Catequese sobre São José 1. São José e o ambiente em que viveu
A 8 de dezembro de 1870, o Beato Pio IX proclamou São José padroeiro da Igreja universal. Depois de 150 anos daquele evento, estamos a viver um ano especial dedicado a São José, e na Carta Apostólica Patris corde recolhi algumas reflexões sobre a sua figura. Nunca como hoje, neste tempo marcado por uma crise global com diferentes componentes, ele pode ser apoio, conforto e orientação para nós. Por isso decidi dedicar-lhe um ciclo de catequeses, que espero nos possa ajudar ulteriormente a deixar-nos iluminar pelo seu exemplo e pelo seu testemunho. Durante algumas semanas falaremos de São José.
Na Bíblia há mais de dez personagens com o nome de José. O mais importante de todos é o filho de Jacó e Raquel, que, através de várias vicissitudes, de escravo, tornou-se a segunda pessoa mais importante no Egito depois do Faraó (cf. Gn 37-50). O nome José em hebraico significa “Deus aumente, Deus faça crescer”. É um desejo, uma bênção baseada na confiança na providência e refere-se especialmente à fecundidade e ao crescimento dos filhos. De fato, este mesmo nome revela-nos um aspeto essencial da personalidade de José de Nazaré. Ele é um homem cheio de fé na providência: acredita na providência de Deus, tem fé na providência de Deus. Toda a sua ação, narrada no Evangelho, é ditada pela certeza de que Deus “faz crescer”, que Deus “aumenta”, que Deus “acrescenta”, ou seja, que Deus providencia à continuação do seu desígnio de salvação. E nisto, José de Nazaré é muito parecido com José do Egito.
As principais referências geográficas relativas a José – Belém e Nazaré – também desempenham um papel importante na compreensão da sua figura.
No Antigo Testamento, a cidade de Belém é chamada Beth Lechem, “Casa do pão”, ou também Efrata, devido à tribo que se estabeleceu naquele território. No entanto, em árabe, o nome significa “Casa da carne”, provavelmente devido ao grande número de rebanhos de ovinos e caprinos na área. Não foi por acaso, de facto, que quando Jesus nasceu, os pastores foram as primeiras testemunhas do acontecimento (cf. Lc 2, 8-20). À luz da história de Jesus, estas alusões ao pão e à carne referem-se ao mistério da Eucaristia: Jesus é o pão vivo que desce do céu (cf. Jo 6, 51). Ele próprio dirá de si: «Quem comer a minha carne e beber o meu sangue viverá eternamente» (Jo 6, 54).
Belém é mencionada várias vezes na Bíblia, desde o Livro do Génesis. Belém está também ligada à história de Rute e Noémi, narrada no pequeno, mas maravilhoso Livro de Rute. Rute deu à luz um filho chamado Obed, do qual por sua vez nasceu Jessé, o pai do rei David. E José, o pai legal de Jesus, descende preciosamente da linhagem de David. Então o profeta Miqueias predisse grandes coisas sobre Belém: «E tu, Bet-Ephrata, tão pequena entre as famílias de Judá, é de ti que me há de sair aquele que governará Israel» (Mi 5, 1). O evangelista Mateus retomará esta profecia e ligá-la-á à história de Jesus como o seu evidente cumprimento.
De fato, o Filho de Deus não escolheu Jerusalém como o lugar da sua encarnação, mas Belém e Nazaré, duas aldeias periféricas, longe do clamor da crónica e do poder da época. Contudo, Jerusalém era a cidade amada pelo Senhor (cf. Is 62, 1-12), a «cidade santa» (Dn 3, 28), escolhida por Deus para lá habitar (cf. Zc 3, 2; Sl 132, 13). Ali, com efeito, habitavam os doutores da Lei, os escribas e fariseus, os chefes dos sacerdotes e os anciãos do povo (cf. Lc 2, 46; Mt 15, 1; Mc 3, 22; Jo 1, 19; Mt 26, 3).
É por isso que a escolha de Belém e Nazaré nos diz que a periferia e a marginalidade são prediletas a Deus. Jesus não nasceu em Jerusalém com toda a corte… não: nasceu numa periferia e transcorreu a sua vida, até aos 30 anos, naquela periferia, trabalhando como carpinteiro, como José. Para Jesus, as periferias e a marginalidade são prediletas. Não levar esta realidade a sério equivale a não levar a sério o Evangelho e a obra de Deus, que continua a manifestar-se nas periferias geográficas e existenciais. O Senhor age sempre de maneira escondida nas periferias, também na nossa alma, nas periferias da alma, dos sentimentos, talvez sentimentos dos quais nos envergonhamos; mas o Senhor está ali para nos ajudar a ir em frente. O Senhor continua a manifestar-se nas periferias, quer geográficas quer existenciais. Em particular, Jesus vai em busca dos pecadores, entra nas suas casas, fala com eles, chama-os à conversão. E foi até repreendido por isto: “Mas, veja, este Mestre – diziam os doutores da lei – veja este Mestre: come junto com os pecadores, suja-se, vai à procura daqueles que não praticam o mal, mas o sofrem: os doentes, os famintos, os pobres, os últimos”. Jesus vai sempre rumo às periferias. E isto deve dar-nos muita confiança, pois o Senhor conhece as periferias do nosso coração, as periferias da nossa alma, as periferias da nossa sociedade, da nossa cidade, da nossa família, isto é, aquela parte um pouco obscura que não mostramos talvez por vergonha.
Sob este aspeto, a sociedade daquela época não é muito diferente da nossa. Hoje também há um centro e uma periferia. E a Igreja sabe que é chamada a anunciar a boa nova a partir das periferias. José, que é um carpinteiro de Nazaré e que confia no plano de Deus para a sua jovem noiva e para si mesmo, recorda à Igreja que fixe o olhar naquilo que o mundo ignora deliberadamente. Hoje José ensina-nos isto: “Não olhemos para as coisas que o mundo louva, olhemos para os ângulos, as sombras, as periferias, para aquilo que o mundo não quer”. Ele lembra a cada um de nós que demos importância ao que os outros descartam. Neste sentido, é verdadeiramente um mestre do essencial: lembra-nos que o que é realmente valioso não atrai a nossa atenção, mas requer um discernimento paciente para ser descoberto e valorizado. Descubramos o que é válido. Peçamos-lhe que interceda para que toda a Igreja possa recuperar este discernimento, esta capacidade de discernir, esta capacidade de avaliar o que é essencial. Comecemos de novo a partir de Belém, comecemos de novo a partir de Nazaré.
Hoje gostaria de transmitir uma mensagem a todos os homens e mulheres que vivem nas periferias geográficas mais esquecidas do mundo ou que experimentam situações de marginalidade existencial. Que encontreis em São José a testemunha e o protetor para quem olhar. A ele podemos recorrer com esta oração, prece “feita em casa”, mas nascida do coração:
São José,
vós que sempre confiastes em Deus,
e fizestes as vossas escolhas
guiado pela sua providência
ensinai-nos a não contar tanto com os nossos projetos
mas com o seu desígnio de amor.
Vós que viestes das periferias
ajudai-nos a converter o nosso olhar
e a preferir o que o mundo descarta e marginaliza.
Confortai quantos se sentem sozinhos
e apoiai quantos se comprometem em silêncio
para defender a vida e a dignidade humana. Amém.
Papa Francisco
Catequese na audiência Geral de 17.11.21
Catequese sobre a Carta aos Gálatas 15. Não nos deixemos tomar pelo cansaço
Chegamos ao fim das catequeses sobre a Carta aos Gálatas. Sobre quantos outros aspetos deste texto de São Paulo poderíamos ter refletido! A palavra de Deus é uma fonte inesgotável. E nesta Carta o Apóstolo falou-nos como evangelizador, como teólogo e como pastor.
O santo bispo Inácio de Antioquia tem uma bela expressão quando escreve: «Há apenas um mestre que falou e o que disse foi feito; mas as coisas que ele fez em silêncio são dignas do Pai. Quem possui a palavra de Jesus também pode ouvir o seu silêncio» (Ad Ephesios, 15, 1-2). Podemos dizer que o Apóstolo Paulo foi capaz de dar voz a este silêncio de Deus. As suas intuições mais originais ajudam-nos a descobrir a novidade perturbadora contida na revelação de Jesus Cristo. Foi um verdadeiro teólogo, que contemplava o mistério de Cristo e o transmitia com a sua inteligência criativa. E foi também capaz de cumprir a sua missão pastoral a uma comunidade desorientada e confusa. Ele fez isto com métodos diferentes: usou ironia, rigor, mansidão... Reivindicou a própria autoridade como apóstolo, mas ao mesmo tempo não escondeu as fraquezas do seu caráter. O poder do Espírito realmente escavou no seu coração: o encontro com Cristo Ressuscitado conquistou e transformou toda a sua vida, e dedicou-a inteiramente ao serviço do Evangelho.
Paulo nunca pensou num cristianismo com traços irénicos, sem vigor nem energia, pelo contrário. Defendeu a liberdade que Cristo trouxe com uma paixão que ainda hoje nos comove, especialmente se pensarmos no sofrimento e na solidão que teve de suportar. Estava convencido de que tinha recebido uma chamada à qual só ele podia responder; e queria explicar aos Gálatas que também eles foram chamados a essa liberdade, que os aliviava de todas as formas de escravidão, porque os tornava herdeiros da antiga promessa e, em Cristo, filhos de Deus. E consciente dos riscos que este conceito de liberdade comportava, nunca minimizou as consequências. Estava ciente dos riscos que comporta a liberdade cristã, mas não minimizou as consequências. Reiterou com parrésia, isto é, com coragem, aos crentes que a liberdade não equivale de modo algum à libertinagem, nem conduz a formas de autossuficiência presunçosas. Pelo contrário, Paulo colocou a liberdade à sombra do amor e estabeleceu o seu exercício coerente ao serviço da caridade. Toda esta visão foi colocada no horizonte da vida de acordo com o Espírito Santo, que leva ao cumprimento da Lei doada por Deus a Israel e impede de cair novamente na escravidão do pecado. A tentação é sempre de voltar atrás. Uma definição dos cristãos, que está na Escritura, diz que nós, cristãos, não somos pessoas que voltam atrás, que vão para trás. Uma bonita definição. E a tentação é de ir para trás para nos sentirmos mais seguros; voltar apenas à Lei, descuidando a vida nova do Espírito. É isto que Paulo nos ensina: a verdadeira Lei tem a sua plenitude nesta vida do Espírito que Jesus nos doou. E esta vida do Espírito só pode ser vivida na liberdade, a liberdade cristã. E esta é uma das coisas mais bonitas!
No final deste itinerário de catequeses, parece-me que pode surgir em nós uma atitude dupla. Por um lado, o ensinamento do Apóstolo gera entusiasmo em nós; sentimo-nos impelidos a seguir imediatamente o caminho da liberdade, a «caminhar segundo o Espírito». Caminhar sempre segundo o Espírito: torna-nos livres. Por outro, estamos conscientes das nossas limitações, pois sentimos todos os dias como é difícil ser dócil ao Espírito, para seguir a sua ação benéfica. Pode então surgir o cansaço que diminui o entusiasmo. Sentimo-nos desanimados, fracos, às vezes marginalizados em relação ao estilo de vida da mentalidade mundana. Santo Agostinho sugere como reagir a esta situação, referindo-se ao episódio evangélico da tempestade no lago. Diz: «A fé de Cristo no teu coração é como Cristo no barco. Ouves insultos, cansas-te, aborreces-te e Cristo dorme. Desperta Cristo, move a tua fé! Até no tumulto, és capaz de fazer algo. Move a tua fé. Cristo acorda e fala contigo... Por isso, desperta Cristo... Acredita no que foi dito e haverá uma grande calma no teu coração» (Sermões 163/B 6). Nos momentos de dificuldade somos como – diz Santo Agostinho aqui – na barca no momento da tempestade. E o que fizeram os Apóstolos? Acordaram Cristo que dormia enquanto havia a tempestade; mas Ele estava presente. A única coisa que podemos fazer nos momentos de dificuldade é “despertar” Cristo que está dentro de nós, mas “dorme” como na barca. É assim mesmo. Devemos despertar Cristo no nosso coração e só então poderemos contemplar as coisas com o seu olhar, porque Ele vê para além da tempestade. Através desse seu olhar sereno, podemos ver um panorama que, por nós mesmos, nem sequer é possível divisar.
Neste caminho desafiador mas fascinante, o Apóstolo lembra-nos que não nos podemos dar ao luxo de nos cansarmos de fazer o bem. Não vos canseis de praticar o bem. Devemos confiar que o Espírito vem sempre em auxílio da nossa fraqueza e concede-nos o apoio de que necessitamos. Aprendamos então a invocar o Espírito Santo com mais frequência! Alguém pode dizer: “E como se invoca o Espírito Santo? Porque sei rezar ao Pai, com o Pai-Nosso; sei rezar a Nossa Senhora com a Ave-Maria; sei rezar a Jesus com a Prece das Chagas, mas ao Espírito? Qual é a oração do Espírito Santo?”. A oração ao Espírito Santo é espontânea: deve brotar do teu coração. Nos momentos de dificuldade, deves dizer: “Vinde, Santo Espírito!”. A palavra-chave é: “Vinde”. Mas deves dizê-lo com a tua linguagem, com as tuas palavras. Vinde, porque estou em dificuldade; vinde, pois estou na escuridão, na obscuridade; vinde, pois não sei o que fazer; vinde, pois estou prestes a cair. Vinde, vinde! É a palavra do Espírito para chamar o Espírito. Aprendamos a invocar com mais frequência o Espírito Santo! Podemos fazê-lo com palavras simples, em vários momentos do dia. E podemos levar conosco, talvez dentro do nosso Evangelho de bolso, a bela oração que a Igreja recita no Pentecostes: «Vinde, Santo Espírito / E mandai do céu um raio da vossa luz / Vinde, Pai dos pobres / Vinde, ó Distribuidor dos bens / Vinde, ó Luz dos corações! / Vinde, Consolador ótimo / doce Hóspede e suave alegria das almas / Vinde aliviar os trabalhos...». Vinde! E continua assim, é uma linda oração. O núcleo da prece é “vinde”, assim Nossa Senhora e os Apóstolos rezavam depois que Jesus ascendeu ao Céu; estavam sozinhos no Cenáculo e invocavam o Espírito. Far-nos-á bem recitá-la frequentemente. Vinde, Espírito Santo! E com a presença do Espírito nós salvaguardamos a liberdade. Seremos livres, cristãos livres, não apegados ao passado no sentido negativo da palavra, não acorrentados a práticas, mas livres com a liberdade cristã, aquela que nos faz amadurecer. Esta prece ajudar-nos-á a caminhar no Espírito, na liberdade e na alegria, pois quando o Espírito Santo vem, vem a alegria, a verdadeira alegria. O Senhor vos abençoe!
Papa Francisco
Catequese na audiência geral 10.11.21
Catequese sobre a Carta aos Gálatas 14. Caminhar segundo o Espírito
Estimados irmãos e irmãs, bom dia!
No excerto da Carta aos Gálatas que acabamos de ouvir, São Paulo exorta os cristãos a caminhar segundo o Espírito Santo (cf. 5, 16.25). Há um estilo: caminhar segundo o Espírito Santo. Com efeito, crer em Jesus significa segui-lo, ir atrás d’Ele no seu caminho, como fizeram os primeiros discípulos. E significa, ao mesmo tempo, evitar o caminho oposto, o do egoísmo, de procurar o próprio interesse, ao qual o Apóstolo chama «desejo da carne» (v. 16). O Espírito é o guia neste caminho pela vereda de Cristo, um caminho maravilhoso, mas também cansativo, que começa no Batismo e dura a vida inteira. Pensemos numa longa excursão nas montanhas: é fascinante, a meta atrai-nos, mas requer muito esforço e tenacidade.
Esta imagem pode ser-nos útil para entrar no mérito das palavras do Apóstolo: “Caminhar segundo o Espírito”, “deixar-se guiar” por Ele. São expressões que indicam uma ação, um movimento, um dinamismo que impede de parar nas primeiras dificuldades, mas provoca a confiar na «força que vem do alto» (O Pastor de Hermas, 43, 21). Percorrendo este caminho, o cristão adquire uma visão positiva da vida. Isto não significa que o mal presente no mundo tenha desaparecido, ou que faltem os impulsos negativos do egoísmo e do orgulho; significa, antes, acreditar que Deus é sempre mais forte do que a nossa resistência e maior do que os nossos pecados. E isto é importante!
Ao exortar os Gálatas a seguir este caminho, o Apóstolo coloca-se ao seu nível. Abandona o verbo no imperativo – «caminhai» (v. 16) – e usa o “nós” no indicativo: «caminhamos segundo o Espírito» (v. 25). Como que para dizer: caminhamos na mesma sintonia e somos guiados pelo Espírito Santo. É uma exortação, um modo exortativo. São Paulo sente que esta exortação é necessária também para si mesmo. Embora sabendo que Cristo vive nele (cf. 2, 20), está convencido também de que ainda não atingiu a meta, o cume da montanha (cf. Fl 3, 12). O Apóstolo não se coloca acima da sua comunidade, não diz: “Sou o líder, vós sois os outros; alcancei o cume da montanha e vós estais a caminho” – não diz isto – mas põe-se no meio, a caminho com todos, para dar exemplo concreto do modo como é necessário obedecer a Deus, correspondendo cada vez mais e melhor à guia do Espírito. E como é bom quando encontramos pastores que caminham com o seu povo e que não se afastam dele. Isto é muito bonito; faz bem à alma!
