez mandamentos”?
Que diferença existe entre um comando e uma palavra? O comando é uma comunicação que não requer o diálogo. A palavra, ao contrário, é o meio essencial do relacionamento como diálogo. Deus Pai cria por meio da sua palavra, e o seu Filho é a Palavra que se fez carne. O amor alimenta-se de palavras, como também a educação, ou a colaboração. Duas pessoas que não se amam, não conseguem comunicar-se. Quando alguém fala ao nosso coração, a nossa solidão acaba. Recebe uma palavra, verifica-se a comunicação, e os mandamentos são palavras de Deus: Deus comunica-se nestas dez Palavras e aguarda a nossa resposta.
Uma coisa é receber uma ordem, outra coisa é sentir que alguém procura falar conosco. Um diálogo é muito mais que a comunicação de uma verdade. Eu posso dizer-vos: “Hoje é o último dia de primavera, primavera quente, mas hoje é o último dia”. Esta é uma verdade, não um diálogo. Mas se eu vos disser: “Que pensais desta primavera?”, começo um diálogo. Os mandamentos são um diálogo. A comunicação realiza-se pelo prazer de falar e pelo bem concreto que se comunica entre aqueles que se amam por meio das palavras. É um bem que não consiste em coisas, mas nas próprias pessoas que doam reciprocamente no diálogo (cf. Exort. Apost. Evangelii gaudium, 142).
Mas esta diferença não é algo artificial. Vejamos o que aconteceu no início. O tentador, o diabo, quer enganar o homem e a mulher neste ponto: quer convencê-los de que Deus lhes proibiu comer o fruto da árvore do bem e do mal, para os manter submissos. O desafio consiste exatamente nisto: a primeira norma que Deus ofereceu ao homem foi a imposição de um déspota que proíbe e obriga, ou foi o esmero de um pai que cuida dos seus filhos e os protege contra a autodestruição? É uma palavra, ou um comando? A mais trágica das várias mentiras que a serpente diz a Eva é a sugestão de uma divindade invejosa — “Mas não, Deus é invejoso de vós” — de uma divindade possessiva — “Deus não quer que tenhais liberdade”. Os acontecimentos demonstram dramaticamente que a serpente mentiu (cf. Gn 2, 16-17; 3, 4-5), levando a crer que uma palavra de amor fosse uma ordem.
O homem está diante desta encruzilhada: Deus impõe-me as coisas, ou cuida de mim? Os seus mandamentos são apenas uma lei, ou contêm uma palavra, para cuidar de mim? Deus é patrão ou Pai? Deus é Pai: nunca vos esqueçais disto! Até nas situações mais negativas, pensai que temos um Pai que ama todos nós. Somos vassalos ou filhos? Este combate, dentro e fora de nós, apresenta-se continuamente: temos que escolher muitas vezes entre uma mentalidade de escravos e uma mentalidade de filhos. A ordem é do patrão, a palavra é do Pai.
O Espírito Santo é um Espírito de filhos, é o Espírito de Jesus. Um espírito de escravos não pode deixar de receber a Lei de modo opressivo, e pode produzir dois resultados opostos: ou uma vida feita de deveres e de obrigações, ou então uma reação violenta de rejeição. Todo o Cristianismo é a passagem da letra da Lei para o Espírito que vivifica (cf. 2 Cor 3, 6-17). Jesus é a Palavra do Pai, não a condenação do Pai. Jesus veio para salvar com a sua Palavra, não para nos condenar.
Vê-se quando um homem ou uma mulher viveram ou não esta passagem. As pessoas dão-se conta quando o cristão raciocina como filho ou como escravo. E nós mesmos recordamos que os nossos educadores cuidaram de nós como pais e mães, ou se somente nos impuseram regras. Os mandamentos são o caminho para a liberdade, porque constituem a palavra do pai que nos liberta neste caminho.
O mundo não tem necessidade de legalismo, mas de cuidado. Precisa de cristãos com coração de filhos.[3] Há necessidade de cristãos com coração de filhos: não vos esqueçais disto!
