Catequese sobre a Carta aos Gálatas 10. Cristo nos libertou
Estimados irmãos e irmãs, bom dia!
Hoje retomamos a nossa reflexão sobre a Carta aos Gálatas. Nela, São Paulo escreveu palavras imortais sobre a liberdade cristã. O que é a liberdade cristã? Reflitamos hoje sobre este tema: a liberdade cristã.
A liberdade é um tesouro que só é verdadeiramente apreciado quando o perdemos. Para muitos de nós, habituados a viver em liberdade, muitas vezes parece mais um direito adquirido do que um dom e uma herança a ser preservada. Quantos desentendimentos em torno do tema da liberdade, e quantas visões diferentes se confrontaram ao longo dos séculos!
No caso dos Gálatas, o Apóstolo não podia suportar que esses cristãos, depois de terem conhecido e aceitado a verdade de Cristo, se deixassem atrair por propostas enganosas, passando da liberdade à escravidão: da presença libertadora de Jesus à escravidão do pecado, do legalismo, etc. Ainda hoje o legalismo é um nosso problema, o problema de muitos cristãos que se refugiam no legalismo, na casuística. Portanto, Paulo convida os cristãos a permanecerem firmes na liberdade que receberam através do batismo, sem se deixarem colocar de novo sob o «jugo da escravidão» (Gl 5, 1). Ele é justamente ciumento da liberdade. Está ciente de que alguns «falsos irmãos» – define-os deste modo – «que se intrometeram e entraram a espiar – como escreve – a liberdade que temos em Jesus Cristo a fim de nos reduzir à escravidão» (Gl 2, 4), voltar atrás, e Paulo não pode tolerar isto. A pregação que impede a liberdade em Cristo nunca seria evangélica: poderia ser pelagiana ou jansenista ou algo do género, mas não seria evangélica. Nunca se pode forçar em nome de Jesus, não se pode fazer de ninguém um escravo em nome de Jesus que nos liberta. A liberdade é um dom que nos é dado no batismo.
Mas o ensinamento de São Paulo sobre a liberdade é sobretudo positivo. O Apóstolo propõe o ensinamento de Jesus, que também encontramos no Evangelho de João: «Se permanecerdes na minha palavra, sereis meus verdadeiros discípulos; conhecereis a verdade e a verdade libertar-vos-á» (8, 31-32). Por conseguinte, acima de tudo, o apelo consiste em permanecer em Jesus, fonte da verdade que nos liberta. Portanto, a liberdade cristã baseia-se em dois pilares fundamentais: primeiro, a graça do Senhor Jesus; segundo, a verdade que Cristo nos revela e que é Ele próprio.
Em primeiro lugar, é o dom do Senhor. A liberdade que os Gálatas receberam – e nós como eles através do batismo – é o fruto da morte e ressurreição de Jesus. O Apóstolo concentra toda a sua pregação em Cristo, que o libertou dos vínculos com a sua vida passada: só dele brotam os frutos da nova vida de acordo com o Espírito. De facto, a liberdade mais verdadeira, a liberdade da escravidão do pecado, veio da Cruz de Cristo. Estamos livres da escravidão do pecado através da Cruz de Cristo. Precisamente nela, onde Jesus se deixou pregar, onde se fez escravo, Deus colocou a fonte da libertação do homem. Isto nunca deixa de nos surpreender: que o lugar onde somos despojados de toda a liberdade, nomeadamente a morte, pode tornar-se a fonte da liberdade. Mas este é o mistério do amor de Deus: não é facilmente compreendido, é vivido. O próprio Jesus anunciou-o quando disse: «O Pai ama-me, porque dou a minha vida para a retomar. Ninguém me tira. Sou Eu que a dou por Mim mesmo. Tenho poder para a dar e para tornar a tomá-la» (Jo 10, 17-18). Jesus realiza a sua plena liberdade ao entregar-se à morte; ele sabe que só desta forma pode obter vida para todos.
Paulo, como sabemos, viveu pessoalmente este mistério de amor. É por isso que diz aos Gálatas, com uma expressão extremamente audaz: «Fui crucificado com Cristo» (Gl 2, 19). Nesse ato de união suprema com o Senhor, sabe que recebeu o maior dom da sua vida: a liberdade. De facto, na cruz pregou «a carne com as suas paixões e desejos» (5, 24). Compreendemos quanto a fé animava o Apóstolo, quanto era grande a sua intimidade com Jesus e enquanto, por um lado, sentimos que nos falta isso, por outro, o testemunho do Apóstolo encoraja-nos a ir em frente nesta vida livre. O cristão é livre, deve ser livre e é chamado a não voltar a ser escravo de preceitos, de coisas estranhas.
O segundo pilar da liberdade é a verdade. Também neste caso é necessário recordar que a verdade da fé não é uma teoria abstrata, mas a realidade do Cristo vivo, que toca diretamente o significado quotidiano e global da vida pessoal. Quantas pessoas que não estudaram, nem sequer sabem ler nem escrever, mas compreenderam bem a mensagem de Cristo, têm esta sabedoria que as liberta. É a sabedoria de Cristo que entrou através do Espírito Santo no batismo. Quantas pessoas encontramos que vivem a vida de Cristo mais do que os grandes teólogos, por exemplo, oferecendo um testemunho precioso da liberdade do Evangelho. A liberdade torna-nos livres na medida em que transforma a vida de uma pessoa e a encaminha para o bem. Para sermos verdadeiramente livres, precisamos não só de nos conhecer a nós mesmos, a nível psicológico, mas sobretudo de sermos nós mesmos verdade, a um nível mais profundo. E ali, no coração, abrimo-nos à graça de Cristo. A verdade deve inquietar-nos – voltemos a esta palavra cristã: inquietar. Sabemos que há cristãos que nunca ficam inquietos: vivem sempre iguais, não há movimento nos seus corações, não há inquietude. Porquê? Porque a inquietação é o sinal de que o Espírito Santo age dentro de nós, e a liberdade é ativa, suscitada pela graça do Espírito Santo. É por isso que digo que a liberdade deve inquietar-nos, deve continuamente fazer-nos perguntas, para que possamos ir cada vez mais a fundo no que realmente somos. Desta forma, descobrimos que o caminho para a verdade e a liberdade é cansativo e dura a vida inteira. É difícil permanecer livre, é difícil; mas não é impossível. Coragem, levemos isto por diante, far-nos-á bem. É um caminho no qual somos guiados e apoiados pelo Amor que vem da Cruz: o Amor que nos revela a verdade e nos dá liberdade. E este é o caminho para a felicidade. A liberdade torna-nos livres, torna-nos alegres, torna-nos felizes.
Papa Francisco
Catequese na audiência geral 06.10.21
Catequese sobre a Carta aos Gálatas - 9. A vida na fé
Estimados irmãos e irmãs, bom dia!
No nosso percurso para compreender melhor o ensinamento de São Paulo, encontramo-nos hoje com um tema difícil, mas importante, o da justificação. O que é a justificação? Nós, como pecadores, tornámo-nos justos. Quem nos tornou justos? Este processo de mudança é a justificação. Nós, perante Deus, somos justos. É verdade que temos os nossos pecados pessoais, mas na base somos justos. Esta é a justificação. Houve muitos debates sobre este assunto, para encontrar a interpretação mais coerente com o pensamento do Apóstolo e, como muitas vezes acontece, houve também posições opostas. Na Carta aos Gálatas, bem como na Carta aos Romanos, Paulo insiste no facto de que a justificação vem da fé em Cristo. “Mas, eu sou justo porque cumpro todos os mandamentos”. Sim, mas a justificação não vem disto, vem antes: alguém te justificou, alguém te tornou justo perante Deus. “Sim, mas sou pecador!”. Sim, és justo, mas pecador, és justo na base. Quem te tornou justo? Jesus Cristo. Esta é a justificação.
O que está por detrás da palavra “justificação”, que é tão decisiva para a fé? Não é fácil chegar a uma definição completa, mas na totalidade do pensamento de São Paulo podemos simplesmente dizer que a justificação é a consequência da «misericórdia de Deus que oferece o perdão» (Catecismo da Igreja Católica, n. 1990). E este é o nosso Deus, tão bom, misericordioso, paciente, cheio de misericórdia, que continuamente doa o perdão, continuamente. Ele perdoa, e a justificação é Deus que perdoa desde o início cada um, em Cristo. A misericórdia de Deus que dá o perdão. De facto, através da morte de Jesus – e isto deve ser frisado: através da morte de Jesus – Deus destruiu o pecado e doou-nos o perdão e a salvação de uma forma definitiva. Assim justificados, os pecadores são acolhidos por Deus e reconciliados com Ele. É como um regresso à relação original entre o Criador e a criatura, antes que interviesse a desobediência do pecado. Portanto, a justificação que Deus realiza permite que recuperemos a inocência perdida com o pecado. Como ocorre a justificação? Responder a esta pergunta é descobrir outra novidade no ensinamento de São Paulo: a justificação ocorre por graça. Só pela graça: fomos justificados por pura graça. “Mas não posso, como fazem alguns, ir ter com o juiz e pagar para que ele me dê a justiça?”. Não, nisto não se pode pagar, pagou alguém por todos nós: Cristo. E de Cristo que morreu por nós vem aquela graça que o Pai concede a todos: a justificação vem pela graça.
O Apóstolo tem sempre em mente a experiência que mudou a sua vida: o encontro com Jesus ressuscitado no caminho de Damasco. Paulo tinha sido um homem orgulhoso, religioso e zeloso, convencido de que a justiça consistia na observância escrupulosa dos preceitos. Agora, porém, foi conquistado por Cristo, e a fé n’Ele transformou-o até às profundezas, permitindo-lhe descobrir uma verdade até então escondida: não somos nós que nos tornamos justos pelos nossos próprios esforços – não: não somos nós; mas é Cristo com a sua graça que nos torna justos. Assim Paulo, para ter um conhecimento pleno do mistério de Jesus, está disposto a renunciar a tudo aquilo do que antes era rico (cf. Fl 3, 7), pois descobriu que só a graça de Deus o salvou. Fomos justificados, fomos salvos por mera graça, não pelos nossos merecimentos. E isto dá-nos grande confiança. Somos pecadores, sim; mas seguimos o caminho da vida com esta graça de Deus que nos justifica cada vez que pedimos perdão. Mas não justifica naquele momento: já estamos justificados, mas vem perdoar-nos outra vez.
Para o Apóstolo, a fé tem um valor que abrange tudo. Toca cada momento e cada aspecto da vida do crente: desde o batismo até à partida deste mundo, tudo está impregnado pela fé na morte e ressurreição de Jesus, que concede a salvação. A justificação pela fé enfatiza a prioridade da graça, que Deus oferece a todos os que acreditam no seu Filho sem distinção alguma.
Contudo, não devemos concluir que para Paulo a Lei mosaica já não tenha valor; pelo contrário, continua a ser um dom irrevogável de Deus, é – escreve o Apóstolo – «santa» (Rm 7, 12). Inclusive para a nossa vida espiritual é essencial observar os mandamentos, mas também aqui não podemos confiar na nossa própria força: a graça de Deus que recebemos em Cristo é fundamental, aquela graça que nos vem da justificação que Cristo nos concedeu, que já pagou por nós. Dele recebemos aquele amor gratuito que nos permite, por nossa vez, amar de modo concreto.
Neste contexto, é bom recordar o ensinamento do Apóstolo Tiago, que escreve: «O homem é justificado pelas obras e não somente segundo a fé – poderia parecer o contrário, mas não é – […] Assim como o corpo sem alma é morto, assim também a fé sem obras é morta» (Tg 2, 24.26). A justificação, se não florescer com as nossas obras, ficará ali, debaixo da terra, como morta. Existe, mas nós devemos atuá-la com as nossas obras. Assim, as palavras de Tiago complementam o ensino de Paulo. Por conseguinte, para ambos a resposta da fé exige que sejamos ativos no amor a Deus e no amor ao próximo. Por que “ativos naquele amor”? Porque aquele amor nos salvou a todos, justificou-nos gratuitamente, de graça!
A justificação insere-nos na longa história da salvação, que mostra a justiça de Deus: perante as nossas contínuas quedas e insuficiências, Ele não se resignou, mas quis tornar-nos justos e fê-lo pela graça, através do dom de Jesus Cristo, da sua morte e ressurreição. Algumas vezes mencionei como é o caminho de Deus, qual é o estilo de Deus, e disse-o em três palavras: o estilo de Deus é proximidade, compaixão e ternura. Ele está sempre perto de nós, é compassivo e terno. E a justificação é precisamente a maior proximidade de Deus a nós, homens e mulheres, a maior compaixão de Deus por nós, homens e mulheres, a maior ternura do Pai. A justificação é este dom de Cristo, da morte e ressurreição de Cristo que nos liberta. “Mas, Padre, sou pecador, roubei...”. Sim, mas na base és justo. Deixa que Cristo implemente essa justificação. Não estamos condenados, na base, não: somos justos. Permiti-me a expressão: somos santos, na base. Mas depois, pelas nossas ações, tornamo-nos pecadores. Mas, na base, somos santos: deixemos que a graça de Cristo se eleve e que a justiça, aquela justificação nos dê forças para ir em frente. Assim, a luz da fé permite-nos reconhecer quão infinita é a misericórdia de Deus, a graça que age para o nosso bem. Mas a mesma luz mostra-nos também a responsabilidade que nos foi confiada de colaborar com Deus na sua obra de salvação. O poder da graça precisa de se conjugar com as nossas obras de misericórdia, que somos chamados a viver para dar testemunho de quão grande é o amor de Deus. Vamos em frente com esta confiança: todos fomos justificados, somos justos em Cristo. Devemos concretizar esta justiça com as nossas obras.
Papa Francisco
Catequese na audiência geral 29.09.21
Imagem: site do Vaticano na data acima.
Catequese sobre a Carta aos Gálatas - 8. Somos filhos de Deus
Prossigamos o nosso itinerário de aprofundamento da fé – da nossa fé – à luz da Carta de São Paulo aos Gálatas. O Apóstolo insiste com aqueles cristãos para que não se esqueçam da novidade da revelação de Deus que lhes foi anunciada. Em pleno acordo com o evangelista João (cf. 1 Jo 3, 1-2), Paulo evidencia que a fé em Jesus Cristo permitiu que nos tornássemos verdadeiramente filhos de Deus e também seus herdeiros. Nós, cristãos, damos frequentemente por certa esta realidade de ser filhos de Deus. Ao contrário, é bom recordar sempre com gratidão o momento em que nos tornamos tais, o do nosso batismo, para viver com maior consciência o grande dom recebido.
Se eu perguntasse hoje: quantos de vós sabem a data do próprio batismo?, penso que não haveria muitas mãos levantadas. No entanto trata-se da data na qual fomos salvos, a data em que nos tornámos filhos de Deus. Agora, aqueles que não a sabem, que perguntem ao padrinho, madrinha, pai, mãe, tio, tia: “Quando fui batizado? Quando fui batizada?”; e lembrai-vos dessa data todos os anos: é a data em que tornamos filhos de Deus. Concordais? Fareis isto? [respondem: sim!] É um “sim” sincero? [riem] Vamos em frente...
Com efeito, quando «vem a fé» em Jesus Cristo (v. 25), cria-se uma condição radicalmente nova que nos introduz na filiação divina. A filiação de que Paulo fala já não é a geral, que envolve todos os homens e mulheres como filhos e filhas do único Criador. No trecho que acabamos de ouvir, ele afirma que a fé permite ser filhos de Deus «em Cristo» (v. 26): esta é a novidade. É este “em Cristo” que faz a diferença. Não só filhos de Deus, como todos: todos, homens e mulheres, somos filhos de Deus, todos, qualquer que seja a religião que seguimos. Não. Mas “em Cristo” é o que distingue os cristãos, e isto acontece apenas na participação da redenção de Cristo e em nós no sacramento do batismo, começa assim. Jesus tornou-se nosso irmão, e pela sua morte e ressurreição reconciliou-nos com o Pai. Quantos recebem Cristo na fé através do batismo são “revestidos” d’Ele e da dignidade filial (cf. v. 27).
Nas suas Cartas, São Paulo refere-se várias vezes ao batismo. Para ele, ser batizado equivale a participar de modo efetivo e real no mistério de Jesus. Por exemplo, na Carta aos Romanos ele chega a ponto de dizer que, no batismo, morremos com Cristo e somos sepultados com Ele para viver com Ele (cf. 6, 3-14). Mortos com Cristo, sepultados com Ele para poder viver com Ele. E esta é a graça do batismo: participar na morte e ressurreição de Jesus. Portanto, o batismo não é apenas um rito externo. Aqueles que o recebem são transformados nas profundezas do seu ser, no seu íntimo, e possuem uma nova existência, precisamente a vida que lhes permite dirigir-se a Deus e invocá-lo com o nome de “Aba”, isto é “pai”. “Pai”? Não, “papá” (cf. Gl 4, 6).