Este “caminhar segundo o Espírito” não é apenas uma ação individual: diz respeito igualmente à comunidade como um todo. Com efeito, construir a comunidade seguindo o caminho indicado pelo Apóstolo é entusiasmante, mas desafiante. Os “desejos da carne”, as “tentações” – por assim dizer – que todos nós temos, ou seja, inveja, preconceito, hipocrisia, ressentimentos continuam a fazer-se sentir, e o recurso a um preceito rígido pode ser uma tentação fácil, mas ao fazê-lo desviar-nos-íamos do caminho da liberdade e, em vez de subir ao cume, voltaríamos para baixo. Seguir o caminho do Espírito requer, antes de mais, dar lugar à graça e à caridade. Dar espaço à graça de Deus, sem receio. Depois de ter feito ouvir a sua voz de modo severo, Paulo convida os Gálatas a ocupar-se das dificuldades uns dos outros e, se alguém cometer um erro, a usar mansidão (cf. 5, 22). Ouçamos as suas palavras: «Irmãos, se alguém for surpreendido nalguma falta, vós, que sois animados pelo Espírito, admoestai-o com espírito de mansidão; e tu, tem cuidado ti mesmo, para não caíres também tu em tentação. Carregai os fardos uns dos outros» (6, 1-2). Uma atitude muito diferente da tagarelice; não, isto não é segundo o Espírito! Segundo o Espírito, é ter esta doçura com o irmão para o corrigir e vigiar sobre nós mesmos com humildade, para que nós não caiamos naqueles pecados.
Com efeito, quando somos tentados a julgar mal os outros, como é frequentemente acontece, devemos primeiro refletir sobre a nossa fragilidade. Como é fácil criticar os outros! Mas há pessoas que parecem ter uma licenciatura em tagarelice. Todos os dias criticam os outros. Mas olha para ti mesmo! É bom perguntar-nos o que nos motiva a corrigir um irmão ou uma irmã, e se não somos, de alguma forma, corresponsáveis pelo seu erro. O Espírito Santo, além de nos doar a mansidão, convida-nos à solidariedade, a carregar os fardos dos outros. Quantos fardos há na vida de uma pessoa: a doença, a falta de trabalho, a solidão, a dor... E quantas outras provas que exigem a proximidade e o amor dos irmãos! Podem-nos ajudar as palavras de Santo Agostinho, quando comenta este mesmo excerto: «Portanto, irmãos, se alguém for apanhado nalguma falha [...] corrigi-o desta maneira, com mansidão. E se tu levantares a voz, ama interiormente. Se encorajares, se te mostrares paterno, se repreenderes, se fores severo, ama!» (Sermões 163/B 3). Amai sempre! A regra suprema da correção fraterna é o amor: querer o bem dos nossos irmãos e irmãs. Trata-se de tolerar os problemas dos outros, os defeitos dos outros em silêncio na oração, e depois encontrar o modo correta de os ajudar a corrigir-se. E isto não é fácil! A maneira mais fácil é a tagarelice. Esfolar a outra pessoa como se eu fosse perfeito. E isto não deve ser feito. Mansidão. Paciência. Oração. Proximidade!
Percorramos com alegria e paciência este caminho, deixando-nos guiar pelo Espírito Santo!
Papa Francisco
Catequese na audiência geral 03.11.21
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Catequese sobre a Carta aos Gálatas 13. O fruto do Espírito
A pregação de São Paulo é totalmente centrada em Jesus e no seu mistério pascal. De facto, o Apóstolo apresenta-se como anunciador de Cristo, e de Cristo crucificado (cf. 1 Cor 2, 2). Aos Gálatas, tentados a basear a sua religiosidade na observância de preceitos e tradições, ele recorda o centro da salvação e da fé: a morte e a ressurreição do Senhor. Fá-lo colocando diante deles o realismo da cruz de Jesus. Escreve: «Quem vos fascinou para não obedecerdes à verdade, vós, perante cujos olhos foi apresentado Jesus Cristo crucificado?» (Gl 3, 1). Quem vos fascinou para vos afastar de Cristo Crucificado? Trata-se de um momento terrível para os Gálatas…
Ainda hoje, muitos procuram a certeza religiosa em vez do Deus vivo e verdadeiro, concentrando-se em rituais e preceitos em vez de abraçar o Deus do amor com todo o seu ser. E esta é a tentação dos novos fundamentalistas, daqueles aos quais parece que a estrada a percorrer provoque temor e não vão em frente, mas voltam para trás pois se sentem mais seguros: procuram a segurança de Deus e não o Deus da segurança. É por isso que Paulo pede aos Gálatas que voltem ao essencial, a Deus que nos dá a vida em Cristo crucificado. Ele testemunha isto em primeira pessoa: «Já não sou eu que vivo, é Cristo que vive em mim» (Gl 2, 20). E no final da Carta, afirma: «Quanto a mim, Deus me livre de me gloriar a não ser na cruz de Nosso Senhor Jesus Cristo» (6, 14).
Se nós perdermos o fio da nossa vida espiritual, se mil problemas e pensamentos nos assolarem, façamos nossos os conselhos de Paulo: coloquemo-nos diante de Cristo Crucificado, comecemos de novo a partir d’Ele. Peguemos o Crucifixo nas mãos, tenhamo-lo perto do nosso coração. Ou façamos uma pausa em adoração antes da Eucaristia, onde Jesus é Pão partido para nós, o Crucificado Ressuscitado, o poder de Deus que derrama o seu amor nos nossos corações.
E agora, novamente guiados por São Paulo, demos um ulterior passo. Perguntemo-nos: o que acontece quando encontramos Jesus Crucificado na oração? Verifica-se o que aconteceu sob a cruz: Jesus entrega o Espírito (cf. Jo 19, 30), ou seja, doa a sua própria vida. E o Espírito, que flui da Páscoa de Jesus, é o princípio da vida espiritual. É Ele que muda o coração: não as nossas obras. É Ele que muda o coração, não as coisas que nós fazemos, mas a ação do Espírito Santo em nós muda o coração! É ele quem guia a Igreja, e nós somos chamados a obedecer à sua ação, que vai para onde e como ele quiser. Além disso, foi precisamente a constatação de que o Espírito Santo descia sobre todos e que a sua graça agia sem exclusão que convenceu também os mais relutantes dos Apóstolos de que o Evangelho de Jesus era destinado a todos e não a uns poucos privilegiados. E aqueles que procuram a segurança, o pequeno grupo, as coisas claras como outrora, afastam-se do Espírito, não deixam que a liberdade do Espírito entre neles. Assim, a vida da comunidade regenera-se no Espírito Santo; e é sempre graças a Ele que alimentamos a nossa vida cristã e continuamos a nossa luta espiritual.
Precisamente o combate espiritual é outro grande ensinamento da Carta aos Gálatas. O Apóstolo apresenta duas frentes opostas: por um lado as «obras da carne», por outro o «fruto do Espírito». Quais são as obras da carne? São comportamentos contrários ao Espírito de Deus. O Apóstolo chama-lhes obras da carne não porque há algo de errado ou mau na nossa carne humana; pelo contrário, vimos como ele insiste no realismo da carne humana suportada por Cristo na cruz! Carne é uma palavra que indica o homem na sua dimensão terrena, fechado em si mesmo, numa vida horizontal, onde os instintos mundanos são seguidos e a porta se fecha ao Espírito, que nos eleva e nos abre a Deus e aos outros. Mas a carne também nos lembra que tudo isto envelhece, que tudo isto passa, apodrece, enquanto o Espírito dá vida. Paulo enumera assim as obras da carne, que se referem ao uso egoísta da sexualidade, a práticas mágicas que são idolatrias e ao que mina as relações interpessoais, como «contendas, ciúmes, iras, rixas, discórdias, partidos…» (cf. Gl 5,19-21). Tudo isto é o fruto – digamos assim – da carne, de um comportamento apenas humano, “doentiamente” humano, pois o humano tem os seus valores, mas tudo isto é “doentiamente” humano.
O fruto do Espírito, ao contrário, é «caridade, alegria, paz, paciência, benignidade, bondade, fidelidade, mansidão, temperança» (Gl 5, 22): assim diz Paulo. Os cristãos, que no batismo se revestiram «de Cristo» (cf. Gl 3, 27), são chamados a viver deste modo. Pode ser um bom exercício espiritual, por exemplo, ler a lista de São Paulo e observar a própria conduta, para verificar se corresponde, se a nossa vida está verdadeiramente de acordo com o Espírito Santo, se dá estes frutos. A minha vida produz estes frutos de caridade, alegria, paz, paciência, benignidade, bondade, fidelidade, mansidão, temperança? Por exemplo, os três primeiros são caridade, paz e alegria: por isto se reconhece se uma pessoa é habitada pelo Espírito Santo. Uma pessoa que está em paz, que rejubila e que ama: com estas três caraterísticas vê-se a ação do Espírito.
Este ensinamento do Apóstolo representa também um grande desafio para as nossas comunidades. Por vezes, aqueles que se aproximam da Igreja têm a impressão de estarem perante uma grande quantidade de comandos e preceitos: mas não, esta não é a Igreja! Esta pode ser qualquer associação. Na realidade, porém, a beleza da fé em Jesus Cristo não pode ser apreendida com base em demasiados mandamentos e numa visão moral que, desenvolvendo-se em muitas correntes, pode fazer-nos esquecer a fecundidade original do amor, alimentado pela oração que doa a paz e pelo testemunho jubiloso. Da mesma forma, a vida do Espírito expressa nos sacramentos não pode ser abafada por uma burocracia que impede o acesso à graça do Espírito, autor da conversão do coração. E quantas vezes nós mesmos, sacerdotes ou bispos, temos tanta burocracia para dar um Sacramento, para acolher as pessoas, que consequentemente dizem: “Não, não gosto disto”, e vão embora, e não veem em nós, muitas vezes, a força do Espírito que regenera, que nos faz novos. Por conseguinte, temos a grande responsabilidade de anunciar Cristo crucificado e ressuscitado, animados pelo sopro do Espírito de amor. Pois só este Amor tem o poder de atrair e mudar o coração do homem.
Papa Francisco
Catequese na audiência geral 27.10.21
Catequese sobre a Carta aos Gálatas 12. A liberdade se realiza na caridade
Nestes dias falamos da liberdade de fé, ouvindo a Carta aos Gálatas. Mas lembrei-me do que Jesus dizia sobre a espontaneidade e liberdade das crianças, quando uma criança teve a liberdade de se aproximar e de se mover como se estivesse na sua casa... E Jesus diz-nos: “Também vós, se não vos comportardes como crianças, não entrareis no Reino dos Céus”. A coragem de se aproximar do Senhor, de estar aberto ao Senhor, de não ter medo do Senhor: agradeço àquela criança a lição que deu a todos nós. E que o Senhor a ajude na sua limitação, no seu crescimento, porque deu este testemunho que lhe veio do coração. As crianças não têm um tradutor automático do coração para a vida: o coração vai em frente.
Na sua Carta aos Gálatas, o Apóstolo Paulo introduz-nos um pouco de cada vez, lentamente, na grande novidade da fé. É de facto uma grande novidade, pois não se limita a renovar algum aspecto da vida, mas reconduz-nos para aquela “vida nova” que recebemos no Batismo. Nele foi derramado sobre nós o maior dom, ser filhos de Deus. Renascidos em Cristo, passamos de uma religiosidade feita de preceitos para uma fé viva, que tem o seu centro na comunhão com Deus e com os irmãos, isto é, na caridade. Passamos da escravidão do medo e do pecado para a liberdade dos filhos de Deus. Mais uma vez, a palavra liberdade.
Hoje procuremos compreender melhor qual é, para o Apóstolo, o âmago desta liberdade. Paulo afirma que é tudo, menos «um pretexto para a carne» (Gl 5, 13): ou seja, a liberdade não é um modo libertino de viver, segundo a carne, ou segundo o instinto, desejos individuais e impulsos egoístas; pelo contrário, a liberdade de Jesus leva-nos a estar – escreve o Apóstolo – «ao serviço uns dos outros» (ibidem). Mas é isto escravidão? Sim, a liberdade em Cristo contém alguma “escravidão”, alguma dimensão que nos leva ao serviço, a viver para os outros. Em síntese, a verdadeira liberdade é plenamente expressa na caridade. Mais uma vez encontramo-nos perante o paradoxo do Evangelho: somos livres para servir, não para fazer o que queremos. Somos livres quando servimos, e é disto que vem a liberdade; encontramo-nos plenamente na medida em que nos doamos. Encontramo-nos plenamente na medida em que nos doamos, em que temos a coragem de nos doar; possuímos a vida se a perdermos (cf. Mc 8, 35). Isto é Evangelho puro!
Mas como se pode explicar este paradoxo? A resposta do Apóstolo é simples e exigente: «mediante o amor» (Gl 5, 13). Não há liberdade sem amor. A liberdade egoísta do fazer o que quero não é liberdade, pois volta a si mesma, não é fecunda. Foi o amor de Cristo que nos libertou e é ainda o amor que nos liberta da pior escravidão, a do nosso ego; por conseguinte, a liberdade cresce com o amor. Mas, atenção: não com o amor intimista, com o amor das novelas, não com a paixão que simplesmente procura o que nos convém e aquilo de que gostamos, mas com o amor que vemos em Cristo, a caridade: este é o amor verdadeiramente livre e libertador. É o amor que resplandece no serviço gratuito, modelado segundo o de Jesus, que lava os pés aos seus discípulos, dizendo: «Dei-vos um exemplo para que também vós façais como Eu vos fiz» (Jo 13, 15). Servir uns aos outros.
Portanto, para Paulo a liberdade não significa “fazer o que apetece”. Este tipo de liberdade, sem finalidades nem referências, seria uma liberdade vazia, uma liberdade de circo: não funciona. E com efeito deixa um vazio interior: quantas vezes, depois de termos seguido apenas o nosso instinto, nos damos conta de que sentimos um grande vazio interior e que abusamos do tesouro da nossa liberdade, da beleza de poder escolher o verdadeiro bem para nós mesmos e para os demais. Só esta liberdade é plena, concreta, dado que nos insere na vida real de cada dia. A verdadeira liberdade liberta-nos sempre; ao contrário, quando buscamos a liberdade do “aquilo de que gosto e não gosto”, no final permanecemos vazios.
Noutra Carta, a primeira aos Coríntios, o Apóstolo responde àqueles que têm uma ideia errada de liberdade. “Tudo é lícito!”, dizem eles. “Sim, mas nem tudo é benéfico”, responde Paulo. “Tudo é lícito!” – “Sim, mas nem tudo edifica”, objeta o Apóstolo. E acrescenta: «Ninguém procure o próprio interesse, senão os dos outros» (1 Cor 10, 23-24). Esta é a regra para desmascarar qualquer liberdade egoísta. Também àqueles que são tentados a reduzir a liberdade apenas aos próprios gostos, Paulo apresenta a exigência do amor. A liberdade guiada pelo amor é a única que liberta os outros e nós mesmos, que sabe ouvir sem impor, que sabe amar sem forçar, que constrói e não destrói, que não explora os demais para a sua conveniência e que pratica o bem sem procurar o próprio benefício. Em suma, se a liberdade não estiver ao serviço – eis o teste – se a liberdade não estiver ao serviço do bem, corre o risco de ser estéril e de não dar frutos. Por outro lado, a liberdade animada pelo amor conduz aos pobres, reconhecendo no seu rosto o de Cristo. Portanto, o serviço uns aos outros permite a Paulo, escrevendo aos Gálatas, fazer uma observação que não é de modo algum secundária: assim, falando da liberdade que os outros Apóstolos lhe deram de evangelizar, frisa que recomendaram apenas uma coisa: recordar-se dos pobres (cf. Gl 2, 10). Isto é interessante! Quando, depois da luta ideológica, Paulo e os Apóstolos concordaram, eis o que os Apóstolos lhe disseram: “Vai em frente, continua e não te esqueças dos pobres”, isto é, que a tua liberdade de pregador seja uma liberdade ao serviço dos outros, não para ti mesmo, de fazer o que te apetece.
Contudo, sabemos que uma das mais generalizadas noções modernas de liberdade é esta: “A minha liberdade acaba onde começa a tua”. Mas aqui falta a relação, o relacionamento! Trata-se de uma visão individualista. Por outro lado, aqueles que receberam o dom da libertação trazida por Jesus não podem pensar que a liberdade consiste em afastar-se dos outros, sentindo-os incómodos; não podem ver o ser humano fechado em si mesmo, mas sempre parte de uma comunidade. A dimensão social é fundamental para os cristãos, dado que lhes permite olhar para o bem comum e não para o interesse particular.
Sobretudo neste momento histórico, temos necessidade de redescobrir a dimensão comunitária, não individualista, da liberdade: a pandemia ensinou-nos que precisamos uns dos outros, mas não é suficiente sabê-lo, devemos escolhê-lo concretamente todos os dias, decidir empreender aquele caminho. Digamos e acreditemos que os outros não são um obstáculo para a minha liberdade, mas constituem a possibilidade de a realizar plenamente. Pois a nossa liberdade nasce do amor de Deus e cresce na caridade.
Papa Francisco
Catequese na audiência geral 20.10.21
Catequese sobre a Carta aos Gálatas 11. A liberdade cristã, fermento universal de libertação
Estimados irmãos e irmãs, bom dia!
No nosso itinerário catequético sobre a Carta aos Gálatas, pudemos concentrar-nos no que São Paulo considera o âmago da liberdade: o facto de, com a morte e ressurreição de Jesus Cristo, termos sido libertados da escravidão do pecado e da morte. Por outras palavras: somos livres porque fomos libertados, libertados por graça – não por pagamento – libertados pelo amor, que se torna a lei suprema e nova da vida cristã. O amor: somos livres porque fomos libertados gratuitamente. Este é precisamente o ponto-chave.
Hoje gostaria de salientar como esta novidade de vida nos abre para acolher cada povo e cultura e, ao mesmo tempo, abre cada povo e cultura a uma maior liberdade. Na verdade, São Paulo diz que para aqueles que aderem a Cristo, já não importa se são judeus ou pagãos. Conta apenas «a fé que atua pela caridade» (Gl 5, 6). Crer que fomos libertados e crer em Jesus Cristo que nos libertou: esta é a fé ativa pela caridade. Os detratores de Paulo – aqueles fundamentalistas que lá tinham chegado – atacavam-no por esta novidade, alegando que tinha tomado esta posição por oportunismo pastoral, ou seja, para “agradar a todos”, minimizando as exigências recebidas da sua mais estreita tradição religiosa. É o mesmo discurso dos fundamentalistas de hoje: a história repete-se sempre. Como podemos ver, a crítica a cada novidade evangélica não é apenas da nossa época, mas tem uma longa história. No entanto, Paulo não permanece em silêncio. Responde com parrésia – é uma palavra grega que indica coragem, força – e diz: «Porventura procuro eu agora conciliar o favor dos homens, ou o de Deus? Ou procuro agradar aos homens? Se procurasse agradar aos homens, não seria servo de Cristo» (Gl 1, 10). Já na sua primeira Carta aos Tessalonicenses expressou-se em termos semelhantes, dizendo que na pregação «nunca usamos de adulação, [...] nem fomos levados por interesse algum [...]. Não procuramos a glória entre os homens» (1 Ts 2, 5-6), que são as vias do “faz de conta”; uma fé que não é fé, é mundanidade.