Papa Francisco
Catequese na audiência geral 20.06.2018
Catequese sobre os mandamentos - 2
[1] O cap. 20 do livro do Êxodo é precedido pela oferta da Aliança, no cap. 19, onde é central o pronunciamento: «Agora, pois, se obedecerdes à minha voz e guardardes a minha aliança, sereis o meu povo particular entre todos os povos. Toda a terra é minha, mas para mim vós sereis um reino de sacerdotes, uma nação consagrada» (Êx 19, 5-6). Esta terminologia encontra uma síntese emblemática em Lv 26, 12: «Caminharei no meio de vós: serei o vosso Deus e vós sereis o meu povo» e chegará até ao nome prenunciado do Messias, em Isaías 7, 14 ou seja, Emanuel, que leva a Mateus: «Eis que a Virgem conceberá e dará à luz um Filho, que se chamará Emanuel, que significa: “Deus conosco”» (Mt 1, 23). Tudo isto indica a natureza essencialmente relacional da fé judaica e, ao máximo grau, da fé cristã.
[2] Cf. também Êx 34, 28b: «E o Senhor escreveu nas tábuas o texto da aliança, as dez palavras».
[3] Cf. João Paulo II, Carta Enc. Veritatis splendor, 12: «O dom do Decálogo é promessa e sinal da Nova Aliança, quando a lei for nova e definitivamente escrita no coração do homem (cf. Jr 31, 31-34), substituindo a lei do pecado, que aquele coração tinha deturpado (cf. Jr 17, 1). Então será dado “um coração novo”, porque nele habitará “um espírito novo”, o Espírito de Deus (cf. Ez 36, 24-28)».
Estimados irmãos e irmãs, bom dia!
Hoje é a festa de Santo Antônio de Pádua. Quem de vós se chama Antônio? Um aplauso a todos os “Antônios”. Hoje começamos um novo itinerário de catequeses sobre o tema dos mandamentos. Os mandamentos da lei de Deus. Para o introduzir, inspiramo-nos no trecho que acabamos de ouvir: o encontro entre Jesus e um homem — é um jovem — que, de joelhos, lhe pergunta como pode herdar a vida eterna (cf. Mc 10, 17-21). E naquela pergunta há o desafio de cada existência, também da nossa: o desejo de uma vida plena, infinita. Mas como fazer para a alcançar? Que caminho percorrer? Viver verdadeiramente, viver uma existência nobre... Quantos jovens procuram “viver” e depois destroem-se, indo atrás de coisas efémeras.
Alguns pensam que é melhor suprimir este impulso — o impulso de viver — porque é perigoso. Gostaria de dizer, especialmente aos jovens: o nosso pior inimigo não são os problemas concretos, por mais sérios e dramáticos que sejam: o maior perigo da vida é um mau espírito de adaptação, que não é mansidão nem humildade, mas mediocridade, pusilanimidade.[1] Um jovem medíocre tem futuro ou não? Não! Permanece ali, não cresce, não terá sucesso. A mediocridade ou a pusilanimidade. Aqueles jovens que têm medo de tudo: “Não, eu sou assim...”. Estes jovens não irão em frente. Mansidão, fortaleza e nenhuma pusilanimidade, nenhuma mediocridade. O Beato Pier Giorgio Frassati — que era um jovem — dizia que é preciso viver, não ir vivendo.[2] Os medíocres vão vivendo. Viver com a força da vida. É necessário pedir ao Pai celeste para os jovens de hoje o dom da saudável inquietação. Mas em casa, nos vossos lares, em cada família, quando se vê um jovem sentado o dia inteiro, às vezes a mãe e o pai pensam: “Mas ele está doente, tem algo”, e levam-no ao médico. A vida do jovem é ir em frente, ser desassossegado, a saudável inquietação, a capacidade de não se contentar com uma vida sem beleza, sem cor. Se os jovens não forem famintos de vida autêntica, pergunto-me, que fim terá a humanidade? Onde vai parar a humanidade com jovens quietos, e não inquietos?
A pergunta daquele homem do Evangelho que ouvimos ressoa dentro de cada um de nós: como se encontra a vida, a vida em abundância, a felicidade? Jesus responde: «Tu conheces os mandamentos» (v. 19), e cita uma parte do Decálogo. É um processo pedagógico, com o qual Jesus quer orientar para um lugar específico; com efeito, da sua pergunta já é claro que aquele homem não tem a vida plena, procura mais, está inquieto. Portanto, o que deve entender? Diz: «Mestre, «tenho observado tudo isto desde a minha mocidade!» (v. 20).
