Catequese. O Tríduo Pascal
Estimados irmãos e irmãs, bom dia!
Já imersos na atmosfera espiritual da Semana Santa, estamos na vigília do Tríduo pascal. A partir de amanhã até domingo viveremos os dias centrais do Ano litúrgico, celebrando o mistério da Paixão, Morte e Ressurreição do Senhor. E vivemos este mistério cada vez que celebramos a Eucaristia. Quando vamos à Missa, não vamos apenas rezar, não: vamos renovar, repetir este mistério, o mistério pascal. É importante não esquecer isto. É como se fôssemos rumo ao Calvário - é a mesma coisa - para renovar, para repetir o mistério pascal.
Na noite de Quinta-Feira Santa, inaugurando o Tríduo pascal, reviveremos a Missa que se chama in Coena Domini, isto é, a Missa em que se celebra a Última Ceia, o que aconteceu ali, naquele momento. Foi a noite em que Cristo entregou aos seus discípulos o testamento do seu amor na Eucaristia, não como lembrança, mas como memorial, como a sua presença perene. Cada vez que se celebra a Eucaristia, como eu disse no início, renova-se este mistério da redenção. Neste Sacramento, Jesus substituiu a vítima sacrifical – o cordeiro pascal – consigo mesmo: o seu Corpo e o seu Sangue concedem-nos a salvação da escravidão do pecado e da morte. A salvação de qualquer escravidão está nisto. É a noite em que Ele nos pede para nos amarmos, tornando-nos servos uns dos outros, como Ele fez ao lavar os pés dos discípulos. É um gesto que antecipa a oblação cruenta na cruz. Na verdade, o Mestre e Senhor morrerá no dia seguinte para purificar não os pés, mas os corações e a vida inteira dos seus discípulos. Foi uma oblação de serviço a todos nós, porque com aquele serviço do seu sacrifício Ele redimiu-nos todos nós.
A Sexta-Feira Santa é um dia de penitência, jejum e oração. Através dos textos da Sagrada Escritura e das orações litúrgicas, estaremos como que reunidos no Calvário para celebrar a Paixão e a Morte redentora de Jesus Cristo. Na intensidade do rito da Ação litúrgica ser-nos-á apresentado o Crucifixo para o adorar. Ao adorarmos a Cruz, reviveremos o caminho do Cordeiro inocente, imolado pela nossa salvação. Teremos na mente e no coração o sofrimento dos doentes, dos pobres, dos descartados deste mundo; recordaremos os “cordeiros imolados”, vítimas inocentes de guerras, ditaduras, violências diárias, abortos... Levaremos diante da imagem de Deus crucificado, em oração, os numerosos, demasiados crucificados de hoje, que só d'Ele podem receber o alívio e o significado do seu sofrimento. E hoje há muitos deles: não vos esqueçais dos crucificados de hoje, que são a imagem de Jesus Crucificado, e neles está Jesus.
Desde que Jesus tomou sobre si as chagas da humanidade e da própria morte, o amor de Deus irrigou estes nossos desertos, iluminou estas nossas trevas. Pois o mundo está na escuridão. Façamos uma lista de todas as guerras travadas neste momento; de todas as crianças que morrem de fome; das crianças que não têm educação; de povos inteiros destruídos pelas guerras, pelo terrorismo. Das numerosas, muitas pessoas que, para se sentir um pouco melhor, precisam da droga, da indústria da droga que mata... É uma calamidade, um deserto! Existem pequenas “ilhas” do povo de Deus, cristão ou de qualquer outra fé, que conservam no coração o desejo de ser melhores. Mas sejamos francos: neste Calvário da morte, é Jesus que sofre nos seus discípulos. Durante o seu ministério, o Filho de Deus deu vida a mãos-cheias, curando, perdoando, ressuscitando... Agora, na hora do supremo Sacrifício na Cruz, leva a cumprimento a obra que lhe foi confiada pelo Pai: entra no abismo do sofrimento, entra nas calamidades deste mundo, para redimir e transformar. E também para libertar cada um de nós do poder das trevas, da soberba, da resistência a ser amados por Deus. E só o amor de Deus pode fazer isto. O apóstolo Pedro disse: pelas suas chagas fomos curados (cf. 1 Pd 2, 24), pela sua morte fomos todos regenerados. Graças a Ele, abandonado na cruz, ninguém jamais está sozinho na escuridão da morte. Nunca! Ele está sempre ao nosso lado: só é preciso abrir o coração e deixar-se olhar por Ele.
O Sábado Santo é o dia do silêncio: um grande silêncio paira sobre toda a Terra; um silêncio vivido no pranto e na perplexidade pelos primeiros discípulos, perturbados com a morte ignominiosa de Jesus. Enquanto o Verbo está em silêncio, enquanto a Vida está no sepulcro, aqueles que têm esperança n'Ele são postos à prova, sentem-se órfãos, talvez até órfãos de Deus. Este sábado é inclusive o dia de Maria: também Ela o vive no pranto, mas o seu coração está cheio de fé, repleto de esperança, cheio de amor. A Mãe de Jesus seguiu o Filho pelo caminho doloroso e permaneceu ao pé da cruz, com a sua alma trespassada. Mas quando tudo parece ter acabado, Ela vela, vigia na expectativa, preservando a esperança na promessa de Deus que ressuscita os mortos. Assim, na hora mais obscura do mundo, Ela tornou-se Mãe dos crentes, Mãe da Igreja e sinal de esperança. O seu testemunho e a sua intercessão amparam-nos quando o peso da cruz se torna demasiado árduo para cada um de nós.
Nas trevas do Sábado Santo, irromperão a alegria e a luz com os ritos da Vigília pascal e, no final da tarde, o canto jubiloso do Aleluia. Será um encontro de fé com Cristo ressuscitado, e a alegria pascal continuará ao longo dos cinquenta dias que se seguirão, até à vinda do Espírito Santo. Aquele que foi crucificado ressuscitou! Todas as interrogações e incertezas, hesitações e receios foram dissipados por esta revelação. O Ressuscitado dá-nos a certeza de que o bem triunfa sempre sobre o mal, que a vida vence sempre a morte e que o nosso fim não é descer cada vez mais, de tristeza em tristeza, mas subir às alturas. O Ressuscitado é a confirmação de que Jesus tem razão em tudo: em prometer-nos vida para além da morte e perdão para além dos pecados. Os discípulos duvidaram, não acreditaram. A primeira que acreditou e viu foi Maria Madalena, a apóstola da ressurreição, que foi dizer-lhes que tinha visto Jesus, que a tinha chamado pelo nome. E depois, todos os discípulos viram-no. Mas gostaria de comentar isto: os guardas, os soldados, que estavam no sepulcro para impedir que os discípulos fossem e levassem o corpo, viram-no: viram-no vivo e ressuscitado. Os inimigos viram-no, e depois fingiram que não o tinham visto. Porquê? Porque foram pagos. Eis o verdadeiro mistério daquilo que Jesus disse um dia: “Há dois senhores no mundo, dois, não há outros: dois. Deus e o dinheiro. Quem serve o dinheiro está contra Deus”. E aqui foi o dinheiro que mudou a realidade. Tinham visto a maravilha da ressurreição, mas foram pagos para se calar. Pensemos nas numerosas vezes que homens e mulheres cristãos foram pagos para não reconhecer na prática a ressurreição de Cristo, e não fizeram o que Cristo nos pediu que fizéssemos, como cristãos.
Prezados irmãos e irmãs, também este ano viveremos as celebrações da Páscoa no contexto da pandemia. Em tantas situações de sofrimento, especialmente quando quem as padece são pessoas, famílias e populações já provadas pela pobreza, calamidades ou conflitos, a Cruz de Cristo é como um farol que indica o porto para os navios ainda ao largo num mar em tempestade. A Cruz de Cristo é o sinal de esperança que não desilude; e diz-nos que nem uma lágrima, nem sequer um gemido se perdem no desígnio de salvação de Deus. Peçamos ao Senhor que nos conceda a graça de o servir e reconhecer e de não nos deixarmos pagar para o esquecer.
Papa Francisco
Catequese na audiência geral 31.03.2021
Catequese - 28. Rezar em comunhão com os santos
Estimados irmãos e irmãs, bom dia!
Hoje gostaria de me concentrar no nexo entre a oração e a comunhão dos santos. Na verdade, quando rezamos, nunca o fazemos sozinhos: mesmo que não pensemos nisso, estamos imersos num majestoso rio de invocações que nos precede e continua depois de nós.