Mais uma vez, o pensamento de Paulo mostra-se de uma profundidade inspirada. Para ele, aceitar a fé significa renunciar não ao coração das culturas e tradições, mas apenas ao que pode impedir a novidade e a pureza do Evangelho. Porque a liberdade obtida pela morte e ressurreição do Senhor não entra em conflito com as culturas e tradições que recebemos, mas introduz nelas uma nova liberdade, uma novidade libertadora, a do Evangelho. Com efeito, a libertação obtida através do batismo permite-nos adquirir a plena dignidade de filhos de Deus, de modo que, enquanto permanecemos firmemente enxertados nas nossas raízes culturais, ao mesmo tempo abrimo-nos ao universalismo da fé, que entra em cada cultura, reconhece os germes de verdade presentes nela e desenvolve-os, levando à plenitude o bem nelas contido. Aceitar que fomos libertados por Cristo – a sua paixão, a sua morte, a sua ressurreição – é aceitar e levar a plenitude também às diversas tradições de cada povo. A verdadeira plenitude.
Na chamada à liberdade descobrimos o verdadeiro significado da inculturação do Evangelho. Qual é este verdadeiro significado? Ser capaz de proclamar a Boa Nova de Cristo Salvador, respeitando o que é bom e verdadeiro nas culturas. Isto não é fácil! Há muitas tentações de impor o próprio modelo de vida como se fosse o mais evoluído e desejável. Quantos erros foram cometidos na história da evangelização ao querer impor apenas um modelo cultural! A uniformidade como regra de vida não é cristã! A unidade sim, a uniformidade não! Por vezes, nem sequer se renunciou à violência a fim de fazer prevalecer o próprio ponto de vista. Pensemos nas guerras. Desta forma, a Igreja privou-se da riqueza de tantas expressões locais que têm em si as tradições culturais de povos inteiros. Mas isto é exatamente o oposto da liberdade cristã! Por exemplo, vem-me à mente quando se afirmou o modo de fazer apostolado na China com o padre Ricci ou na Índia com o padre De Nobili… [Alguém dizia]: “Mas não, isto não é cristão!”. Sim, é cristão, está na cultura do povo.
Em suma, a visão de liberdade própria de Paulo é iluminada e enriquecida pelo mistério de Cristo, que na sua encarnação – como recorda o Concílio Vaticano II – se uniu de certo modo a cada homem (cf. Const. past. Gaudium et spes, 22). E isto significa que não há uniformidade, ao contrário, há a variedade, mas variedade unida. Disto deriva o dever de respeitar a origem cultural de cada pessoa, colocando-a num espaço de liberdade que não seja restringido por qualquer imposição ditada por uma única cultura predominante. Este é o significado de nos chamarmos católicos, de falarmos da Igreja católica: não é uma denominação sociológica para nos distinguir dos outros cristãos; católico é um adjetivo que significa universal: a catolicidade, a universalidade. Igreja universal, isto é, católica, significa que a Igreja tem em si, na própria natureza, uma abertura a todos os povos e culturas de todos os tempos, pois Cristo nasceu, morreu e ressuscitou para todos.
Por outro lado, a cultura está, pela sua natureza, em contínua transformação. Pensemos em como somos chamados a proclamar o Evangelho neste momento histórico de grande mudança cultural, onde parece predominar a tecnologia cada vez mais avançada. Se pretendêssemos falar da fé como se fazia nos séculos passados, correríamos o risco de já não sermos compreendidos pelas novas gerações. A liberdade da fé cristã – a liberdade cristã – não indica uma visão estática da vida e da cultura, mas uma visão dinâmica, uma visão dinâmica inclusive da tradição. A tradição cresce, mas sempre com a mesma natureza. Por conseguinte, não pretendamos ter a posse da liberdade. Recebemos um dom que deve ser preservado. E é a liberdade que pede a cada um de nós para permanecer num caminho constante, orientados para a sua plenitude. É a condição de peregrinos; é o estado dos caminhantes, num êxodo contínuo: libertados da escravidão para caminhar rumo à plenitude da liberdade. E este é o grande dom que Jesus Cristo nos doou. O Senhor libertou-nos da escravidão gratuitamente e pôs-nos na via para caminhar na plena liberdade.
Papa Francisco
Catequese na audiência geral 13.10.21
Catequese sobre a Carta aos Gálatas 10. Cristo nos libertou
Estimados irmãos e irmãs, bom dia!
Hoje retomamos a nossa reflexão sobre a Carta aos Gálatas. Nela, São Paulo escreveu palavras imortais sobre a liberdade cristã. O que é a liberdade cristã? Reflitamos hoje sobre este tema: a liberdade cristã.
A liberdade é um tesouro que só é verdadeiramente apreciado quando o perdemos. Para muitos de nós, habituados a viver em liberdade, muitas vezes parece mais um direito adquirido do que um dom e uma herança a ser preservada. Quantos desentendimentos em torno do tema da liberdade, e quantas visões diferentes se confrontaram ao longo dos séculos!
No caso dos Gálatas, o Apóstolo não podia suportar que esses cristãos, depois de terem conhecido e aceitado a verdade de Cristo, se deixassem atrair por propostas enganosas, passando da liberdade à escravidão: da presença libertadora de Jesus à escravidão do pecado, do legalismo, etc. Ainda hoje o legalismo é um nosso problema, o problema de muitos cristãos que se refugiam no legalismo, na casuística. Portanto, Paulo convida os cristãos a permanecerem firmes na liberdade que receberam através do batismo, sem se deixarem colocar de novo sob o «jugo da escravidão» (Gl 5, 1). Ele é justamente ciumento da liberdade. Está ciente de que alguns «falsos irmãos» – define-os deste modo – «que se intrometeram e entraram a espiar – como escreve – a liberdade que temos em Jesus Cristo a fim de nos reduzir à escravidão» (Gl 2, 4), voltar atrás, e Paulo não pode tolerar isto. A pregação que impede a liberdade em Cristo nunca seria evangélica: poderia ser pelagiana ou jansenista ou algo do género, mas não seria evangélica. Nunca se pode forçar em nome de Jesus, não se pode fazer de ninguém um escravo em nome de Jesus que nos liberta. A liberdade é um dom que nos é dado no batismo.
Mas o ensinamento de São Paulo sobre a liberdade é sobretudo positivo. O Apóstolo propõe o ensinamento de Jesus, que também encontramos no Evangelho de João: «Se permanecerdes na minha palavra, sereis meus verdadeiros discípulos; conhecereis a verdade e a verdade libertar-vos-á» (8, 31-32). Por conseguinte, acima de tudo, o apelo consiste em permanecer em Jesus, fonte da verdade que nos liberta. Portanto, a liberdade cristã baseia-se em dois pilares fundamentais: primeiro, a graça do Senhor Jesus; segundo, a verdade que Cristo nos revela e que é Ele próprio.
Em primeiro lugar, é o dom do Senhor. A liberdade que os Gálatas receberam – e nós como eles através do batismo – é o fruto da morte e ressurreição de Jesus. O Apóstolo concentra toda a sua pregação em Cristo, que o libertou dos vínculos com a sua vida passada: só dele brotam os frutos da nova vida de acordo com o Espírito. De facto, a liberdade mais verdadeira, a liberdade da escravidão do pecado, veio da Cruz de Cristo. Estamos livres da escravidão do pecado através da Cruz de Cristo. Precisamente nela, onde Jesus se deixou pregar, onde se fez escravo, Deus colocou a fonte da libertação do homem. Isto nunca deixa de nos surpreender: que o lugar onde somos despojados de toda a liberdade, nomeadamente a morte, pode tornar-se a fonte da liberdade. Mas este é o mistério do amor de Deus: não é facilmente compreendido, é vivido. O próprio Jesus anunciou-o quando disse: «O Pai ama-me, porque dou a minha vida para a retomar. Ninguém me tira. Sou Eu que a dou por Mim mesmo. Tenho poder para a dar e para tornar a tomá-la» (Jo 10, 17-18). Jesus realiza a sua plena liberdade ao entregar-se à morte; ele sabe que só desta forma pode obter vida para todos.
Paulo, como sabemos, viveu pessoalmente este mistério de amor. É por isso que diz aos Gálatas, com uma expressão extremamente audaz: «Fui crucificado com Cristo» (Gl 2, 19). Nesse ato de união suprema com o Senhor, sabe que recebeu o maior dom da sua vida: a liberdade. De facto, na cruz pregou «a carne com as suas paixões e desejos» (5, 24). Compreendemos quanto a fé animava o Apóstolo, quanto era grande a sua intimidade com Jesus e enquanto, por um lado, sentimos que nos falta isso, por outro, o testemunho do Apóstolo encoraja-nos a ir em frente nesta vida livre. O cristão é livre, deve ser livre e é chamado a não voltar a ser escravo de preceitos, de coisas estranhas.
O segundo pilar da liberdade é a verdade. Também neste caso é necessário recordar que a verdade da fé não é uma teoria abstrata, mas a realidade do Cristo vivo, que toca diretamente o significado quotidiano e global da vida pessoal. Quantas pessoas que não estudaram, nem sequer sabem ler nem escrever, mas compreenderam bem a mensagem de Cristo, têm esta sabedoria que as liberta. É a sabedoria de Cristo que entrou através do Espírito Santo no batismo. Quantas pessoas encontramos que vivem a vida de Cristo mais do que os grandes teólogos, por exemplo, oferecendo um testemunho precioso da liberdade do Evangelho. A liberdade torna-nos livres na medida em que transforma a vida de uma pessoa e a encaminha para o bem. Para sermos verdadeiramente livres, precisamos não só de nos conhecer a nós mesmos, a nível psicológico, mas sobretudo de sermos nós mesmos verdade, a um nível mais profundo. E ali, no coração, abrimo-nos à graça de Cristo. A verdade deve inquietar-nos – voltemos a esta palavra cristã: inquietar. Sabemos que há cristãos que nunca ficam inquietos: vivem sempre iguais, não há movimento nos seus corações, não há inquietude. Porquê? Porque a inquietação é o sinal de que o Espírito Santo age dentro de nós, e a liberdade é ativa, suscitada pela graça do Espírito Santo. É por isso que digo que a liberdade deve inquietar-nos, deve continuamente fazer-nos perguntas, para que possamos ir cada vez mais a fundo no que realmente somos. Desta forma, descobrimos que o caminho para a verdade e a liberdade é cansativo e dura a vida inteira. É difícil permanecer livre, é difícil; mas não é impossível. Coragem, levemos isto por diante, far-nos-á bem. É um caminho no qual somos guiados e apoiados pelo Amor que vem da Cruz: o Amor que nos revela a verdade e nos dá liberdade. E este é o caminho para a felicidade. A liberdade torna-nos livres, torna-nos alegres, torna-nos felizes.
Papa Francisco
Catequese na audiência geral 06.10.21
Catequese sobre a Carta aos Gálatas - 9. A vida na fé
Estimados irmãos e irmãs, bom dia!
No nosso percurso para compreender melhor o ensinamento de São Paulo, encontramo-nos hoje com um tema difícil, mas importante, o da justificação. O que é a justificação? Nós, como pecadores, tornámo-nos justos. Quem nos tornou justos? Este processo de mudança é a justificação. Nós, perante Deus, somos justos. É verdade que temos os nossos pecados pessoais, mas na base somos justos. Esta é a justificação. Houve muitos debates sobre este assunto, para encontrar a interpretação mais coerente com o pensamento do Apóstolo e, como muitas vezes acontece, houve também posições opostas. Na Carta aos Gálatas, bem como na Carta aos Romanos, Paulo insiste no facto de que a justificação vem da fé em Cristo. “Mas, eu sou justo porque cumpro todos os mandamentos”. Sim, mas a justificação não vem disto, vem antes: alguém te justificou, alguém te tornou justo perante Deus. “Sim, mas sou pecador!”. Sim, és justo, mas pecador, és justo na base. Quem te tornou justo? Jesus Cristo. Esta é a justificação.
O que está por detrás da palavra “justificação”, que é tão decisiva para a fé? Não é fácil chegar a uma definição completa, mas na totalidade do pensamento de São Paulo podemos simplesmente dizer que a justificação é a consequência da «misericórdia de Deus que oferece o perdão» (Catecismo da Igreja Católica, n. 1990). E este é o nosso Deus, tão bom, misericordioso, paciente, cheio de misericórdia, que continuamente doa o perdão, continuamente. Ele perdoa, e a justificação é Deus que perdoa desde o início cada um, em Cristo. A misericórdia de Deus que dá o perdão. De facto, através da morte de Jesus – e isto deve ser frisado: através da morte de Jesus – Deus destruiu o pecado e doou-nos o perdão e a salvação de uma forma definitiva. Assim justificados, os pecadores são acolhidos por Deus e reconciliados com Ele. É como um regresso à relação original entre o Criador e a criatura, antes que interviesse a desobediência do pecado. Portanto, a justificação que Deus realiza permite que recuperemos a inocência perdida com o pecado. Como ocorre a justificação? Responder a esta pergunta é descobrir outra novidade no ensinamento de São Paulo: a justificação ocorre por graça. Só pela graça: fomos justificados por pura graça. “Mas não posso, como fazem alguns, ir ter com o juiz e pagar para que ele me dê a justiça?”. Não, nisto não se pode pagar, pagou alguém por todos nós: Cristo. E de Cristo que morreu por nós vem aquela graça que o Pai concede a todos: a justificação vem pela graça.
O Apóstolo tem sempre em mente a experiência que mudou a sua vida: o encontro com Jesus ressuscitado no caminho de Damasco. Paulo tinha sido um homem orgulhoso, religioso e zeloso, convencido de que a justiça consistia na observância escrupulosa dos preceitos. Agora, porém, foi conquistado por Cristo, e a fé n’Ele transformou-o até às profundezas, permitindo-lhe descobrir uma verdade até então escondida: não somos nós que nos tornamos justos pelos nossos próprios esforços – não: não somos nós; mas é Cristo com a sua graça que nos torna justos. Assim Paulo, para ter um conhecimento pleno do mistério de Jesus, está disposto a renunciar a tudo aquilo do que antes era rico (cf. Fl 3, 7), pois descobriu que só a graça de Deus o salvou. Fomos justificados, fomos salvos por mera graça, não pelos nossos merecimentos. E isto dá-nos grande confiança. Somos pecadores, sim; mas seguimos o caminho da vida com esta graça de Deus que nos justifica cada vez que pedimos perdão. Mas não justifica naquele momento: já estamos justificados, mas vem perdoar-nos outra vez.
Para o Apóstolo, a fé tem um valor que abrange tudo. Toca cada momento e cada aspecto da vida do crente: desde o batismo até à partida deste mundo, tudo está impregnado pela fé na morte e ressurreição de Jesus, que concede a salvação. A justificação pela fé enfatiza a prioridade da graça, que Deus oferece a todos os que acreditam no seu Filho sem distinção alguma.
Contudo, não devemos concluir que para Paulo a Lei mosaica já não tenha valor; pelo contrário, continua a ser um dom irrevogável de Deus, é – escreve o Apóstolo – «santa» (Rm 7, 12). Inclusive para a nossa vida espiritual é essencial observar os mandamentos, mas também aqui não podemos confiar na nossa própria força: a graça de Deus que recebemos em Cristo é fundamental, aquela graça que nos vem da justificação que Cristo nos concedeu, que já pagou por nós. Dele recebemos aquele amor gratuito que nos permite, por nossa vez, amar de modo concreto.
Neste contexto, é bom recordar o ensinamento do Apóstolo Tiago, que escreve: «O homem é justificado pelas obras e não somente segundo a fé – poderia parecer o contrário, mas não é – […] Assim como o corpo sem alma é morto, assim também a fé sem obras é morta» (Tg 2, 24.26). A justificação, se não florescer com as nossas obras, ficará ali, debaixo da terra, como morta. Existe, mas nós devemos atuá-la com as nossas obras. Assim, as palavras de Tiago complementam o ensino de Paulo. Por conseguinte, para ambos a resposta da fé exige que sejamos ativos no amor a Deus e no amor ao próximo. Por que “ativos naquele amor”? Porque aquele amor nos salvou a todos, justificou-nos gratuitamente, de graça!
A justificação insere-nos na longa história da salvação, que mostra a justiça de Deus: perante as nossas contínuas quedas e insuficiências, Ele não se resignou, mas quis tornar-nos justos e fê-lo pela graça, através do dom de Jesus Cristo, da sua morte e ressurreição. Algumas vezes mencionei como é o caminho de Deus, qual é o estilo de Deus, e disse-o em três palavras: o estilo de Deus é proximidade, compaixão e ternura. Ele está sempre perto de nós, é compassivo e terno. E a justificação é precisamente a maior proximidade de Deus a nós, homens e mulheres, a maior compaixão de Deus por nós, homens e mulheres, a maior ternura do Pai. A justificação é este dom de Cristo, da morte e ressurreição de Cristo que nos liberta. “Mas, Padre, sou pecador, roubei...”. Sim, mas na base és justo. Deixa que Cristo implemente essa justificação. Não estamos condenados, na base, não: somos justos. Permiti-me a expressão: somos santos, na base. Mas depois, pelas nossas ações, tornamo-nos pecadores. Mas, na base, somos santos: deixemos que a graça de Cristo se eleve e que a justiça, aquela justificação nos dê forças para ir em frente. Assim, a luz da fé permite-nos reconhecer quão infinita é a misericórdia de Deus, a graça que age para o nosso bem. Mas a mesma luz mostra-nos também a responsabilidade que nos foi confiada de colaborar com Deus na sua obra de salvação. O poder da graça precisa de se conjugar com as nossas obras de misericórdia, que somos chamados a viver para dar testemunho de quão grande é o amor de Deus. Vamos em frente com esta confiança: todos fomos justificados, somos justos em Cristo. Devemos concretizar esta justiça com as nossas obras.