O Apóstolo afirma com grande audácia que a identidade recebida através do batismo é totalmente nova, tanto que prevalece sobre as diferenças que existem a nível étnico-religioso: Isto é, explica-a assim: «Não há judeu nem grego»; e também a nível social: «Não há escravo nem livre; não há homem nem mulher» (Gl 3, 28). Estas expressões são lidas muitas vezes com demasiada pressa, sem compreender o valor revolucionário que possuem. Para Paulo, escrever aos Gálatas que em Cristo “não há judeu nem grego” era equivalente a uma autêntica subversão no âmbito étnico-religioso. O judeu, em virtude da pertença à povo escolhido, era privilegiado em relação ao pagão (cf. Rm 2, 17-20), e o próprio Paulo o afirma (cf. Rm 9, 4-5). Portanto, não surpreende que este novo ensinamento do Apóstolo pudesse soar como herético. “Mas como, todos iguais? Somos diferentes!”. Soa um pouco herético, não é? Também a segunda igualdade, entre “livres” e “escravos”, abre perspetivas chocantes. Para a sociedade antiga, a distinção entre escravos e cidadãos livres era vital. Por lei estes últimos gozavam de todos os direitos, enquanto aos escravos não era reconhecida nem sequer a dignidade humana. Isto acontece também hoje: muita gente no mundo, muita, milhões, não tem direito a comer, à educação, ao trabalho: são os novos escravos, são os que vivem nas periferias, explorados por todos. Também hoje existe escravidão. Pensemos nisto. Negamos a estas pessoas a dignidade humana, são escravos. Por fim, a igualdade em Cristo supera a diferença social entre os sexos, estabelecendo uma igualdade entre homem e mulher que era revolucionária naquela época e que hoje deve ser reafirmada. É preciso reafirmá-la também hoje. Quantas vezes nós ouvimos expressões que desprezam as mulheres! Quantas vezes ouvimos: “Mas não, não faças nada, [são] coisas de mulher”. Contudo, homem e mulher têm a mesma dignidade, e na história, inclusive hoje, existe uma escravidão das mulheres: as mulheres não têm as mesmas oportunidades dos homens. Devemos ler o que Paulo diz: somos iguais em Jesus Cristo.
Como podemos ver, Paulo afirma a profunda unidade que existe entre todos os batizados, qualquer que seja a sua condição, quer homens quer mulheres, iguais, pois cada um deles, em Cristo, é uma criatura nova. Cada distinção torna-se secundária no que diz respeito à dignidade de ser filho de Deus, que pelo seu amor alcança uma igualdade verdadeira e substancial. Todos, através da redenção de Cristo e do batismo que recebemos, somos iguais: filhos e filhas de Deus. Iguais.
Irmãos e irmãs, por conseguinte, somos chamados de modo mais positivo a viver uma nova vida que encontra a sua expressão fundadora na filiação em relação a Deus. Iguais porque somos filhos de Deus, e filhos de Deus porque nos remiu Jesus Cristo e entrámos nesta dignidade através do batismo. É também decisivo para todos nós, hoje, redescobrir a beleza de ser filhos de Deus, de ser irmãos e irmãs entre nós, pois estamos inseridos em Cristo que nos redimiu. As diferenças e os contrastes que criam separação não deveriam existir entre os crentes em Cristo. E um dos apóstolos, na Carta a Tiago, diz assim: “Estai atentos com as diferenças, pois não sois justos quando na assembleia (isto é, na Missa) entra alguém que usa um anel de ouro, está bem vestido: ‘Ah, vem, vem!’ e convidam-no a sentar no primeiro banco. Depois, se entra outra pessoa, malvestida e que se vê que é pobre, muito pobre: ‘sim, sim, senta-te ali, no fundo’”. Estas diferenças são feitas por nós, muitas vezes, de modo inconsciente. Não, somos iguais. Pelo contrário, a nossa vocação é tornar concreta e evidente a chamada à unidade de toda a raça humana (cf. Conc. Ecum. Vat. II, Const. Lumen gentium, 1). Tudo o que exacerba as diferenças entre as pessoas, muitas vezes causando discriminação, tudo isto, perante Deus, já não tem qualquer substância, graças à salvação realizada em Cristo. O que conta é a fé que age seguindo o caminho da unidade, indicado pelo Espírito Santo. E a nossa responsabilidade consiste em percorrer decisivamente este caminho da igualdade, mas a igualdade que é apoiada e realizada pela redenção de Jesus.
Obrigado. E não vos esqueçais, ao voltardes para casa: “Quando fui batizada? Quando fui batizado?”. Perguntai, para ter em mente sempre aquela data. E também para festejar quando chegar aquele dia. Obrigado.
Papa Francisco
catequese na audiência geral 08.09.21
Imagem: pexels.com
Catequese sobre a Carta aos Gálatas - 7. Gálatas insensatos
Continuaremos a explicação da Carta de São Paulo aos Gálatas. Isto não é uma coisa nova, esta explicação, uma coisa minha: o que estamos a estudar é o que diz São Paulo, num conflito muito sério, aos Gálatas. E é também Palavra de Deus, porque entrou na Bíblia. Não é algo que alguém inventou, não. Aconteceu naquele tempo e pode repetir-se. E, de facto, vimos que na história isto repetiu-se. Esta é simplesmente uma catequese sobre a Palavra de Deus, expressa na Carta de Paulo aos Gálatas, nada mais. Devemos ter sempre isto em mente. Nas catequeses anteriores vimos que o Apóstolo Paulo mostrou aos primeiros cristãos da Galácia como era perigoso deixar o caminho que tinham iniciado a percorrer ao aceitar o Evangelho. Com efeito, o risco é cair no formalismo, que é uma das tentações que nos leva à hipocrisia, da qual falávamos na semana passada. Cair no formalismo e negar a nova dignidade que receberam: a dignidade de remidos por Cristo. O trecho que acabámos de ouvir dá início à segunda parte da Carta. Até este ponto, Paulo falou da sua vida e da sua vocação: de como a graça de Deus transformou a sua existência, colocando-a completamente ao serviço da evangelização. Neste ponto, interpela diretamente os Gálatas: põe-nos diante das escolhas que fizeram e da sua condição atual, o que poderia anular a experiência de graça que viveram.
E os termos com os quais o Apóstolo se dirige aos Gálatas certamente não são gentis: ouvimo-los. Nas outras Cartas é fácil encontrar a expressão “irmãos” ou “caríssimos”, aqui não. Pois está zangado. Diz genericamente “Gálatas” e duas vezes lhes chama “insensatos”, que não é um termo gentil. Estultos, insensatos e pode dizer muitas coisas... Não o faz porque não são inteligentes, mas porque, quase sem se aperceberem, correm o risco de perder a fé em Cristo que aceitaram com tanto entusiasmo. São insensatos porque não se apercebem de que o perigo é o de perder o tesouro precioso, a beleza da novidade de Cristo. A desilusão e a tristeza do Apóstolo são evidentes. Não sem amargura, ele provoca esses cristãos a lembrarem-se do primeiro anúncio feito por ele, através do qual lhes ofereceu a possibilidade de obter uma liberdade até então inesperada.
O Apóstolo faz perguntas aos Gálatas a fim de despertar as suas consciências: por isso é tão forte. Trata-se de questões retóricas, pois os Gálatas sabem muito bem que a sua chegada à fé em Cristo é fruto da graça recebida através da pregação do Evangelho. Leva-os ao início da vocação cristã. A palavra que ouviram de Paulo centrou-se no amor de Deus, plenamente manifestado na morte e ressurreição de Jesus. Paulo não conseguiu encontrar uma expressão mais convincente do que aquela que provavelmente lhes tinha repetido várias vezes na sua pregação: «Já não sou eu que vivo, é Cristo que vive em mim; e a vida que agora vivo na carne, vivo-a na fé do Filho de Deus, que me amou e se entregou a si mesmo por mim» (Gl 2, 20). Paulo mais não queria saber do que de Cristo crucificado (cf. 1 Cor 2, 2). Os Gálatas devem olhar para este evento, sem se deixarem distrair por outros anúncios... Em suma, a intenção de Paulo é colocar os cristãos em condições para que se apercebam do que está em jogo e não se deixem encantar pela voz das sereias que os querem conduzir a uma religiosidade baseada unicamente na observância escrupulosa dos preceitos. Pois eles, os pregadores novos que chegaram à Galácia, convenceram-nos que deviam voltar atrás e observar também os preceitos que levam à perfeição antes da vinda de Cristo, que é a gratuidade da salvação.
Por outro lado, os Gálatas compreendiam muito bem ao que o Apóstolo se referia. Tinham certamente experimentado a ação do Espírito Santo nas comunidades: como nas outras Igrejas, também a caridade e vários outros carismas se tinham manifestado entre eles. Ao serem postos à prova, tiveram de responder que quanto tinham vivido era fruto da novidade do Espírito. Portanto no início da sua chegada à fé, estava a iniciativa de Deus e não a dos homens. O Espírito Santo tinha sido o protagonista da sua experiência; colocá-lo agora em segundo plano a fim de dar primazia às próprias obras – isto é ao cumprimento dos preceitos da Lei – seria uma insensatez. A santidade vem do Espírito Santo e é a gratuidade da redenção de Jesus: isto justifica-nos.
Deste modo, São Paulo convida também a nós a refletir: como vivemos a fé? Será que o amor de Cristo crucificado e ressuscitado permanece no centro da nossa vida quotidiana como fonte de salvação, ou será que nos contentamos com algumas formalidades religiosas para estar em paz com a nossa consciência? Como vivemos nós a fé? Estamos apegados ao tesouro precioso, à beleza da novidade de Cristo, ou preferimos algo que neste momento nos atrai, mas que depois nos deixa vazios por dentro? O efémero bate muitas vezes à porta dos nossos dias, mas é uma triste ilusão, que nos faz cair na superficialidade e nos impede de discernir aquilo por que realmente vale a pena viver. Irmãos e irmãs, no entanto, mantenhamos a certeza de que, mesmo quando somos tentados a afastar-nos, Deus continua a conceder os seus dons. Ao longo da história, e ainda hoje, se verificam coisas que se assemelham ao que aconteceu aos Gálatas. Também hoje algumas pessoas nos fazer arder as orelhas dizendo: “Não, a santidade está nestes preceitos, nestas coisas, é preciso fazer isto e aquilo”, e propõem-nos uma religiosidade rígida, a rigidez que nos tira aquela liberdade no Espírito que a redenção de Cristo nos dá. Estai atentos perante a rigidez que vos propõem: estai atentos. Pois por detrás de cada rigidez há algo negativo, não existe o Espírito de Deus. É por isso que esta Carta nos ajudará a não ouvir estas propostas meio fundamentalistas que nos fazem retroceder na nossa vida espiritual, e nos ajudará a avançar na vocação pascal de Jesus. É isto que o Apóstolo reitera aos Gálatas quando lhes recorda que o Pai «doa o Espírito abundantemente, e realiza obras maravilhosas entre vós» (3, 5). Ele fala no presente, não diz “o Pai doou o Espírito em abundância”, capítulo 3, versículo 5, não: diz “doa”; não diz “realizou”, não, “realiza”. Pois, apesar de todas as dificuldades que possamos colocar à sua ação, inclusive não obstante os nossos pecados, Deus não nos abandona, mas permanece connosco com o seu amor misericordioso. Deus está sempre próximo de nós com a sua bondade. É como aquele pai que todos os dias subia ao terraço para ver se o filho voltava: o amor do Pai não se cansa de nós. Peçamos a sabedoria de nos apercebermos sempre desta realidade e de afastar os fundamentalistas que nos propõem uma vida de ascese artificial, afastada da ressurreição de Cristo. A ascese é necessária, mas a ascese sábia, não artificial.
Papa Francisco
Catequese na audiência geral 01.09.2021
A Carta aos Gálatas relata um acontecimento bastante surpreendente. Como ouvimos, Paulo diz que repreendeu Cefas, ou seja, Pedro, perante a comunidade de Antioquia, porque o seu comportamento não era bom. O que aconteceu de tão grave para que Paulo se dirigisse a Pedro em termos tão severos? Será que Paulo exagerou dando demasiado espaço ao seu carácter sem saber como se conter? Veremos que este não é o caso, mas que mais uma vez está em questão a relação entre a Lei e a liberdade. E devemos insistir sobre isto muitas vezes.
Escrevendo aos Gálatas, Paulo menciona deliberadamente este episódio que tinha acontecido em Antioquia anos antes. Ele pretende recordar aos cristãos dessas comunidades que eles não devem absolutamente escutar aqueles que pregam a necessidade de serem circuncidados para ficar “sob a Lei” com todas as suas prescrições. Recordemos que foram estes pregadores fundamentalistas que chegaram lá e criaram confusão, e privando aquela comunidade da paz. Pedro foi criticado pelo seu comportamento à mesa. A Lei proibia que um judeu partilhasse refeições com não judeus. Mas o próprio Pedro, noutra ocasião, tinha ido a Cesareia, à casa do centurião Cornélio, apesar de saber que estava a transgredir a Lei. Então afirmara: «Deus mostrou-me que nenhum homem deve ser chamado profano ou impuro» (At 10, 28). Quando regressou a Jerusalém, os cristãos circuncidados que eram fiéis à Lei mosaica repreenderam Pedro pelo seu comportamento, mas ele justificou-se dizendo: «Recordei-me então da palavra do Senhor, quando Ele dizia: “João batizou em água; vós, porém, sereis batizados no Espírito Santo”. Se Deus, portanto, lhes concedeu o mesmo dom que a nós por terem acreditado no Senhor Jesus Cristo, quem era eu para opor-me a Deus?» (At 11, 16-17). Recordemos que o Espírito Santo veio naquele momento à casa de Cornélio quando lá estava Pedro.
Um fato semelhante também tinha acontecido em Antioquia, na presença de Paulo. Antes, Pedro estava à mesa sem qualquer dificuldade com os cristãos que tinham vindo do paganismo, mas quando alguns cristãos de Jerusalém – aqueles que provinham do judaísmo – circuncidados, chegaram à cidade, ele já não o fez, para não incorrer nas críticas deles. É este o erro: era mais atento às críticas, a dar uma boa impressão. Isto é grave aos olhos de Paulo, até porque Pedro estava a ser imitado por outros discípulos, antes de todos Barnabé, que com Paulo tinha evangelizado os Gálatas (cf. Gl 2, 13). Sem querer, o comportamento de Pedro – um pouco assim, aproximativo, nem claro nem transparente – criava uma divisão injusta na comunidade: “Eu sou puro… sigo por esta linha, faço assim, isto não se pode…”
Na sua repreensão – eis o núcleo do problema – Paulo usa um termo que permite entrar nos méritos da sua reação: hipocrisia (cf. Gl 2, 13). Esta é uma palavra que se repete muitas vezes: hipocrisia. Penso que todos nós compreendemos o que significa. A observância da Lei por parte dos cristãos levou a este comportamento hipócrita, que o Apóstolo pretende combater com força e convicção. Paulo era reto, tinha os seus defeitos – muitos, o seu caráter era terrível – mas era reto. O que é a hipocrisia? Quando dizemos: estai atentos que aquele é um hipócrita: o que queremos dizer? O que é hipocrisia? Pode-se dizer que é o medo da verdade. A hipocrisia tem medo da verdade. As pessoas preferem fingir do que ser elas mesmas. É como pintar a alma, como pintar as atitudes, o modo de proceder: não é a verdade. “Tenho medo de proceder como sou e disfarço-me com estas atitudes”. Fingir impede a coragem de dizer a verdade abertamente, e assim facilmente se evita a obrigação de a dizer sempre, em todo o lado e apesar de tudo. Fingir leva-te a isto: às meias-verdades. E as meias-verdades são uma ficção: pois a verdade ou é verdade ou não é verdade. Mas as meias-verdades são este modo de agir não verdadeiro. Prefere-se, como disse, fingir em vez de ser como se é, e a ficção impede aquela coragem, de dizer abertamente a verdade. E assim, não cumprimos a obrigação – e isto é um mandamento – de dizer sempre a verdade, em todos os lugares e apesar de tudo. Num ambiente em que as relações interpessoais são vividas sob a bandeira do formalismo, o vírus da hipocrisia propaga-se facilmente. Aquele sorriso que não vem do coração, aquele procurar estar bem com todos, mas com ninguém…
Há vários exemplos na Bíblia onde a hipocrisia é combatida. Um bom testemunho para combater a hipocrisia é o do velho Eleazar, a quem foi pedido que fingisse que comia carne sacrificada a divindades pagãs para salvar a sua vida: fingir que a comia, mas não a comia. Fingir que comia a carne suína, mas os amigos tinham-lhe preparado outra. Mas o homem temente a Deus respondeu: «Não é próprio da minha idade, respondeu ele, usar de tal fingimento, não suceda que muitos jovens, julgando que Eleazar, aos noventa anos, se tenha passado à vida dos gentios, pelo meu gesto de hipócrita e por amor a um pouco de vida, se deixem arrastar por minha causa; isto seria a desonra e a vergonha da minha velhice» (2 Mc 6, 24-25). Honesto: não entra no caminho da hipocrisia. Que bela página sobre a qual refletir para se afastar da hipocrisia! Os Evangelhos também registam várias situações em que Jesus repreende fortemente aqueles que parecem justos no exterior, mas no interior estão cheios de falsidade e iniquidade (cf. Mt 23, 13-29). Se tiverdes um pouco de tempo hoje lede o capítulo 23 do Evangelho de São Mateus e vede quantas vezes Jesus diz: “hipócritas, hipócritas, hipócritas”, e revela o que é a hipocrisia.
O hipócrita é uma pessoa que finge, lisonjeia e engana porque vive com uma máscara no rosto, e não tem a coragem de enfrentar a verdade. Por isso, não é capaz de amar verdadeiramente – um hipócrita não sabe amar – limita-se a viver pelo egoísmo e não tem a força para mostrar o seu coração com transparência. Há muitas situações em que a hipocrisia pode ocorrer. Muitas vezes esconde-se no local de trabalho, onde se procura parecer amigos dos colegas enquanto a competição leva a golpeá-los pelas costas. Em política, não é raro encontrar hipócritas que vivem uma vida dupla entre a esfera pública e a privada. A hipocrisia na Igreja é particularmente detestável, e infelizmente existe a hipocrisia na Igreja, há muitos cristãos e ministros hipócritas. Nunca devemos esquecer as palavras do Senhor: «Seja este o vosso modo de falar: sim, sim, não, não; tudo o que for além disto procede do espírito do mal» (Mt 5, 37). Irmãos e irmãs, pensemos hoje no que Paulo condena e que Jesus condena: a hipocrisia. E não tenhamos medo de ser verdadeiros, de dizer a verdade, de ouvir a verdade, de nos conformarmos com a verdade. Assim poderemos amar. Um hipócrita não sabe amar. Agir de outra forma que não seja a verdade significa pôr em perigo a unidade na Igreja, aquela pela qual o próprio Senhor rezou.