Como se passa da mocidade para a maturidade? Quando se começa a aceitar os próprios limites. Tornamo-nos adultos quando nos relativizamos e adquirimos a consciência daquilo «que falta» (cf. v. 21). Este homem é obrigado a reconhecer que tudo o que pode “fazer” não supera um “teto”, não vai além de uma margem.
Como é bom ser homens e mulheres! Como é preciosa a nossa existência! E no entanto, existe uma verdade que na história dos últimos séculos o homem rejeitou frequentemente, com consequências trágicas: a verdade dos seus limites.
No Evangelho, Jesus diz algo que nos pode ajudar: «Não julgueis que vim abolir a Lei ou os Profetas. Não vim para os abolir, mas sim para os levar a cumprimento» (Mt 5, 17). O Senhor Jesus concede o cumprimento, Ele veio para isto. Aquele homem devia chegar ao limiar de um salto, onde se abre a possibilidade de deixar de viver de si mesmo, das próprias obras, dos próprios bens e — precisamente porque falta a vida plena — deixar tudo para seguir o Senhor.[3] Analisando bem, no convite final de Jesus — imenso, maravilhoso — não há a proposta da pobreza, mas da verdadeira riqueza: «Só te falta uma coisa; vai, vende tudo o que tens e dá-o aos pobres, e terás um tesouro no céu. Depois, vem e segue-me!» (v. 21).
Quem, podendo escolher entre um original e uma cópia, escolheria a cópia? Eis o desafio: encontrar o original da vida, não a cópia. Jesus não oferece sucedâneos, mas vida verdadeira, amor verdadeiro, riqueza verdadeira! Como poderão os jovens seguir-nos na fé, se não nos virem escolher o original, se nos virem habituados às meias-medidas? É desagradável encontrar cristãos medianos, cristãos — permiti-me a palavra — “anões”; crescem até a uma certa estatura e depois não; cristãos com o coração reduzido, fechado. É desagradável encontrar isto. É necessário o exemplo de alguém que me convida a um “além”, a um “acréscimo”, a crescer um pouco. Santo Inácio denominava-o “magis”, «o fogo, o fervor da ação, que desperta os sonolentos».[4]
O caminho do que falta passa por aquilo que existe. Jesus não veio para abolir a Lei ou os Profetas, mas para levar a cumprimento. Devemos partir da realidade para dar o salto naquilo “que falta”. Temos que sondar o ordinário para nos abrirmos ao extraordinário.
Nestas catequeses pegaremos nas duas tábuas de Moisés como cristãos, de mãos dadas com Jesus, a fim de passar das ilusões da juventude para o tesouro que está no céu, caminhando atrás dele. Em cada uma daquelas leis, antigas e sábias, descobriremos a porta aberta pelo Pai que está nos céus para que o Senhor Jesus, que a cruzou, nos conduza à vida verdadeira. A sua vida. A vida dos filhos de Deus!
Papa Francisco
Catequese na audiência geral de 13.06.2018
[1] Os Padres falam de pusilanimidade (oligopsychía). São João Damasceno define-a como «o receio de realizar uma ação» (Exposição exata da fé ortodoxa, II, 15), e São João Clímaco acrescenta que «a pusilanimidade é uma disposição pueril, numa alma que já não é jovem» (A Escada, XX, 1, 2).
[2] Cf. Carta a Isidoro Bonini, 27 de fevereiro de 1925.
[3] «O olho foi criado para a luz, o ouvido para os sons, cada coisa para a sua finalidade, e o desejo da alma para se lançar rumo a Cristo» (Nicolau Cabasilas, A vida em Cristo, II, 90).
[4] Discurso à XXXVI Congregação Geral da Companhia de Jesus, 24 de outubro de 2016: «Trata-se do “magis”, do plus que leva Inácio a inaugurar processos, a acompanhá-los e a avaliar a sua real incidência na vida das pessoas, em matéria de fé, ou de justiça, ou a misericórdia e caridade».
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