Papa Francisco
Catequese na audiência geral 29.09.21
Imagem: site do Vaticano na data acima.
Catequese sobre a Carta aos Gálatas - 8. Somos filhos de Deus
Prossigamos o nosso itinerário de aprofundamento da fé – da nossa fé – à luz da Carta de São Paulo aos Gálatas. O Apóstolo insiste com aqueles cristãos para que não se esqueçam da novidade da revelação de Deus que lhes foi anunciada. Em pleno acordo com o evangelista João (cf. 1 Jo 3, 1-2), Paulo evidencia que a fé em Jesus Cristo permitiu que nos tornássemos verdadeiramente filhos de Deus e também seus herdeiros. Nós, cristãos, damos frequentemente por certa esta realidade de ser filhos de Deus. Ao contrário, é bom recordar sempre com gratidão o momento em que nos tornamos tais, o do nosso batismo, para viver com maior consciência o grande dom recebido.
Se eu perguntasse hoje: quantos de vós sabem a data do próprio batismo?, penso que não haveria muitas mãos levantadas. No entanto trata-se da data na qual fomos salvos, a data em que nos tornámos filhos de Deus. Agora, aqueles que não a sabem, que perguntem ao padrinho, madrinha, pai, mãe, tio, tia: “Quando fui batizado? Quando fui batizada?”; e lembrai-vos dessa data todos os anos: é a data em que tornamos filhos de Deus. Concordais? Fareis isto? [respondem: sim!] É um “sim” sincero? [riem] Vamos em frente...
Com efeito, quando «vem a fé» em Jesus Cristo (v. 25), cria-se uma condição radicalmente nova que nos introduz na filiação divina. A filiação de que Paulo fala já não é a geral, que envolve todos os homens e mulheres como filhos e filhas do único Criador. No trecho que acabamos de ouvir, ele afirma que a fé permite ser filhos de Deus «em Cristo» (v. 26): esta é a novidade. É este “em Cristo” que faz a diferença. Não só filhos de Deus, como todos: todos, homens e mulheres, somos filhos de Deus, todos, qualquer que seja a religião que seguimos. Não. Mas “em Cristo” é o que distingue os cristãos, e isto acontece apenas na participação da redenção de Cristo e em nós no sacramento do batismo, começa assim. Jesus tornou-se nosso irmão, e pela sua morte e ressurreição reconciliou-nos com o Pai. Quantos recebem Cristo na fé através do batismo são “revestidos” d’Ele e da dignidade filial (cf. v. 27).
Nas suas Cartas, São Paulo refere-se várias vezes ao batismo. Para ele, ser batizado equivale a participar de modo efetivo e real no mistério de Jesus. Por exemplo, na Carta aos Romanos ele chega a ponto de dizer que, no batismo, morremos com Cristo e somos sepultados com Ele para viver com Ele (cf. 6, 3-14). Mortos com Cristo, sepultados com Ele para poder viver com Ele. E esta é a graça do batismo: participar na morte e ressurreição de Jesus. Portanto, o batismo não é apenas um rito externo. Aqueles que o recebem são transformados nas profundezas do seu ser, no seu íntimo, e possuem uma nova existência, precisamente a vida que lhes permite dirigir-se a Deus e invocá-lo com o nome de “Aba”, isto é “pai”. “Pai”? Não, “papá” (cf. Gl 4, 6).
O Apóstolo afirma com grande audácia que a identidade recebida através do batismo é totalmente nova, tanto que prevalece sobre as diferenças que existem a nível étnico-religioso: Isto é, explica-a assim: «Não há judeu nem grego»; e também a nível social: «Não há escravo nem livre; não há homem nem mulher» (Gl 3, 28). Estas expressões são lidas muitas vezes com demasiada pressa, sem compreender o valor revolucionário que possuem. Para Paulo, escrever aos Gálatas que em Cristo “não há judeu nem grego” era equivalente a uma autêntica subversão no âmbito étnico-religioso. O judeu, em virtude da pertença à povo escolhido, era privilegiado em relação ao pagão (cf. Rm 2, 17-20), e o próprio Paulo o afirma (cf. Rm 9, 4-5). Portanto, não surpreende que este novo ensinamento do Apóstolo pudesse soar como herético. “Mas como, todos iguais? Somos diferentes!”. Soa um pouco herético, não é? Também a segunda igualdade, entre “livres” e “escravos”, abre perspetivas chocantes. Para a sociedade antiga, a distinção entre escravos e cidadãos livres era vital. Por lei estes últimos gozavam de todos os direitos, enquanto aos escravos não era reconhecida nem sequer a dignidade humana. Isto acontece também hoje: muita gente no mundo, muita, milhões, não tem direito a comer, à educação, ao trabalho: são os novos escravos, são os que vivem nas periferias, explorados por todos. Também hoje existe escravidão. Pensemos nisto. Negamos a estas pessoas a dignidade humana, são escravos. Por fim, a igualdade em Cristo supera a diferença social entre os sexos, estabelecendo uma igualdade entre homem e mulher que era revolucionária naquela época e que hoje deve ser reafirmada. É preciso reafirmá-la também hoje. Quantas vezes nós ouvimos expressões que desprezam as mulheres! Quantas vezes ouvimos: “Mas não, não faças nada, [são] coisas de mulher”. Contudo, homem e mulher têm a mesma dignidade, e na história, inclusive hoje, existe uma escravidão das mulheres: as mulheres não têm as mesmas oportunidades dos homens. Devemos ler o que Paulo diz: somos iguais em Jesus Cristo.
Como podemos ver, Paulo afirma a profunda unidade que existe entre todos os batizados, qualquer que seja a sua condição, quer homens quer mulheres, iguais, pois cada um deles, em Cristo, é uma criatura nova. Cada distinção torna-se secundária no que diz respeito à dignidade de ser filho de Deus, que pelo seu amor alcança uma igualdade verdadeira e substancial. Todos, através da redenção de Cristo e do batismo que recebemos, somos iguais: filhos e filhas de Deus. Iguais.
Irmãos e irmãs, por conseguinte, somos chamados de modo mais positivo a viver uma nova vida que encontra a sua expressão fundadora na filiação em relação a Deus. Iguais porque somos filhos de Deus, e filhos de Deus porque nos remiu Jesus Cristo e entrámos nesta dignidade através do batismo. É também decisivo para todos nós, hoje, redescobrir a beleza de ser filhos de Deus, de ser irmãos e irmãs entre nós, pois estamos inseridos em Cristo que nos redimiu. As diferenças e os contrastes que criam separação não deveriam existir entre os crentes em Cristo. E um dos apóstolos, na Carta a Tiago, diz assim: “Estai atentos com as diferenças, pois não sois justos quando na assembleia (isto é, na Missa) entra alguém que usa um anel de ouro, está bem vestido: ‘Ah, vem, vem!’ e convidam-no a sentar no primeiro banco. Depois, se entra outra pessoa, malvestida e que se vê que é pobre, muito pobre: ‘sim, sim, senta-te ali, no fundo’”. Estas diferenças são feitas por nós, muitas vezes, de modo inconsciente. Não, somos iguais. Pelo contrário, a nossa vocação é tornar concreta e evidente a chamada à unidade de toda a raça humana (cf. Conc. Ecum. Vat. II, Const. Lumen gentium, 1). Tudo o que exacerba as diferenças entre as pessoas, muitas vezes causando discriminação, tudo isto, perante Deus, já não tem qualquer substância, graças à salvação realizada em Cristo. O que conta é a fé que age seguindo o caminho da unidade, indicado pelo Espírito Santo. E a nossa responsabilidade consiste em percorrer decisivamente este caminho da igualdade, mas a igualdade que é apoiada e realizada pela redenção de Jesus.
Obrigado. E não vos esqueçais, ao voltardes para casa: “Quando fui batizada? Quando fui batizado?”. Perguntai, para ter em mente sempre aquela data. E também para festejar quando chegar aquele dia. Obrigado.
Papa Francisco
catequese na audiência geral 08.09.21
Imagem: pexels.com
Catequese sobre a Carta aos Gálatas - 7. Gálatas insensatos
Continuaremos a explicação da Carta de São Paulo aos Gálatas. Isto não é uma coisa nova, esta explicação, uma coisa minha: o que estamos a estudar é o que diz São Paulo, num conflito muito sério, aos Gálatas. E é também Palavra de Deus, porque entrou na Bíblia. Não é algo que alguém inventou, não. Aconteceu naquele tempo e pode repetir-se. E, de facto, vimos que na história isto repetiu-se. Esta é simplesmente uma catequese sobre a Palavra de Deus, expressa na Carta de Paulo aos Gálatas, nada mais. Devemos ter sempre isto em mente. Nas catequeses anteriores vimos que o Apóstolo Paulo mostrou aos primeiros cristãos da Galácia como era perigoso deixar o caminho que tinham iniciado a percorrer ao aceitar o Evangelho. Com efeito, o risco é cair no formalismo, que é uma das tentações que nos leva à hipocrisia, da qual falávamos na semana passada. Cair no formalismo e negar a nova dignidade que receberam: a dignidade de remidos por Cristo. O trecho que acabámos de ouvir dá início à segunda parte da Carta. Até este ponto, Paulo falou da sua vida e da sua vocação: de como a graça de Deus transformou a sua existência, colocando-a completamente ao serviço da evangelização. Neste ponto, interpela diretamente os Gálatas: põe-nos diante das escolhas que fizeram e da sua condição atual, o que poderia anular a experiência de graça que viveram.
E os termos com os quais o Apóstolo se dirige aos Gálatas certamente não são gentis: ouvimo-los. Nas outras Cartas é fácil encontrar a expressão “irmãos” ou “caríssimos”, aqui não. Pois está zangado. Diz genericamente “Gálatas” e duas vezes lhes chama “insensatos”, que não é um termo gentil. Estultos, insensatos e pode dizer muitas coisas... Não o faz porque não são inteligentes, mas porque, quase sem se aperceberem, correm o risco de perder a fé em Cristo que aceitaram com tanto entusiasmo. São insensatos porque não se apercebem de que o perigo é o de perder o tesouro precioso, a beleza da novidade de Cristo. A desilusão e a tristeza do Apóstolo são evidentes. Não sem amargura, ele provoca esses cristãos a lembrarem-se do primeiro anúncio feito por ele, através do qual lhes ofereceu a possibilidade de obter uma liberdade até então inesperada.
O Apóstolo faz perguntas aos Gálatas a fim de despertar as suas consciências: por isso é tão forte. Trata-se de questões retóricas, pois os Gálatas sabem muito bem que a sua chegada à fé em Cristo é fruto da graça recebida através da pregação do Evangelho. Leva-os ao início da vocação cristã. A palavra que ouviram de Paulo centrou-se no amor de Deus, plenamente manifestado na morte e ressurreição de Jesus. Paulo não conseguiu encontrar uma expressão mais convincente do que aquela que provavelmente lhes tinha repetido várias vezes na sua pregação: «Já não sou eu que vivo, é Cristo que vive em mim; e a vida que agora vivo na carne, vivo-a na fé do Filho de Deus, que me amou e se entregou a si mesmo por mim» (Gl 2, 20). Paulo mais não queria saber do que de Cristo crucificado (cf. 1 Cor 2, 2). Os Gálatas devem olhar para este evento, sem se deixarem distrair por outros anúncios... Em suma, a intenção de Paulo é colocar os cristãos em condições para que se apercebam do que está em jogo e não se deixem encantar pela voz das sereias que os querem conduzir a uma religiosidade baseada unicamente na observância escrupulosa dos preceitos. Pois eles, os pregadores novos que chegaram à Galácia, convenceram-nos que deviam voltar atrás e observar também os preceitos que levam à perfeição antes da vinda de Cristo, que é a gratuidade da salvação.
Por outro lado, os Gálatas compreendiam muito bem ao que o Apóstolo se referia. Tinham certamente experimentado a ação do Espírito Santo nas comunidades: como nas outras Igrejas, também a caridade e vários outros carismas se tinham manifestado entre eles. Ao serem postos à prova, tiveram de responder que quanto tinham vivido era fruto da novidade do Espírito. Portanto no início da sua chegada à fé, estava a iniciativa de Deus e não a dos homens. O Espírito Santo tinha sido o protagonista da sua experiência; colocá-lo agora em segundo plano a fim de dar primazia às próprias obras – isto é ao cumprimento dos preceitos da Lei – seria uma insensatez. A santidade vem do Espírito Santo e é a gratuidade da redenção de Jesus: isto justifica-nos.
Deste modo, São Paulo convida também a nós a refletir: como vivemos a fé? Será que o amor de Cristo crucificado e ressuscitado permanece no centro da nossa vida quotidiana como fonte de salvação, ou será que nos contentamos com algumas formalidades religiosas para estar em paz com a nossa consciência? Como vivemos nós a fé? Estamos apegados ao tesouro precioso, à beleza da novidade de Cristo, ou preferimos algo que neste momento nos atrai, mas que depois nos deixa vazios por dentro? O efémero bate muitas vezes à porta dos nossos dias, mas é uma triste ilusão, que nos faz cair na superficialidade e nos impede de discernir aquilo por que realmente vale a pena viver. Irmãos e irmãs, no entanto, mantenhamos a certeza de que, mesmo quando somos tentados a afastar-nos, Deus continua a conceder os seus dons. Ao longo da história, e ainda hoje, se verificam coisas que se assemelham ao que aconteceu aos Gálatas. Também hoje algumas pessoas nos fazer arder as orelhas dizendo: “Não, a santidade está nestes preceitos, nestas coisas, é preciso fazer isto e aquilo”, e propõem-nos uma religiosidade rígida, a rigidez que nos tira aquela liberdade no Espírito que a redenção de Cristo nos dá. Estai atentos perante a rigidez que vos propõem: estai atentos. Pois por detrás de cada rigidez há algo negativo, não existe o Espírito de Deus. É por isso que esta Carta nos ajudará a não ouvir estas propostas meio fundamentalistas que nos fazem retroceder na nossa vida espiritual, e nos ajudará a avançar na vocação pascal de Jesus. É isto que o Apóstolo reitera aos Gálatas quando lhes recorda que o Pai «doa o Espírito abundantemente, e realiza obras maravilhosas entre vós» (3, 5). Ele fala no presente, não diz “o Pai doou o Espírito em abundância”, capítulo 3, versículo 5, não: diz “doa”; não diz “realizou”, não, “realiza”. Pois, apesar de todas as dificuldades que possamos colocar à sua ação, inclusive não obstante os nossos pecados, Deus não nos abandona, mas permanece connosco com o seu amor misericordioso. Deus está sempre próximo de nós com a sua bondade. É como aquele pai que todos os dias subia ao terraço para ver se o filho voltava: o amor do Pai não se cansa de nós. Peçamos a sabedoria de nos apercebermos sempre desta realidade e de afastar os fundamentalistas que nos propõem uma vida de ascese artificial, afastada da ressurreição de Cristo. A ascese é necessária, mas a ascese sábia, não artificial.
Papa Francisco
Catequese na audiência geral 01.09.2021
A Carta aos Gálatas relata um acontecimento bastante surpreendente. Como ouvimos, Paulo diz que repreendeu Cefas, ou seja, Pedro, perante a comunidade de Antioquia, porque o seu comportamento não era bom. O que aconteceu de tão grave para que Paulo se dirigisse a Pedro em termos tão severos? Será que Paulo exagerou dando demasiado espaço ao seu carácter sem saber como se conter? Veremos que este não é o caso, mas que mais uma vez está em questão a relação entre a Lei e a liberdade. E devemos insistir sobre isto muitas vezes.
Escrevendo aos Gálatas, Paulo menciona deliberadamente este episódio que tinha acontecido em Antioquia anos antes. Ele pretende recordar aos cristãos dessas comunidades que eles não devem absolutamente escutar aqueles que pregam a necessidade de serem circuncidados para ficar “sob a Lei” com todas as suas prescrições. Recordemos que foram estes pregadores fundamentalistas que chegaram lá e criaram confusão, e privando aquela comunidade da paz. Pedro foi criticado pelo seu comportamento à mesa. A Lei proibia que um judeu partilhasse refeições com não judeus. Mas o próprio Pedro, noutra ocasião, tinha ido a Cesareia, à casa do centurião Cornélio, apesar de saber que estava a transgredir a Lei. Então afirmara: «Deus mostrou-me que nenhum homem deve ser chamado profano ou impuro» (At 10, 28). Quando regressou a Jerusalém, os cristãos circuncidados que eram fiéis à Lei mosaica repreenderam Pedro pelo seu comportamento, mas ele justificou-se dizendo: «Recordei-me então da palavra do Senhor, quando Ele dizia: “João batizou em água; vós, porém, sereis batizados no Espírito Santo”. Se Deus, portanto, lhes concedeu o mesmo dom que a nós por terem acreditado no Senhor Jesus Cristo, quem era eu para opor-me a Deus?» (At 11, 16-17). Recordemos que o Espírito Santo veio naquele momento à casa de Cornélio quando lá estava Pedro.