Papa Francisco
Catequese na audiência geral 25.08.2021
Imagem site do Vaticano
São Paulo, apaixonado por Jesus Cristo, pois tinha entendido bem o que era a salvação, ensinou-nos que os «filhos da promessa» (Gl 4, 28) – isto é, todos nós, justificados por Jesus Cristo – não estão sob o vínculo da Lei, mas são chamados ao estilo de vida exigente na liberdade do Evangelho. No entanto, a Lei existe. Mas existe de outro modo: a mesma Lei, os Dez Mandamentos, mas de outro modo, pois uma vez que o Senhor Jesus veio ela não pode justificar-se por si mesma. E portanto, na catequese de hoje, gostaria de explicar isto. E perguntemo-nos: qual é, segundo a Carta aos Gálatas, o papel da Lei? No trecho que ouvimos, Paulo diz que a Lei foi como um pedagogo. É uma bonita imagem, a do pedagogo sobre o qual falamos na audiência passada, uma imagem que merece ser compreendida no seu justo significado.
Parece que o Apóstolo sugere que os cristãos dividem a história da salvação em duas, e também a própria história pessoal. São dois os momentos: antes de se tornar crentes em Jesus Cristo e depois de ter recebido a fé. No centro está o acontecimento da morte e ressurreição de Jesus, que Paulo pregou a fim de suscitar a fé no Filho de Deus, fonte da salvação, e somos justificados em Cristo Jesus. Somos justificados pela gratuidade da fé em Cristo Jesus. Por conseguinte, partindo da fé em Cristo, há um “antes” e um “depois” em relação à própria Lei, pois a lei existe, os Mandamentos existem, mas há uma atitude antes da vinda de Jesus e outra depois. A história anterior é determinada pelo facto de estar “sob a Lei”. E quem percorria o caminho da Lei se salvava, era justificado; a história sucessiva – depois da vinda de Jesus – deve ser vivida seguindo o Espírito Santo (cf. Gl 5, 25). É a primeira vez que Paulo usa esta expressão: estar “sob a Lei”. O significado subjacente implica a ideia de uma servidão negativa, típica dos escravos: “estar submetido”. O Apóstolo torna-o explícito, dizendo que quando se está “sob a Lei” é como ser “vigiado” e “preso”, uma espécie de prisão preventiva. Este tempo, diz São Paulo, durou muito – desde Moisés até à vinda de Jesus – e perpetua-se enquanto se vive no pecado.
A relação entre a Lei e o pecado será explicada de uma forma mais sistemática pelo Apóstolo na sua Carta aos Romanos, escrita alguns anos após a Carta aos Gálatas. Em síntese, a Lei leva a definir a transgressão e a tornar as pessoas conscientes do próprio pecado: “Fizeste isto, portanto a Lei – os Dez Mandamentos – diz assim: tu estás no pecado”. Aliás, como ensina a experiência comum, o preceito acaba por estimular a transgressão. Na Carta aos Romanos, escreve: «Quando estávamos na carne, as paixões pecaminosas, fortalecidas pela lei, operavam nos nossos membros e produziam frutos para a morte. Agora, porém, livres da lei, estamos mortos para o que nos sujeitara, de modo que servimos num espírito novo e não segundo uma lei antiquada» (7, 5-6). Porquê? Porque veio a justificação de Jesus Cristo. Paulo expõe a sua visão da Lei: «O aguilhão da morte é o pecado, e a força do pecado é a Lei» (1 Cor 15, 56). Um diálogo: tu estás submetido à Lei, e estás ali com a porta aberta ao pecado.
Neste contexto, a referência ao papel pedagógico desempenhado pela Lei assume o seu pleno sentido. Mas a Lei é o pedagogo, que te leva para onde? Para Jesus. No sistema escolar da antiguidade, o pedagogo não tinha a função que lhe atribuímos hoje, ou seja, dar educação a um jovem ou a uma jovem. Naquela época, ele era um escravo cuja tarefa consistia em acompanhar o filho do dono ao mestre e depois trazê-lo para casa. Desta forma devia protegê-lo do perigo, vigiar para que não se comportasse mal. A sua função era bastante disciplinar. Quando o jovem se tornava adulto, o pedagogo cessava as suas funções. O pedagogo ao qual Paulo se referia não era o professor, mas aquele que o acompanhava à escola, vigiava sobre o menino e depois levava-o para casa.
A referência à Lei, nestes termos, permite que São Paulo esclareça a sua função na história de Israel. A Torá, isto é, a Lei, fora um ato de magnanimidade por parte de Deus para com o seu povo. Depois da eleição de Abraão, outro ato importante foi a Lei: definir o caminho para ir em frente. Certamente tinha funções restritivas, mas ao mesmo tempo protegia o povo, educava-o, disciplinava-o e apoiava-o na sua fraqueza, sobretudo com a proteção face ao paganismo; naqueles tempos, havia muitos comportamentos pagãos. A Torá diz: “Existe um único Deus que nos pôs a caminho”. Um ato de bondade do Senhor. E certamente, como eu já disse, tivera funções restritivas, mas ao mesmo tempo, protegera o povo, educara-o, disciplinara-o, apoiara-o na sua debilidade. É por esta razão que o Apóstolo reflete sucessivamente, descrevendo a fase da menoridade. Diz assim: «Enquanto o herdeiro é menino, em nada difere do servo, ainda que seja senhor de tudo, pois está sob o domínio de tutores e administradores, até ao dia determinado pelo pai. Assim também nós, quando éramos meninos, estávamos subjugados pelos elementos do mundo» (Gl 4, 1-3). Em síntese, a convicção do Apóstolo é que a Lei tem certamente uma função positiva – portanto, como pedagogo, leva em frente – mas é uma função limitada no tempo. A sua duração não pode ser prolongada além, pois está ligada ao amadurecimento das pessoas e à sua escolha de liberdade. Quando se chega à fé, a Lei esgota o seu valor propedêutico e deve dar lugar a outra autoridade. O que isto significa? Que quando acaba a Lei, podemos dizer: “Cremos em Jesus Cristo e fazemos o que nos apetece?”. Não! Os Mandamentos existem, mas não nos justificam. Quem nos justifica é Jesus Cristo. Devemos observar os Mandamentos, mas eles não nos dão a justiça; há a gratuidade de Jesus Cristo, o encontro com Jesus Cristo que nos justifica gratuitamente. O mérito da fé é receber Jesus. O único mérito: abrir o coração. E o que fazemos com os Mandamentos? Devemos observá-los, mas como ajuda para o encontro com Jesus Cristo.
Este ensinamento sobre o valor da lei é muito importante e merece ser considerado cuidadosamente para não cair em equívocos nem dar passos falsos. Far-nos-á bem perguntar-nos se ainda vivemos no período em que precisamos da Lei, ou se estamos bem conscientes de que recebemos a graça de nos tornarmos filhos de Deus para viver no amor. De que maneira vivo? Temendo que se eu não fizer isto, irei para o inferno? Ou vivo também com aquela esperança, com a alegria da gratuidade da salvação em Jesus Cristo? É uma boa pergunta. E também a segunda: desprezo os Mandamentos? Não! Observo-os, mas não como absolutos, pois sei que quem me justifica é Jesus Cristo.
Papa Francisco
Catequese na audiência geral 18.08.21
Catequese sobre a Carta aos Gálatas - 4. A lei de Moisés
«O que é a lei?» (Gl 3, 19). Esta é a questão que, seguindo São Paulo, desejamos aprofundar hoje, a fim de reconhecer a novidade da vida cristã animada pelo Espírito Santo. Mas se há o Espírito Santo, se há Jesus que nos redimiu, o que é a Lei? Sobre isto vamos refletir hoje. O Apóstolo escreve: «Se vos deixardes guiar pelo Espírito, já não estais sob a lei» (Gl 5, 18). Ao contrário, os detratores de Paulo afirmaram que os Gálatas deviam seguir a Lei para ser salvos. Voltavam atrás. Eram nostálgicos de outros tempos, dos tempos antes de Jesus Cristo. O Apóstolo não está minimamente de acordo. Não foi nestes termos que ele tinha concordado com os outros Apóstolos em Jerusalém. Ele lembra-se bem das palavras de Pedro quando disse: «Por que tentais a Deus, impondo aos discípulos um jugo que nem os nossos pais nem nós pudemos suportar?» (At 15, 10). As disposições que emergiram daquele “primeiro concílio” - o primeiro concílio ecuménico foi o de Jerusalém e as disposições que surgiram daquele concílio eram muito claras, e diziam: «Pareceu-nos bem, ao Espírito Santo e a nós, não vos impor outro peso além do seguinte, indispensável: que vos abstenhais das carnes sacrificadas aos ídolos, do sangue, de animais sufocados, e da impureza» (At 15, 28-29). Algumas coisas que diziam respeito ao culto a Deus, à idolatria, referiam-se também à forma de compreender a vida daquela época.
Quando Paulo fala da Lei, refere-se normalmente à Lei mosaica, a Lei de Moisés, os Dez Mandamentos. Estava relacionado com a Aliança que Deus tinha estabelecido com o seu povo, um caminho para preparar aquela Aliança. Segundo vários textos do Antigo Testamento, a Torá - que é o termo hebraico com que se indica a Lei - é a coletânea de todas as prescrições e regras que os israelitas devem observar, em virtude da Aliança com Deus. Uma síntese eficaz do que é a Torá pode ser encontrada neste texto do Deuteronômio, que diz: «O Senhor alegrar-se-á de novo em tornar-te feliz, como se comprazia no tempo dos teus pais, contanto que obedeças à voz do Senhor, teu Deus, observando os seus mandamentos e os seus preceitos escritos neste livro da lei, e que voltes para o Senhor, teu Deus, com todo o teu coração e toda a tua alma» (30, 9-10). A observância da Lei garantiu ao povo os benefícios da Aliança e assegurou a sua ligação especial com Deus. Este povo, esta gente, estas pessoas, estão ligados a Deus e mostram esta união com Deus no cumprimento, na observância da Lei. Estabelecendo a Aliança com Israel, Deus ofereceu-lhe a Torá, a Lei, para que pudesse compreender a Sua vontade e viver em justiça. Pensamos que nessa altura havia necessidade de tal Lei, foi um grande dom que Deus ofereceu ao seu povo, porquê? Porque nessa altura havia paganismo em toda a parte, idolatria em toda a parte e o comportamento humano que deriva da idolatria, e por esta razão o grande dom de Deus ao seu povo é a Lei para ir em frente. Várias vezes, especialmente nos livros dos profetas, constata-se que a não observância dos preceitos da Lei constituía uma verdadeira traição da Aliança, provocando a reação da ira de Deus. A ligação entre Aliança e Lei era tão estreita que as duas realidades eram inseparáveis. A Lei é a expressão de que uma pessoa, um povo, está em aliança com Deus.
À luz de tudo isto, é fácil compreender como os missionários que se tinham infiltrado entre os Gálatas tiveram uma boa oportunidade ao afirmar que a adesão à Aliança também implicava a observância da Lei mosaica, como era na altura. No entanto, é precisamente sobre este ponto que podemos descobrir a inteligência espiritual de São Paulo e as grandes intuições que ele expressou, sustentado pela graça que recebeu para a sua missão evangelizadora.
O Apóstolo explica aos Gálatas que, na realidade, a Aliança com Deus e a Lei mosaica não estão indissoluvelmente ligadas. O primeiro elemento em que se baseia é que a Aliança estabelecida por Deus com Abraão se fundava na fé no cumprimento da promessa e não na observância da Lei, que ainda não existia. Abraão começou a caminhar muitos séculos antes da Lei. O Apóstolo escreve: «Afirmo, pois: a Lei, que chegou quatrocentos e trinta anos mais tarde [com Moisés], não pode anular o testamento feito por Deus [com Abraão], em boa e devida forma, e não pode anular a promessa. Pois, se a herança se obtivesse pela Lei, já não proviria da promessa. Ora, foi pela promessa que Deus concedeu a sua graça a Abraão» (Gl 3, 17-18). A promessa existia antes da Lei e a promessa a Abraão, a Lei, chegou 430 anos mais tarde. A palavra “promessa” é muito importante: o povo de Deus, nós cristãos, caminhamos pela vida olhando para uma promessa; a promessa é precisamente o que nos atrai, atrai-nos para o encontro com o Senhor.
Com este raciocínio, Paulo alcançou um primeiro objetivo: a Lei não é a base da Aliança porque veio mais tarde, foi necessária e justa, mas primeiro houve a promessa, a Aliança.
Um argumento como este desarma aqueles que afirmam que a Lei mosaica é uma parte constitutiva da Aliança. Não, a Aliança vem antes, é a chamada a Abraão. Com efeito, a Torá, a Lei, não está incluída na promessa feita a Abraão. Dito isto, não se deve pensar que São Paulo era contrário à Lei mosaica. Não, ele observava-a. Várias vezes nas suas Cartas, defende a sua origem divina e afirma que desempenha um papel muito específico na história da salvação. No entanto, a Lei não dá vida, não oferece o cumprimento da promessa, porque não está em condições de a poder cumprir. A Lei é um caminho que te leva a avançar para o encontro. Paulo usa uma palavra muito importante, a Lei é o “pedagogo” em relação a Cristo, o pedagogo em relação à fé em Cristo, ou seja, o mestre que te leva pela mão ao encontro. Aqueles que procuram a vida precisam de olhar para a promessa e para o seu cumprimento em Cristo.
Caríssimos, esta primeira exposição do Apóstolo aos Gálatas apresenta a novidade radical da vida cristã: todos aqueles que têm fé em Jesus Cristo são chamados a viver no Espírito Santo, que liberta da Lei, levando-a ao mesmo tempo a cumprimento segundo o mandamento do amor. Isto é muito importante, a Lei leva-nos a Jesus. Mas alguns de vós podem dizer-me: “Mas padre, uma coisa: quer dizer que se eu recitar o Credo não devo cumprir os Mandamentos?”. Não, os Mandamentos são atuais no sentido de que são “pedagogos”, que te conduzem ao encontro com Jesus. Mas se puseres de lado o encontro com Jesus e quiseres voltar a dar mais importância aos Mandamentos, isto não é bom. E foi precisamente este o problema daqueles missionários fundamentalistas, que se introduziam entre os Gálatas para os desorientar. Que o Senhor nos ajude a seguir pelo caminho dos Mandamentos, mas olhando para o amor a Cristo rumo ao encontro com Cristo, conscientes de que o encontro com Jesus é mais importante do que todos os Mandamentos.
Papa Francisco
Catequese na audiência geral 11.08.21
Imagem: site do Vaticano
Catequese sobre a Carta aos Gálatas - 3. O Evangelho é um só
Irmãos e irmãs, bom dia!
Quando se trata do Evangelho e da missão de evangelizar, Paulo entusiasma-se, deixa-se arrebatar. Parece não ver nada além desta missão que o Senhor lhe confiou. Tudo nele é dedicado a este anúncio, e ele não tem outro interesse a não ser o Evangelho. É o amor de Paulo, o interesse de Paulo, o ofício de Paulo: anunciar. Chega a ponto de dizer: «Cristo não me enviou a batizar, mas a pregar o Evangelho» (1 Cor 1, 17). Paulo interpreta toda a sua existência como uma chamada a evangelizar, a fazer conhecer a mensagem de Cristo, a fazer conhecer o Evangelho: «Ai de mim – diz – se não evangelizar» (1 Cor 9, 16). E escrevendo aos cristãos de Roma, apresenta-se simplesmente assim: «Paulo, servo de Jesus Cristo, Apóstolo por vocação, escolhido para anunciar o Evangelho de Deus» (Rm 1, 1). Esta é a sua vocação. Em síntese, a sua consciência é que foi “destinado” para levar o Evangelho a todos, e não pode fazer outra coisa senão dedicar-se com todas as suas forças a esta missão.
Portanto, compreende-se a tristeza, a desilusão e até a amarga ironia do Apóstolo em relação aos Gálatas, que aos seus olhos enveredam por um caminho errado, que os levará a um ponto de não retorno: erraram a estrada. O eixo em torno do qual tudo gira é o Evangelho. Paulo não pensa nos “quatro evangelhos”, como é espontâneo para nós. Com efeito, quando envia esta Carta, nenhum dos quatro evangelhos tinha sido escrito. Para ele, o Evangelho é o que ele prega, isto chama-se o querigma, isto é o anúncio. E qual anúncio? Da morte e ressurreição de Jesus como fonte de salvação. Um Evangelho que se exprime com quatro verbos: «Cristo morreu pelos nossos pecados, segundo as Escrituras; foi sepultado, e ressuscitou no terceiro dia, segundo as Escrituras; apareceu a Cefas» (1 Cor 15, 3-5). Este é o anúncio de Paulo, o anúncio que nos dá vida a todos. Este Evangelho é o cumprimento das promessas e a salvação oferecida a todos os homens. Quem o recebe reconcilia-se com Deus, é acolhido como um verdadeiro filho e recebe em herança a vida eterna.
Diante de um dom tão grande que foi dado aos Gálatas, o Apóstolo não consegue explicar porque eles pensam em aceitar outro “evangelho”, talvez mais sofisticado, mais intelectual, outro “evangelho”. Contudo, devemos notar que estes cristãos ainda não abandonaram o Evangelho anunciado por Paulo. O Apóstolo sabe que eles ainda estão a tempo de não dar um passo falso, mas admoesta-os com vigor, com muito vigor. O seu primeiro argumento aponta diretamente para o facto de que a pregação realizada pelos novos missionários – estes que pregam a novidade – não pode ser o Evangelho. Aliás, é um anúncio que distorce o verdadeiro Evangelho porque impede de alcançar a liberdade – uma palavra-chave – adquirida pela fé. Os Gálatas ainda são “principiantes” e a sua desorientação é compreensível. Ainda não conhecem a complexidade da Lei mosaica e o entusiasmo de abraçar a fé em Cristo leva-os a ouvir estes novos pregadores, iludindo-se de que a sua mensagem é complementar à de Paulo. E não é assim.