Nas orações que encontramos na Bíblia, e que muitas vezes ressoam na liturgia, há um vestígio de histórias antigas, de libertações prodigiosas, de deportações e tristes exílios, de regressos comovedores, de louvores que fluem perante as maravilhas da criação... E assim estas vozes são transmitidas de geração em geração, num entrelaçamento contínuo entre a experiência pessoal, a do povo e a da humanidade à qual pertencemos. Ninguém se pode desligar da própria história, da história do seu povo; temos sempre esta herança nos nossos hábitos e também na nossa oração. Na oração de louvor, especialmente na que floresce no coração dos pequeninos e dos humildes, algo ecoa do cântico do Magnificat que Maria elevou a Deus perante a sua parenta Isabel; ou da exclamação do velho Simeão que, pegando no colo o Menino Jesus, disse: «Agora, Senhor, deixai ir em paz o vosso servo, segundo a vossa palavra» (Lc 2, 29).
As orações – as boas – são “difusivas”, difundem-se continuamente, com ou sem mensagens nas “redes sociais”: das enfermarias dos hospitais, dos momentos de encontro festivo, bem como daqueles em que se sofre em silêncio... A dor de cada um é a dor de todos, e a felicidade de uns é transferida para a alma de outros. A dor e a felicidade fazem parte da mesma história: são histórias que se tornam história na própria vida. Revive-se a história com as próprias palavras, mas a experiência é a mesma.
As orações renascem sempre: cada vez que damos as mãos e abrimos o coração a Deus, encontramo-nos numa companhia de santos anónimos e de santos reconhecidos que rezam connosco, e que intercedem por nós, como irmãos e irmãs mais velhos que passaram pela nossa mesma aventura humana. Na Igreja não há luto que permaneça solitário, não há lágrima que se verte no esquecimento, porque tudo respira e participa de uma graça comum. Não era ocasional que nas igrejas antigas as sepulturas estivessem no jardim em redor do edifício sagrado, como que a indicar que em cada Eucaristia participam de certa forma aqueles que nos precederam. Há os nossos pais e os nossos avós, há os padrinhos e madrinhas, há os catequistas e os outros educadores... Essa fé passada, transmitida, que recebemos: com a fé também se transmitiu a forma de rezar, a oração.
Os santos ainda estão aqui, não distantes de nós; e as suas representações nas igrejas evocam aquela “nuvem de testemunhas” que nos rodeia sempre (cf. Hb 12, 1). Ouvimos no início a leitura do trecho da Carta aos Hebreus. São testemunhas que não adoramos – bem entendido, não adoramos estes santos – mas que veneramos e que de mil maneiras diferentes nos remetem para Jesus Cristo, o único Senhor e Mediador entre Deus e o homem. Um santo que não vos recorda Jesus Cristo não é um santo, nem sequer um cristão. O Santo faz-nos lembrar Jesus Cristo porque percorreu o caminho da vida como cristão. Os Santos recordam-nos que também nas nossas vidas, embora fracas e marcadas pelo pecado, a santidade pode florescer. Nos Evangelhos lemos que o primeiro santo “canonizado” foi um ladrão e “canonizado” não por um Papa, mas pelo próprio Jesus. A santidade é um percurso de vida, de encontro com Jesus, seja longo ou curto, seja num instante, mas é sempre um testemunho. Um santo é o testemunho de um homem ou de uma mulher que conheceu Jesus e que seguiu Jesus. Nunca é demasiado tarde para se converter ao Senhor, que é bom e grande no amor (cf. Sl 102, 8).
O Catecismo explica que os santos «contemplam a Deus, louvam-n'O e não cessam de tomar a seu cuidado os que deixaram na terra. […] A sua intercessão é o mais alto serviço que prestam ao desígnio de Deus. Podemos e devemos pedir-lhes que intercedam por nós e por todo o mundo» (CIC, 2683). Em Cristo existe uma misteriosa solidariedade entre aqueles que passaram para a outra vida e nós, peregrinos nesta: os nossos queridos defuntos, do Céu, continuam a cuidar de nós. Eles rezam por nós e nós rezamos por eles, e oramos com eles.
Este nexo de oração entre nós e os Santos, ou seja, entre nós e as pessoas que chegaram à plenitude da vida, este laço de oração já o experimentamos aqui, na vida terrena: rezamos uns pelos outros, pedimos e oferecemos orações... A primeira forma de rezar por alguém é falar com Deus sobre ele ou ela. Se o fizermos frequentemente, todos os dias, o nosso coração não se fecha, permanece aberto aos irmãos. Rezar pelos outros é a primeira forma de os amar, e impele-nos à proximidade concreta. Mesmo nos momentos de conflito, uma forma de o dissolver, de o suavizar, é rezar pela pessoa com quem estou em conflito. E algo muda com a oração. A primeira coisa que muda é o meu coração, a minha atitude. O Senhor muda-o para tornar possível um encontro, um novo encontro, e evitar que o conflito se torne uma guerra sem fim.
O primeiro modo de enfrentar um tempo de angústia é pedir aos irmãos, aos santos acima de tudo, que rezem por nós. O nome que nos é dado no Batismo não é uma etiqueta nem um ornamento! É normalmente o nome da Virgem, de um Santo ou de uma Santa, os quais gostariam de nos “dar uma ajuda” na vida, de nos auxiliar para obtermos de Deus as graças de que mais precisamos. Se na nossa vida as provações não superaram o cume, se ainda somos capazes de perseverança, se apesar de tudo continuamos com confiança, talvez tudo isto, mais do que aos nossos méritos, o devamos à intercessão de muitos santos, alguns no Céu, outros peregrinos como nós na terra, que nos protegerem e acompanharam porque todos sabemos que aqui na terra há pessoas santas, homens e mulheres santos que vivem em santidade. Eles não o sabem, nós também não o sabemos, mas há santos, santos de todos os dias, santos escondidos ou ,como eu gosto de dizer, os “santos da porta ao lado”, aqueles que vivem connosco, que trabalham connosco, e levam uma vida de santidade.
Abençoado seja Jesus Cristo, o único Salvador do mundo, juntamente com este imenso florescimento de santos e santas que povoam a terra e que fizeram da sua vida um louvor a Deus. Pois – como afirmava São Basílio – «para o Espírito, o santo é uma morada particularmente adequada, uma vez que se oferece para habitar com Deus e é chamado seu templo» (Liber de Spiritu Sancto, 26, 62: PG 32, 184A; cf. CIC, 2684).
Papa Francisco
Catequese na audiência Geral 8.04.2021
Imagem: site vaticano
Catequese - 27. Rezar em comunhão com Maria
Prezados irmãos e irmãs, bom dia!
A catequese de hoje é dedicada à oração em comunhão com Maria, e ocorre precisamente na véspera da Solenidade da Anunciação. Sabemos que a via mestra da oração cristã é a humanidade de Jesus. Com efeito, a confiança típica da oração cristã não teria sentido se o Verbo não se tivesse encarnado, doando-nos no Espírito a sua relação filial com o Pai. Na leitura ouvimos falar daquela reunião dos discípulos, das mulheres piedosas e de Maria, que rezavam depois da Assunção de Jesus: era a primeira comunidade cristã, que esperava o dom de Jesus, a promessa de Jesus.
Cristo é o Mediador, a ponte que atravessamos para nos dirigirmos ao Pai (cf. Catecismo da Igreja Católica, 2674). É o único Redentor: não existem corredentores com Cristo. É o Mediador por excelência, é o Mediador. Cada oração que elevamos a Deus é por Cristo, com Cristo e em Cristo, e realiza-se graças à sua intercessão. O Espírito Santo alarga a mediação de Cristo a todos os tempos e lugares: não há outro nome no qual podemos ser salvos (cf. At 4, 12). Jesus Cristo: o único Mediador entre Deus e os homens.
Da mediação única de Cristo adquirem significado e valor as outras referências que o cristão encontra para a sua oração e devoção, em primeiro lugar à Virgem Maria, Mãe de Jesus.
Ela ocupa um lugar privilegiado na vida e, portanto, também na oração do cristão, porque é a Mãe de Jesus. As Igrejas do Oriente representaram-na frequentemente como a Odigitria, aquela que “indica o caminho”, ou seja, o Filho Jesus Cristo. Vem-me à mente aquela bonita, antiga e simples pintura da Odigitria, na catedral de Bari: Nossa Senhora mostra Jesus nu. Depois vestiram-lhe a camisa para cobrir aquela nudez, mas na verdade Jesus é representado nu, para indicar que Ele, homem nascido de Maria, é o Mediador. E Ela indica o Mediador: Ela é a Odigitria. Na iconografia cristã a sua presença está em toda a parte, às vezes até com grande destaque, mas sempre em relação ao Filho e em função d'Ele. As suas mãos, o seu olhar, a sua atitude são um “catecismo” vivo e indicam sempre o âmago, o centro: Jesus. Maria está totalmente voltada para Ele (cf. CIC, 2674). A tal ponto que podemos afirmar que é mais discípula do que Mãe. Aquela indicação, nas bodas de Caná, Maria diz: “Fazei o que Ele vos disser!”. Indica sempre Cristo; é a sua primeira discípula.