Um fato semelhante também tinha acontecido em Antioquia, na presença de Paulo. Antes, Pedro estava à mesa sem qualquer dificuldade com os cristãos que tinham vindo do paganismo, mas quando alguns cristãos de Jerusalém – aqueles que provinham do judaísmo – circuncidados, chegaram à cidade, ele já não o fez, para não incorrer nas críticas deles. É este o erro: era mais atento às críticas, a dar uma boa impressão. Isto é grave aos olhos de Paulo, até porque Pedro estava a ser imitado por outros discípulos, antes de todos Barnabé, que com Paulo tinha evangelizado os Gálatas (cf. Gl 2, 13). Sem querer, o comportamento de Pedro – um pouco assim, aproximativo, nem claro nem transparente – criava uma divisão injusta na comunidade: “Eu sou puro… sigo por esta linha, faço assim, isto não se pode…”
Na sua repreensão – eis o núcleo do problema – Paulo usa um termo que permite entrar nos méritos da sua reação: hipocrisia (cf. Gl 2, 13). Esta é uma palavra que se repete muitas vezes: hipocrisia. Penso que todos nós compreendemos o que significa. A observância da Lei por parte dos cristãos levou a este comportamento hipócrita, que o Apóstolo pretende combater com força e convicção. Paulo era reto, tinha os seus defeitos – muitos, o seu caráter era terrível – mas era reto. O que é a hipocrisia? Quando dizemos: estai atentos que aquele é um hipócrita: o que queremos dizer? O que é hipocrisia? Pode-se dizer que é o medo da verdade. A hipocrisia tem medo da verdade. As pessoas preferem fingir do que ser elas mesmas. É como pintar a alma, como pintar as atitudes, o modo de proceder: não é a verdade. “Tenho medo de proceder como sou e disfarço-me com estas atitudes”. Fingir impede a coragem de dizer a verdade abertamente, e assim facilmente se evita a obrigação de a dizer sempre, em todo o lado e apesar de tudo. Fingir leva-te a isto: às meias-verdades. E as meias-verdades são uma ficção: pois a verdade ou é verdade ou não é verdade. Mas as meias-verdades são este modo de agir não verdadeiro. Prefere-se, como disse, fingir em vez de ser como se é, e a ficção impede aquela coragem, de dizer abertamente a verdade. E assim, não cumprimos a obrigação – e isto é um mandamento – de dizer sempre a verdade, em todos os lugares e apesar de tudo. Num ambiente em que as relações interpessoais são vividas sob a bandeira do formalismo, o vírus da hipocrisia propaga-se facilmente. Aquele sorriso que não vem do coração, aquele procurar estar bem com todos, mas com ninguém…
Há vários exemplos na Bíblia onde a hipocrisia é combatida. Um bom testemunho para combater a hipocrisia é o do velho Eleazar, a quem foi pedido que fingisse que comia carne sacrificada a divindades pagãs para salvar a sua vida: fingir que a comia, mas não a comia. Fingir que comia a carne suína, mas os amigos tinham-lhe preparado outra. Mas o homem temente a Deus respondeu: «Não é próprio da minha idade, respondeu ele, usar de tal fingimento, não suceda que muitos jovens, julgando que Eleazar, aos noventa anos, se tenha passado à vida dos gentios, pelo meu gesto de hipócrita e por amor a um pouco de vida, se deixem arrastar por minha causa; isto seria a desonra e a vergonha da minha velhice» (2 Mc 6, 24-25). Honesto: não entra no caminho da hipocrisia. Que bela página sobre a qual refletir para se afastar da hipocrisia! Os Evangelhos também registam várias situações em que Jesus repreende fortemente aqueles que parecem justos no exterior, mas no interior estão cheios de falsidade e iniquidade (cf. Mt 23, 13-29). Se tiverdes um pouco de tempo hoje lede o capítulo 23 do Evangelho de São Mateus e vede quantas vezes Jesus diz: “hipócritas, hipócritas, hipócritas”, e revela o que é a hipocrisia.
O hipócrita é uma pessoa que finge, lisonjeia e engana porque vive com uma máscara no rosto, e não tem a coragem de enfrentar a verdade. Por isso, não é capaz de amar verdadeiramente – um hipócrita não sabe amar – limita-se a viver pelo egoísmo e não tem a força para mostrar o seu coração com transparência. Há muitas situações em que a hipocrisia pode ocorrer. Muitas vezes esconde-se no local de trabalho, onde se procura parecer amigos dos colegas enquanto a competição leva a golpeá-los pelas costas. Em política, não é raro encontrar hipócritas que vivem uma vida dupla entre a esfera pública e a privada. A hipocrisia na Igreja é particularmente detestável, e infelizmente existe a hipocrisia na Igreja, há muitos cristãos e ministros hipócritas. Nunca devemos esquecer as palavras do Senhor: «Seja este o vosso modo de falar: sim, sim, não, não; tudo o que for além disto procede do espírito do mal» (Mt 5, 37). Irmãos e irmãs, pensemos hoje no que Paulo condena e que Jesus condena: a hipocrisia. E não tenhamos medo de ser verdadeiros, de dizer a verdade, de ouvir a verdade, de nos conformarmos com a verdade. Assim poderemos amar. Um hipócrita não sabe amar. Agir de outra forma que não seja a verdade significa pôr em perigo a unidade na Igreja, aquela pela qual o próprio Senhor rezou.
Papa Francisco
Catequese na audiência geral 25.08.2021
Imagem site do Vaticano
São Paulo, apaixonado por Jesus Cristo, pois tinha entendido bem o que era a salvação, ensinou-nos que os «filhos da promessa» (Gl 4, 28) – isto é, todos nós, justificados por Jesus Cristo – não estão sob o vínculo da Lei, mas são chamados ao estilo de vida exigente na liberdade do Evangelho. No entanto, a Lei existe. Mas existe de outro modo: a mesma Lei, os Dez Mandamentos, mas de outro modo, pois uma vez que o Senhor Jesus veio ela não pode justificar-se por si mesma. E portanto, na catequese de hoje, gostaria de explicar isto. E perguntemo-nos: qual é, segundo a Carta aos Gálatas, o papel da Lei? No trecho que ouvimos, Paulo diz que a Lei foi como um pedagogo. É uma bonita imagem, a do pedagogo sobre o qual falamos na audiência passada, uma imagem que merece ser compreendida no seu justo significado.
Parece que o Apóstolo sugere que os cristãos dividem a história da salvação em duas, e também a própria história pessoal. São dois os momentos: antes de se tornar crentes em Jesus Cristo e depois de ter recebido a fé. No centro está o acontecimento da morte e ressurreição de Jesus, que Paulo pregou a fim de suscitar a fé no Filho de Deus, fonte da salvação, e somos justificados em Cristo Jesus. Somos justificados pela gratuidade da fé em Cristo Jesus. Por conseguinte, partindo da fé em Cristo, há um “antes” e um “depois” em relação à própria Lei, pois a lei existe, os Mandamentos existem, mas há uma atitude antes da vinda de Jesus e outra depois. A história anterior é determinada pelo facto de estar “sob a Lei”. E quem percorria o caminho da Lei se salvava, era justificado; a história sucessiva – depois da vinda de Jesus – deve ser vivida seguindo o Espírito Santo (cf. Gl 5, 25). É a primeira vez que Paulo usa esta expressão: estar “sob a Lei”. O significado subjacente implica a ideia de uma servidão negativa, típica dos escravos: “estar submetido”. O Apóstolo torna-o explícito, dizendo que quando se está “sob a Lei” é como ser “vigiado” e “preso”, uma espécie de prisão preventiva. Este tempo, diz São Paulo, durou muito – desde Moisés até à vinda de Jesus – e perpetua-se enquanto se vive no pecado.
A relação entre a Lei e o pecado será explicada de uma forma mais sistemática pelo Apóstolo na sua Carta aos Romanos, escrita alguns anos após a Carta aos Gálatas. Em síntese, a Lei leva a definir a transgressão e a tornar as pessoas conscientes do próprio pecado: “Fizeste isto, portanto a Lei – os Dez Mandamentos – diz assim: tu estás no pecado”. Aliás, como ensina a experiência comum, o preceito acaba por estimular a transgressão. Na Carta aos Romanos, escreve: «Quando estávamos na carne, as paixões pecaminosas, fortalecidas pela lei, operavam nos nossos membros e produziam frutos para a morte. Agora, porém, livres da lei, estamos mortos para o que nos sujeitara, de modo que servimos num espírito novo e não segundo uma lei antiquada» (7, 5-6). Porquê? Porque veio a justificação de Jesus Cristo. Paulo expõe a sua visão da Lei: «O aguilhão da morte é o pecado, e a força do pecado é a Lei» (1 Cor 15, 56). Um diálogo: tu estás submetido à Lei, e estás ali com a porta aberta ao pecado.
Neste contexto, a referência ao papel pedagógico desempenhado pela Lei assume o seu pleno sentido. Mas a Lei é o pedagogo, que te leva para onde? Para Jesus. No sistema escolar da antiguidade, o pedagogo não tinha a função que lhe atribuímos hoje, ou seja, dar educação a um jovem ou a uma jovem. Naquela época, ele era um escravo cuja tarefa consistia em acompanhar o filho do dono ao mestre e depois trazê-lo para casa. Desta forma devia protegê-lo do perigo, vigiar para que não se comportasse mal. A sua função era bastante disciplinar. Quando o jovem se tornava adulto, o pedagogo cessava as suas funções. O pedagogo ao qual Paulo se referia não era o professor, mas aquele que o acompanhava à escola, vigiava sobre o menino e depois levava-o para casa.
A referência à Lei, nestes termos, permite que São Paulo esclareça a sua função na história de Israel. A Torá, isto é, a Lei, fora um ato de magnanimidade por parte de Deus para com o seu povo. Depois da eleição de Abraão, outro ato importante foi a Lei: definir o caminho para ir em frente. Certamente tinha funções restritivas, mas ao mesmo tempo protegia o povo, educava-o, disciplinava-o e apoiava-o na sua fraqueza, sobretudo com a proteção face ao paganismo; naqueles tempos, havia muitos comportamentos pagãos. A Torá diz: “Existe um único Deus que nos pôs a caminho”. Um ato de bondade do Senhor. E certamente, como eu já disse, tivera funções restritivas, mas ao mesmo tempo, protegera o povo, educara-o, disciplinara-o, apoiara-o na sua debilidade. É por esta razão que o Apóstolo reflete sucessivamente, descrevendo a fase da menoridade. Diz assim: «Enquanto o herdeiro é menino, em nada difere do servo, ainda que seja senhor de tudo, pois está sob o domínio de tutores e administradores, até ao dia determinado pelo pai. Assim também nós, quando éramos meninos, estávamos subjugados pelos elementos do mundo» (Gl 4, 1-3). Em síntese, a convicção do Apóstolo é que a Lei tem certamente uma função positiva – portanto, como pedagogo, leva em frente – mas é uma função limitada no tempo. A sua duração não pode ser prolongada além, pois está ligada ao amadurecimento das pessoas e à sua escolha de liberdade. Quando se chega à fé, a Lei esgota o seu valor propedêutico e deve dar lugar a outra autoridade. O que isto significa? Que quando acaba a Lei, podemos dizer: “Cremos em Jesus Cristo e fazemos o que nos apetece?”. Não! Os Mandamentos existem, mas não nos justificam. Quem nos justifica é Jesus Cristo. Devemos observar os Mandamentos, mas eles não nos dão a justiça; há a gratuidade de Jesus Cristo, o encontro com Jesus Cristo que nos justifica gratuitamente. O mérito da fé é receber Jesus. O único mérito: abrir o coração. E o que fazemos com os Mandamentos? Devemos observá-los, mas como ajuda para o encontro com Jesus Cristo.
Este ensinamento sobre o valor da lei é muito importante e merece ser considerado cuidadosamente para não cair em equívocos nem dar passos falsos. Far-nos-á bem perguntar-nos se ainda vivemos no período em que precisamos da Lei, ou se estamos bem conscientes de que recebemos a graça de nos tornarmos filhos de Deus para viver no amor. De que maneira vivo? Temendo que se eu não fizer isto, irei para o inferno? Ou vivo também com aquela esperança, com a alegria da gratuidade da salvação em Jesus Cristo? É uma boa pergunta. E também a segunda: desprezo os Mandamentos? Não! Observo-os, mas não como absolutos, pois sei que quem me justifica é Jesus Cristo.
Papa Francisco
Catequese na audiência geral 18.08.21
Catequese sobre a Carta aos Gálatas - 4. A lei de Moisés
«O que é a lei?» (Gl 3, 19). Esta é a questão que, seguindo São Paulo, desejamos aprofundar hoje, a fim de reconhecer a novidade da vida cristã animada pelo Espírito Santo. Mas se há o Espírito Santo, se há Jesus que nos redimiu, o que é a Lei? Sobre isto vamos refletir hoje. O Apóstolo escreve: «Se vos deixardes guiar pelo Espírito, já não estais sob a lei» (Gl 5, 18). Ao contrário, os detratores de Paulo afirmaram que os Gálatas deviam seguir a Lei para ser salvos. Voltavam atrás. Eram nostálgicos de outros tempos, dos tempos antes de Jesus Cristo. O Apóstolo não está minimamente de acordo. Não foi nestes termos que ele tinha concordado com os outros Apóstolos em Jerusalém. Ele lembra-se bem das palavras de Pedro quando disse: «Por que tentais a Deus, impondo aos discípulos um jugo que nem os nossos pais nem nós pudemos suportar?» (At 15, 10). As disposições que emergiram daquele “primeiro concílio” - o primeiro concílio ecuménico foi o de Jerusalém e as disposições que surgiram daquele concílio eram muito claras, e diziam: «Pareceu-nos bem, ao Espírito Santo e a nós, não vos impor outro peso além do seguinte, indispensável: que vos abstenhais das carnes sacrificadas aos ídolos, do sangue, de animais sufocados, e da impureza» (At 15, 28-29). Algumas coisas que diziam respeito ao culto a Deus, à idolatria, referiam-se também à forma de compreender a vida daquela época.
Quando Paulo fala da Lei, refere-se normalmente à Lei mosaica, a Lei de Moisés, os Dez Mandamentos. Estava relacionado com a Aliança que Deus tinha estabelecido com o seu povo, um caminho para preparar aquela Aliança. Segundo vários textos do Antigo Testamento, a Torá - que é o termo hebraico com que se indica a Lei - é a coletânea de todas as prescrições e regras que os israelitas devem observar, em virtude da Aliança com Deus. Uma síntese eficaz do que é a Torá pode ser encontrada neste texto do Deuteronômio, que diz: «O Senhor alegrar-se-á de novo em tornar-te feliz, como se comprazia no tempo dos teus pais, contanto que obedeças à voz do Senhor, teu Deus, observando os seus mandamentos e os seus preceitos escritos neste livro da lei, e que voltes para o Senhor, teu Deus, com todo o teu coração e toda a tua alma» (30, 9-10). A observância da Lei garantiu ao povo os benefícios da Aliança e assegurou a sua ligação especial com Deus. Este povo, esta gente, estas pessoas, estão ligados a Deus e mostram esta união com Deus no cumprimento, na observância da Lei. Estabelecendo a Aliança com Israel, Deus ofereceu-lhe a Torá, a Lei, para que pudesse compreender a Sua vontade e viver em justiça. Pensamos que nessa altura havia necessidade de tal Lei, foi um grande dom que Deus ofereceu ao seu povo, porquê? Porque nessa altura havia paganismo em toda a parte, idolatria em toda a parte e o comportamento humano que deriva da idolatria, e por esta razão o grande dom de Deus ao seu povo é a Lei para ir em frente. Várias vezes, especialmente nos livros dos profetas, constata-se que a não observância dos preceitos da Lei constituía uma verdadeira traição da Aliança, provocando a reação da ira de Deus. A ligação entre Aliança e Lei era tão estreita que as duas realidades eram inseparáveis. A Lei é a expressão de que uma pessoa, um povo, está em aliança com Deus.
À luz de tudo isto, é fácil compreender como os missionários que se tinham infiltrado entre os Gálatas tiveram uma boa oportunidade ao afirmar que a adesão à Aliança também implicava a observância da Lei mosaica, como era na altura. No entanto, é precisamente sobre este ponto que podemos descobrir a inteligência espiritual de São Paulo e as grandes intuições que ele expressou, sustentado pela graça que recebeu para a sua missão evangelizadora.
O Apóstolo explica aos Gálatas que, na realidade, a Aliança com Deus e a Lei mosaica não estão indissoluvelmente ligadas. O primeiro elemento em que se baseia é que a Aliança estabelecida por Deus com Abraão se fundava na fé no cumprimento da promessa e não na observância da Lei, que ainda não existia. Abraão começou a caminhar muitos séculos antes da Lei. O Apóstolo escreve: «Afirmo, pois: a Lei, que chegou quatrocentos e trinta anos mais tarde [com Moisés], não pode anular o testamento feito por Deus [com Abraão], em boa e devida forma, e não pode anular a promessa. Pois, se a herança se obtivesse pela Lei, já não proviria da promessa. Ora, foi pela promessa que Deus concedeu a sua graça a Abraão» (Gl 3, 17-18). A promessa existia antes da Lei e a promessa a Abraão, a Lei, chegou 430 anos mais tarde. A palavra “promessa” é muito importante: o povo de Deus, nós cristãos, caminhamos pela vida olhando para uma promessa; a promessa é precisamente o que nos atrai, atrai-nos para o encontro com o Senhor.
Com este raciocínio, Paulo alcançou um primeiro objetivo: a Lei não é a base da Aliança porque veio mais tarde, foi necessária e justa, mas primeiro houve a promessa, a Aliança.
Um argumento como este desarma aqueles que afirmam que a Lei mosaica é uma parte constitutiva da Aliança. Não, a Aliança vem antes, é a chamada a Abraão. Com efeito, a Torá, a Lei, não está incluída na promessa feita a Abraão. Dito isto, não se deve pensar que São Paulo era contrário à Lei mosaica. Não, ele observava-a. Várias vezes nas suas Cartas, defende a sua origem divina e afirma que desempenha um papel muito específico na história da salvação. No entanto, a Lei não dá vida, não oferece o cumprimento da promessa, porque não está em condições de a poder cumprir. A Lei é um caminho que te leva a avançar para o encontro. Paulo usa uma palavra muito importante, a Lei é o “pedagogo” em relação a Cristo, o pedagogo em relação à fé em Cristo, ou seja, o mestre que te leva pela mão ao encontro. Aqueles que procuram a vida precisam de olhar para a promessa e para o seu cumprimento em Cristo.