Contudo, o Apóstolo não pode arriscar que se criem compromissos num terreno tão decisivo. O Evangelho é um só e é aquele que ele anunciou; não pode haver outro. Atenção! Paulo não diz que o verdadeiro Evangelho é o seu, porque foi ele que o anunciou, não! Não o diz. Isto seria presunçoso, seria vanglória. Aliás, afirma que o “seu” Evangelho, o mesmo que os outros Apóstolos anunciavam noutros lugares, é o único autêntico, pois é o de Jesus Cristo. Assim escreve: «Faço-vos saber, irmãos, que o Evangelho que por mim foi anunciado não é segundo os homens. Porque não o recebi nem aprendi de homem algum, mas pela revelação de Jesus Cristo» (Gl 1, 11). Podemos compreender porque Paulo usa termos tão duros. Utiliza duas vezes a expressão “anátema”, que indica a exigência de manter afastado da comunidade aquilo que ameaça os seus fundamentos. E este novo “evangelho” ameaça os fundamentos da comunidade. Em suma, neste ponto, o Apóstolo não deixa espaço para a negociação: não se pode negociar. Com a verdade do Evangelho não se pode negociar. Ou recebes o Evangelho como é, como foi anunciado, ou recebes outra coisa. Mas o Evangelho não pode ser negociado. Não se transige: a fé em Jesus não é uma mercadoria a negociar: é salvação, é encontro, é redenção. Não se barateia.
Esta situação descrita no início da Carta parece paradoxal, pois todos os sujeitos em questão parecem ser animados por bons sentimentos. Os Gálatas que ouvem os novos missionários pensam que pela circuncisão serão ainda mais devotados à vontade de Deus e agradarão mais a Paulo. Os inimigos de Paulo parecem estar animados pela fidelidade à tradição, recebida dos pais, e consideram que a fé genuína consiste em observar a Lei. Face a esta suprema fidelidade, justificam até as insinuações e suspeitas a respeito de Paulo, considerado pouco ortodoxo no que se refere à tradição. O próprio Apóstolo está bem consciente de que a sua missão é de natureza divina – foi revelada pelo próprio Cristo, a ele! – e, por isso, é movido por um entusiasmo total pela novidade do Evangelho, que é uma novidade radical, não é uma novidade passageira: não há evangelhos “na moda”, o Evangelho é sempre novo, é a novidade. A sua ansiedade pastoral leva-o a ser severo, porque vê o grande risco que os jovens cristãos enfrentam. Em síntese, é precioso desenvencilhar-se neste labirinto de boas intenções para compreender a verdade suprema que se apresenta como a mais coerente com a Pessoa e a pregação de Jesus e com a sua revelação do amor do Pai. Isto é importante: saber discernir. Muitas vezes vimos na história, e vemos também hoje, algum movimento que prega o Evangelho com uma modalidade própria, às vezes com carismas verdadeiros, próprios; mas depois exagera e reduz todo o Evangelho ao “movimento”. E isto não é o Evangelho de Cristo: este é o Evangelho do fundador, da fundadora e este sim, poderá ajudar no início, mas no final não produz fruto pois não tem raízes profundas. Por isso, a palavra clara e decisiva de Paulo foi benéfica para os Gálatas e é salutar também para nós. O Evangelho é o dom de Cristo a nós, é Ele mesmo quem o revela. É isto que nos dá vida.
Papa Francisco
Catequese na audiência geral 04.08.21
Catequese - 2. Paulo, verdadeiro apóstolo
Estamos a entrar um pouco de cada vez na Carta aos Gálatas. Vimos que estes cristãos se encontram em conflito sobre como viver a fé. O Apóstolo Paulo começa a sua Carta recordando-lhes as suas relações passadas, o seu mal-estar pela distância e o amor imutável que sente por cada um deles. Não deixa, contudo, de assinalar a sua preocupação de que os Gálatas sigam o caminho reto: é a preocupação de um pai, que gerou comunidades na fé. A sua intenção é muito clara: é necessário reafirmar a novidade do Evangelho, que os Gálatas receberam da sua pregação, a fim de construir a verdadeira identidade sobre a qual basear a própria existência. E este é o princípio: reiterar a novidade do Evangelho, aquele que os Gálatas receberam do Apóstolo.
Descobrimos imediatamente que Paulo é um profundo conhecedor do mistério de Cristo. Desde o início da sua Carta ele não segue os argumentos superficiais utilizados pelos seus opositores. O Apóstolo “voa alto” e também nos indica como agir quando surgem conflitos dentro da comunidade. Apenas no final da Carta, de facto, é explicitado que o cerne da diatribe suscitada é o da circuncisão, portanto a principal tradição judaica. Paulo opta por ir mais a fundo, porque o que está em jogo é a verdade do Evangelho e a liberdade dos cristãos, que é uma parte integrante do mesmo. Ele não se detém na superfície dos problemas, dos conflitos, como somos frequentemente tentados a fazer para encontrar uma solução imediata que nos ilude a pensar que todos podemos concordar com concessões. Paulo ama Jesus e sabe que Jesus não é um homem-Deus que faz concessões. Não é assim que funciona com o Evangelho e o Apóstolo escolheu seguir o caminho mais exigente. Escreve: «É, porventura, o favor dos homens que eu procuro, ou o de Deus?». Ele não procura fazer a paz com todos. E continua: «Por acaso tenho interesse em agradar aos homens? Se quisesse ainda agradar aos homens, não seria servo de Cristo!» (Gl 1, 10).
Em primeiro lugar, Paulo sente-se obrigado a recordar aos Gálatas que é um verdadeiro apóstolo não por causa do seu mérito, mas devido à chamada de Deus. Ele próprio conta a história da sua vocação e conversão, que coincidiu com a aparição do Cristo Ressuscitado durante a viagem a Damasco (cf. At 9, 1-9). É interessante notar o que ele diz sobre a sua vida antes desse acontecimento: «com que excesso perseguia a Igreja de Deus e a assolava; excedia em judaísmo a muitos da minha idade, sendo extremamente zeloso das tradições dos meus pais» (Gl 1, 13-14). Paulo ousa dizer que ultrapassou todos no judaísmo, era um verdadeiro fariseu zeloso, «irrepreensível na justiça que vem da observância da lei» (Fl 3, 6). Por duas vezes enfatiza que tinha sido um defensor das «tradições dos pais» e um «crente firme na lei». Esta é a história de Paulo.
Por um lado, insiste em sublinhar que perseguiu ferozmente a Igreja e que foi um «blasfemador, um perseguidor, um homem violento» (1 Tm 1, 13); não poupa adjetivos: ele mesmo se qualifica assim – por outro lado, evidencia a misericórdia de Deus para com ele, o que o levou a experimentar uma transformação radical, bem conhecida por todos. Ele escreve: «Eu era ainda pessoalmente desconhecido das comunidades cristãs da Judeia; tinham elas apenas ouvido dizer: “Aquele que antes nos perseguia, agora prega a fé que outrora combatia”» (Gl 1, 22-23). Converteu-se, mudou, mudou o coração. Paulo evidencia assim a verdade da sua vocação através do contraste flagrante que tinha sido criado na sua vida: de perseguidor dos cristãos porque não observavam as tradições e a lei, tinha sido chamado a tornar-se apóstolo para anunciar o Evangelho de Jesus Cristo. Mas vemos que Paulo é livre: é livre para anunciar o Evangelho e também é livre para confessar os seus pecados. “Eu era assim”: é a verdade que dá a liberdade do coração, é a liberdade de Deus.
Pensando nesta sua história, Paulo está cheio de admiração e gratidão. É como se quisesse dizer aos Gálatas que podia ter sido tudo menos apóstolo. Desde criança fora educado para ser um observador irrepreensível da Lei mosaica, e as circunstâncias tinham-no levado a lutar contra os discípulos de Cristo. No entanto, algo inesperado aconteceu: Deus, pela sua graça, revelou-lhe o seu Filho que morreu e ressuscitou, para que pudesse tornar-se o seu arauto entre os gentios (cf. Gl 1, 15-16).
Quão imperscrutáveis são os caminhos do Senhor! Tocamo-lo com as nossas mãos todos os dias, mas especialmente se pensarmos nos momentos em que o Senhor nos chamou. Nunca devemos esquecer o tempo e a forma como Deus entrou na nossa vida: ter fixo no coração e na mente aquele encontro com a graça, quando Deus mudou a nossa existência. Quantas vezes, perante as grandes obras do Senhor, surge espontaneamente a pergunta: mas como é possível que Deus se sirva de um pecador, de uma pessoa frágil e fraca, para realizar a sua vontade? E no entanto, não há nada de casual, porque tudo foi preparado no desígnio de Deus. Ele tece a nossa história, a história de cada um de nós: Ele tece a nossa história e se correspondermos com confiança ao seu plano de salvação, apercebemo-nos disso. A chamada envolve sempre uma missão à qual estamos destinados; por isso é-nos pedido que nos preparemos seriamente, sabendo que é o próprio Deus que nos envia, o próprio Deus que nos apoia com a sua graça. Irmãos e irmãs, deixemo-nos guiar por esta consciência: o primado da graça transforma a existência e torna-a digna de ser colocada ao serviço do Evangelho. O primado da graça cobre todos os pecados, muda os corações, muda a vida, mostra-nos novos caminhos. Não nos esqueçamos disto!
Papa Francisco
Catequese na audiência geral 30 de junho de 2021
Imagem: São Paulo escrevendo suas cartas por Valentin de Boulogne
Catequese - 1. Introdução à Carta aos Gálatas
Depois do longo itinerário dedicado à oração, hoje iniciamos um novo ciclo de catequeses. Espero que com o itinerário da oração, tenhamos aprendido a rezar um pouco melhor, a orar um pouco mais. Hoje desejo refletir sobre alguns temas que o apóstolo Paulo propõe na sua Carta aos Gálatas. É uma Carta muito importante, diria até decisiva, não só para conhecer melhor o Apóstolo, mas sobretudo para considerar alguns dos temas que ele aborda em profundidade, mostrando a beleza do Evangelho. Nesta Carta, Paulo faz muitas referências biográficas que nos permitem conhecer a sua conversão e a decisão de dedicar a vida ao serviço de Jesus Cristo. Também trata de algumas temáticas muito importantes para a fé, tais como a liberdade, a graça e o modo de vida cristão, que são extremamente relevantes pois tocam muitos aspetos da vida da Igreja de hoje. Esta é uma Carta muito atual. Parece ter sido escrita para os nossos tempos.
A primeira caraterística que emerge desta Carta é a grande obra de evangelização realizada pelo Apóstolo, que visitou as comunidades da Galácia pelo menos duas vezes durante as suas viagens missionárias. Paulo dirige-se aos cristãos daquele território. Não sabemos exatamente a que área geográfica se refere, nem podemos afirmar com certeza a data em que escreveu esta Carta. Sabemos que os gálatas eram uma antiga população celta que, através de muitas vicissitudes, se estabeleceu naquela extensa região da Anatólia que tinha a sua capital na cidade de Ancira, hoje Ancara, capital da Turquia. Paulo relata apenas que, por causa de uma doença, se viu obrigado a permanecer naquela região (cf. Gl 4, 13). Ao contrário, São Lucas, nos Atos dos Apóstolos, encontra uma motivação mais espiritual. Diz que «atravessando em seguida a Frígia e a província da Galácia, foram impedidos pelo Espírito Santo de anunciar a Palavra de Deus na (província da) Ásia» (16, 6). Os dois fatos não são contraditórios: pelo contrário, indicam que o caminho da evangelização nem sempre depende da nossa vontade e dos nossos projetos, mas requer a disponibilidade a deixar-nos plasmar e seguir outros caminhos que não estavam previstos. Entre vós está presente uma família que me saudou: contou-me que deve aprender o letão, e não sei quais outras línguas, pois vai como missionária para aquelas terras. O Espírito conduz também hoje muitos missionários que deixam a própria pátria e vão para outra terra em missão. O que verificamos, contudo, é que na sua incansável obra de evangelização o Apóstolo conseguiu fundar várias pequenas comunidades, espalhadas por toda a região da Galácia. Paulo, quando chegava a uma cidade, a uma região, não construía imediatamente uma grande catedral, não. Estabelecia as pequenas comunidades que são o fermento da nossa cultura cristã de hoje. Começava com as pequenas comunidades. E estas pequenas comunidades cresciam, cresciam e iam em frente. Também hoje este método pastoral é realizado em cada região missionária. Recebi uma carta na semana passada, de um missionário da Papua-Nova Guiné; disse-me que está a pregar o Evangelho na selva, às pessoas que não sabem nem sequer quem foi Jesus Cristo. Que bonito! Dá-se início a pequenas comunidades. Também hoje o método é aquele evangelizador da primeira evangelização.
O que queremos notar é a preocupação pastoral de Paulo que é toda fogo. Ele, após a fundação destas Igrejas, tomou consciência de um grande perigo – o pastor é como o pai ou a mãe que imediatamente se dá conta dos perigos que os filhos correm – para o seu crescimento na fé. Crescem e chegam os perigos. Como dizia alguém: “Chegam os abutres a fazer estragos na comunidade”. De facto, alguns cristãos vindos do judaísmo tinham-se infiltrado nestas igrejas e astutamente começaram a semear teorias contrárias aos ensinamentos do Apóstolo, chegando ao ponto de o difamar. Começam com a doutrina “esta sim, esta não”, e depois difamam o Apóstolo. É o caminho de sempre: tirar a autoridade ao Apóstolo. Como podemos ver, é uma prática antiga apresentar-se em certas ocasiões como os únicos possuidores da verdade – os puros – e procurar menosprezar o trabalho dos outros, até com a calúnia. Estes adversários de Paulo argumentaram que também os gentios tinham de se submeter à circuncisão e viver de acordo com as regras da lei mosaica. Voltam atrás às observâncias de antes, o que tinha sido superado pelo Evangelho. Portanto, os Gálatas teriam de renunciar à sua identidade cultural a fim de se submeterem às normas, prescrições e costumes típicos dos judeus. E não só. Esses opositores argumentaram que Paulo não era um verdadeiro apóstolo e, por conseguinte, não tinha autoridade para pregar o Evangelho. Muitas vezes vemos isto. Pensemos em alguma comunidade cristã ou diocese: começam as histórias e depois acabam por desacreditar o pároco, o bispo. É precisamente o caminho do maligno, das pessoas que dividem, que não sabem construir. E nesta Carta aos Gálatas vemos este procedimento.
Os Gálatas encontravam-se numa situação de crise. O que deviam fazer? Ouvir e seguir o que Paulo lhes tinha pregado, ou ouvir os novos pregadores que o acusavam? É fácil imaginar o estado de incerteza que animava os seus corações. Para eles, que conheceram Jesus e acreditaram na obra de salvação realizada através da sua morte e ressurreição, foi verdadeiramente o início de uma nova vida, uma vida de liberdade. Tinham enveredado por um caminho que lhes permitia finalmente ser livres, não obstante a sua história estivesse imbuída de muitas formas de escravidão violenta, nomeadamente a que os sujeitou ao imperador de Roma. Portanto, perante as críticas dos novos pregadores, sentiam-se desorientados e incertos sobre como se comportar: “Mas quem tem razão? Este Paulo, ou aquelas pessoas que agora estão a ensinar outras coisas? A quem devo ouvir? Em suma, os riscos eram realmente elevados!
Esta condição não está longe da experiência que muitos cristãos vivem na nossa época. Com efeito, ainda hoje, não faltam pregadores que, especialmente através dos novos meios de comunicação, podem perturbar as comunidades. Apresentam-se não para anunciar o Evangelho de Deus que ama o homem em Jesus Crucificado e Ressuscitado, mas para reiterar com insistência, como verdadeiros “guardiães da verdade” – assim se consideram – qual é a melhor maneira de ser cristão. Afirmam energicamente que o verdadeiro cristianismo é aquele ao qual estão ligados, frequentemente identificado com certas formas do passado, e que a solução para as crises de hoje é voltar atrás para não perder a genuinidade da fé. Também hoje, como outrora, existe a tentação de se fechar em algumas certezas adquiridas em tradições passadas. Mas como podemos reconhecer esta gente? Por exemplo, uma das caraterísticas do modo de proceder é a rigidez. Face à pregação do Evangelho que nos torna livres, jubilosos, eles são rígidos. Sempre a rigidez: deve-se fazer isto, deve-se fazer aquilo… A rigidez é própria dessas pessoas. Seguindo o ensino do Apóstolo Paulo na Carta aos Gálatas ajudar-nos-á a compreender qual caminho seguir. O caminho que o Apóstolo indicou é aquele libertador e sempre novo de Jesus Crucificado e Ressuscitado; é o caminho do anúncio, que se realiza através da humildade e da fraternidade, os novos pregadores não sabem o que é humildade nem fraternidade; é o caminho da confiança mansa e obediente, os novos pregadores não conhecem a mansidão nem a obediência. E este caminho manso e obediente vai em frente, na certeza de que o Espírito Santo age em cada época da Igreja. Em última instância, a fé no Espírito Santo presente na Igreja, leva-nos em frente e salvar-nos-á.
Papa Francisco
Catequese na audiência Geral 23.06.21
Catequese - 38. A oração pascal de Jesus para nós
Recordamos várias vezes nesta série de catequeses que a oração é uma das caraterísticas mais marcantes da vida de Jesus: Jesus rezava, e rezava muito. No decurso da sua missão, Jesus imergiu-se na oração, pois o diálogo com o Pai era o núcleo incandescente de toda a sua existência.