Este foi o papel que Maria desempenhou ao longo de toda a sua vida terrena e que conserva para sempre: ser a humilde serva do Senhor, nada mais. Numa certa altura, nos Evangelhos, Ela parece quase desaparecer; mas volta nos momentos cruciais, como em Caná, quando o Filho, graças à sua intervenção solícita, fez o primeiro “sinal” (cf. Jo 2, 1-12), e depois no Gólgota, ao pé da Cruz.
Jesus estendeu a maternidade de Maria a toda a Igreja quando lhe confiou o discípulo amado, pouco antes de morrer na cruz. A partir daquele momento, fomos todos colocados debaixo do seu manto, como vemos em certos afrescos ou quadros medievais. Também na primeira antífona latina, Sub tuum praesidium confugimus, sancta Dei Genitrix: Nossa Senhora que, como Mãe a quem Jesus nos confiou, envolve todos nós; mas como Mãe, não como deusa, não como corredentora: como Mãe. É verdade que a piedade cristã sempre lhe atribui títulos bonitos, como um filho à mãe: quantas palavras bonitas um filho dirige à sua mãe, a quem ama! Mas tenhamos cuidado: as belas palavras que a Igreja e os Santos dirigem a Maria em nada diminuem a singularidade redentora de Cristo. Ele é o único Redentor. São expressões de amor, como de um filho à mãe, às vezes exageradas. Contudo, como sabemos, o amor leva-nos sempre a fazer coisas exageradas, mas com amor.
E assim começamos a rezar a Ela com algumas expressões que lhe são dirigidas, presentes nos Evangelhos: “cheia de graça”, “bendita sois vós entre as mulheres” (cf. CIC, 2676 ss.). Em breve, à oração da Ave-Maria seria acrescentado o título “Theotokos”, “Mãe de Deus”, sancionado pelo Concílio de Éfeso. E, analogamente ao que acontece no Pai-Nosso, depois do louvor acrescentamos a súplica: pedimos à Mãe que reze por nós, pecadores, para que interceda com a sua ternura, “agora e na hora da nossa morte”. Agora, nas situações concretas da vida, e no momento final, a fim de que nos acompanhe - como Mãe, como primeira discípula - na passagem para a vida eterna.
Maria está sempre presente à cabeceira dos seus filhos que deixam este mundo. Se alguém se encontra sozinho e abandonado, Ela é Mãe, está ali perto, tal como estava próxima do seu Filho quando todos o tinham abandonado.
Maria estava e está presente durante os dias da pandemia, perto das pessoas que infelizmente concluíram o seu caminho terreno numa condição de isolamento, sem o conforto da proximidade dos seus entes queridos. Maria está sempre presente, ao nosso lado, com a sua ternura maternal.
As orações a Ela dirigidas não são vãs. Mulher do “sim”, que aceitou prontamente o convite do Anjo, responde também às nossas súplicas, ouve as nossas vozes, até aquelas que permanecem fechadas no coração, que não têm a força para sair mas que Deus conhece melhor do que nós mesmos. Ouve-as como Mãe. Como e mais do que todas as mães bondosas, Maria defende-nos nos perigos, preocupa-se conosco, até quando estamos ocupados com os nossos afazeres e perdemos o sentido do caminho, colocando em perigo não só a nossa saúde, mas a nossa salvação. Maria está presente reza por nós, reza por quem não ora. Reza conosco. Porquê? Porque Ela é a nossa Mãe!
Papa Francisco
Catequese na audiência geral 24.03.2021
Imagem: Henry_Ossawa_Tanner/ Anunciação
Catequese - 26. A oração e a Trindade. 2
Estimados irmãos e irmãs, bom dia!
Hoje completamos a catequese sobre a oração como relação com a Santíssima Trindade, em particular com o Espírito Santo.
O primeiro dom de cada existência cristã é o Espírito Santo. Não é um dos muitos dons, mas o Dom fundamental. O Espírito é o dom que Jesus prometeu enviar-nos. Sem o Espírito, não há relação com Cristo e com o Pai. Porque o Espírito abre o nosso coração à presença de Deus e atrai-o para aquele “vórtice” de amor que é o coração do próprio Deus. Não somos apenas hóspedes e peregrinos no caminho sobre esta terra, somos também hóspedes e peregrinos no mistério da Trindade. Somos como Abraão, que um dia, acolhendo três caminhantes na sua tenda, encontrou Deus. Se realmente podemos invocar Deus chamando-o “Abbá-Pai”, é porque o Espírito Santo habita em nós; é Ele que nos transforma profundamente e nos faz experimentar a alegria comovedora de sermos amados por Deus como verdadeiros filhos. Todo o trabalho espiritual dentro de nós rumo a Deus é realizado pelo Espírito Santo, este dom. Ele trabalha em nós para levar adiante a nossa vida cristã rumo ao Pai, com Jesus.
A este propósito, o Catecismo diz: «Todas as vezes que começamos a orar a Jesus, é o Espírito Santo que, pela sua graça preveniente, nos atrai para o caminho da oração. Uma vez que Ele nos ensina a orar lembrando-nos Cristo, como orar-Lhe a Ele próprio? A Igreja convida-nos, pois, a implorar cada dia o Espírito Santo, especialmente no princípio e no fim de qualquer ato importante» (n. 2670). Esta é a obra do Espírito em nós. Ele “recorda-nos” Jesus e torna-o presente a nós – podemos dizer que é a nossa memória trinitária, é a memória de Deus em nós – e fá-lo presente a Jesus, para que não seja reduzido a um personagem do passado: isto é, o Espírito traz Jesus ao presente na nossa consciência. Se Cristo estivesse apenas distante no tempo, estaríamos sozinhos e desorientados no mundo. Sim, recordaremos Jesus, lá, distante, mas é o Espírito que o traz hoje, agora, neste momento ao nosso coração. Mas no Espírito tudo é vivificado: a possibilidade de encontrar Cristo está aberta aos cristãos de todos os tempos e lugares. Está aberta a possibilidade de encontrar Cristo não só como um personagem histórico. Não: Ele atrai Cristo aos nossos corações, é o Espírito que nos faz encontrar com Cristo. Ele não está distante, o Espírito está conosco: Jesus ainda educa os seus discípulos transformando os seus corações, como fez com Pedro, com Paulo, com Maria de Magdala, com todos os apóstolos. Mas por que está presente Jesus? Porque é o Espírito que o traz a nós.
Foi a experiência que tantos orantes viveram: homens e mulheres que o Espírito Santo formou segundo a “medida” de Cristo, na misericórdia, no serviço, na oração, na catequese... É uma graça poder encontrar pessoas assim: percebe-se que nelas pulsa uma vida diferente, o seu olhar vê “além”. Não pensemos apenas em monges e eremitas; também os encontramos entre pessoas comuns, pessoas que teceram uma longa história de diálogo com Deus, em momentos de luta interior, que purifica a fé. Estas humildes testemunhas procuraram Deus no Evangelho, na Eucaristia recebida e adorada, no rosto do irmão em dificuldade, e conservam a sua presença como um fogo secreto.
A primeira tarefa dos cristãos é precisamente manter vivo este fogo, que Jesus trouxe à terra (cf. Lc 12, 49), e qual é este fogo? É o amor, o Amor de Deus, o Espírito Santo. Sem o fogo do Espírito, as profecias extinguem-se, a tristeza suplanta a alegria, o hábito substitui o amor, o serviço transforma-se em escravidão. Vem-me à mente a imagem da lâmpada acesa ao lado do tabernáculo onde se conserva a Eucaristia. Até quando a igreja está vazia e a cai noite, quando a igreja está fechada, aquela lâmpada permanece acesa, continua a arder: ninguém a vê, mas arde perante o Senhor. Também o Espírito no nosso coração está sempre presente como aquela lâmpada.
Encontramos novamente escrito no Catecismo: «O Espírito Santo, cuja unção impregna todo o nosso ser, é o mestre interior da oração cristã. É o artífice da tradição viva da oração. Há, é certo, tantos caminhos na oração como orantes; mas é o mesmo Espírito que age em todos e com todos. É na comunhão do Espírito Santo que a oração cristã é oração na Igreja» (n. 2672). Muitas vezes acontece que não rezamos, não nos apetece rezar ou às vezes rezamos como papagaios com a boca, mas o coração está ausente. Este é o momento de dizer ao Espírito: “Vem, vem Espírito Santo, aquece o meu coração. Vem ensinar-me a rezar, ensinar-me a olhar para o Pai, a olhar para o Filho. Ensina-me como é o caminho da fé. Ensina-me a amar, e acima de tudo ensina-me a ter uma atitude de esperança”. Trata-se de chamar continuamente o Espírito para que esteja presente na nossa vida.