Caríssimos, esta primeira exposição do Apóstolo aos Gálatas apresenta a novidade radical da vida cristã: todos aqueles que têm fé em Jesus Cristo são chamados a viver no Espírito Santo, que liberta da Lei, levando-a ao mesmo tempo a cumprimento segundo o mandamento do amor. Isto é muito importante, a Lei leva-nos a Jesus. Mas alguns de vós podem dizer-me: “Mas padre, uma coisa: quer dizer que se eu recitar o Credo não devo cumprir os Mandamentos?”. Não, os Mandamentos são atuais no sentido de que são “pedagogos”, que te conduzem ao encontro com Jesus. Mas se puseres de lado o encontro com Jesus e quiseres voltar a dar mais importância aos Mandamentos, isto não é bom. E foi precisamente este o problema daqueles missionários fundamentalistas, que se introduziam entre os Gálatas para os desorientar. Que o Senhor nos ajude a seguir pelo caminho dos Mandamentos, mas olhando para o amor a Cristo rumo ao encontro com Cristo, conscientes de que o encontro com Jesus é mais importante do que todos os Mandamentos.
Papa Francisco
Catequese na audiência geral 11.08.21
Imagem: site do Vaticano
Catequese sobre a Carta aos Gálatas - 3. O Evangelho é um só
Irmãos e irmãs, bom dia!
Quando se trata do Evangelho e da missão de evangelizar, Paulo entusiasma-se, deixa-se arrebatar. Parece não ver nada além desta missão que o Senhor lhe confiou. Tudo nele é dedicado a este anúncio, e ele não tem outro interesse a não ser o Evangelho. É o amor de Paulo, o interesse de Paulo, o ofício de Paulo: anunciar. Chega a ponto de dizer: «Cristo não me enviou a batizar, mas a pregar o Evangelho» (1 Cor 1, 17). Paulo interpreta toda a sua existência como uma chamada a evangelizar, a fazer conhecer a mensagem de Cristo, a fazer conhecer o Evangelho: «Ai de mim – diz – se não evangelizar» (1 Cor 9, 16). E escrevendo aos cristãos de Roma, apresenta-se simplesmente assim: «Paulo, servo de Jesus Cristo, Apóstolo por vocação, escolhido para anunciar o Evangelho de Deus» (Rm 1, 1). Esta é a sua vocação. Em síntese, a sua consciência é que foi “destinado” para levar o Evangelho a todos, e não pode fazer outra coisa senão dedicar-se com todas as suas forças a esta missão.
Portanto, compreende-se a tristeza, a desilusão e até a amarga ironia do Apóstolo em relação aos Gálatas, que aos seus olhos enveredam por um caminho errado, que os levará a um ponto de não retorno: erraram a estrada. O eixo em torno do qual tudo gira é o Evangelho. Paulo não pensa nos “quatro evangelhos”, como é espontâneo para nós. Com efeito, quando envia esta Carta, nenhum dos quatro evangelhos tinha sido escrito. Para ele, o Evangelho é o que ele prega, isto chama-se o querigma, isto é o anúncio. E qual anúncio? Da morte e ressurreição de Jesus como fonte de salvação. Um Evangelho que se exprime com quatro verbos: «Cristo morreu pelos nossos pecados, segundo as Escrituras; foi sepultado, e ressuscitou no terceiro dia, segundo as Escrituras; apareceu a Cefas» (1 Cor 15, 3-5). Este é o anúncio de Paulo, o anúncio que nos dá vida a todos. Este Evangelho é o cumprimento das promessas e a salvação oferecida a todos os homens. Quem o recebe reconcilia-se com Deus, é acolhido como um verdadeiro filho e recebe em herança a vida eterna.
Diante de um dom tão grande que foi dado aos Gálatas, o Apóstolo não consegue explicar porque eles pensam em aceitar outro “evangelho”, talvez mais sofisticado, mais intelectual, outro “evangelho”. Contudo, devemos notar que estes cristãos ainda não abandonaram o Evangelho anunciado por Paulo. O Apóstolo sabe que eles ainda estão a tempo de não dar um passo falso, mas admoesta-os com vigor, com muito vigor. O seu primeiro argumento aponta diretamente para o facto de que a pregação realizada pelos novos missionários – estes que pregam a novidade – não pode ser o Evangelho. Aliás, é um anúncio que distorce o verdadeiro Evangelho porque impede de alcançar a liberdade – uma palavra-chave – adquirida pela fé. Os Gálatas ainda são “principiantes” e a sua desorientação é compreensível. Ainda não conhecem a complexidade da Lei mosaica e o entusiasmo de abraçar a fé em Cristo leva-os a ouvir estes novos pregadores, iludindo-se de que a sua mensagem é complementar à de Paulo. E não é assim.
Contudo, o Apóstolo não pode arriscar que se criem compromissos num terreno tão decisivo. O Evangelho é um só e é aquele que ele anunciou; não pode haver outro. Atenção! Paulo não diz que o verdadeiro Evangelho é o seu, porque foi ele que o anunciou, não! Não o diz. Isto seria presunçoso, seria vanglória. Aliás, afirma que o “seu” Evangelho, o mesmo que os outros Apóstolos anunciavam noutros lugares, é o único autêntico, pois é o de Jesus Cristo. Assim escreve: «Faço-vos saber, irmãos, que o Evangelho que por mim foi anunciado não é segundo os homens. Porque não o recebi nem aprendi de homem algum, mas pela revelação de Jesus Cristo» (Gl 1, 11). Podemos compreender porque Paulo usa termos tão duros. Utiliza duas vezes a expressão “anátema”, que indica a exigência de manter afastado da comunidade aquilo que ameaça os seus fundamentos. E este novo “evangelho” ameaça os fundamentos da comunidade. Em suma, neste ponto, o Apóstolo não deixa espaço para a negociação: não se pode negociar. Com a verdade do Evangelho não se pode negociar. Ou recebes o Evangelho como é, como foi anunciado, ou recebes outra coisa. Mas o Evangelho não pode ser negociado. Não se transige: a fé em Jesus não é uma mercadoria a negociar: é salvação, é encontro, é redenção. Não se barateia.
Esta situação descrita no início da Carta parece paradoxal, pois todos os sujeitos em questão parecem ser animados por bons sentimentos. Os Gálatas que ouvem os novos missionários pensam que pela circuncisão serão ainda mais devotados à vontade de Deus e agradarão mais a Paulo. Os inimigos de Paulo parecem estar animados pela fidelidade à tradição, recebida dos pais, e consideram que a fé genuína consiste em observar a Lei. Face a esta suprema fidelidade, justificam até as insinuações e suspeitas a respeito de Paulo, considerado pouco ortodoxo no que se refere à tradição. O próprio Apóstolo está bem consciente de que a sua missão é de natureza divina – foi revelada pelo próprio Cristo, a ele! – e, por isso, é movido por um entusiasmo total pela novidade do Evangelho, que é uma novidade radical, não é uma novidade passageira: não há evangelhos “na moda”, o Evangelho é sempre novo, é a novidade. A sua ansiedade pastoral leva-o a ser severo, porque vê o grande risco que os jovens cristãos enfrentam. Em síntese, é precioso desenvencilhar-se neste labirinto de boas intenções para compreender a verdade suprema que se apresenta como a mais coerente com a Pessoa e a pregação de Jesus e com a sua revelação do amor do Pai. Isto é importante: saber discernir. Muitas vezes vimos na história, e vemos também hoje, algum movimento que prega o Evangelho com uma modalidade própria, às vezes com carismas verdadeiros, próprios; mas depois exagera e reduz todo o Evangelho ao “movimento”. E isto não é o Evangelho de Cristo: este é o Evangelho do fundador, da fundadora e este sim, poderá ajudar no início, mas no final não produz fruto pois não tem raízes profundas. Por isso, a palavra clara e decisiva de Paulo foi benéfica para os Gálatas e é salutar também para nós. O Evangelho é o dom de Cristo a nós, é Ele mesmo quem o revela. É isto que nos dá vida.
Papa Francisco
Catequese na audiência geral 04.08.21
Catequese - 2. Paulo, verdadeiro apóstolo
Estamos a entrar um pouco de cada vez na Carta aos Gálatas. Vimos que estes cristãos se encontram em conflito sobre como viver a fé. O Apóstolo Paulo começa a sua Carta recordando-lhes as suas relações passadas, o seu mal-estar pela distância e o amor imutável que sente por cada um deles. Não deixa, contudo, de assinalar a sua preocupação de que os Gálatas sigam o caminho reto: é a preocupação de um pai, que gerou comunidades na fé. A sua intenção é muito clara: é necessário reafirmar a novidade do Evangelho, que os Gálatas receberam da sua pregação, a fim de construir a verdadeira identidade sobre a qual basear a própria existência. E este é o princípio: reiterar a novidade do Evangelho, aquele que os Gálatas receberam do Apóstolo.
Descobrimos imediatamente que Paulo é um profundo conhecedor do mistério de Cristo. Desde o início da sua Carta ele não segue os argumentos superficiais utilizados pelos seus opositores. O Apóstolo “voa alto” e também nos indica como agir quando surgem conflitos dentro da comunidade. Apenas no final da Carta, de facto, é explicitado que o cerne da diatribe suscitada é o da circuncisão, portanto a principal tradição judaica. Paulo opta por ir mais a fundo, porque o que está em jogo é a verdade do Evangelho e a liberdade dos cristãos, que é uma parte integrante do mesmo. Ele não se detém na superfície dos problemas, dos conflitos, como somos frequentemente tentados a fazer para encontrar uma solução imediata que nos ilude a pensar que todos podemos concordar com concessões. Paulo ama Jesus e sabe que Jesus não é um homem-Deus que faz concessões. Não é assim que funciona com o Evangelho e o Apóstolo escolheu seguir o caminho mais exigente. Escreve: «É, porventura, o favor dos homens que eu procuro, ou o de Deus?». Ele não procura fazer a paz com todos. E continua: «Por acaso tenho interesse em agradar aos homens? Se quisesse ainda agradar aos homens, não seria servo de Cristo!» (Gl 1, 10).
Em primeiro lugar, Paulo sente-se obrigado a recordar aos Gálatas que é um verdadeiro apóstolo não por causa do seu mérito, mas devido à chamada de Deus. Ele próprio conta a história da sua vocação e conversão, que coincidiu com a aparição do Cristo Ressuscitado durante a viagem a Damasco (cf. At 9, 1-9). É interessante notar o que ele diz sobre a sua vida antes desse acontecimento: «com que excesso perseguia a Igreja de Deus e a assolava; excedia em judaísmo a muitos da minha idade, sendo extremamente zeloso das tradições dos meus pais» (Gl 1, 13-14). Paulo ousa dizer que ultrapassou todos no judaísmo, era um verdadeiro fariseu zeloso, «irrepreensível na justiça que vem da observância da lei» (Fl 3, 6). Por duas vezes enfatiza que tinha sido um defensor das «tradições dos pais» e um «crente firme na lei». Esta é a história de Paulo.
Por um lado, insiste em sublinhar que perseguiu ferozmente a Igreja e que foi um «blasfemador, um perseguidor, um homem violento» (1 Tm 1, 13); não poupa adjetivos: ele mesmo se qualifica assim – por outro lado, evidencia a misericórdia de Deus para com ele, o que o levou a experimentar uma transformação radical, bem conhecida por todos. Ele escreve: «Eu era ainda pessoalmente desconhecido das comunidades cristãs da Judeia; tinham elas apenas ouvido dizer: “Aquele que antes nos perseguia, agora prega a fé que outrora combatia”» (Gl 1, 22-23). Converteu-se, mudou, mudou o coração. Paulo evidencia assim a verdade da sua vocação através do contraste flagrante que tinha sido criado na sua vida: de perseguidor dos cristãos porque não observavam as tradições e a lei, tinha sido chamado a tornar-se apóstolo para anunciar o Evangelho de Jesus Cristo. Mas vemos que Paulo é livre: é livre para anunciar o Evangelho e também é livre para confessar os seus pecados. “Eu era assim”: é a verdade que dá a liberdade do coração, é a liberdade de Deus.
Pensando nesta sua história, Paulo está cheio de admiração e gratidão. É como se quisesse dizer aos Gálatas que podia ter sido tudo menos apóstolo. Desde criança fora educado para ser um observador irrepreensível da Lei mosaica, e as circunstâncias tinham-no levado a lutar contra os discípulos de Cristo. No entanto, algo inesperado aconteceu: Deus, pela sua graça, revelou-lhe o seu Filho que morreu e ressuscitou, para que pudesse tornar-se o seu arauto entre os gentios (cf. Gl 1, 15-16).
Quão imperscrutáveis são os caminhos do Senhor! Tocamo-lo com as nossas mãos todos os dias, mas especialmente se pensarmos nos momentos em que o Senhor nos chamou. Nunca devemos esquecer o tempo e a forma como Deus entrou na nossa vida: ter fixo no coração e na mente aquele encontro com a graça, quando Deus mudou a nossa existência. Quantas vezes, perante as grandes obras do Senhor, surge espontaneamente a pergunta: mas como é possível que Deus se sirva de um pecador, de uma pessoa frágil e fraca, para realizar a sua vontade? E no entanto, não há nada de casual, porque tudo foi preparado no desígnio de Deus. Ele tece a nossa história, a história de cada um de nós: Ele tece a nossa história e se correspondermos com confiança ao seu plano de salvação, apercebemo-nos disso. A chamada envolve sempre uma missão à qual estamos destinados; por isso é-nos pedido que nos preparemos seriamente, sabendo que é o próprio Deus que nos envia, o próprio Deus que nos apoia com a sua graça. Irmãos e irmãs, deixemo-nos guiar por esta consciência: o primado da graça transforma a existência e torna-a digna de ser colocada ao serviço do Evangelho. O primado da graça cobre todos os pecados, muda os corações, muda a vida, mostra-nos novos caminhos. Não nos esqueçamos disto!
Papa Francisco
Catequese na audiência geral 30 de junho de 2021
Imagem: São Paulo escrevendo suas cartas por Valentin de Boulogne
Catequese - 1. Introdução à Carta aos Gálatas
Depois do longo itinerário dedicado à oração, hoje iniciamos um novo ciclo de catequeses. Espero que com o itinerário da oração, tenhamos aprendido a rezar um pouco melhor, a orar um pouco mais. Hoje desejo refletir sobre alguns temas que o apóstolo Paulo propõe na sua Carta aos Gálatas. É uma Carta muito importante, diria até decisiva, não só para conhecer melhor o Apóstolo, mas sobretudo para considerar alguns dos temas que ele aborda em profundidade, mostrando a beleza do Evangelho. Nesta Carta, Paulo faz muitas referências biográficas que nos permitem conhecer a sua conversão e a decisão de dedicar a vida ao serviço de Jesus Cristo. Também trata de algumas temáticas muito importantes para a fé, tais como a liberdade, a graça e o modo de vida cristão, que são extremamente relevantes pois tocam muitos aspetos da vida da Igreja de hoje. Esta é uma Carta muito atual. Parece ter sido escrita para os nossos tempos.
A primeira caraterística que emerge desta Carta é a grande obra de evangelização realizada pelo Apóstolo, que visitou as comunidades da Galácia pelo menos duas vezes durante as suas viagens missionárias. Paulo dirige-se aos cristãos daquele território. Não sabemos exatamente a que área geográfica se refere, nem podemos afirmar com certeza a data em que escreveu esta Carta. Sabemos que os gálatas eram uma antiga população celta que, através de muitas vicissitudes, se estabeleceu naquela extensa região da Anatólia que tinha a sua capital na cidade de Ancira, hoje Ancara, capital da Turquia. Paulo relata apenas que, por causa de uma doença, se viu obrigado a permanecer naquela região (cf. Gl 4, 13). Ao contrário, São Lucas, nos Atos dos Apóstolos, encontra uma motivação mais espiritual. Diz que «atravessando em seguida a Frígia e a província da Galácia, foram impedidos pelo Espírito Santo de anunciar a Palavra de Deus na (província da) Ásia» (16, 6). Os dois fatos não são contraditórios: pelo contrário, indicam que o caminho da evangelização nem sempre depende da nossa vontade e dos nossos projetos, mas requer a disponibilidade a deixar-nos plasmar e seguir outros caminhos que não estavam previstos. Entre vós está presente uma família que me saudou: contou-me que deve aprender o letão, e não sei quais outras línguas, pois vai como missionária para aquelas terras. O Espírito conduz também hoje muitos missionários que deixam a própria pátria e vão para outra terra em missão. O que verificamos, contudo, é que na sua incansável obra de evangelização o Apóstolo conseguiu fundar várias pequenas comunidades, espalhadas por toda a região da Galácia. Paulo, quando chegava a uma cidade, a uma região, não construía imediatamente uma grande catedral, não. Estabelecia as pequenas comunidades que são o fermento da nossa cultura cristã de hoje. Começava com as pequenas comunidades. E estas pequenas comunidades cresciam, cresciam e iam em frente. Também hoje este método pastoral é realizado em cada região missionária. Recebi uma carta na semana passada, de um missionário da Papua-Nova Guiné; disse-me que está a pregar o Evangelho na selva, às pessoas que não sabem nem sequer quem foi Jesus Cristo. Que bonito! Dá-se início a pequenas comunidades. Também hoje o método é aquele evangelizador da primeira evangelização.