Os Evangelhos testemunham que a oração de Jesus se tornou ainda mais intensa e densa na hora da sua paixão e morte. Estes acontecimentos culminantes da sua vida constituem o âmago da pregação cristã: as últimas horas vividas por Jesus em Jerusalém são o coração do Evangelho não só porque os Evangelistas dedicam um espaço proporcionalmente maior para esta narração, mas também porque o acontecimento da sua morte e ressurreição – como um relâmpago – ilumina a inteira vicissitude de Jesus. Não era um filantropo que cuidava do sofrimento e das doenças humanas: era e é muito mais. Nele não há apenas bondade: há algo mais, há salvação, e não uma salvação episódica – a que me salva de uma doença ou de um momento de desânimo – mas uma salvação total, messiânica, que dá esperança na vitória definitiva da vida sobre a morte.
Portanto, nos dias da sua última Páscoa encontramos Jesus totalmente imerso na oração.
Ele reza de forma dramática no Jardim do Getsemani – como ouvimos – assaltado por uma angústia mortal. No entanto, naquele exato momento Jesus dirige-se a Deus, chamando-lhe “Abba”, Pai (cf. Mc 14, 36). Esta palavra aramaica – que era a língua de Jesus – exprime intimidade, exprime confiança. Precisamente quando sente as trevas que se adensam à sua volta, Jesus atravessa-as com aquela pequena palavra: Abba, Pai.
Jesus reza também na cruz, envolto no silêncio obscuro de Deus. Contudo, nos seus lábios, mais uma vez, aflora a palavra “Pai”. É a oração mais audaz, pois na cruz Jesus é o intercessor absoluto: reza pelos outros, reza por todos, até por aqueles que o condenam, sem que ninguém, exceto um pobre malfeitor, se declare a seu favor. Todos estavam contra Ele ou eram indiferentes, apenas aquele malfeitor reconhece o poder. «Pai, perdoa-lhes, pois não sabem o que fazem» (Lc 23, 34). No meio do drama, na dor atroz da alma e do corpo, Jesus reza com as palavras dos salmos; com os pobres do mundo, especialmente os esquecidos por todos, ele pronuncia as trágicas palavras do salmo 22: «Meu Deus, meu Deus, por que me abandonaste?» (v. 2): Ele sentia o abandono e rezava. Na cruz realiza-se o dom do Pai, que oferece o amor, isto é, cumpre-se a nossa salvação. E também, uma vez, o chama “Meu Deus”, “Pai, nas tuas mãos entrego o meu espírito”: ou seja, tudo, tudo é oração, nas três horas da Cruz.
Por conseguinte, Jesus reza nas horas decisivas da paixão e morte. E com a ressurreição, o Pai responderá à oração. A oração de Jesus é intensa, a oração de Jesus é única e torna-se inclusive o modelo da nossa prece. Jesus rezou por todos, rezou também por mim, por cada um de vós. Cada um de nós pode dizer: “Jesus, na cruz, rezou por mim”. Orou. Jesus pode dizer a cada um de nós: “Rezei por ti na Última Ceia e no madeiro da Cruz”. Até no mais doloroso dos nossos sofrimentos, nunca estamos sós. A oração de Jesus está conosco. “E agora, Padre, aqui, nós que estamos a ouvir isto, Jesus reza por nós?”. Sim, continua a orar para que a sua palavra nos ajude a ir em frente. Devemos orar e recordar que Ele reza por nós.
Isto parece-me o aspecto mais bonito a recordar. Esta é a última catequese deste ciclo sobre a oração: recordar a graça que não só imploramos, mas que, por assim dizer, fomos “implorados”, já somos acolhidos no diálogo de Jesus com o Pai, na comunhão do Espírito Santo. Jesus reza por mim: cada um de nós pode conservar isto no coração: não o podemos esquecer. Até nos momentos mais difíceis. Já fomos acolhidos no diálogo de Jesus com o Pai na comunhão do Espírito Santo. Fomos queridos em Cristo Jesus, e também na hora da paixão, morte e ressurreição tudo nos foi oferecido. E então, com a oração e com a vida, mais não resta do que ter coragem, esperança e com esta coragem e esperança sentir forte a oração de Jesus e ir em frente: que a nossa vida seja um dar glória a Deus na consciência de que Ele ora por mim ao Pai, que Jesus reza por mim.
Papa Francisco
Catequese na audiência geral 16.06.2021
Catequese - 37. Perseverar no amor
Nesta penúltima catequese sobre a oração falemos da perseverança no orar. É um convite, na verdade um mandamento, que nos é dado pela Sagrada Escritura. O itinerário espiritual do Peregrino russo começa quando se depara com uma frase de São Paulo na Primeira Carta aos Tessalonicenses: «orai sem cessar, e, em todas as circunstâncias, dai graças» (5, 17-18). As palavras do Apóstolo comovem aquele homem que se questiona como é possível rezar sem interrupção, dado que a nossa vida é fragmentada em tantos momentos diferentes, que nem sempre tornam possível a concentração. A partir desta pergunta ele começa a sua busca, que o levará a descobrir aquela que é chamada a oração do coração. Consiste em repetir com fé: “Senhor Jesus Cristo, Filho de Deus, tem piedade de mim, pecador!”. Uma oração simples, mas muito bonita. É uma oração que, pouco a pouco, se adapta ao ritmo da respiração e se estende ao longo do dia. Com efeito, a respiração nunca pára, nem sequer quando dormimos; e a oração é o respiro da vida.
Como é possível, então, manter sempre um estado de oração? O Catecismo oferece-nos belas citações, tiradas da história da espiritualidade, que insistem na necessidade de uma oração contínua, que é o ponto fulcral da existência cristã. Cito algumas.
O monge Evágrio do Ponto afirma: «Não nos foi pedido que trabalhemos, velemos e jejuemos constantemente – não, isto não nos foi pedido – mas temos a lei de orar sem cessar» (n. 2742). O coração em oração. Existe assim um ardor na vida cristã que nunca deve falhar. É um pouco como aquele fogo sagrado que se conservava nos antigos templos, que ardia sem interrupção e que os sacerdotes tinham a tarefa de manter vivo. Eis: também em nós deve haver um fogo sagrado, que arda continuamente e que nada possa extinguir. Não é fácil, mas deve ser assim.
São João Crisóstomo, outro pastor atento à vida concreta, pregava deste modo: «É possível, mesmo no mercado ou durante um passeio solitário, fazer oração frequente e fervorosa; sentados na vossa loja, a tratar de compras e vendas, até mesmo a cozinhar» (n. 2743). Pequenas orações: “Senhor, tem piedade de nós”, “Senhor, ajuda-me”. Pois bem, a oração é uma espécie de pauta musical, onde colocamos a melodia da nossa vida. Não está em contraste com o trabalho diário, não contradiz as muitas pequenas obrigações e compromissos, mas antes é o lugar onde cada ação encontra o seu sentido, o seu porquê, a sua paz.
Certamente, pôr em prática estes princípios não é fácil. Um pai e uma mãe, ocupados em mil afazeres, podem sentir nostalgia por um período da sua vida, quando era fácil encontrar tempos regulares e espaço para a oração. Depois, os filhos, o trabalho, as ocupações da vida familiar, os pais que envelhecem... Tem-se a impressão de nunca conseguir concluir tudo. Por isso é bom pensar que Deus, nosso Pai, o qual tem de cuidar de todo o universo, se lembra sempre de cada um de nós. Por conseguinte, também nós devemos recordá-Lo sempre!
Podemos então recordar que no monaquismo cristão o trabalho foi sempre realizado com grande honra, não só por dever moral de prover a si mesmo e aos outros, mas também por uma espécie de equilíbrio, um equilíbrio interior: é perigoso para o homem cultivar um interesse tão abstrato a ponto de perder o contacto com a realidade. O trabalho ajuda-nos a manter-nos em contacto com a realidade. As mãos juntas do monge contêm os calos daqueles que empunham pás e enxadas. Quando, no Evangelho de Lucas (cf. 10, 38-42), Jesus diz a Santa Marta que a única coisa realmente necessária é ouvir Deus, não significa de modo algum que despreza os muitos serviços que ela estava a realizar com tanto empenho.
Tudo no ser humano é “binário”: o nosso corpo é simétrico, temos dois braços, dois olhos, duas mãos.... Assim, também o trabalho e a oração são complementares. A oração – que é o “respiro” de tudo – continua a ser o pano de fundo vital do trabalho, até em momentos em que não é explícita. É desumano estar tão absorvidos pelo trabalho a ponto de não encontrar tempo para a prece.
Ao mesmo tempo, uma oração que esteja alienada da vida não é saudável. A oração que nos afasta da realidade do viver torna-se espiritualismo, ou, até pior, ritualismo. Recordemos que Jesus, depois de ter mostrado a sua glória aos discípulos no monte Tabor, não quis prolongar aquele momento de êxtase, mas desceu com eles do monte e retomou o caminho diário. Porque aquela experiência devia permanecer nos corações como luz e força da sua fé; também uma luz e força para os dias que estavam próximos: os da Paixão. Assim, os tempos dedicados a estar com Deus reavivam a fé, que nos ajuda na realidade da vida, e a fé, por sua vez, alimenta a oração, sem interrupção. Nesta circularidade entre fé, vida e oração, o fogo do amor cristão que Deus espera de nós mantém-se aceso.
E recitemos a oração simples que é tão bom repetir durante o dia, todos juntos: “Senhor Jesus, Filho de Deus, tem piedade de mim, pecador”.
Papa Francisco
Catequese na audiência geral 09.06.2021
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Catequese - 36. Jesus modelo e alma de cada oração
Os Evangelhos mostram-nos como a oração era fundamental na relação de Jesus com os seus discípulos. Isto já é evidente na escolha daqueles que mais tarde iriam ser os Apóstolos. Lucas coloca a eleição deles num exato contexto de oração, dizendo assim: «Naqueles dias, Jesus foi para o monte a fim de fazer oração, e passou a noite a orar a Deus. Aquando nasceu o dia, convocou os discípulos e escolheu doze entre eles aos quais deu o nome de apóstolos» (6, 12-13). Jesus escolhe-os depois de uma noite de oração. Parece que não há outro critério nesta escolha senão a oração, o diálogo de Jesus com o Pai. A julgar pela forma como esses homens se comportarão mais tarde, parece que a escolha não foi das melhores pois todos fugiram, deixaram-no sozinho antes da Paixão; mas é precisamente isto, sobretudo a presença de Judas, o futuro traidor, que mostra que esses nomes foram escritos no desígnio de Deus.
A oração a favor dos seus amigos reapresenta-se continuamente na vida de Jesus. Os Apóstolos por vezes tornam-se um motivo de preocupação para ele, mas Jesus, dado que os recebeu do Pai, depois da oração, leva-os no seu coração, até com os seus erros, inclusive as suas quedas. Em tudo isto descobrimos como Jesus foi mestre e amigo, sempre pronto a esperar pacientemente a conversão do discípulo. O ponto mais alto desta espera paciente é a “tela” de amor que Jesus tece à volta de Pedro. Na Última Ceia ele diz-lhe: «Simão, Simão olha que Satanás vos reclamou para vos joeirar como o trigo. Mas Eu roguei por ti, a fim de que a tua fé não desfaleça. E tu, uma vez convertido, fortalece os teus irmãos» (Lc 22, 31-32). Impressiona, no tempo da tentação, saber que naquele momento o amor de Jesus não cessa – “mas padre, se estou em pecado mortal, existe o amor de Jesus? – Sim – E Jesus continua a rezar por mim? – Sim – Mas se pratiquei coisas más e muitos pecados, será que Jesus continua a amar-me? – Sim”. O amor e a oração de Jesus por cada um de nós não cessam, aliás, tornam-se mais intensos e nós estamos no centro da sua oração! Devemos sempre recordar isto: Jesus está a rezar por mim, está a rezar agora perante o Pai e mostra-lhe as feridas que carregou consigo, para que o Pai possa ver o preço da nossa salvação, eis o amor que Ele nutre por nós. Mas, agora, cada um de nós pense: neste momento Jesus está a rezar por mim? Sim. Esta é uma grande certeza que devemos ter.
A oração de Jesus apresenta-se pontualmente num momento crucial do seu caminho, o da verificação da fé dos discípulos. Ouçamos novamente o evangelista Lucas: «Um dia em que ele estava a orar a sós com os discípulos, perguntou-lhes: “Quem dizem as multidões que Eu sou?”. Responderam-lhe: “João Batista; outros, Elias; outros, um dos antigos profetas ressuscitado”. Perguntou-lhes, então: “E vós, quem dizeis que Eu sou?” Pedro tomou a palavra e respondeu, em nome de todos: “O Messias de Deus”. Ele proibiu-lhes, formalmente, de o dizerem fosse a quem fosse» (9, 18-21). As grandes mudanças da missão de Jesus são sempre precedidas de uma oração, mas não assim en passant, mas de oração intensa e prolongada. Há sempre naqueles momentos a oração. Esta verificação da fé parece ser uma meta, mas ao contrário é um ponto de partida renovado para os discípulos, pois, a dali em diante, é como se Jesus assumisse um novo tom na sua missão, falando-lhes abertamente da sua paixão, morte e ressurreição.
Nesta perspectiva, que instintivamente suscita repulsa, tanto nos discípulos como em nós que lemos o Evangelho, a oração é a única fonte de luz e força. É necessário rezar mais intensamente, cada vez que o caminho se torna íngreme.
E de facto, depois de anunciar aos discípulos o que o espera em Jerusalém, tem lugar o episódio da Transfiguração. «Levando consigo Pedro, Tiago e João, Jesus subiu ao monte para orar. Enquanto orava, modificou-se o aspecto do seu Rosto e as vestes tornaram-se de brancura fulgurante. E dois homens conversavam com Ele: Moisés e Elias que, aparecendo rodeados de glória, falavam da Sua morte, que ia dar-se em Jerusalém» (Lc 9, 28-31), isto é, a Paixão. Portanto, esta manifestação antecipada da glória de Jesus teve lugar na oração, enquanto o Filho estava imerso em comunhão com o Pai e consentiu plenamente à sua vontade de amor, ao seu desígnio de salvação. E daquela oração sobressai uma palavra clara para os três discípulos envolvidos: «Este é o meu Filho dileto; escutai-o!» (Lc 9, 35). Da oração vem o convite a ouvir Jesus, sempre da oração.
Deste rápido percurso através do Evangelho, deduzimos que Jesus não só quer que rezemos enquanto Ele reza, mas assegura-nos que mesmo que as nossas tentativas de oração fossem completamente vãs e ineficazes, podemos sempre contar com a sua oração. Devemos estar conscientes: Jesus está a rezar por mim. Uma vez, um bom bispo disse-me que num momento muito mau da sua vida e de uma grande provação, um momento de escuridão, ele, na Basílica, olhou para alto e viu esta frase escrita: “Eu, Pedro, rezarei por ti”. E isso deu-lhe força e conforto. Acontece sempre, todas as vezes que cada um de nós sabe que Jesus reza por nós. Jesus reza por nós. Neste momento, neste momento. Fazei este exercício de memória de repetir isto. Quando há alguma dificuldade, quando se está na órbita das distrações: Jesus está a rezar por mim. Mas será verdade, padre? É verdade, disse-o ele mesmo. Não esqueçamos que o que sustenta cada um de nós na vida é a oração de Jesus por todos nós, com nome, sobrenome, perante o Pai, mostrando-lhe as feridas que são o preço da nossa salvação.
Mesmo que as nossas orações fossem apenas balbúcies, se estivessem prejudicadas por uma fé vacilante, nunca devemos deixar de confiar n’Ele, eu não sei rezar mas Ele ora por mim. Sustentadas pela oração de Jesus, as nossas tímidas preces apoiam-se nas asas da águia e elevam-se ao Céu. Não vos esqueçais: Jesus está a rezar por mim – Agora? – Agora. No momento da provação, no momento do pecado, também naquele momento, Jesus com muito amor está a rezar por mim.
Papa Francisco
Catequese na audiência geral 02.02.2021
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Catequese - 35. A certeza de ser escutado
Há uma contestação radical à oração, que deriva de uma observação que todos nós fazemos: rezamos, pedimos, e, no entanto, por vezes as nossas orações parecem não ser ouvidas: o que pedimos – para nós ou para os outros – não se realizou. Passamos por esta experiência muitas vezes. Se a razão pela qual rezámos era nobre (como pode ser a intercessão pela saúde de uma pessoa doente, ou pelo fim de uma guerra), o não cumprimento parece escandaloso. Por exemplo, pelas guerras: rezamos a fim de que acabem as guerras, as guerras em tantas partes do mundo, pensemos no Iémen, na Síria, países que estão em guerra há anos, há anos! Países atormentados pelas guerras, rezamos e elas não terminam. Como pode isto acontecer? «Alguns deixam mesmo de orar porque, segundo pensam, o seu pedido não é atendido (Catecismo da Igreja Católica, n. 2734). Mas se Deus é Pai, por que não nos ouve? Ele, que nos garantiu que dá coisas boas aos filhos que Lhe pedem (cf. Mt 7, 10), por que não responde aos nossos pedidos? Todos nós tivemos esta experiência: rezámos, rezámos, pela doença de um amigo, de um pai, de uma mãe e depois eles morreram, Deus não nos atendeu. É uma experiência de todos nós.
O Catecismo oferece-nos um bom resumo da questão. Adverte-nos contra o risco de não termos uma experiência autêntica de fé, mas de transformarmos a nossa relação com Deus em algo mágico. A oração não é uma varinha mágica: é um diálogo com o Senhor. De facto, quando rezamos, podemos cair no risco de não sermos nós a servir Deus, mas de pretender que Ele nos sirva (cf. n. 2735). Eis então uma oração que é sempre exigente, que pretende orientar os acontecimentos de acordo com o nosso plano, que não permite qualquer outros projetos para além dos nossos desejos. Por outro lado, Jesus teve grande sabedoria ao colocar o “Pai-Nosso” nos nossos lábios. É uma oração unicamente de pedidos, como sabemos, mas os primeiros que pronunciamos estão todos da parte de Deus. Pedem que não seja realizado o nosso desejo, mas a sua vontade para o mundo. Melhor deixar que Ele faça: «Santificado seja o vosso nome, venha a nós o vosso Reino, seja feita a vossa vontade» (Mt 6, 9-10).