Portanto, é o Espírito que escreve a história da Igreja e do mundo. Nós somos páginas abertas, disponíveis para receber a sua caligrafia. E em cada um de nós o Espírito compõe obras originais, porque nunca há um cristão que seja completamente idêntico a outro. No campo infinito da santidade, o único Deus, Trindade de Amor, faz florescer a variedade das testemunhas: todas iguais em dignidade, mas também únicas na beleza que o Espírito quis conferir a cada um daqueles a quem a misericórdia de Deus tornou seus filhos. Não esqueçamos, o Espírito está presente, está presente em nós. Ouçamos o Espírito, chamemos o Espírito - é o dom, o dom que Deus nos deu - e digamos-lhe: “Espírito Santo, não sei como é o teu rosto – não o sabemos – mas sei que és a força, és a luz, és capaz de me fazer ir em frente e de me ensinar a rezar. Vem Espírito Santo”. Esta é uma bonita oração, “Vem, Espírito Santo”.
Papa Francisco
Catequese na audiência geral 17.03.2021
Catequese - 25. A oração e a Trindade. 1
Amados irmãos e irmãs, bom dia!
No nosso caminho de catequeses sobre a oração, hoje e na próxima semana queremos ver como, graças a Jesus Cristo, a oração nos abre à Trindade – ao Pai, ao Filho e ao Espírito - ao imenso mar de Deus que é Amor. Foi Jesus que nos abriu o Céu e nos projetou para uma relação com Deus. Foi ele que fez isto: abriu-nos para aquela relação com o Deus Trino: o Pai, o Filho e o Espírito Santo. É isto que o apóstolo João afirma na conclusão do prólogo do seu Evangelho: «Ninguém jamais viu a Deus: o Filho único, que está no seio do Pai, é que O deu a conhecer» (1, 18). Jesus revelou-nos a identidade, a identidade de Deus, Pai, Filho e Espírito Santo. Realmente não sabíamos como se pudesse rezar: quais palavras, quais sentimentos e que linguagem eram apropriados para Deus. Naquele pedido dirigido pelos discípulos ao Mestre, que temos recordado frequentemente no decurso destas catequeses, há toda a hesitação do homem, as suas repetidas tentativas, muitas vezes infrutíferas, de se dirigir ao Criador: «Senhor, ensina-nos a rezar» (Lc 11, 1).
Nem todas as orações são iguais, nem todas são convenientes: a própria Bíblia atesta o mau resultado de muitas orações, que são rejeitadas. Talvez por vezes Deus não esteja satisfeito com as nossas orações e nós nem sequer nos apercebemos disso. Deus olha para as mãos daqueles que rezam: para as purificar não é necessário lavá-las, quando muito é preciso abster-se de ações malignas. São Francisco rezava: «Nullu homo ène dignu te mentovare», ou seja, “homem algum é digno de te nomear” (Cântico do Irmão Sol).
Mas talvez o reconhecimento mais tocante da pobreza da nossa oração tenha vindo dos lábios do centurião romano que um dia implorou Jesus que curasse o seu servo doente (cf. Mt 8, 5-13). Sentia-se totalmente inadequado: não era judeu, era um oficial do odiado exército de ocupação. Mas a preocupação pelo servo fá-lo ousar, e diz: «Senhor... eu não sou digno que entres debaixo do meu teto, mas diz uma só palavra e o meu servo será curado» (v. 8). É a frase que também repetimos em todas as liturgias eucarísticas. Dialogar com Deus é uma graça: não somos dignos dela, não temos o direito de a reivindicar, “coxeamos” com cada palavra e pensamento... Mas Jesus é a porta que nos abre para este diálogo com Deus.
Porque deveria o homem ser amado por Deus? Não há razões óbvias, não há proporção... A ponto que em grande parte das mitologias não se contempla o caso de um deus que se preocupe com as vicissitudes humanas; pelo contrário, elas são incómodas e tediosas, completamente insignificantes. Recordemos a frase de Deus ao seu povo, repetida no Deuteronômio: “Pensa, que povo tem os seus deuses tão próximos dele, como vós tendes a mim próximo de vós”. Esta proximidade de Deus é a revelação! Alguns filósofos dizem que Deus só pode pensar em si mesmo. No máximo, somos nós, humanos, que procuramos conquistar a divindade e ser agradáveis aos seus olhos. Disto brota o dever de “religião”, com o corolário de sacrifícios e devoções a oferecer continuamente para ter como aliado um Deus mudo, um Deus indiferente. Não há diálogo. Jesus estava sozinho, só havia a revelação de Deus a Moisés antes de Jesus, quando Deus se apresentou; só a Bíblia que nos abriu o caminho do diálogo com Deus. Recordemos: “Que povo tem os seus deuses tão próximos dele, como tu tens a mim próximo de ti?”. Esta proximidade de Deus abre-nos ao diálogo com Ele.
Um Deus que ama o homem, nunca teríamos tido a coragem de acreditar nisto se não tivéssemos conhecido Jesus. O conhecimento de Jesus fez-nos compreender isto, no-lo revelou. É o escândalo que encontramos esculpido na parábola do pai misericordioso, ou na do pastor que vai em busca da ovelha perdida (cf. Lc 15). Histórias como estas não poderiam ter sido concebidas, nem sequer compreendidas, se não tivéssemos encontrado Jesus. Qual Deus está disposto a morrer pelas pessoas? Qual Deus ama sempre e pacientemente, sem pretender por sua vez ser amado? Qual Deus aceita a tremenda falta de gratidão de um filho que pede antecipadamente a sua herança e sai de casa a esbanjar tudo? (cf. Lc 15, 12-13).
É Jesus quem revela o coração de Deus. Assim Jesus diz-nos com a sua vida até que ponto Deus é Pai. Tam Pater nemo: ninguém é pai como ele. A paternidade que é proximidade, compaixão e ternura. Não esqueçamos estas três palavras que são o estilo de Deus: proximidade, compaixão e ternura. É o modo de manifestar a sua paternidade para conosco. É difícil para nós imaginar de longe o amor com que a Santíssima Trindade está repleta, e que abismo de benevolência recíproca existe entre Pai, Filho e Espírito Santo. Os ícones orientais deixam-nos intuir algo deste mistério que é a origem e a alegria de todo o universo.
Acima de tudo, tínhamos dificuldade de acreditar que este amor divino se dilatasse, chegando até ao humano: somos o termo de um amor que não encontra igual na terra. O Catecismo explica: «A santa humanidade de Jesus é, pois, o caminho pelo qual o Espírito Santo nos ensina a orar a Deus nosso Pai» (n. 2664). Esta é a graça da nossa fé. Verdadeiramente não podíamos esperar uma vocação mais excelsa: a humanidade de Jesus – Deus fez-se próximo em Jesus – pôs à nossa disposição a própria vida da Trindade, abriu, escancarou esta porta do mistério do amor do Pai, do Filho e do Espírito Santo.
Papa Francisco
Catequese na audiência geral 03.03.2021
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Principiamos o caminho da Quaresma, que se abre com as palavras do profeta Joel indicando-nos a direção a tomar. Trata-se dum convite que brota do coração de Deus, suplicando-nos de braços abertos e olhos cheios de nostalgia: «Convertei-vos a Mim de todo o vosso coração» (Jl 2, 12). Convertei-vos a Mim. A Quaresma é uma viagem de regresso a Deus. Quantas vezes, atarefados ou indiferentes, Lhe dissemos: «Senhor, espera! Virei encontrar-Vos mais tarde... Hoje não posso, mas amanhã começarei a rezar e a fazer algo pelos outros». E assim dia após dia… Agora Deus lança um apelo ao nosso coração. Na vida, sempre teremos coisas a fazer e desculpas a apresentar, mas, irmãos e irmãs, hoje é o tempo de regressar a Deus.
Convertei-vos a Mim – diz Ele – de todo o vosso coração. A Quaresma é uma viagem que envolve toda a nossa vida, tudo de nós mesmos. É o tempo para verificar as estradas que estamos a percorrer, para encontrar o caminho que nos leva de volta a casa, para redescobrir o vínculo fundamental com Deus, do qual tudo depende. A Quaresma não é compor um ramalhete espiritual; é discernir para onde está orientado o coração. Aqui está o centro da Quaresma: para onde está orientado o meu coração? Tentemos saber: Para onde me leva o «navegador» da minha vida, para Deus ou para mim mesmo? Vivo para agradar ao Senhor, ou para ser notado, louvado, preferido, no primeiro lugar e assim por diante? Tenho um coração «dançarino» que dá um passo para a frente e outro para trás, amando ora o Senhor ora o mundo, ou um coração firme em Deus? Sinto-me bem com as minhas hipocrisias ou luto para libertar o coração da simulação e das falsidades que o têm prisioneiro?