O que queremos notar é a preocupação pastoral de Paulo que é toda fogo. Ele, após a fundação destas Igrejas, tomou consciência de um grande perigo – o pastor é como o pai ou a mãe que imediatamente se dá conta dos perigos que os filhos correm – para o seu crescimento na fé. Crescem e chegam os perigos. Como dizia alguém: “Chegam os abutres a fazer estragos na comunidade”. De facto, alguns cristãos vindos do judaísmo tinham-se infiltrado nestas igrejas e astutamente começaram a semear teorias contrárias aos ensinamentos do Apóstolo, chegando ao ponto de o difamar. Começam com a doutrina “esta sim, esta não”, e depois difamam o Apóstolo. É o caminho de sempre: tirar a autoridade ao Apóstolo. Como podemos ver, é uma prática antiga apresentar-se em certas ocasiões como os únicos possuidores da verdade – os puros – e procurar menosprezar o trabalho dos outros, até com a calúnia. Estes adversários de Paulo argumentaram que também os gentios tinham de se submeter à circuncisão e viver de acordo com as regras da lei mosaica. Voltam atrás às observâncias de antes, o que tinha sido superado pelo Evangelho. Portanto, os Gálatas teriam de renunciar à sua identidade cultural a fim de se submeterem às normas, prescrições e costumes típicos dos judeus. E não só. Esses opositores argumentaram que Paulo não era um verdadeiro apóstolo e, por conseguinte, não tinha autoridade para pregar o Evangelho. Muitas vezes vemos isto. Pensemos em alguma comunidade cristã ou diocese: começam as histórias e depois acabam por desacreditar o pároco, o bispo. É precisamente o caminho do maligno, das pessoas que dividem, que não sabem construir. E nesta Carta aos Gálatas vemos este procedimento.
Os Gálatas encontravam-se numa situação de crise. O que deviam fazer? Ouvir e seguir o que Paulo lhes tinha pregado, ou ouvir os novos pregadores que o acusavam? É fácil imaginar o estado de incerteza que animava os seus corações. Para eles, que conheceram Jesus e acreditaram na obra de salvação realizada através da sua morte e ressurreição, foi verdadeiramente o início de uma nova vida, uma vida de liberdade. Tinham enveredado por um caminho que lhes permitia finalmente ser livres, não obstante a sua história estivesse imbuída de muitas formas de escravidão violenta, nomeadamente a que os sujeitou ao imperador de Roma. Portanto, perante as críticas dos novos pregadores, sentiam-se desorientados e incertos sobre como se comportar: “Mas quem tem razão? Este Paulo, ou aquelas pessoas que agora estão a ensinar outras coisas? A quem devo ouvir? Em suma, os riscos eram realmente elevados!
Esta condição não está longe da experiência que muitos cristãos vivem na nossa época. Com efeito, ainda hoje, não faltam pregadores que, especialmente através dos novos meios de comunicação, podem perturbar as comunidades. Apresentam-se não para anunciar o Evangelho de Deus que ama o homem em Jesus Crucificado e Ressuscitado, mas para reiterar com insistência, como verdadeiros “guardiães da verdade” – assim se consideram – qual é a melhor maneira de ser cristão. Afirmam energicamente que o verdadeiro cristianismo é aquele ao qual estão ligados, frequentemente identificado com certas formas do passado, e que a solução para as crises de hoje é voltar atrás para não perder a genuinidade da fé. Também hoje, como outrora, existe a tentação de se fechar em algumas certezas adquiridas em tradições passadas. Mas como podemos reconhecer esta gente? Por exemplo, uma das caraterísticas do modo de proceder é a rigidez. Face à pregação do Evangelho que nos torna livres, jubilosos, eles são rígidos. Sempre a rigidez: deve-se fazer isto, deve-se fazer aquilo… A rigidez é própria dessas pessoas. Seguindo o ensino do Apóstolo Paulo na Carta aos Gálatas ajudar-nos-á a compreender qual caminho seguir. O caminho que o Apóstolo indicou é aquele libertador e sempre novo de Jesus Crucificado e Ressuscitado; é o caminho do anúncio, que se realiza através da humildade e da fraternidade, os novos pregadores não sabem o que é humildade nem fraternidade; é o caminho da confiança mansa e obediente, os novos pregadores não conhecem a mansidão nem a obediência. E este caminho manso e obediente vai em frente, na certeza de que o Espírito Santo age em cada época da Igreja. Em última instância, a fé no Espírito Santo presente na Igreja, leva-nos em frente e salvar-nos-á.
Papa Francisco
Catequese na audiência Geral 23.06.21
Catequese - 38. A oração pascal de Jesus para nós
Recordamos várias vezes nesta série de catequeses que a oração é uma das caraterísticas mais marcantes da vida de Jesus: Jesus rezava, e rezava muito. No decurso da sua missão, Jesus imergiu-se na oração, pois o diálogo com o Pai era o núcleo incandescente de toda a sua existência.
Os Evangelhos testemunham que a oração de Jesus se tornou ainda mais intensa e densa na hora da sua paixão e morte. Estes acontecimentos culminantes da sua vida constituem o âmago da pregação cristã: as últimas horas vividas por Jesus em Jerusalém são o coração do Evangelho não só porque os Evangelistas dedicam um espaço proporcionalmente maior para esta narração, mas também porque o acontecimento da sua morte e ressurreição – como um relâmpago – ilumina a inteira vicissitude de Jesus. Não era um filantropo que cuidava do sofrimento e das doenças humanas: era e é muito mais. Nele não há apenas bondade: há algo mais, há salvação, e não uma salvação episódica – a que me salva de uma doença ou de um momento de desânimo – mas uma salvação total, messiânica, que dá esperança na vitória definitiva da vida sobre a morte.
Portanto, nos dias da sua última Páscoa encontramos Jesus totalmente imerso na oração.
Ele reza de forma dramática no Jardim do Getsemani – como ouvimos – assaltado por uma angústia mortal. No entanto, naquele exato momento Jesus dirige-se a Deus, chamando-lhe “Abba”, Pai (cf. Mc 14, 36). Esta palavra aramaica – que era a língua de Jesus – exprime intimidade, exprime confiança. Precisamente quando sente as trevas que se adensam à sua volta, Jesus atravessa-as com aquela pequena palavra: Abba, Pai.
Jesus reza também na cruz, envolto no silêncio obscuro de Deus. Contudo, nos seus lábios, mais uma vez, aflora a palavra “Pai”. É a oração mais audaz, pois na cruz Jesus é o intercessor absoluto: reza pelos outros, reza por todos, até por aqueles que o condenam, sem que ninguém, exceto um pobre malfeitor, se declare a seu favor. Todos estavam contra Ele ou eram indiferentes, apenas aquele malfeitor reconhece o poder. «Pai, perdoa-lhes, pois não sabem o que fazem» (Lc 23, 34). No meio do drama, na dor atroz da alma e do corpo, Jesus reza com as palavras dos salmos; com os pobres do mundo, especialmente os esquecidos por todos, ele pronuncia as trágicas palavras do salmo 22: «Meu Deus, meu Deus, por que me abandonaste?» (v. 2): Ele sentia o abandono e rezava. Na cruz realiza-se o dom do Pai, que oferece o amor, isto é, cumpre-se a nossa salvação. E também, uma vez, o chama “Meu Deus”, “Pai, nas tuas mãos entrego o meu espírito”: ou seja, tudo, tudo é oração, nas três horas da Cruz.
Por conseguinte, Jesus reza nas horas decisivas da paixão e morte. E com a ressurreição, o Pai responderá à oração. A oração de Jesus é intensa, a oração de Jesus é única e torna-se inclusive o modelo da nossa prece. Jesus rezou por todos, rezou também por mim, por cada um de vós. Cada um de nós pode dizer: “Jesus, na cruz, rezou por mim”. Orou. Jesus pode dizer a cada um de nós: “Rezei por ti na Última Ceia e no madeiro da Cruz”. Até no mais doloroso dos nossos sofrimentos, nunca estamos sós. A oração de Jesus está conosco. “E agora, Padre, aqui, nós que estamos a ouvir isto, Jesus reza por nós?”. Sim, continua a orar para que a sua palavra nos ajude a ir em frente. Devemos orar e recordar que Ele reza por nós.
Isto parece-me o aspecto mais bonito a recordar. Esta é a última catequese deste ciclo sobre a oração: recordar a graça que não só imploramos, mas que, por assim dizer, fomos “implorados”, já somos acolhidos no diálogo de Jesus com o Pai, na comunhão do Espírito Santo. Jesus reza por mim: cada um de nós pode conservar isto no coração: não o podemos esquecer. Até nos momentos mais difíceis. Já fomos acolhidos no diálogo de Jesus com o Pai na comunhão do Espírito Santo. Fomos queridos em Cristo Jesus, e também na hora da paixão, morte e ressurreição tudo nos foi oferecido. E então, com a oração e com a vida, mais não resta do que ter coragem, esperança e com esta coragem e esperança sentir forte a oração de Jesus e ir em frente: que a nossa vida seja um dar glória a Deus na consciência de que Ele ora por mim ao Pai, que Jesus reza por mim.
Papa Francisco
Catequese na audiência geral 16.06.2021
Catequese - 37. Perseverar no amor
Nesta penúltima catequese sobre a oração falemos da perseverança no orar. É um convite, na verdade um mandamento, que nos é dado pela Sagrada Escritura. O itinerário espiritual do Peregrino russo começa quando se depara com uma frase de São Paulo na Primeira Carta aos Tessalonicenses: «orai sem cessar, e, em todas as circunstâncias, dai graças» (5, 17-18). As palavras do Apóstolo comovem aquele homem que se questiona como é possível rezar sem interrupção, dado que a nossa vida é fragmentada em tantos momentos diferentes, que nem sempre tornam possível a concentração. A partir desta pergunta ele começa a sua busca, que o levará a descobrir aquela que é chamada a oração do coração. Consiste em repetir com fé: “Senhor Jesus Cristo, Filho de Deus, tem piedade de mim, pecador!”. Uma oração simples, mas muito bonita. É uma oração que, pouco a pouco, se adapta ao ritmo da respiração e se estende ao longo do dia. Com efeito, a respiração nunca pára, nem sequer quando dormimos; e a oração é o respiro da vida.
Como é possível, então, manter sempre um estado de oração? O Catecismo oferece-nos belas citações, tiradas da história da espiritualidade, que insistem na necessidade de uma oração contínua, que é o ponto fulcral da existência cristã. Cito algumas.
O monge Evágrio do Ponto afirma: «Não nos foi pedido que trabalhemos, velemos e jejuemos constantemente – não, isto não nos foi pedido – mas temos a lei de orar sem cessar» (n. 2742). O coração em oração. Existe assim um ardor na vida cristã que nunca deve falhar. É um pouco como aquele fogo sagrado que se conservava nos antigos templos, que ardia sem interrupção e que os sacerdotes tinham a tarefa de manter vivo. Eis: também em nós deve haver um fogo sagrado, que arda continuamente e que nada possa extinguir. Não é fácil, mas deve ser assim.
São João Crisóstomo, outro pastor atento à vida concreta, pregava deste modo: «É possível, mesmo no mercado ou durante um passeio solitário, fazer oração frequente e fervorosa; sentados na vossa loja, a tratar de compras e vendas, até mesmo a cozinhar» (n. 2743). Pequenas orações: “Senhor, tem piedade de nós”, “Senhor, ajuda-me”. Pois bem, a oração é uma espécie de pauta musical, onde colocamos a melodia da nossa vida. Não está em contraste com o trabalho diário, não contradiz as muitas pequenas obrigações e compromissos, mas antes é o lugar onde cada ação encontra o seu sentido, o seu porquê, a sua paz.
Certamente, pôr em prática estes princípios não é fácil. Um pai e uma mãe, ocupados em mil afazeres, podem sentir nostalgia por um período da sua vida, quando era fácil encontrar tempos regulares e espaço para a oração. Depois, os filhos, o trabalho, as ocupações da vida familiar, os pais que envelhecem... Tem-se a impressão de nunca conseguir concluir tudo. Por isso é bom pensar que Deus, nosso Pai, o qual tem de cuidar de todo o universo, se lembra sempre de cada um de nós. Por conseguinte, também nós devemos recordá-Lo sempre!
Podemos então recordar que no monaquismo cristão o trabalho foi sempre realizado com grande honra, não só por dever moral de prover a si mesmo e aos outros, mas também por uma espécie de equilíbrio, um equilíbrio interior: é perigoso para o homem cultivar um interesse tão abstrato a ponto de perder o contacto com a realidade. O trabalho ajuda-nos a manter-nos em contacto com a realidade. As mãos juntas do monge contêm os calos daqueles que empunham pás e enxadas. Quando, no Evangelho de Lucas (cf. 10, 38-42), Jesus diz a Santa Marta que a única coisa realmente necessária é ouvir Deus, não significa de modo algum que despreza os muitos serviços que ela estava a realizar com tanto empenho.
Tudo no ser humano é “binário”: o nosso corpo é simétrico, temos dois braços, dois olhos, duas mãos.... Assim, também o trabalho e a oração são complementares. A oração – que é o “respiro” de tudo – continua a ser o pano de fundo vital do trabalho, até em momentos em que não é explícita. É desumano estar tão absorvidos pelo trabalho a ponto de não encontrar tempo para a prece.
Ao mesmo tempo, uma oração que esteja alienada da vida não é saudável. A oração que nos afasta da realidade do viver torna-se espiritualismo, ou, até pior, ritualismo. Recordemos que Jesus, depois de ter mostrado a sua glória aos discípulos no monte Tabor, não quis prolongar aquele momento de êxtase, mas desceu com eles do monte e retomou o caminho diário. Porque aquela experiência devia permanecer nos corações como luz e força da sua fé; também uma luz e força para os dias que estavam próximos: os da Paixão. Assim, os tempos dedicados a estar com Deus reavivam a fé, que nos ajuda na realidade da vida, e a fé, por sua vez, alimenta a oração, sem interrupção. Nesta circularidade entre fé, vida e oração, o fogo do amor cristão que Deus espera de nós mantém-se aceso.
E recitemos a oração simples que é tão bom repetir durante o dia, todos juntos: “Senhor Jesus, Filho de Deus, tem piedade de mim, pecador”.
Papa Francisco
Catequese na audiência geral 09.06.2021
Imagem: pexels.com
Catequese - 36. Jesus modelo e alma de cada oração
Os Evangelhos mostram-nos como a oração era fundamental na relação de Jesus com os seus discípulos. Isto já é evidente na escolha daqueles que mais tarde iriam ser os Apóstolos. Lucas coloca a eleição deles num exato contexto de oração, dizendo assim: «Naqueles dias, Jesus foi para o monte a fim de fazer oração, e passou a noite a orar a Deus. Aquando nasceu o dia, convocou os discípulos e escolheu doze entre eles aos quais deu o nome de apóstolos» (6, 12-13). Jesus escolhe-os depois de uma noite de oração. Parece que não há outro critério nesta escolha senão a oração, o diálogo de Jesus com o Pai. A julgar pela forma como esses homens se comportarão mais tarde, parece que a escolha não foi das melhores pois todos fugiram, deixaram-no sozinho antes da Paixão; mas é precisamente isto, sobretudo a presença de Judas, o futuro traidor, que mostra que esses nomes foram escritos no desígnio de Deus.
A oração a favor dos seus amigos reapresenta-se continuamente na vida de Jesus. Os Apóstolos por vezes tornam-se um motivo de preocupação para ele, mas Jesus, dado que os recebeu do Pai, depois da oração, leva-os no seu coração, até com os seus erros, inclusive as suas quedas. Em tudo isto descobrimos como Jesus foi mestre e amigo, sempre pronto a esperar pacientemente a conversão do discípulo. O ponto mais alto desta espera paciente é a “tela” de amor que Jesus tece à volta de Pedro. Na Última Ceia ele diz-lhe: «Simão, Simão olha que Satanás vos reclamou para vos joeirar como o trigo. Mas Eu roguei por ti, a fim de que a tua fé não desfaleça. E tu, uma vez convertido, fortalece os teus irmãos» (Lc 22, 31-32). Impressiona, no tempo da tentação, saber que naquele momento o amor de Jesus não cessa – “mas padre, se estou em pecado mortal, existe o amor de Jesus? – Sim – E Jesus continua a rezar por mim? – Sim – Mas se pratiquei coisas más e muitos pecados, será que Jesus continua a amar-me? – Sim”. O amor e a oração de Jesus por cada um de nós não cessam, aliás, tornam-se mais intensos e nós estamos no centro da sua oração! Devemos sempre recordar isto: Jesus está a rezar por mim, está a rezar agora perante o Pai e mostra-lhe as feridas que carregou consigo, para que o Pai possa ver o preço da nossa salvação, eis o amor que Ele nutre por nós. Mas, agora, cada um de nós pense: neste momento Jesus está a rezar por mim? Sim. Esta é uma grande certeza que devemos ter.
A oração de Jesus apresenta-se pontualmente num momento crucial do seu caminho, o da verificação da fé dos discípulos. Ouçamos novamente o evangelista Lucas: «Um dia em que ele estava a orar a sós com os discípulos, perguntou-lhes: “Quem dizem as multidões que Eu sou?”. Responderam-lhe: “João Batista; outros, Elias; outros, um dos antigos profetas ressuscitado”. Perguntou-lhes, então: “E vós, quem dizeis que Eu sou?” Pedro tomou a palavra e respondeu, em nome de todos: “O Messias de Deus”. Ele proibiu-lhes, formalmente, de o dizerem fosse a quem fosse» (9, 18-21). As grandes mudanças da missão de Jesus são sempre precedidas de uma oração, mas não assim en passant, mas de oração intensa e prolongada. Há sempre naqueles momentos a oração. Esta verificação da fé parece ser uma meta, mas ao contrário é um ponto de partida renovado para os discípulos, pois, a dali em diante, é como se Jesus assumisse um novo tom na sua missão, falando-lhes abertamente da sua paixão, morte e ressurreição.
Nesta perspectiva, que instintivamente suscita repulsa, tanto nos discípulos como em nós que lemos o Evangelho, a oração é a única fonte de luz e força. É necessário rezar mais intensamente, cada vez que o caminho se torna íngreme.
E de facto, depois de anunciar aos discípulos o que o espera em Jerusalém, tem lugar o episódio da Transfiguração. «Levando consigo Pedro, Tiago e João, Jesus subiu ao monte para orar. Enquanto orava, modificou-se o aspecto do seu Rosto e as vestes tornaram-se de brancura fulgurante. E dois homens conversavam com Ele: Moisés e Elias que, aparecendo rodeados de glória, falavam da Sua morte, que ia dar-se em Jerusalém» (Lc 9, 28-31), isto é, a Paixão. Portanto, esta manifestação antecipada da glória de Jesus teve lugar na oração, enquanto o Filho estava imerso em comunhão com o Pai e consentiu plenamente à sua vontade de amor, ao seu desígnio de salvação. E daquela oração sobressai uma palavra clara para os três discípulos envolvidos: «Este é o meu Filho dileto; escutai-o!» (Lc 9, 35). Da oração vem o convite a ouvir Jesus, sempre da oração.