O apóstolo Paulo lembra-nos que nem sequer sabemos o que é conveniente pedir (cf. Rm 8, 26). Pedimos pelas nossas necessidades, pelo que precisamos, pelas coisas que desejamos, “mas isto é conveniente ou não?”. Paulo diz-nos: nem sequer sabemos o que é conveniente pedir. Quando rezamos, devemos ser humildes: esta é a primeira atitude quando se reza. Assim como há o costume em muitos lugares que para ir rezar à igreja, as mulheres usam o véu ou se benzem com a água santa antes de iniciar a rezar, deste modo devemos dizer-nos, antes da prece, o que é mais conveniente, que Deus me conceda aquilo que mais me convém: Ele sabe. Quando rezamos devemos ser humildes, para que as nossas palavras sejam realmente orações e não um vanilóquio que Deus rejeita. Também podemos rezar por motivos errados: por exemplo, para derrotar o inimigo na guerra, sem nos perguntarmos o que pensa Deus dessa guerra. É fácil escrever num estandarte “Deus está connosco”; muitos estão ansiosos por garantir que Deus esteja com eles, mas poucos se preocupam em verificar se estão realmente com Deus. Na oração, é Deus que nos deve converter, não nós que devemos converter Deus. É a humildade. Vou rezar, mas Tu, Senhor, converte o meu coração para que peça o que é conveniente, o que for melhor para a minha saúde espiritual.
No entanto, o escândalo permanece: quando as pessoas rezam com um coração sincero, quando pedem bens que correspondem ao Reino de Deus, quando uma mãe reza pelo filho doente, por que parece que às vezes Deus não ouve? Para responder a esta pergunta, precisamos de meditar calmamente sobre os Evangelhos. As narrações da vida de Jesus estão cheias de orações: muitas pessoas feridas no corpo e no espírito pedem-lhe que as cure; há aqueles que rezam por um amigo que já não pode andar; há pais e mães que lhe trazem filhos e filhas doentes... Todas são orações impregnadas de sofrimento. É um coro imenso que invoca: “Tende piedade de nós”.
Vemos que por vezes a resposta de Jesus é imediata, mas noutros casos, é adiada no tempo: parece que Deus não responde. Pensemos na mulher cananeia que implora a Jesus pela sua filha: esta mulher deve insistir longamente para ser ouvida (cf. Mt 15, 21-28). Há também a humildade de ouvir uma palavra de Jesus que parece um pouco ofensiva: não devemos lançar o pão aos cães, aos cãezinhos. Mas àquela mulher não importa a humilhação: importa a saúde da filha. E vai adiante: “Sim, também os cãezinhos comem o que cai da mesa”, e isto agradou a Jesus. A coragem na oração. Pensemos também no paralítico trazido pelos seus quatro amigos: inicialmente Jesus perdoa os seus pecados e só num segundo momento o cura no seu corpo (cf. Mc 2, 1-12). Assim, nalgumas ocasiões, a solução para o drama não é imediata. Também na nossa vida, cada um de nós tem esta experiência. Façamos mente local: quantas vezes pedimos uma graça, um milagre, digamos, e nada aconteceu. Depois, com o tempo, a situação resolve-se, mas segundo o modo de Deus, o modo divino, não de acordo com o que queríamos naquele momento. O tempo de Deus não é o nosso tempo.
Deste ponto de vista, a cura da filha de Jairo merece especial atenção (cf. Mc 5, 21-33). Há um pai que está com pressa: a sua filha está doente e por esta razão pede a ajuda de Jesus. O Mestre aceita imediatamente, mas quando estão a caminho da casa acontece outra cura, e depois chega a notícia de que a menina morreu. Parece ser o fim, mas em vez disso Jesus diz ao pai: «Não tenhas receio; crê somente!» (Mc 5, 36). “Continua a ter fé”: pois é a fé que sustenta a oração. E, de facto, Jesus despertará aquela menina do sono da morte. Mas durante algum tempo, Jairo teve que caminhar no escuro, apenas com a chama da fé. Senhor, dai-me fé! Que a minha fé cresça! Pedir esta graça, ter fé. No Evangelho Jesus diz que a fé move montanhas. Mas, ter fé seriamente. Jesus, diante da fé dos seus pobres, dos seus homens, cai vencido, sente uma ternura especial, diante daquela fé. E ouve.
Também a oração que Jesus dirige ao Pai no Getsémani parece não ter sido ouvida: “Pai, se possível, afasta de mim o que me espera”. Parece que o Pai não o ouviu. O Filho terá de beber até ao fim o cálice da paixão. Mas o Sábado Santo não é o capítulo final, porque no terceiro dia, isto é o domingo, há a ressurreição. O mal é senhor do penúltimo dia: recordai bem isto. O mal nunca é o senhor do último dia, não: do penúltimo, o momento no qual a noite é mais escura, precisamente antes da aurora. No penúltimo dia há a tentação onde o mal nos faz compreender que venceu: “Viste? Eu venci!”. O mal é senhor do penúltimo dia: no último dia há a ressurreição. Mas o mal nunca é senhor do último dia: Deus é o Senhor do último dia. Porque este dia pertence apenas a Deus, e é o dia em que todos os anseios humanos de salvação serão cumpridos. Aprendamos esta paciência humilde de esperar a graça do Senhor, esperar o último dia. Muitas vezes, o penúltimo dia é muito doloroso, pois os sofrimentos humanos são maus. Mas o Senhor está presente e no último dia Ele resolve tudo.
Papa Francisco
Catequese na Audiência Geral 26.05.2021
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«Virá o Paráclito, que Eu vos hei de enviar da parte do Pai» (cf. Jo 15, 26). Com estas palavras, Jesus promete aos discípulos o Espírito Santo, o dom supremo, o dom dos dons; e fala do Espírito, usando uma palavra particular, misteriosa: Paráclito. Debrucemo-nos hoje sobre esta palavra, que não é fácil de traduzir pois encerra vários significados. Substancialmente, Paráclito significa duas coisas: Consolador e Advogado.
1. O Paráclito é o Consolador. Todos nós, especialmente em momentos difíceis como este que estamos a atravessar devido à pandemia, procuramos consolações. Muitas vezes, porém, recorremos só a consolações terrenas, que depressa se extinguem, são consolações momentâneas. Hoje Jesus oferece-nos a consolação do Céu, o Espírito, o «Consolador perfeito» (Sequência). Qual é a diferença? As consolações do mundo são como os anestésicos: oferecem um alívio momentâneo, mas não curam o mal profundo que temos dentro. Insensibilizam, distraem, mas não curam pela raiz. Agem à superfície, ao nível dos sentidos, dificilmente ao nível do coração. Com efeito, só dá paz ao coração quem nos faz sentir amados tal como somos. E o Espírito Santo, o amor de Deus, faz isso: como Espírito que é, age no nosso espírito, desce ao mais íntimo de nós mesmos. visita «o íntimo do coração», pois é «das almas hóspede amável» (ibid.). É a ternura de Deus em pessoa, que não nos deixa sozinhos; e o facto de estar com quem vive sozinho, já é consolar.
Irmã, irmão, se sentes o negrume da solidão, se trazes dentro um peso que sufoca a esperança, se tens no coração uma ferida que queima, se não encontras a via de saída, abre-te ao Espírito. Como dizia São Boaventura, «onde houver maior tribulação, Ele leva maior consolação. Não faz como o mundo, que na prosperidade consola e adula, mas na adversidade troça e condena» (Sermão na Oitava da Ascensão). Assim faz o mundo, assim faz sobretudo o espírito maligno, o diabo: primeiro, lisonjeia-nos e faz-nos sentir invencíveis – as lisonjas do diabo, que fazem crescer a vaidade –, depois atira-nos ao chão e faz-nos sentir errados: joga connosco. Faz todo o possível por nos derrubar, enquanto o Espírito do Ressuscitado nos quer levantar. Olhemos os Apóstolos: estavam sozinhos naquela manhã, estavam sozinhos e perdidos, com as portas fechadas pelo medo; viviam no temor, tendo diante dos olhos todas as suas fragilidades e fracassos, os seus pecados: tinham renegado Jesus Cristo. Os anos transcorridos com Jesus não conseguiram mudá-los, continuavam a ser os mesmos. Depois, recebem o Espírito e tudo muda: os problemas e defeitos permanecem os mesmos, mas eles já não os temem porque não temem sequer quem pretende fazer-lhes mal. Sentem-se intimamente consolados, e querem fazer transbordar a consolação de Deus. Antes eram medrosos, agora só têm medo de não testemunhar o amor recebido. Jesus profetizara-o: o Espírito «dará testemunho a meu favor. E vós também haveis de dar testemunho» (Jo 15, 26-27).
Avancemos um passo. Também nós somos chamados a dar testemunho no Espírito Santo, a tornar-nos paráclitos, isto é consoladores. Sim, o Espírito pede-nos para darmos corpo à sua consolação. E como podemos fazê-lo? Não fazendo grandes discursos, mas aproximando-nos das pessoas; não com palavras empoladas, mas com a oração e a proximidade. Lembremo-nos de que a proximidade, a compaixão e a ternura são o estilo de Deus, sempre. O Paráclito diz à Igreja que hoje é o tempo da consolação. É o tempo do anúncio feliz do Evangelho, mais do que do combate ao paganismo. É o tempo para levar a alegria do Ressuscitado, não para nos lamentarmos do drama da secularização. É o tempo para derramar amor sobre o mundo, sem abraçar o mundanismo. É o tempo para testemunhar a misericórdia, mais do que para inculcar regras e normas. É o tempo do Paráclito! É o tempo da liberdade do coração, no Paráclito.
2. Depois, o Paráclito é o Advogado. No contexto histórico de Jesus, o advogado não exercia as suas funções como hoje: em vez de falar pelo acusado, costumava ficar junto dele sugerindo-lhe ao ouvido os argumentos para se defender. Assim faz o Paráclito, «o Espírito da verdade» (Jo 15, 26), que não nos substitui, mas defende-nos das falsidades do mal, inspirando-nos pensamentos e sentimentos. Fá-lo com delicadeza, sem nos forçar: propõe, não Se impõe. O espírito da falsidade, o maligno, faz o contrário: procura constranger-nos, quer fazer-nos acreditar que somos sempre obrigados a ceder às más sugestões e aos impulsos dos vícios. Esforcemo-nos então por acolher três sugestões típicas do Paráclito, do nosso Advogado. São três antídotos basilares contra três tentações atualmente muito difusas.
O primeiro conselho do Espírito Santo é: «Vive no presente»; no presente, não no passado nem no futuro. O Paráclito afirma o primado do hoje, contra a tentação de fazer-se paralisar pelas amarguras e nostalgias do passado, ou de focar-se nas incertezas do amanhã e deixar-se obcecar pelos temores do futuro. O Espírito lembra-nos a graça do presente. Não há tempo melhor para nós: agora e aqui onde estamos é o único e irrepetível momento para fazer bem, fazer da vida uma dádiva. Vivamos no presente!
Depois o Paráclito aconselha: «Procura o todo». O todo, não a parte. O Espírito não molda indivíduos fechados, mas funde-nos como Igreja na multiforme variedade dos carismas, numa unidade que nunca é uniformidade. O Paráclito afirma o primado do todo. É no todo, na comunidade que o Espírito gosta de agir e inovar. Olhemos para os Apóstolos. Eram muito diferentes entre eles: por exemplo, havia Mateus, um publicano que colaborara com os Romanos, e Simão, chamado o Zelote, que a eles se opunha. Tinham ideias políticas opostas, visões do mundo diferentes. Mas, quando recebem o Espírito, aprendem a dar o primado não aos seus pontos de vista humanos, mas ao todo de Deus. Hoje, se dermos ouvidos ao Espírito, deixaremos de nos focar em conservadores e progressistas, tradicionalistas e inovadores, de direita e de esquerda; se fossem estes os critérios, significava que na Igreja se esquecia o Espírito. O Paráclito impele à unidade, à concórdia, à harmonia das diversidades. Faz-nos sentir parte do mesmo Corpo, irmãos e irmãs entre nós. Procuremos o todo! E o inimigo quer que a diversidade se transforme em oposição e por isso faz com que se torne ideologia. Devemos dizer «não» às ideologias, «sim» ao todo.
Por fim, o terceiro grande conselho: «Coloca Deus antes do teu eu». Está aqui o passo decisivo da vida espiritual, que não é uma coleção de méritos e obras nossas, mas humilde acolhimento de Deus. O Paráclito afirma o primado da graça. Só deixaremos espaço ao Senhor, se nos esvaziarmos de nós mesmos; só nos encontramos a nós mesmos, se nos entregamos a Ele; só como pobres em espírito é que nos tornamos ricos de Espírito Santo. Isto vale também para a Igreja. Com as nossas forças, não salvamos ninguém, nem sequer a nós mesmos. Se estiverem em primeiro lugar os nossos projetos, as nossas estruturas e os nossos planos de reforma, então decairemos no funcionalismo, no pragmatismo, no horizontalismo e não produziremos fruto. Os «ismos» são ideologias que dividem, que separam. A Igreja não é uma organização humana – é humana, mas não é apenas uma organização humana –, a Igreja é o templo do Espírito Santo. Jesus trouxe o fogo do Espírito à terra, e a Igreja reforma-se com a unção, a gratuidade da unção da graça, com a força da oração, com a alegria da missão, com a beleza desarmante da pobreza. Coloquemos Deus em primeiro lugar!
Espírito Santo, Espírito Paráclito, consolai os nossos corações. Fazei-nos missionários da vossa consolação, paráclitos de misericórdia para o mundo. Ó nosso Advogado, suave Sugeridor da alma, tornai-nos testemunhas do hoje de Deus, profetas de unidade para a Igreja e a humanidade, apóstolos apoiados na vossa graça, que tudo cria e tudo renova. Amem.
Papa Francisco
Homilia na missa de Pentecostes.
23.03.2021
Catequese - 34. Distrações, aridez, acídia
Seguindo o exemplo do Catecismo, nesta catequese referimo-nos à experiência vivida da oração, procurando mostrar algumas das suas dificuldades muito comuns, que devem ser identificadas e superadas. Rezar não é fácil: há muitas dificuldades que surgem na oração. É preciso conhecê-las, identificá-las e superá-las.
O primeiro problema que se apresenta para aqueles que rezam é a distração (cf. CIC, 2729). Começas a rezar e depois a mente roda, roda pelo mundo inteiro; o teu coração está ali, a mente está acolá… a distração da prece. A oração convive frequentemente com a distração. De facto, a mente humana tem dificuldade de se concentrar por muito tempo num único pensamento. Todos nós experimentamos este turbilhão contínuo de imagens e ilusões em movimento perpétuo, que nos acompanha até durante o sono. E todos sabemos que não é bom dar seguimento a esta inclinação fragmentada.
A luta para alcançar e manter a concentração não se limita à oração. Se não se atinge um grau de concentração suficiente, não se pode estudar com proveito, nem se pode trabalhar bem. Os atletas sabem que as competições são ganhas não só pelo treino físico, mas também pela disciplina mental: acima de tudo, pela capacidade de estarem concentrados e de manter alerta a atenção.
As distrações não são culpadas, mas devem ser combatidas. No património da nossa fé há uma virtude que é frequentemente esquecida, mas que está muito presente no Evangelho. Chama-se “vigilância”. E Jesus repete-o com frequência: “Vigiai. Rezai”. O Catecismo menciona-a explicitamente na sua instrução sobre a oração (cf. n. 2730). Jesus chama frequentemente os discípulos ao dever de uma vida sóbria, guiada pelo pensamento de que mais cedo ou mais tarde ele voltará, como um noivo volta das bodas ou um senhor da viagem. No entanto, sem saber o dia nem a hora do Seu regresso, todos os minutos da nossa vida são preciosos e não devem ser desperdiçados em distrações. Num momento que não conhecemos, a voz do nosso Senhor ressoará: nesse dia, bem-aventurados os servos que Ele encontrará laboriosos, ainda concentrados no que realmente importa. Não se dispersaram perseguindo todas as atrações que lhes vinham à mente, mas procuraram empreender o caminho certo, praticando o bem e desempenhando a própria tarefa. Esta é a distração: que a imaginação roda, roda, roda… Santa Teresa definia esta imaginação que roda, roda na oração, “a louca de casa”: é como uma louca que te faz rodar, rodar… Devemos impedi-la e aprisioná-la com a atenção.
O tempo da aridez merece um discurso diferente. O Catecismo descreve-o deste modo: «O coração está seco, sem gosto pelos pensamentos, lembranças e sentimentos, mesmo espirituais. É o momento da fé pura, que se aguenta fielmente ao lado de Jesus na agonia e no sepulcro» (n. 2731). A aridez faz-nos pensar na Sexta-Feira Santa, na noite e no Sábado Santo, o dia inteiro: Jesus não está presente, está no sepulcro; Jesus morreu: estamos sozinhos. E este é o pensamento-mãe da aridez. Muitas vezes não sabemos quais são as razões da aridez: pode depender de nós, mas também de Deus, que permite certas situações na vida exterior ou interior. Ou, às vezes, pode ser uma dor de cabeça ou um no fígado que te impede de entrar na oração. Com frequência não sabemos a razão. Os mestres espirituais descrevem a experiência da fé como uma alternância contínua de tempos de consolação e tempos de desolação; momentos em que tudo é fácil, enquanto outros são marcados por uma grande dificuldade. Muitas vezes, ao encontrarmos um amigo, dizemos: “Como estás?” – “Hoje sinto-me abatido”. Acontece que às vezes nos sentimo “abatidos”, isto é, não temos sentimentos, não temos consolação, não aguentamos mais. São aqueles dias cinzentos… e existem muitos na vida! Mas o perigo é ter o coração cinzento: quando este “sentir-se abatido” chega ao coração e o faz adoecer… e há pessoas que vivem com o coração cinzento. Isto é terrível: não se pode rezar, não se pode sentir consolação com o coração cinzento! Ou não se pode levar adiante uma aridez espiritual com o coração cinzento. O coração deve ser aberto e luminoso, para que entre a luz do Senhor. E se não entrar, é preciso aguardá-la com esperança. Mas não devemos fechá-la no cinzento.