A viagem da Quaresma é um êxodo: é um êxodo da escravidão para a liberdade. São quarenta dias que recordam os quarenta anos em que o povo de Deus caminhou pelo deserto para voltar à terra de origem. Mas, como foi difícil deixar o Egito! Mais difícil do que deixar a terra foi tirar o Egito do coração do povo de Deus, aquele Egito que traziam dentro… É muito difícil deixar o Egito! Ao longo do caminho, nos seus lamentos, sempre se sentiam tentados pelas cebolas, tentados a voltar para trás, presos às memórias do passado, a qualquer ídolo. O mesmo se passa conosco: a viagem de regresso a Deus vê-se dificultada pelos nossos apegos doentios, impedida pelos laços sedutores dos vícios, pelas falsas seguranças do dinheiro e da ostentação, pela lamúria que paralisa. Para caminhar, é preciso desmascarar estas ilusões.
Interroguemo-nos então: Como avançar no caminho para Deus? Ajudam-nos as viagens de regresso narradas pela Palavra de Deus.
Olhamos para o filho pródigo e compreendemos que é tempo também para nós de regressar ao Pai. Como aquele filho, também nós esquecemos o ar de casa, delapidamos bens preciosos em troca de coisas sem valor e ficamos com as mãos vazias e o coração insatisfeito. Caímos: somos filhos que caem continuamente, somos como criancinhas que tentam andar, mas estatelam-se no chão precisando uma vez e outra de ser levantadas pelo papá. É o perdão do Pai que sempre nos coloca de pé: o perdão de Deus, a Confissão, é o primeiro passo da nossa vigem de regresso. Ao dizer Confissão, recomendo aos confessores: Sede como o pai, não com o chicote, mas com o abraço.
Depois precisamos de regressar a Jesus, fazer como aquele leproso curado que voltou para Lhe agradecer. Curados foram dez, mas só ele foi também salvo, porque voltara para Jesus (cf. Lc 17, 12-19). Todos, todos nós temos enfermidades espirituais: sozinhos, não podemos curá-las; todos temos vícios arraigados: sozinhos, não podemos extirpá-los; todos temos medos que nos paralisam: sozinhos, não podemos vencê-los. Precisamos de imitar aquele leproso, que voltou para Jesus e se prostrou aos seus pés. Temos necessidade da cura de Jesus, precisamos de colocar diante d’Ele as nossas feridas e dizer-Lhe: «Jesus, estou aqui diante de Vós, com o meu pecado, com as minhas misérias. Vós sois o médico; podeis libertar-me. Curai o meu coração».
Mais ainda! A palavra de Deus pede-nos para regressar ao Pai, pede-nos para voltar a Jesus, e somos chamados também a regressar ao Espírito Santo. As cinzas na cabeça lembram-nos que somos pó e em pó nos havemos de tornar. Mas, sobre este pó que somos nós, Deus soprou o seu Espírito de vida. Então não podemos viver seguindo o pó, indo atrás de coisas que hoje existem e amanhã desaparecem. Voltemos ao Espírito, Dador de vida! Voltemos ao Fogo que faz ressurgir as nossas cinzas, àquele Fogo que nos ensina a amar. Continuaremos sempre a ser pó, mas – como diz um hino litúrgico – pó enamorado. Voltemos a rezar ao Espírito Santo, redescubramos o fogo do louvor, que queima as cinzas das lamúrias e da resignação.
Irmãos e irmãs, esta nossa viagem de regresso a Deus só é possível, porque houve a sua vinda até junto de nós. Caso contrário, não teria sido possível. Antes de irmos até Ele, desceu Ele até nós. Precedeu-nos, veio ao nosso encontro. Por nós, desceu até mais fundo de quanto pudéssemos imaginar: fez-Se pecado, fez-Se morte. Isto mesmo no-lo recordou São Paulo: «Aquele que não havia conhecido o pecado, Deus O fez pecado por nós» (2 Cor 5, 21). Para não nos deixar sozinhos e acompanhar-nos no caminho, Ele desceu dentro do nosso pecado e da nossa morte. Tocou o pecado, tocou a nossa morte. Então a nossa viagem é deixar-se tomar pela mão. O Pai que nos chama a voltar é Aquele que sai de casa e vem procurar-nos; o Senhor que nos cura é Aquele que Se deixou ferir na cruz; o Espírito que nos faz mudar de vida é Aquele que sopra com força e suavidade sobre o nosso pó.
Daí a súplica do Apóstolo: «Deixai-vos reconciliar com Deus» (2 Cor 5, 20). Deixai-vos reconciliar: o caminho não se apoia nas nossas forças; com as próprias forças, ninguém pode reconciliar-se com Deus; não consegue. A conversão do coração, com os gestos e práticas que a exprimem, só é possível se partir do primado da ação de Deus. O que nos faz regressar a Ele não são as nossas capacidades nem os méritos que ostentamos, mas a sua graça que temos de acolher. Salva-nos a graça. A salvação é pura graça, pura gratuidade. Disse-o claramente Jesus no Evangelho: o que nos torna justos não é a justiça que praticamos diante dos homens, mas a relação sincera com o Pai. O início do regresso a Deus é reconhecermo-nos necessitados d’Ele, necessitados de misericórdia, necessitados da sua graça. O caminho certo é este: o caminho da humildade. Como me sinto eu: necessitado ou autossuficiente?
Hoje inclinamos a cabeça para receber as cinzas. No termo da Quaresma, abaixar-nos-emos ainda mais para lavar os pés dos irmãos. A Quaresma é uma descida humilde dentro de nós e rumo aos outros. É compreender que a salvação não é uma escalada para a glória, mas um abaixamento por amor. É fazer-nos humildes. Neste caminho, para não perder o rumo, coloquemo-nos diante da cruz de Jesus: é a cátedra silenciosa de Deus. Contemplemos cada dia as suas chagas, as chagas que Ele levou para o Céu e todos os dias, na sua oração de intercessão, faz ver ao Pai. Contemplemos cada dia as suas chagas. Naqueles buracos, reconheçamos o nosso vazio, as nossas faltas, as feridas do pecado, os golpes que nos fizeram sofrer. E contudo, mesmo ali, vemos que Deus não aponta o dedo contra nós, mas abre-nos os braços. As suas chagas estão abertas para nós e, por aquelas chagas, fomos curados (cf. 1 Ped 2, 24; Is 53, 5). Beijemo-las e compreenderemos que precisamente lá, nos buracos mais dolorosos da vida, Deus nos espera com a sua infinita misericórdia. Porque ali, onde somos mais vulneráveis, onde mais nos envergonhamos, Ele veio ao nosso encontro. E agora que veio ter conosco, convida-nos a regressar a Ele, para voltarmos a encontrar a alegria de ser amados.
Homilia do Papa Francisco - Quarta-feira de Cinzas - 17.02.2021
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Catequese - 24. Rezar na vida cotidiana
Na catequese anterior, vimos que a oração cristã está “ancorada” na Liturgia. Hoje evidenciaremos como da Liturgia ela regressa sempre à vida quotidiana: nas ruas, nos escritórios, nos meios de transporte... E nela o diálogo com Deus continua: quem reza é como o apaixonado, que traz sempre no coração a pessoa amada, onde quer que esteja.
Com efeito, tudo é assumido neste diálogo com Deus: cada alegria torna-se um motivo de louvor, cada provação é ocasião para um pedido de ajuda. A oração é sempre viva na existência, como o fogo das brasas, até quando os lábios não falam, mas o coração fala. Cada pensamento, embora aparentemente “profano”, pode ser permeado de oração. Até na inteligência humana há um aspecto orante; com efeito, ela é uma janela aberta para o mistério: ilumina os poucos passos que se nos apresentam e depois abre-se para toda a realidade, esta realidade que a precede e a supera. Este mistério não tem um rosto perturbador nem angustiante, não: o conhecimento de Cristo faz-nos confiar que onde o nosso olhar e os olhos da nossa mente não podem ver, não há o nada, mas há alguém que nos espera, há uma graça infinita. E assim a oração cristã infunde no coração humano uma esperança invencível: qualquer que seja a experiência que toque o nosso caminho, o amor de Deus pode transformá-la em bem.