Deste rápido percurso através do Evangelho, deduzimos que Jesus não só quer que rezemos enquanto Ele reza, mas assegura-nos que mesmo que as nossas tentativas de oração fossem completamente vãs e ineficazes, podemos sempre contar com a sua oração. Devemos estar conscientes: Jesus está a rezar por mim. Uma vez, um bom bispo disse-me que num momento muito mau da sua vida e de uma grande provação, um momento de escuridão, ele, na Basílica, olhou para alto e viu esta frase escrita: “Eu, Pedro, rezarei por ti”. E isso deu-lhe força e conforto. Acontece sempre, todas as vezes que cada um de nós sabe que Jesus reza por nós. Jesus reza por nós. Neste momento, neste momento. Fazei este exercício de memória de repetir isto. Quando há alguma dificuldade, quando se está na órbita das distrações: Jesus está a rezar por mim. Mas será verdade, padre? É verdade, disse-o ele mesmo. Não esqueçamos que o que sustenta cada um de nós na vida é a oração de Jesus por todos nós, com nome, sobrenome, perante o Pai, mostrando-lhe as feridas que são o preço da nossa salvação.
Mesmo que as nossas orações fossem apenas balbúcies, se estivessem prejudicadas por uma fé vacilante, nunca devemos deixar de confiar n’Ele, eu não sei rezar mas Ele ora por mim. Sustentadas pela oração de Jesus, as nossas tímidas preces apoiam-se nas asas da águia e elevam-se ao Céu. Não vos esqueçais: Jesus está a rezar por mim – Agora? – Agora. No momento da provação, no momento do pecado, também naquele momento, Jesus com muito amor está a rezar por mim.
Papa Francisco
Catequese na audiência geral 02.02.2021
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Catequese - 35. A certeza de ser escutado
Há uma contestação radical à oração, que deriva de uma observação que todos nós fazemos: rezamos, pedimos, e, no entanto, por vezes as nossas orações parecem não ser ouvidas: o que pedimos – para nós ou para os outros – não se realizou. Passamos por esta experiência muitas vezes. Se a razão pela qual rezámos era nobre (como pode ser a intercessão pela saúde de uma pessoa doente, ou pelo fim de uma guerra), o não cumprimento parece escandaloso. Por exemplo, pelas guerras: rezamos a fim de que acabem as guerras, as guerras em tantas partes do mundo, pensemos no Iémen, na Síria, países que estão em guerra há anos, há anos! Países atormentados pelas guerras, rezamos e elas não terminam. Como pode isto acontecer? «Alguns deixam mesmo de orar porque, segundo pensam, o seu pedido não é atendido (Catecismo da Igreja Católica, n. 2734). Mas se Deus é Pai, por que não nos ouve? Ele, que nos garantiu que dá coisas boas aos filhos que Lhe pedem (cf. Mt 7, 10), por que não responde aos nossos pedidos? Todos nós tivemos esta experiência: rezámos, rezámos, pela doença de um amigo, de um pai, de uma mãe e depois eles morreram, Deus não nos atendeu. É uma experiência de todos nós.
O Catecismo oferece-nos um bom resumo da questão. Adverte-nos contra o risco de não termos uma experiência autêntica de fé, mas de transformarmos a nossa relação com Deus em algo mágico. A oração não é uma varinha mágica: é um diálogo com o Senhor. De facto, quando rezamos, podemos cair no risco de não sermos nós a servir Deus, mas de pretender que Ele nos sirva (cf. n. 2735). Eis então uma oração que é sempre exigente, que pretende orientar os acontecimentos de acordo com o nosso plano, que não permite qualquer outros projetos para além dos nossos desejos. Por outro lado, Jesus teve grande sabedoria ao colocar o “Pai-Nosso” nos nossos lábios. É uma oração unicamente de pedidos, como sabemos, mas os primeiros que pronunciamos estão todos da parte de Deus. Pedem que não seja realizado o nosso desejo, mas a sua vontade para o mundo. Melhor deixar que Ele faça: «Santificado seja o vosso nome, venha a nós o vosso Reino, seja feita a vossa vontade» (Mt 6, 9-10).
O apóstolo Paulo lembra-nos que nem sequer sabemos o que é conveniente pedir (cf. Rm 8, 26). Pedimos pelas nossas necessidades, pelo que precisamos, pelas coisas que desejamos, “mas isto é conveniente ou não?”. Paulo diz-nos: nem sequer sabemos o que é conveniente pedir. Quando rezamos, devemos ser humildes: esta é a primeira atitude quando se reza. Assim como há o costume em muitos lugares que para ir rezar à igreja, as mulheres usam o véu ou se benzem com a água santa antes de iniciar a rezar, deste modo devemos dizer-nos, antes da prece, o que é mais conveniente, que Deus me conceda aquilo que mais me convém: Ele sabe. Quando rezamos devemos ser humildes, para que as nossas palavras sejam realmente orações e não um vanilóquio que Deus rejeita. Também podemos rezar por motivos errados: por exemplo, para derrotar o inimigo na guerra, sem nos perguntarmos o que pensa Deus dessa guerra. É fácil escrever num estandarte “Deus está connosco”; muitos estão ansiosos por garantir que Deus esteja com eles, mas poucos se preocupam em verificar se estão realmente com Deus. Na oração, é Deus que nos deve converter, não nós que devemos converter Deus. É a humildade. Vou rezar, mas Tu, Senhor, converte o meu coração para que peça o que é conveniente, o que for melhor para a minha saúde espiritual.
No entanto, o escândalo permanece: quando as pessoas rezam com um coração sincero, quando pedem bens que correspondem ao Reino de Deus, quando uma mãe reza pelo filho doente, por que parece que às vezes Deus não ouve? Para responder a esta pergunta, precisamos de meditar calmamente sobre os Evangelhos. As narrações da vida de Jesus estão cheias de orações: muitas pessoas feridas no corpo e no espírito pedem-lhe que as cure; há aqueles que rezam por um amigo que já não pode andar; há pais e mães que lhe trazem filhos e filhas doentes... Todas são orações impregnadas de sofrimento. É um coro imenso que invoca: “Tende piedade de nós”.
Vemos que por vezes a resposta de Jesus é imediata, mas noutros casos, é adiada no tempo: parece que Deus não responde. Pensemos na mulher cananeia que implora a Jesus pela sua filha: esta mulher deve insistir longamente para ser ouvida (cf. Mt 15, 21-28). Há também a humildade de ouvir uma palavra de Jesus que parece um pouco ofensiva: não devemos lançar o pão aos cães, aos cãezinhos. Mas àquela mulher não importa a humilhação: importa a saúde da filha. E vai adiante: “Sim, também os cãezinhos comem o que cai da mesa”, e isto agradou a Jesus. A coragem na oração. Pensemos também no paralítico trazido pelos seus quatro amigos: inicialmente Jesus perdoa os seus pecados e só num segundo momento o cura no seu corpo (cf. Mc 2, 1-12). Assim, nalgumas ocasiões, a solução para o drama não é imediata. Também na nossa vida, cada um de nós tem esta experiência. Façamos mente local: quantas vezes pedimos uma graça, um milagre, digamos, e nada aconteceu. Depois, com o tempo, a situação resolve-se, mas segundo o modo de Deus, o modo divino, não de acordo com o que queríamos naquele momento. O tempo de Deus não é o nosso tempo.
Deste ponto de vista, a cura da filha de Jairo merece especial atenção (cf. Mc 5, 21-33). Há um pai que está com pressa: a sua filha está doente e por esta razão pede a ajuda de Jesus. O Mestre aceita imediatamente, mas quando estão a caminho da casa acontece outra cura, e depois chega a notícia de que a menina morreu. Parece ser o fim, mas em vez disso Jesus diz ao pai: «Não tenhas receio; crê somente!» (Mc 5, 36). “Continua a ter fé”: pois é a fé que sustenta a oração. E, de facto, Jesus despertará aquela menina do sono da morte. Mas durante algum tempo, Jairo teve que caminhar no escuro, apenas com a chama da fé. Senhor, dai-me fé! Que a minha fé cresça! Pedir esta graça, ter fé. No Evangelho Jesus diz que a fé move montanhas. Mas, ter fé seriamente. Jesus, diante da fé dos seus pobres, dos seus homens, cai vencido, sente uma ternura especial, diante daquela fé. E ouve.
Também a oração que Jesus dirige ao Pai no Getsémani parece não ter sido ouvida: “Pai, se possível, afasta de mim o que me espera”. Parece que o Pai não o ouviu. O Filho terá de beber até ao fim o cálice da paixão. Mas o Sábado Santo não é o capítulo final, porque no terceiro dia, isto é o domingo, há a ressurreição. O mal é senhor do penúltimo dia: recordai bem isto. O mal nunca é o senhor do último dia, não: do penúltimo, o momento no qual a noite é mais escura, precisamente antes da aurora. No penúltimo dia há a tentação onde o mal nos faz compreender que venceu: “Viste? Eu venci!”. O mal é senhor do penúltimo dia: no último dia há a ressurreição. Mas o mal nunca é senhor do último dia: Deus é o Senhor do último dia. Porque este dia pertence apenas a Deus, e é o dia em que todos os anseios humanos de salvação serão cumpridos. Aprendamos esta paciência humilde de esperar a graça do Senhor, esperar o último dia. Muitas vezes, o penúltimo dia é muito doloroso, pois os sofrimentos humanos são maus. Mas o Senhor está presente e no último dia Ele resolve tudo.
Papa Francisco
Catequese na Audiência Geral 26.05.2021
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«Virá o Paráclito, que Eu vos hei de enviar da parte do Pai» (cf. Jo 15, 26). Com estas palavras, Jesus promete aos discípulos o Espírito Santo, o dom supremo, o dom dos dons; e fala do Espírito, usando uma palavra particular, misteriosa: Paráclito. Debrucemo-nos hoje sobre esta palavra, que não é fácil de traduzir pois encerra vários significados. Substancialmente, Paráclito significa duas coisas: Consolador e Advogado.
1. O Paráclito é o Consolador. Todos nós, especialmente em momentos difíceis como este que estamos a atravessar devido à pandemia, procuramos consolações. Muitas vezes, porém, recorremos só a consolações terrenas, que depressa se extinguem, são consolações momentâneas. Hoje Jesus oferece-nos a consolação do Céu, o Espírito, o «Consolador perfeito» (Sequência). Qual é a diferença? As consolações do mundo são como os anestésicos: oferecem um alívio momentâneo, mas não curam o mal profundo que temos dentro. Insensibilizam, distraem, mas não curam pela raiz. Agem à superfície, ao nível dos sentidos, dificilmente ao nível do coração. Com efeito, só dá paz ao coração quem nos faz sentir amados tal como somos. E o Espírito Santo, o amor de Deus, faz isso: como Espírito que é, age no nosso espírito, desce ao mais íntimo de nós mesmos. visita «o íntimo do coração», pois é «das almas hóspede amável» (ibid.). É a ternura de Deus em pessoa, que não nos deixa sozinhos; e o facto de estar com quem vive sozinho, já é consolar.
Irmã, irmão, se sentes o negrume da solidão, se trazes dentro um peso que sufoca a esperança, se tens no coração uma ferida que queima, se não encontras a via de saída, abre-te ao Espírito. Como dizia São Boaventura, «onde houver maior tribulação, Ele leva maior consolação. Não faz como o mundo, que na prosperidade consola e adula, mas na adversidade troça e condena» (Sermão na Oitava da Ascensão). Assim faz o mundo, assim faz sobretudo o espírito maligno, o diabo: primeiro, lisonjeia-nos e faz-nos sentir invencíveis – as lisonjas do diabo, que fazem crescer a vaidade –, depois atira-nos ao chão e faz-nos sentir errados: joga connosco. Faz todo o possível por nos derrubar, enquanto o Espírito do Ressuscitado nos quer levantar. Olhemos os Apóstolos: estavam sozinhos naquela manhã, estavam sozinhos e perdidos, com as portas fechadas pelo medo; viviam no temor, tendo diante dos olhos todas as suas fragilidades e fracassos, os seus pecados: tinham renegado Jesus Cristo. Os anos transcorridos com Jesus não conseguiram mudá-los, continuavam a ser os mesmos. Depois, recebem o Espírito e tudo muda: os problemas e defeitos permanecem os mesmos, mas eles já não os temem porque não temem sequer quem pretende fazer-lhes mal. Sentem-se intimamente consolados, e querem fazer transbordar a consolação de Deus. Antes eram medrosos, agora só têm medo de não testemunhar o amor recebido. Jesus profetizara-o: o Espírito «dará testemunho a meu favor. E vós também haveis de dar testemunho» (Jo 15, 26-27).
Avancemos um passo. Também nós somos chamados a dar testemunho no Espírito Santo, a tornar-nos paráclitos, isto é consoladores. Sim, o Espírito pede-nos para darmos corpo à sua consolação. E como podemos fazê-lo? Não fazendo grandes discursos, mas aproximando-nos das pessoas; não com palavras empoladas, mas com a oração e a proximidade. Lembremo-nos de que a proximidade, a compaixão e a ternura são o estilo de Deus, sempre. O Paráclito diz à Igreja que hoje é o tempo da consolação. É o tempo do anúncio feliz do Evangelho, mais do que do combate ao paganismo. É o tempo para levar a alegria do Ressuscitado, não para nos lamentarmos do drama da secularização. É o tempo para derramar amor sobre o mundo, sem abraçar o mundanismo. É o tempo para testemunhar a misericórdia, mais do que para inculcar regras e normas. É o tempo do Paráclito! É o tempo da liberdade do coração, no Paráclito.
2. Depois, o Paráclito é o Advogado. No contexto histórico de Jesus, o advogado não exercia as suas funções como hoje: em vez de falar pelo acusado, costumava ficar junto dele sugerindo-lhe ao ouvido os argumentos para se defender. Assim faz o Paráclito, «o Espírito da verdade» (Jo 15, 26), que não nos substitui, mas defende-nos das falsidades do mal, inspirando-nos pensamentos e sentimentos. Fá-lo com delicadeza, sem nos forçar: propõe, não Se impõe. O espírito da falsidade, o maligno, faz o contrário: procura constranger-nos, quer fazer-nos acreditar que somos sempre obrigados a ceder às más sugestões e aos impulsos dos vícios. Esforcemo-nos então por acolher três sugestões típicas do Paráclito, do nosso Advogado. São três antídotos basilares contra três tentações atualmente muito difusas.
O primeiro conselho do Espírito Santo é: «Vive no presente»; no presente, não no passado nem no futuro. O Paráclito afirma o primado do hoje, contra a tentação de fazer-se paralisar pelas amarguras e nostalgias do passado, ou de focar-se nas incertezas do amanhã e deixar-se obcecar pelos temores do futuro. O Espírito lembra-nos a graça do presente. Não há tempo melhor para nós: agora e aqui onde estamos é o único e irrepetível momento para fazer bem, fazer da vida uma dádiva. Vivamos no presente!
Depois o Paráclito aconselha: «Procura o todo». O todo, não a parte. O Espírito não molda indivíduos fechados, mas funde-nos como Igreja na multiforme variedade dos carismas, numa unidade que nunca é uniformidade. O Paráclito afirma o primado do todo. É no todo, na comunidade que o Espírito gosta de agir e inovar. Olhemos para os Apóstolos. Eram muito diferentes entre eles: por exemplo, havia Mateus, um publicano que colaborara com os Romanos, e Simão, chamado o Zelote, que a eles se opunha. Tinham ideias políticas opostas, visões do mundo diferentes. Mas, quando recebem o Espírito, aprendem a dar o primado não aos seus pontos de vista humanos, mas ao todo de Deus. Hoje, se dermos ouvidos ao Espírito, deixaremos de nos focar em conservadores e progressistas, tradicionalistas e inovadores, de direita e de esquerda; se fossem estes os critérios, significava que na Igreja se esquecia o Espírito. O Paráclito impele à unidade, à concórdia, à harmonia das diversidades. Faz-nos sentir parte do mesmo Corpo, irmãos e irmãs entre nós. Procuremos o todo! E o inimigo quer que a diversidade se transforme em oposição e por isso faz com que se torne ideologia. Devemos dizer «não» às ideologias, «sim» ao todo.
Por fim, o terceiro grande conselho: «Coloca Deus antes do teu eu». Está aqui o passo decisivo da vida espiritual, que não é uma coleção de méritos e obras nossas, mas humilde acolhimento de Deus. O Paráclito afirma o primado da graça. Só deixaremos espaço ao Senhor, se nos esvaziarmos de nós mesmos; só nos encontramos a nós mesmos, se nos entregamos a Ele; só como pobres em espírito é que nos tornamos ricos de Espírito Santo. Isto vale também para a Igreja. Com as nossas forças, não salvamos ninguém, nem sequer a nós mesmos. Se estiverem em primeiro lugar os nossos projetos, as nossas estruturas e os nossos planos de reforma, então decairemos no funcionalismo, no pragmatismo, no horizontalismo e não produziremos fruto. Os «ismos» são ideologias que dividem, que separam. A Igreja não é uma organização humana – é humana, mas não é apenas uma organização humana –, a Igreja é o templo do Espírito Santo. Jesus trouxe o fogo do Espírito à terra, e a Igreja reforma-se com a unção, a gratuidade da unção da graça, com a força da oração, com a alegria da missão, com a beleza desarmante da pobreza. Coloquemos Deus em primeiro lugar!
Espírito Santo, Espírito Paráclito, consolai os nossos corações. Fazei-nos missionários da vossa consolação, paráclitos de misericórdia para o mundo. Ó nosso Advogado, suave Sugeridor da alma, tornai-nos testemunhas do hoje de Deus, profetas de unidade para a Igreja e a humanidade, apóstolos apoiados na vossa graça, que tudo cria e tudo renova. Amem.
Papa Francisco
Homilia na missa de Pentecostes.
23.03.2021
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