Depois, algo diverso é a acédia, outro defeito, outro vício, que é uma verdadeira tentação contra a oração e, mais geralmente, contra a vida cristã. A acédia é «uma forma de depressão devida ao relaxamento da ascese, à diminuição da vigilância, à negligência do coração» (CIC, 2733). É um dos sete “pecados capitais” pois, alimentado pela presunção, pode levar à morte da alma.
O que devemos fazer, então, nesta sucessão de entusiasmos e desânimos? Deve-se aprender a caminhar sempre. O verdadeiro progresso na vida espiritual não consiste em multiplicar os êxtases, mas em ser capaz de perseverar em tempos difíceis: caminha, caminha, caminha… E se te sentires cansado, pára um pouco e volta a caminhar. Mas com perseverança. Recordemos a parábola de São Francisco sobre a alegria perfeita: não é nas infinitas fortunas que caem do céu que se mede a capacidade de um frade, mas em caminhar com constância, mesmo quando não se é reconhecido, mesmo quando se é maltratado, ou quando tudo perdeu o sabor do princípio. Todos os santos passaram por este “vale escuro”, e não nos escandalizemos se, lendo os seus diários, ouvirmos o relato de noites de oração sem vontade, vivida sem gosto. Temos de aprender a dizer: “Ainda que Tu, meu Deus, pareças fazer tudo para que eu deixe de acreditar em Ti, continuo a rezar a Ti”. Os crentes nunca apagam a oração! Por vezes pode assemelhar-se à oração de Job, o qual não aceita que Deus o trate injustamente, protesta e chama-o em juízo. Mas, muitas vezes, protestar diante de Deus é também um modo de rezar ou, como dizia aquela velhinha, “zangar-se com Deus também é um modo de rezar”, pois com frequência o filho zanga-se com o pai: é um modo de se relacionar com o pai; pois reconhece-o como “pai”, zanga-se…
E também nós, que somos muito menos santos e pacientes do que Job, sabemos que no final, no fim deste tempo de desolação, em que elevámos ao Céu gritos silenciosos e muitos “porquês?”, Deus responder-nos-á. Não esqueçais a oração do “porquê?”: é a prece que recitam as crianças quando começam a não entender as coisas e os psicólogos definem-na “a idade dos porquês”, pois a criança pergunta ao pai: “Pai, porquê…? Pai, porquê…? Papai, porquê…?”. Mas prestemos atenção: a criança não ouve a resposta do pai. O pai começa a responder e a criança apresenta outro porquê. Só quer chamar para si a atenção do pa; e quando nos zangamos um pouco com Deus e começamos a pronunciar os porquês, estamos a atrair o coração do nosso Pai na direção da nossa miséria, da nossa dificuldade, da nossa vida. Mas sim, tende coragem de dizer a Deus: “Mas porquê…?”. Pois às vezes, zangar-se um pouco faz bem, faz-nos despertar esta relação de filho com o Pai, de filha com o Pai, que devemos manter com Deus. E até as nossas expressões mais duras e amargas, Ele as acolherá com o amor de um pai, e considerá-las-á como um ato de fé, como uma oração.
Papa Francisco
Catequese na audiência geral 19.05.2021
Catequese - 33. O combate da oração
Estimados irmãos e irmãs, bom dia!
Sinto-me feliz por retomar este encontro face a face, pois digo-vos uma coisa: não é agradável falar em frente de nada, em frente de uma câmara. Não é agradável. E agora, depois de tantos meses, graças à coragem de monsenhor Sapienza – que disse: “Não, façamo-la ali” – estamos aqui reunidos. Muito bem, monsenhor Sapienza! Encontrar o povo, encontrar-vos, cada um com a própria história, pessoas que vêm de todas as partes, da Itália, dos Estados Unidos, da Colômbia, depois aquela pequena equipa de futebol de quatro irmãozinhos suíços – penso – estão ali... quatro. Falta a irmãzinha, esperemos que ela chegue... E ver cada um de vós dá-me prazer, porque somos todos irmãos no Senhor e olhar uns para os outros ajuda-nos a rezar uns pelos outros. Até as pessoas que estão longe, mas que se fazem sempre próximas. A sœur Geneviève, que não pode faltar, que vem dum Parque diversões, pessoas que trabalham: são muitas e estão todas aqui. Obrigado pela vossa presença e pela vossa visita. Levai a mensagem do Papa a todos. A mensagem do Papa é que rezo por todos, e peço que rezeis por mim unidos em oração.
E por falar em oração, a oração cristã, como toda a vida cristã, não é um “passeio”. Nenhum dos grandes orantes que encontramos na Bíblia e na história da Igreja teve uma oração “confortável”. Sim, podemos rezar como os papagaios – blá-blá-blá – mas isto não é oração. A oração certamente concede uma grande paz, mas através de uma luta interior, por vezes dura, que pode acompanhar até longos períodos da vida. Rezar não é algo fácil e por isso fugimos da oração. Cada vez que a queremos fazer, de repente lembramos de outras atividades, que naquele momento parecem mais importantes e urgentes. Isto acontece também a mim: vou rezar um pouco… E não, devo fazer isto e aquilo… Fugimos da oração, não sei porquê, mas é assim. Quase sempre, depois de termos adiado a oração, percebemos que aquelas coisas não eram absolutamente essenciais, e que talvez tenhamos desperdiçado tempo. O Inimigo engana-nos deste modo.
Todos os homens e mulheres de Deus relatam não só a alegria da oração, mas também o desconforto e o cansaço que ela pode provocar: por vezes é uma luta difícil respeitar os tempos e as formas de oração. Alguns santos levaram-na a cabo durante anos sem experimentar qualquer gosto por ela, sem se aperceberem da sua utilidade. O silêncio, a oração e a concentração são exercícios difíceis, e por vezes a natureza humana rebela-se. Preferiríamos estar em qualquer outra parte do mundo, mas não ali, naquele banco de igreja a rezar. Quem quiser rezar deve lembrar-se de que a fé não é fácil, e por vezes procede na quase total obscuridade, sem pontos de referência. Há momentos da vida de fé que são obscuros e por isso alguns Santos definiu-os: “A noite escura”, pois não se sente nada. Mas eu continuo a rezar.
O Catecismo enumera uma longa lista de inimigos da oração, aqueles que tornam difícil rezar, que põem dificuldades (cf. nn. 2726-2728). Alguns duvidam que a oração possa realmente alcançar o Todo-Poderoso: por que permanece Deus em silêncio? Se Deus é Omnipotente, poderia dizer duas palavras e pôr fim à história. Perante a intangibilidade do divino, outros suspeitam que a oração é uma mera operação psicológica; algo que pode ser útil, mas que não é verdadeiro nem necessário: poder-se-ia até ser praticante sem ser crente. E assim por diante, muitas explicações.
Contudo, os piores inimigos da oração estão dentro de nós. O Catecismo chama-os assim: «desânimo na aridez, tristeza por não dar tudo ao Senhor, porque temos “muitos bens”, decepção por não sermos atendidos segundo a nossa própria vontade, o nosso orgulho ferido que se endurece perante a nossa indignidade de pecadores, alergia à gratuidade da oração» (n. 2728). Trata-se claramente de uma lista sumária, que poderia ser aumentada.
O que fazer no tempo da tentação, quando tudo parece vacilar? Se olharmos para a história da espiritualidade, vemos imediatamente que os mestres da alma foram muito claros sobre a situação que descrevemos. Para a superar, cada um deles ofereceu alguma contribuição: uma palavra de sabedoria, ou uma sugestão para enfrentar tempos carregados de dificuldades. Não se trata de teorias elaboradas, não, mas de conselhos nascidos da experiência, que mostram a importância de resistir e perseverar na oração.
Seria interessante rever pelo menos alguns destes conselhos, porque cada um deles merece ser estudado em profundidade. Por exemplo, os Exercícios espirituais de Santo Inácio de Loyola são um livrete de grande sabedoria, que ensina como pôr a vida em ordem. Faz-nos compreender que a vocação cristã é militância, é decisão de estar sob a bandeira de Jesus Cristo e não sob a do diabo, procurando praticar o bem até quando se torna difícil.
Nos tempos de provação é bom lembrar que não estamos sozinhos, que alguém olha para nós e nos protege. Até Santo António Abade, fundador do monaquismo cristão, enfrentou momentos terríveis no Egito, quando a oração se tornou uma dura luta. O seu biógrafo Santo Atanásio, Bispo de Alexandria, narra que um dos piores episódios aconteceu ao Santo eremita por volta dos trinta e cinco anos, a meia-idade que para muitas pessoas comporta uma crise. António ficou perturbado com aquela provação, mas resistiu. Quando finalmente voltou a sentir-se sereno, dirigiu-se ao seu Senhor com um tom quase de reprovação: «Onde estavas? Por que não vieste imediatamente para pôr fim aos meus sofrimentos?». E Jesus respondeu: «António, eu estava lá. Mas esperava para te ver combater» (Vida de António, 10). Lutar na oração. E muitas vezes a oração é uma luta. Lembro-me de algo que vivi de perto, quando estava na outra diocese. Havia um casal que tinha uma filha de nove anos com uma doença que os médicos não sabiam o que era. E finalmente, no hospital, o médico disse à mãe: “Senhora, chame o seu marido”. E o marido estava no trabalho; eram operários, trabalhavam todos os dias. E disse ao pai: “O bebé não vai superar a noite. É uma infeção, não há nada que podemos fazer”. Aquele homem, talvez não fosse à missa todos os domingos, mas tinha uma grande fé. Saiu a chorar, deixou a sua esposa com a criança no hospital, apanhou o comboio e fez a viagem de setenta quilómetros até à Basílica de Nossa Senhora de Luján, Padroeira da Argentina. E lá – a Basílica já estava fechada, eram quase dez horas da noite – ele agarrou-se às grades da Basílica e rezou toda a noite a Nossa Senhora, lutando pela saúde da sua filha. Isto não é uma fantasia; eu vi-o! Eu vivi isto. Aquele homem ali a lutar. No final, às seis horas da manhã, a igreja abriu-se e ele entrou para saudar Nossa Senhora: toda a noite “lutou”, e depois foi para casa. Quando chegou, procurou a sua esposa, mas não a encontrou, e pensou: “Ela foi embora. Não, Nossa Senhora não me pode fazer isto”. Depois encontrou-a, sorrindo e dizendo: “Mas não sei o que aconteceu; os médicos dizem que a situação mudou e agora está curada”. Aquele homem que lutava com a oração obteve a graça de Nossa Senhora. Nossa Senhora ouviu-o. E eu vi isto: a oração faz milagres, porque a oração vai direta ao centro da ternura de Deus que nos ama como um pai. E quando Ele não nos concede uma graça, dar-nos-á outra que veremos a seu tempo. Mas é sempre preciso lutar em oração para pedir uma graça. Sim, por vezes pedimos uma graça de que precisamos, mas pedimo-la assim, sem querer, sem lutar; não é assim que se pedem coisas sérias. A oração é uma batalha e o Senhor está sempre conosco.
Se num momento de cegueira não conseguirmos vislumbrar a sua presença, consegui-lo-emos no futuro. Também nós um dia poderemos repetir a frase que o patriarca Jacob disse certa vez: «Em verdade, o Senhor está neste lugar, e eu não o sabia!» (Gn 28, 16). No final da nossa vida, olhando para trás, também nós poderemos dizer: “Pensava que estava sozinho; não, não estava: Jesus estava comigo”. Todos poderemos dizer isto.
Papa Francisco
Catequese na audiência geral 12.05.2021
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Catequese - 32. A oração contemplativa
Estimados irmãos e irmãs, bom dia!
Continuamos as catequeses sobre a oração e nesta catequese, gostaria de me concentrar na oração de contemplação.
A dimensão contemplativa do ser humano – que ainda não é a oração contemplativa – é um pouco como o “sal” da vida: dá sabor, dá gosto aos nossos dias. Podemos contemplar olhando de manhã para o nascer do sol, ou para as árvores que se vestem de verde na primavera; podemos contemplar ouvindo música ou o canto dos pássaros, ao ler um livro, diante de uma obra de arte ou daquela obra-prima que é o rosto humano... Carlo Maria Martini, enviado como bispo para Milão, intitulou a sua primeira carta pastoral “A dimensão contemplativa da vida”: de facto, quem vive numa grande cidade, onde tudo – podemos dizer – é artificial, tudo é funcional, corre o risco de perder a capacidade de contemplar. Antes de tudo, contemplar não é um modo de fazer, mas um modo de ser: ser contemplativo.
Ser contemplativo não depende dos olhos, mas do coração. E nisto entra em jogo a oração, como um ato de fé e amor, como “respiro” da nossa relação com Deus. A oração purifica o coração e, com ele, ilumina também o olhar, permitindo que captemos a realidade sob outro ponto de vista. O Catecismo descreve esta transformação do coração através da oração, citando um famoso testemunho do Santo Cura d'Ars: «A contemplação é o olhar da fé, fixado em Jesus. “Eu olho para Ele e Ele olha para mim” – dizia, no tempo do seu santo Cura, um camponês d'Ars em oração diante do sacrário. […] A luz do olhar de Jesus ilumina os olhos do nosso coração; ensina-nos a ver tudo à luz da sua verdade e da sua compaixão para com todos os homens» (Catecismo da Igreja Católica, 2715). Tudo nasce disto: de um coração que se sente visto com amor. Então a realidade é contemplada com olhos diferentes.
“Eu olho para Ele, e Ele olha para mim!”. Pois bem: na contemplação amorosa, típica da oração mais íntima, não há necessidade de muitas palavras: basta um olhar, basta estarmos convencidos de que a nossa vida está rodeada por um grande e fiel amor do qual nada nos pode separar.
Jesus era um mestre deste olhar. Na sua vida nunca faltaram os tempos, os espaços, os silêncios, a comunhão amorosa, que permite que a existência não seja devastada pelas provações inevitáveis, mas que a sua beleza seja preservada intacta. O seu segredo era a relação com o Pai celestial.
Pensemos no evento da Transfiguração. Os Evangelhos situam este episódio num momento difícil da missão de Jesus, quando aumentam à sua volta a contestação e a rejeição. Até muitos dos seus discípulos muitos não o compreendem e vão embora; um dos Doze concebe pensamentos de traição. Jesus começa a falar abertamente do sofrimento e da morte que o espera em Jerusalém. É neste contexto que Jesus sobe a um monte elevado com Pedro, Tiago e João. O Evangelho de Marcos diz: «Transfigurou-se diante deles. As suas vestes tornaram-se resplandecentes, de tal brancura, que lavadeira alguma sobre a terra as poderia branquear assim» (9, 2-3). Precisamente no momento em que Jesus é mal compreendido – iam embora, deixavam-no sozinho porque não o compreendiam, neste momento no qual não o compreendem – precisamente quando tudo parece estar desfocado num turbilhão de desentendimentos, então resplandece uma luz divina. É a luz do amor do Pai, que enche o coração do Filho e transfigura toda a sua Pessoa.
Alguns mestres de espiritualidade do passado compreenderam a contemplação em oposição à ação, e exaltaram aquelas vocações que fogem do mundo e dos seus problemas, a fim de se dedicarem inteiramente à oração. Na realidade, em Jesus Cristo, na sua pessoa e no Evangelho não há oposição entre a contemplação e a ação, não. No Evangelho, em Jesus não há contradição. Isto veio provavelmente da influência de algum filósofo neoplatónico, mas é certamente um dualismo que não pertence à mensagem cristã.
Há apenas uma grande chamada no Evangelho, que é seguir Jesus no caminho do amor. Este é o ápice e o centro de tudo. Neste sentido, caridade e contemplação são sinónimos, dizem a mesma coisa. São João da Cruz afirmava que um pequeno gesto de amor puro é mais útil para a Igreja do que todas as outras obras juntas. O que nasce da oração e não da presunção do nosso ego, o que é purificado pela humildade, mesmo que seja um gesto de amor isolado e silencioso, é o maior milagre que um cristão pode realizar. E este é o caminho da oração de contemplação: eu olho para Ele, Ele olha para mim! Esta ação de amor em diálogo silencioso com Jesus faz tão bem à Igreja.
Papa Francisco
Catequese na Audiência Geral 05.05.2021
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Catequese - 31. A meditação
Prezados irmãos e irmãs, bom dia!
Hoje falamos daquela forma de oração que é a meditação. Para o cristão, “meditar” é procurar uma síntese: significa colocar-se diante da grande página da Revelação para procurar fazer com que se torne nossa, assumindo-a completamente. E depois de acolher a Palavra de Deus, o cristão não a mantém fechada dentro de si, porque aquela Palavra deve encontrar-se com «outro livro», ao qual o Catecismo chama «o da vida» (cf. Catecismo da Igreja Católica, 2706). É isto que procuramos fazer cada vez que meditamos a Palavra.
Nos últimos anos a prática da meditação recebeu grande atenção. Dela não falam só os cristãos: há uma prática meditativa em quase todas as religiões do mundo. Mas trata-se de uma atividade difundida também entre as pessoas que não têm uma visão religiosa da vida. Todos nós temos necessidade de meditar, de refletir, de nos encontrarmos a nós mesmos, é uma dinâmica humana. Especialmente no voraz mundo ocidental, as pessoas procuram a meditação porque ela representa uma barreira elevada contra o stress diário e o vazio que se alastra por toda a parte. Eis, então, a imagem de jovens e adultos sentados em recolhimento, em silêncio, com os olhos meio fechados... Mas podemos perguntar-nos: O que fazem estas pessoas? Meditam. É um fenómeno que deve ser encarado de modo favorável: com efeito, não somos obrigados a correr o tempo todo, possuímos uma vida interior que não pode ser espezinhada sempre. Portanto, meditar é uma necessidade de todos. Meditar, por assim dizer, assemelhar-se-ia a parar e a dar um respiro à vida.