A este propósito, o Catecismo diz: «Aprendemos a orar em certos momentos, escutando a Palavra do Senhor e participando no seu mistério pascal. Mas a cada momento, nos acontecimentos de cada dia, o seu Espírito é-nos oferecido para fazer brotar a oração [...] O tempo está nas mãos do Pai; é no presente que nós o encontramos; não ontem nem amanhã, mas hoje» (n. 2659). Hoje encontro Deus, existe sempre o hoje do encontro.
Não há outro dia maravilhoso, a não ser o hoje que vivemos. As pessoas que vivem sempre a pensar no futuro: “Mas, o futuro será melhor...”, e não vivem o hoje como vem: são pessoas que vivem na fantasia, não sabem assumir o concreto da realidade. E o hoje é real, o hoje é concreto. E a oração tem lugar no hoje. Jesus vem ao nosso encontro hoje, neste hoje que vivemos. E é a oração que transforma este hoje em graça, ou melhor, que nos transforma: apazigua a raiva, sustenta o amor, multiplica a alegria, infunde a força de perdoar. Às vezes parece-nos que já não somos nós que vivemos, mas que a graça vive e age em nós através da oração. E quando nos vem um pensamento de raiva, de descontentamento, que nos leva à amargura. Paremos e digamos ao Senhor: “Onde estás? E para onde vou?”. E o Senhor está ali, o Senhor dar-nos-á a palavra certa, o conselho para ir em frente sem aquele sumo amargo do negativo. Porque a oração, usando uma palavra profana, é sempre positiva. Sempre! Leva-te em frente. Cada dia que começa, se for acolhido na oração, é acompanhado de coragem, para que os problemas a enfrentar já não sejam obstáculos à nossa felicidade, mas apelos de Deus, ocasiões para o nosso encontro com Ele. E quando alguém é acompanhado pelo Senhor, sente-se mais corajoso, mais livre e inclusive mais feliz.
Portanto, rezemos sempre por tudo e por todos, até pelos inimigos. Jesus aconselhou-nos: “Rezai pelos inimigos”. Oremos pelos nossos entes queridos, mas também por aqueles que não conhecemos; oremos até pelos nossos inimigos, como eu disse, como a Escritura muitas vezes nos convida a fazer. A oração dispõe a um amor superabundante. Rezemos especialmente pelos infelizes, por quantos choram na solidão e perdem a esperança de que ainda haja um amor que pulse por eles. A oração realiza milagres; e então os pobres intuem, pela graça de Deus, que até na sua situação precária, a oração do cristão tornou presente a compaixão de Jesus: pois Ele olhou com grande ternura para as multidões cansadas e perdidas como ovelhas sem pastor (cf. Mc 6, 34). O Senhor – não nos esqueçamos – é o Senhor da compaixão, da proximidade, da ternura: três palavras que jamais devem ser esquecidas. Pois é o estilo do Senhor: compaixão, proximidade, ternura.
A oração ajuda-nos a amar os outros, apesar dos seus erros e pecados. A pessoa é sempre mais importante do que as suas ações, e Jesus não julgou o mundo, mas salvou-o. A vida daqueles que julgam sempre os outros é negativa, condenam, julgam sempre: é uma vida negativa, infeliz. Jesus veio para nos salvar: abre o teu coração, perdoa, justifica os outros, compreende, também tu permanece próximo dos outros, tem compaixão, sente ternura como Jesus. É necessário amar todos e cada um, lembrando na oração que todos somos pecadores e ao mesmo tempo amados por Deus, um por um. Amando assim este mundo, amando-o com ternura, descobriremos que cada dia e cada situação traz dentro de si um fragmento do mistério de Deus.
O Catecismo escreve ainda: «Orar nos acontecimentos de cada dia e de cada instante é um dos segredos do Reino, revelados aos “pequeninos”, aos servos de Cristo, aos pobres das bem-aventuranças. É justo e bom orar para que a vinda do Reino da justiça e da paz influencie a marcha da história; mas também é importante “levedar” pela oração a massa das humildes situações quotidianas. Todas as formas de oração podem ser este fermento a que o Senhor compara o Reino» (n. 2660).
O homem – a pessoa humana, homem e mulher – é como um sopro, como a relva (cf. Sl 144, 4; 103, 15). O filósofo Pascal escrevia: «Não há necessidade que o universo inteiro pegue em armas para o esmagar; um vapor, uma gota de água é suficiente para o matar» (Pensamentos, 186). Somos seres frágeis, mas sabemos rezar: esta é a nossa maior dignidade, é também a nossa fortaleza. Coragem! Rezai em cada momento, em cada situação, pois o Senhor está próximo de nós. E quando uma oração está em sintonia com o coração de Jesus, obtém milagres.
Papa Francisco
Catequese na audiência geral 10.02.2021
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DISCURSO DO PAPA FRANCISCO AOS PARTICIPANTES DO ENCONTRO PROMOVIDO
PELO DEPARTAMENTO NACIONAL DE CATEQUESE DA CONFERÊNCIA EPISCOPAL ITALIANA
Sala Clementina Sábado, 30 de janeiro de 2021
Queridos irmãos e irmãs, vos dou as boas vindas e agradeço ao Cardeal Bassetti as suas amáveis palavras. Recuperou-se! Obrigado! Saúdo o Secretário-Geral, Dom Russo, e todos vós que apoiais o empenho da Igreja italiana no campo da catequese. Sinto-me feliz por partilhar convosco a memória do 60º aniversário do nascimento do Instituto Nacional para a Catequese. Estabelecido ainda antes da configuração da Conferência Episcopal, foi um instrumento indispensável para a renovação catequética depois do Concílio Vaticano II. Este aniversário é uma excelente ocasião para recordar, agradecer os dons recebidos e renovar o espírito de anúncio. Para isso, gostaria de compartilhar convosco três pontos que espero que ajudem o vosso trabalho nos próximos anos. O primeiro: catequese e querigma. A catequese é o eco da Palavra de Deus. Na transmissão da fé, a Escritura - como lembra o documento fundamental - é «o Livro; não um subsídio, mesmo que seja o primeiro» (CEI, Il rinnovamento della catechesi, n. 107). A catequese é, portanto, a larga onda da Palavra de Deus para transmitir na vida a alegria do Evangelho. Graças à narração na catequese, a Sagrada Escritura converte-se “no ambiente” para se tornar parte da história da salvação, encontrando aí as primeiras testemunhas da fé.
A catequese é pegar pela mão e acompanhar nesta história. Suscita um caminho no qual cada um encontra o seu ritmo, porque a vida cristã não aplaina nem homologa, mas valoriza a singularidade de cada filho de Deus. A catequese é também um itinerário mistagógico, que acontece em constante diálogo com a liturgia, espaço no qual brilham símbolos que, sem se impor, falam à vida e marcam-na com o sinal da graça. O coração do mistério é o querigma, e o querigma é uma pessoa: Jesus Cristo. A catequese é um espaço privilegiado para favorecer o encontro pessoal com Ele. Por isso, deve estar entrelaçada de relações pessoais. Não há verdadeira catequese sem o testemunho de homens e mulheres de carne e osso. Quem entre nós não se lembra de, pelo menos, um dos seus catequistas? Eu lembro-me. Recordo-me da religiosa que me preparou para a minha primeira comunhão e como ela me fez tão bem. Os primeiros protagonistas da catequese são eles, mensageiros do Evangelho, muitas vezes leigos, que entram em ação com generosidade para compartilhar a beleza de terem encontrado Jesus. «Quem é o catequista? Ele é quem guarda e alimenta a memória de Deus; guarda-a em si mesmo e - é memorial da história da salvação – sabendo despertá-la nos outros ... É um cristão que põe esta memória ao serviço do anúncio; não se exibe, não falar de si mesmo, mas fala de Deus, do seu amor e da sua fidelidade» (Homilia para o Dia dos Catequistas no Ano da Fé, 29 de setembro de 2013). Para isso, é bom recordar «certas características do anúncio que hoje são necessárias em toda a parte: que expresse o amor salvífico de Deus antes da obrigação moral e religiosa: Tu és amado, és amada, isto é o primeiro, esta é a porta; que não impõe a verdade e que apela à liberdade, como o fez Jesus, que possui notas de alegria, encorajamento, vitalidade e uma integralidade harmoniosa que não reduz a pregação a umas poucas doutrinas às vezes mais filosóficas que evangélicas. Isto exige do evangelizador certas atitudes que ajudem a acolher melhor o anúncio. E quais são estas atitudes que todo o catequista deve ter? proximidade, abertura ao diálogo, paciência, um acolhimento cordial que não condena» (Exortação apostólica Evangelii Gaudium, 165). Jesus tinha-os. É toda a geografia da humanidade a que o querigma, a bússola infalível da fé, ajuda a explorar. E sobre este ponto - o catequista - volto a algo que deveria ser dito também aos pais, avós ... a fé transmite-se “em dialeto”. Um catequista que não sabe explicar no dialeto dos jovens, das crianças, daqueles que ... Mas com o dialeto não me refiro ao linguístico, do qual a Itália é tão rica: não, o dialeto da proximidade, o dialeto que pode ser entendido, o dialeto da intimidade. Comove-me aquela passagem dos Macabeus, dos sete irmãos (2 Mc, 7). Diz-se, por duas ou três vezes que a mãe apoiava-os falando-lhes em dialeto [«na língua dos pais»]. É importante: a verdadeira fé é transmitida em dialeto. Os catequistas devem aprender a transmiti-la em dialeto, ou seja, aquela linguagem que vem do coração, que nasce, que é a mais familiar, a mais próxima de todos. Se não houver dialeto, a fé não é transmitida bem ou totalmente. O segundo ponto: catequese e futuro. No ano passado foi o 50º aniversário do documento “Il rinnovamento della catechesi”, onde a Conferência Episcopal Italiana recolheu as indicações do Concílio. A este propósito, faço minhas as palavras de São Paulo VI, dirigidas à primeira Assembleia Geral do CEI depois do Vaticano II: «Devemos olhar para o Concílio com gratidão a Deus e com confiança no futuro da Igreja; será o grande catecismo dos novos tempos» (23 de junho de 1966). E voltando ao tema, por ocasião do primeiro Congresso Catequético Internacional, acrescentou: «É uma tarefa que incessantemente renasce e incessantemente se renova para a catequese, compreender estes problemas que surgem do coração do homem, para os redirecionar para a sua fonte oculta: o dom do amor que cria e salva» (25 de setembro de 1971). Por isso, a catequese inspirada no Concílio escuta continuamente o coração do homem, sempre com o ouvido atento, procurando sempre renovar-se. Este é o magistério: o Concilio é magistério da Igreja. Ou estás com a Igreja e, portanto, segues o Concílio, ou, interpretando-o à tua maneira, não estás com a Igreja. A este respeito temos que ser exigentes, severos. Não, o Concilio não negocia para ter mais destes ... Não, o Concilio é assim. E este problema que estamos a viver, o da seletividade do Concilio, vem se repetindo ao longo da história com outros Concílios. Faz-me pensar num grupo de bispos que partiram depois do Vaticano I, um grupo de leigos, outros grupos, para continuar a “verdadeira doutrina” que não era a do Vaticano I. "Nós somos os verdadeiros católicos” … Hoje ordenam mulheres. A atitude mais severa, ser custódio da fé sem o magistério da Igreja, leva-te à ruína. Por favor, nenhuma concessão a quem tenta apresentar uma catequese que não esteja de acordo com o Magistério da Igreja. Assim como no período pós-conciliar a Igreja italiana foi rápida e capaz de acolher os sinais e as sensibilidades dos tempos, também hoje é chamada a oferecer uma catequese renovada que inspire todos os âmbitos da pastoral: a caridade, a liturgia, a família, a cultura, a vida social, a economia ... Desde a raiz da Palavra de Deus, passando pelo tronco da sabedoria pastoral, florescem abordagens fecundas aos vários aspetos da vida.
A catequese é, portanto, uma aventura extraordinária: como “vanguarda da Igreja”, tem a tarefa de ler os sinais dos tempos e de aceitar os desafios presentes e futuros. Não devemos ter medo de falar a língua das mulheres e dos homens hoje. De falar a linguagem fora da Igreja, sim disto devemos ter medo. Não devemos ter medo de fala a linguagem das gentes. Não devemos ter medo de ouvir as questões, sejam elas quais forem, as questões não resolvidas, de ouvir as fragilidades, as incertezas: disso não devemos ter medo. Não há que ter medo de elaborar novos instrumentos: nos anos 1970 o Catecismo da Igreja Italiana era original e apreciado; Também os tempos atuais exigem inteligência e coragem para elaborar instrumentos atualizados que transmitam aos homens de hoje a riqueza e a alegria do querigma, a riqueza e a alegria de pertencer à Igreja. Terceiro ponto: catequese e comunidade. Neste ano marcado pelo isolamento e pelo sentimento de solidão causado pela pandemia, refletimos várias vezes sobre o sentimento de pertença que está na base de uma comunidade. O vírus cravou-se nos tecidos vivos dos nossos territórios, especialmente nos existenciais, alimentando medos, receios, desconfianças e incertezas. Colocou em xeque práticas e hábitos consolidados e assim leva-nos a repensar o nosso ser comunidade. Compreendemos, com efeito, que não podemos avançar sozinhos e que a única maneira de sairmos melhor da crise é sairmos juntos - ninguém se salva sozinho, sairmos juntos - abraçando a comunidade em que vivemos com maior convicção. Porque a comunidade não é um aglomerado de indivíduos, mas a família em que estamos inseridos, o lugar onde cuidamos uns dos outros, dos jovens para os idosos e dos idosos para os jovens, os de hoje e os que virão amanhã. Apenas se encontra a sua própria dignidade quando se descobre o sentido da comunidade. A catequese e o anúncio não podem deixar de colocar esta dimensão comunitária no centro. Este não é o momento para estratégias elitistas. A grande comunidade: o que é a grande comunidade? O santo povo fiel de Deus. Não se pode avançar fora do santo povo fiel de Deus, que - como diz o Concílio - é infalível no acreditar. Sempre com o povo santo de Deus. Por outro lado, procurar pertenças elitistas afasta-te do povo de Deus talvez com fórmulas sofisticadas; mas perdes aquela pertença à Igreja que é o santo povo fiel de Deus. É hora de sermos artesãos de comunidades abertas que saibam valorizar os talentos de cada um. É o tempo das comunidades missionárias, livres e desinteressadas, que não procuram destaque e vantagem, mas percorrem os caminhos das pessoas do nosso tempo, inclinando-se para os marginalizados. É o momento de comunidades que olham nos olhos dos jovens desapontados, recebem os forasteiros e dão esperança aos desencantados. É hora das comunidades dialogarem sem medo com quem tem ideias diferentes. É o momento das comunidades que, como o Bom Samaritano, sabem aproximar-se daqueles que a vida doeu, curar as suas feridas com compaixão. Não vos esqueçais desta palavra, compaixão. Quantas vezes no evangelho é dito de Jesus: "E ele teve compaixão", "ele teve compaixão". Como disse na Conferência Eclesial de Florença, desejo uma Igreja “cada vez mais próxima dos abandonados, dos esquecidos, dos imperfeitos. [...] Uma Igreja alegre com rosto de mãe, que compreende, acompanha, acaricia». O que então se referia então acerca do humanismo cristão também se aplica à catequese: «Afirma radicalmente a dignidade de cada pessoa como filho de Deus, estabelece uma fraternidade fundamental entre cada ser humano, ensina a compreender o trabalho, a habitar a criação como casa comum, oferece motivos de alegria e de humor, mesmo no meio de uma vida muitas vezes muito dura» (Discurso na V Conferência Nacional da Igreja Italiana, Florença, 10 de novembro de 2015). Já mencionei a Conferência de Florença. Passados cinco anos, a Igreja italiana deve retornar à Conferência de Florença e iniciar um processo de Sínodo nacional, comunidade por comunidade, diocese por diocese: este processo também será uma catequese. Na Conferência de Florença, o caminho a seguir neste Sínodo é sentido com precisão. Retomai-o agora. É o momento. E começai a caminhar. Queridos irmãos e irmãs, agradeço tudo o que fazeis. Convido-vos a continuar a rezar e a pensar criativamente numa catequese centrada no querigma, que olhe para o futuro das nossas comunidades, para que se enraízem cada vez mais no Evangelho, comunidades fraternas e inclusivas. Abençoo-vos e acompanho-vos. E vós, por favor, orai por mim: eu preciso disso. Obrigado!
Papa Francisco
30 de janeiro de 2021
Imagem: site do Vaticano 25.11.2020
Catequese - 23. Rezar na Liturgia
Na história da Igreja verificou-se repetidamente a tentação de praticar um cristianismo intimista, que não reconhece a importância espiritual dos ritos litúrgicos públicos. Muitas vezes, esta tendência reivindicou a presumível maior pureza de uma religiosidade que não dependesse de cerimónias exteriores, consideradas um fardo inútil ou prejudicial. O centro das críticas não era uma forma ritual particular, nem um determinado modo de celebrar, mas a própria liturgia, a forma litúrgica de rezar.