No entanto, apercebemo-nos de que esta palavra, quando é aceite no contexto cristão, assume uma especificidade que não deve ser cancelada. Meditar é uma dimensão humana necessária, mas meditar no contexto cristão vai além: trata-se de uma dimensão que não deve ser cancelada. A grande porta por onde passa a oração de uma pessoa batizada – recordemos mais uma vez – é Jesus Cristo. Para o cristão a meditação entra pela porta de Jesus Cristo. Também a prática da meditação segue este caminho. Quando o cristão reza, não aspira à plena transparência de si, não procura o núcleo mais profundo do seu ego. Isto é lícito, mas o cristão procura outra coisa. A oração do cristão é, antes de mais nada, um encontro com o Outro, com o Outro mas com o O maiúsculo: o encontro transcendente com Deus. Se uma experiência de oração nos dá paz interior, ou autodomínio, ou lucidez no caminho a empreender, estes resultados são, por assim dizer, efeitos colaterais da graça da oração cristã que é o encontro com Jesus, isto é, meditar significa ir ao encontro com Jesus, guiados por uma frase ou por uma palavra da Sagrada Escritura..
Ao longo da história, o termo “meditação” teve diferentes significados. Também no cristianismo, ele se refere a diferentes experiências espirituais. No entanto, é possível traçar algumas linhas comuns, e nisto o Catecismo ajuda-nos novamente: «Os métodos de meditação são tão diversos como os mestres espirituais. [...] Mas um método não passa de um guia; o importante é avançar, com o Espírito Santo, no caminho único da oração: Cristo Jesus» (n. 2707). E aqui está indicado um companheiro de caminho, alguém que guia: o Espírito Santo. Não é possível a meditação cristã sem o Espírito Santo. É Ele que nos guia ao encontro com Jesus. Jesus disse-nos: “Enviar-vos-ei o Espírito Santo. Ele ensinar-vos-á e explicar-vos-á. Ensinar-vos-á e explicar-vos-á”. E também na meditação, o Espírito Santo é o guia para ir em frente no encontro com Jesus Cristo.
Assim, há muitos métodos de meditação cristã: alguns são muito sóbrios, outros mais articulados; alguns enfatizam a dimensão intelectual da pessoa, outros a afetiva e emocional. São métodos. Todos são importantes e dignos de ser praticados, na medida em que podem ajudar a experiência da fé a tornar-se um ato total da pessoa: não reza apenas a mente, reza o homem todo, a totalidade da pessoa, assim como não ora só o sentimento. Os antigos costumavam dizer que o órgão da oração é o coração, e deste modo explicavam que é a pessoa inteira, a partir do seu centro, do coração, que entra em relação com Deus, e não apenas algumas das suas faculdades. Portanto, devemos recordar sempre que o método é um caminho, não uma meta: qualquer método de oração, se quiser ser cristão, faz parte daquela sequela Christi, que é a essência da nossa fé. Os métodos de meditação são caminhos a percorrer para alcançar o encontro com Jesus, mas se parares no caminho e só olhares para a estrada, nunca encontrarás Jesus. Farás da estrada um deus, mas ela é um meio para te levar a Jesus. O Catecismo especifica: «A meditação põe em ação o pensamento, a imaginação, a emoção e o desejo. Esta mobilização é necessária para aprofundar as convicções da fé, suscitar a conversão do coração e fortalecer a vontade de seguir a Cristo. A oração cristã dedica-se, de preferência, a meditar nos “mistérios de Cristo”» (n. 2708).
Eis, então, a graça da oração cristã: Cristo não está longe, mas está sempre em relação conosco. Não há aspecto algum da sua pessoa divino-humana que não possa tornar-se, para nós, um lugar de salvação e de felicidade. Cada momento da vida terrena de Jesus, através da graça da oração, pode tornar-se nosso contemporâneo, graças ao Espírito Santo, o guia. Mas sabeis que não se pode rezar sem a guia do Espírito Santo. É Ele que nos guia! E graças ao Espírito Santo, também nós estamos presentes no rio Jordão quando Jesus se imerge para receber o batismo. Também nós somos comensais nas bodas de Caná, quando Jesus oferece o melhor vinho para a felicidade dos noivos, isto é, o Espírito Santo que nos põe em relação com estes mistérios da vida de Cristo pois na contemplação de Jesus experimentamos a oração para nos unirmos mais a Ele. Também nós testemunhamos com assombro os milhares de curas realizadas pelo Mestre. Peguemos no Evangelho, façamos a meditação daqueles mistérios do Evangelho e o Espírito guia-nos a estar presentes ali. E na oração – quando rezamos – todos nós somos como o leproso purificado, o cego Bartimeu que recupera a vista, Lázaro que sai do sepulcro... Também nós somos curados na oração como foi curado o cego Bartimeu, aquele outro, o leproso… Também nós ressuscitamos, como ressuscitou Lázaro, pois a oração de meditação guiada pelo Espírito Santo, leva-nos a reviver estes mistérios da vida de Cristo e a encontrarmo-nos com Cristo e a dizer, com o cego: “Senhor, tende piedade de mim! Tende piedade de mim” – “O que queres?” – “Ver, entrar naquele diálogo”. E a meditação cristã, guiada pelo Espírito leva-nos a este diálogo com Jesus. Não há página alguma do Evangelho em que não haja lugar para nós. Para nós cristãos, meditar é um modo de encontrar Jesus. E assim, só assim, de nos encontrarmos a nós mesmos. E isto não significa fechar-nos em nós mesmos, não: ir ter com Jesus e nele encontrar-nos a nós mesmos, curados, ressuscitados, fortalecidos pela graça de Jesus. E encontrar Jesus salvador de todos, também de mim. E isto graças à guia do Espírito Santo.
Papa Francisco
Catequese na audiência Geral 28.04.2021
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Catequese - 30. A oração vocal
A oração é diálogo com Deus; e, num certo sentido, todas as criaturas “dialogam” com Deus. No ser humano, a oração torna-se palavra, invocação, cântico, poesia... A Palavra divina fez-se carne, e na carne de cada homem a palavra volta a Deus na oração.
As palavras são as nossas criaturas, mas são também as nossas mães, e em certa medida plasmam-nos. As palavras de uma prece levam-nos em segurança através de um vale escuro, orientando-nos para prados verdes, ricos de água, fazendo-nos banquetear diante dos olhos de um inimigo, como o Salmo nos ensina a recitar (cf. Sl 23). As palavras nascem dos sentimentos, mas há também o caminho inverso: aquele em que as palavras moldam os sentimentos. A Bíblia educa o homem para garantir que tudo vem à luz através da palavra, que nada de humano seja excluído, censurado. Acima de tudo, a dor é perigosa se permanecer coberta, fechada dentro de nós... Uma dor encerrada dentro de nós, que não se exprime nem desabafa, pode envenenar a alma; é mortal.
É por este motivo que a Sagrada Escritura nos ensina a rezar até com palavras às vezes audazes. Os escritores sagrados não nos querem enganar sobre o homem: sabem que no seu coração existem também sentimentos pouco edificantes, até mesmo o ódio. Nenhum de nós nasce santo, e quando estes sentimentos negativos batem à porta do nosso coração, devemos ser capazes de os desarmar com a oração e com as palavras de Deus. Nos Salmos encontramos também expressões muito duras contra os inimigos – expressões que os mestres espirituais nos ensinam a atribuir ao diabo e aos nossos pecados – mas são palavras que pertencem à realidade humana e que acabaram no contexto das Sagradas Escrituras. Estão ali para nos testemunhar que se, perante a violência, não houvessem palavras para tornar inofensivos os maus sentimentos, para os canalizar de modo que não prejudiquem, o mundo inteiro seria inundado por eles.
A primeira oração humana é sempre uma recitação vocal. Os lábios movem-se sempre em primeiro lugar. Embora todos saibamos que rezar não significa repetir palavras, no entanto a oração oral é a mais segura e pode ser praticada sempre. Os sentimentos, por mais nobres que sejam, são sempre incertos: vêm e vão, abandonam-nos e regressam. Não só, mas até as graças da oração são imprevisíveis: às vezes as consolações abundam, mas nos dias mais escuros parecem evaporar-se completamente. A oração do coração é misteriosa e em certos momentos falha. A oração dos lábios, aquela que é sussurrada ou recitada em coro, está sempre disponível, e é tão necessária quanto o trabalho manual. O Catecismo afirma: «A oração vocal é um elemento indispensável da vida cristã. Aos discípulos, atraídos pela oração silenciosa do seu Mestre, este ensina-lhes uma oração vocal: o Pai-Nosso» (n. 2701). “Ensina-nos a rezar”, pedem os discípulos a Jesus, e Jesus ensina uma oração vocal: o Pai-Nosso. E naquela prece há tudo.
Todos deveríamos ter a humildade de certos idosos que, na igreja, talvez porque a sua audição já não é aguda, recitam em meia-voz as orações que aprenderam quando eram crianças, enchendo a nave de sussurros. Esta prece não perturba o silêncio, mas dá testemunho da sua fidelidade ao dever da oração, praticada durante uma vida inteira, sem nunca falhar. Com a oração humilde, estes orantes são frequentemente os grandes intercessores das paróquias: são os carvalhos que de ano em ano alargam os seus ramos, para oferecer sombra ao maior número de pessoas. Só Deus sabe quando e quanto os seus corações estavam unidos àquelas orações recitadas: certamente essas pessoas também tiveram que enfrentar noites e momentos vazios. Mas pode-se permanecer sempre fiel à prece vocal. É como um âncora: agarrar-se à corda para permanecer ali, fiéis, aconteça ou que acontecer.
Todos temos que aprender com a constância daquele peregrino russo, mencionado numa famosa obra de espiritualidade, que aprendeu a arte da oração repetindo a mesma invocação inúmeras vezes: «Jesus Cristo, Filho de Deus, Senhor, tende piedade de nós, pecadores!» (cf. CIC, 2616; 2667). Repetia só isto. Se as graças entraram na sua vida, se um dia a oração se tornou tão ardente que ele sentiu a presença do Reino aqui entre nós, se o seu olhar se transformou até ser como o de uma criança, foi porque ele insistiu em recitar uma simples jaculatória cristã. No final, ela torna-se parte da sua respiração. É bonita a história do peregrino russo: é um livro ao alcance de todos. Recomendo-vos que o leiais: ajudar-vos-á a compreender o que é a oração vocal.
Por conseguinte, não devemos desprezar a oração vocal. Alguém diz: “Mas, é coisa para as crianças, para gente ignorante; estou procurando a prece mental, a meditação, o vazio interior para que Deus venha”. Por favor, não se deve cair na soberba de desprezar a oração vocal. É a oração dos simples, a que Jesus nos ensinou: Pai nosso que estais no céu… As palavras que pronunciamos levam-nos pela mão; às vezes restituem o sabor, despertam até o mais adormecido dos corações; estimulam sentimentos dos quais tínhamos perdido a memória, e levam-nos pela mão rumo à experiência de Deus. E acima de tudo, de maneira segura, são as únicas que dirigem a Deus as perguntas que Lhe aprazem. Jesus não nos deixou na névoa. Disse-nos: «Eis como deveis rezar!». E ensinou a oração do Pai-Nosso (cf. Mt 6, 9).
Papa Francisco
Catequese na audiência geral 21.04.2021
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Catequese - 29. A Igreja mestra em oração
Estimados irmãos e irmãs, bom dia!
A Igreja é uma grande escola de oração. Muitos de nós aprendemos a silabar as primeiras orações enquanto estávamos no colo dos pais ou dos avós. Talvez conservemos a memória da mãe e do pai que nos ensinavam a recitar as orações antes de dormir. Estes momentos de recolhimento são frequentemente aqueles em que os pais ouvem algumas confidências íntimas dos filhos e podem dar os seus conselhos inspirados pelo Evangelho. Depois, no caminho do crescimento, há outros encontros, com outras testemunhas e mestres de oração (cf. Catecismo da Igreja Católica, 2686-2687). É bom recordá-los.
A vida de uma paróquia e de cada comunidade cristã é cadenciada pelos tempos da liturgia e da oração comunitária. Aquele dom, que na infância recebemos com simplicidade, compreendemos que é um património grande, um património muito rico, e que a experiência da oração merece ser aprofundada cada vez mais (cf. ibid., 2688). O hábito da fé não é engomado; desenvolve-se connosco; não é rígido, cresce, até através dos momentos de crise e ressurreição; aliás, não se pode crescer sem momentos de crise, porque a crise te faz crescer: entrar em crise é um modo necessário para crescer. E o sopro da fé é a oração: crescemos na fé tanto quanto aprendemos a rezar. Depois de certas passagens da vida, compreendemos que sem fé não poderíamos ter bom êxito e que a oração foi a nossa força. Não só a oração pessoal, mas também a dos irmãos e irmãs, da comunidade que nos acompanhou e apoiou, das pessoas que nos conhecem, das pessoas às quais pedimos que rezem por nós.
Também por este motivo na Igreja florescem continuamente comunidades e grupos dedicados à oração. Alguns cristãos sentem até a chamada de fazer da oração a ação principal dos seus dias. Na Igreja existem mosteiros, conventos e eremitérios onde vivem pessoas consagradas a Deus e que muitas vezes se tornam centros de irradiação espiritual. São comunidades de oração que irradiam espiritualidade. São pequenos oásis nos quais se partilha uma oração intensa e se constrói a comunhão fraterna dia após dia. Trata-se de células vitais, não apenas para o tecido da Igreja, mas para a própria sociedade. Pensemos, por exemplo, no papel que o monaquismo desempenhou no nascimento e no crescimento da civilização europeia, e também noutras culturas. Rezar e trabalhar em comunidade faz progredir o mundo. É um motor.
Tudo na Igreja nasce na oração, e tudo cresce graças à oração. Quando o Inimigo, o Maligno, quer combater contra a Igreja, fá-lo primeiro procurando secar as suas fontes, impedindo-as de rezar. Por exemplo, vemos isto em certos grupos que concordam em levar a cabo reformas eclesiais, mudanças na vida da Igreja... Há muitas organizações, há os meios de comunicação que informam todos... Mas a oração não se vê, não se reza. “Devemos mudar isto, temos de tomar esta decisão que é um pouco forte...”. É interessante a proposta, é interessante, apenas com o debate, apenas com os meios de comunicação, mas onde está a oração? A oração é aquela que abre a porta ao Espírito Santo, o qual inspira a ir em frente. As mudanças na Igreja sem oração não são mudanças da Igreja, são mudanças de grupo. E quando o Inimigo – como já disse – quer lutar contra a Igreja, fá-lo primeiro procurando secar as suas fontes, impedindo-as de rezar, e [induzindo-as a] fazer estas outras propostas. Se a oração cessar, por algum tempo parece que tudo pode continuar como habitualmente – por inércia – mas depois de pouco tempo a Igreja compreende que se torna como que um invólucro vazio, que perdeu o seu eixo central, que já não possui a nascente do calor e do amor.
As mulheres e os homens santos não têm uma vida mais fácil do que os outros, pelo contrário, também eles têm os próprios problemas para enfrentar e, além disso, são frequentemente objeto de oposições. Mas a sua força é a oração, que haurem sempre do “poço” inesgotável da mãe Igreja. Com a oração alimentam a chama da sua fé, como se fazia com o óleo das lâmpadas. E assim vão em frente, caminhando na fé e na esperança. Os santos, que muitas vezes contam pouco aos olhos do mundo, na realidade são aqueles que o sustentam, não com as armas do dinheiro e do poder, dos meios de comunicação e assim por diante, mas com as armas da oração.
No Evangelho de Lucas, Jesus apresenta uma pergunta dramática que nos faz sempre refletir: «Quando vier o Filho do Homem, encontrará acaso fé sobre a terra?» (Lc 18, 8), ou será que só encontrará organizações, como um grupo de “empresários da fé”, todos bem organizados, fazendo beneficência, muitas coisas..., ou será que encontrará fé? «Quando vier o Filho do Homem, encontrará acaso fé sobre a terra?». Esta pergunta surge no final de uma parábola que mostra a necessidade de rezar com perseverança, sem se cansar (cf. vv. 1-8). Portanto, podemos concluir que a lâmpada da fé estará sempre acesa na terra, enquanto houver o óleo da oração. A lâmpada da verdadeira fé da Igreja estará sempre acesa na terra enquanto houver o óleo da oração. É o que leva em frente a fé e a nossa vida pobre, débil e pecadora, mas a oração leva-a em frente com segurança. Uma pergunta que nós cristãos devemos fazer a nós mesmos: rezo? Rezamos? Como rezo? Como papagaios ou rezo com o coração? Como rezo? Será que rezo com a certeza de que estou na Igreja e rezo com a Igreja, ou rezo um pouco de acordo com as minhas ideias e deixo que as minhas ideias se tornem oração? Isto é oração pagã, não oração cristã. Repito: podemos concluir que a lâmpada da fé estará sempre acesa na terra enquanto houver o óleo da oração.
Esta é uma tarefa essencial da Igreja: rezar e educar para rezar. Transmitir de geração em geração a lâmpada da fé com o óleo da oração. A lâmpada da fé que ilumina, que governa tudo como deve ser, mas que só pode ir em frente com o óleo da oração. Caso contrário, apaga-se. Sem a luz desta lâmpada, não poderíamos ver o caminho para evangelizar, aliás, não poderíamos ver o caminho para crer realmente; não poderíamos ver os rostos dos irmãos dos quais nos devemos aproximar e servir; não poderíamos iluminar a sala onde nos encontramos em comunidade... Sem fé, tudo desmorona; e sem a oração, a fé extingue-se. Fé e oração, juntas. Não há outro caminho. Por isso a Igreja, que é casa e escola de comunhão, é casa e escola de fé e de oração.
Papa Francisco
Catequese na audiência Geral 14.04.2021
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