Com efeito, na Igreja é possível encontrar certas formas de espiritualidade que não souberam integrar adequadamente o momento litúrgico. Muitos fiéis, embora participassem assiduamente nos ritos, especialmente na Missa dominical, sorviam alimento para a sua fé e para a sua vida espiritual sobretudo de outras fontes, de tipo devocional.
Nas últimas décadas, houve muito progresso. A Constituição Sacrossanctum Concilium, do Concílio Vaticano II, representa o centro deste longo trajeto. Reafirma de modo completo e orgânico a importância da liturgia divina para a vida dos cristãos, que nela encontram a mediação objetiva exigida pelo facto de Jesus Cristo não ser uma ideia nem um sentimento, mas uma Pessoa viva, e o seu Mistério um acontecimento histórico. A oração dos cristãos passa por mediações concretas: a Sagrada Escritura, os Sacramentos, os ritos litúrgicos, a comunidade. Na vida cristã não prescindimos da esfera corpórea e material, porque em Jesus Cristo ela tornou-se o caminho da salvação. Poderíamos dizer que devemos rezar inclusive com o corpo: o corpo entra na oração.
Portanto, não existe espiritualidade cristã que não esteja enraizada na celebração dos mistérios sagrados. O Catecismo escreve: «A missão de Cristo e do Espírito Santo que, na liturgia sacramental da Igreja anuncia, atualiza e comunica o mistério da salvação, prossegue no coração de quem ora» (n. 2655). A liturgia, em si, não é apenas oração espontânea, mas algo cada vez mais original: é um ato que fundamenta toda a experiência cristã e, por conseguinte, também a oração. É acontecimento, é evento, é presença, é encontro. É um encontro com Cristo. Cristo faz-se presente no Espírito Santo através dos sinais sacramentais: disto, para nós cristãos, deriva a necessidade de participar nos mistérios divinos. Um cristianismo sem liturgia, ousaria dizer que talvez seja um cristianismo sem Cristo. Sem o Cristo total. Até no rito mais despojado, como o que alguns cristãos celebraram e celebram nos lugares de prisão, ou no escondimento de uma casa durante tempos de perseguição, Cristo está verdadeiramente presente e doa-se aos seus fiéis.
A liturgia, precisamente devido à sua dimensão objetiva, deve ser celebrada com fervor, para que a graça derramada no rito não se disperse, mas abranja a vida de cada pessoa. O Catecismo explica-o muito bem e diz assim: «A oração interioriza e assimila a liturgia, durante e depois da sua celebração» (ibidem). Muitas orações cristãs não provêm da liturgia, mas todas elas, se forem cristãs, pressupõem a liturgia, ou seja, a mediação sacramental de Jesus Cristo. Cada vez que celebramos um Batismo, ou consagramos o pão e o vinho na Eucaristia, ou ungimos o corpo de um enfermo com o Óleo Santo, Cristo está ali! É Ele que age e está presente como quando curava os membros fracos de um doente ou quando, na Última Ceia, entregou o seu testamento para a salvação do mundo.
A oração do cristão faz sua a presença sacramental de Jesus. O que nos é exterior torna-se parte de nós: a liturgia expressa isto também no gesto muito natural de comer. A Missa não pode ser somente “ouvida”: também a expressão “vou ouvir Missa” não é correta. A Missa não pode ser só ouvida, como se fôssemos apenas espetadores de algo que escorre sem nos envolver. A Missa é sempre celebrada, e não apenas pelo sacerdote que a preside, mas por todos os cristãos que a vivem. E o centro é Cristo! Todos nós, na diversidade dos dons e ministérios, nos unimos na sua ação, porque Ele, Cristo, é o Protagonista da liturgia.
Quando os primeiros cristãos começaram a viver o seu culto, fizeram-no atualizando os gestos e a palavras de Jesus, com a luz e a força do Espírito Santo, para que a sua vida, alcançada por esta graça, se tornasse sacrifício espiritual oferecido a Deus. Esta abordagem foi uma verdadeira “revolução”. Na Carta aos Romanos São Paulo escreve: «Exorto-vos, pois, irmãos, pelas misericórdias de Deus, a oferecer os vossos corpos em sacrifício vivo, santo, agradável a Deus: é este o vosso culto espiritual» (12, 1). A vida é chamada a tornar-se culto a Deus, mas isto não pode acontecer sem oração, especialmente a oração litúrgica. Que este pensamento nos ajude a todos quando vamos à Missa: vou rezar em comunidade, vou rezar com Cristo que está presente. Quando vamos à celebração de um Batismo, por exemplo, Cristo está lá, presente, que batiza. “Mas, Padre, esta é uma ideia, um modo de dizer”: não, não é um modo de dizer. Cristo está presente e na liturgia rezas com Cristo que está ao teu lado.
Papa Francisco
03.02.2021 - Catequese na audiência Geral
Imagem: site da Arquidiocese de BH
Catequese - 22. A oração com as Sagradas Escrituras
Hoje gostaria de me concentrar na oração que podemos fazer a partir de um trecho da Bíblia. As palavras da Sagrada Escritura não foram escritas para permanecer presas nos papiros, nos pergaminhos ou no papel, mas para serem recebidas por uma pessoa que reza, fazendo-as brotar no próprio coração. A palavra de Deus vai ao coração. O Catecismo afirma: «A leitura da Sagrada Escritura deve ser acompanhada de oração – a Bíblia não pode ser lida como um romance - para que seja possível o diálogo entre Deus e o homem» (n. 2653). Assim a oração te conduz, pois é um diálogo com Deus. Aquele versículo da Bíblia foi escrito também para mim, há muitos séculos, para me trazer uma palavra de Deus. Foi escrito para cada um de nós. Esta experiência acontece a todos os crentes: uma passagem da Escritura, ouvida muitas vezes, de repente um dia fala-me e ilumina uma situação que estou a viver. Mas é necessário que eu esteja presente nesse dia, no encontro com essa Palavra, que esteja ali, ouvindo a Palavra. Todos os dias Deus passa e lança uma semente no terreno da nossa vida. Não sabemos se hoje encontrará terra árida, silvas, ou terra fértil que faça crescer essa semente (cf. Mc 4, 3-9). Depende de nós, da nossa oração, do coração aberto com que nos aproximamos das Escrituras para que elas possam tornar-se para nós a Palavra viva de Deus. Deus passa, continuamente, através da Escritura. E repito o que disse na semana passada, citando Santo Agostinho: “Tenho medo do Senhor quando passa”. Por que ter medo? Que eu não o ouça, que não me aperceba que é o Senhor.
Através da oração realiza-se uma nova encarnação do Verbo. E nós somos os “tabernáculos” onde as palavras de Deus querem ser recebidas e guardadas, para poder visitar o mundo. Por esta razão, devemos aproximar-nos da Bíblia sem segundas intenções, sem a instrumentalizar. O crente não procura nas Sagradas Escrituras o apoio para a própria visão filosófica ou moral, mas porque espera um encontro; sabe que essas palavras foram escritas no Espírito Santo, e que por isso nesse mesmo Espírito devem ser acolhidas, devem ser compreendidas, para que o encontro se realize.
Incomoda-me quando ouço cristãos a recitar versículos da Bíblia como papagaios. “Oh, sim, o Senhor diz…, Ele assim o quer…”. Mas, com aquele versículo, encontraste-te com o Senhor? Não é apenas um problema de memória: é um problema de memória do coração, aquela que te abre para o encontro com o Senhor. E aquela palavra, aquele versículo, leva-te ao encontro com o Senhor.
Portanto, lemos as Escrituras para que elas “nos leiam”. E é uma graça ser capaz de se reconhecer nesta ou naquela personagem, nesta ou naquela situação. A Bíblia não é escrita para uma humanidade genérica, mas para nós, para mim, para ti, para homens e mulheres em carne e osso, homens e mulheres que têm nome e sobrenome, como eu, como tu. E a Palavra de Deus, impregnada do Espírito Santo, quando é recebida com um coração aberto, não deixa as situações como antes, nunca, muda alguma coisa. E esta é a graça e a força da Palavra de Deus.
A tradição cristã é rica de experiências e reflexões sobre a oração com a Sagrada Escritura. Em particular, afirmou-se o método da “lectio divina”, nascido num ambiente monástico mas agora praticado também por cristãos que frequentam as paróquias. Trata-se antes de mais de ler a passagem bíblica com atenção, mais ainda, eu diria com “obediência” ao texto, a fim de compreender o que ele significa em si mesmo. Em seguida entra-se em diálogo com a Escritura, para que aquelas palavras se tornem um motivo de meditação e oração: permanecendo sempre fiel ao texto, começo a perguntar-me o que ele “diz a mim”. Este é um passo delicado: não devemos resvalar para interpretações subjetivas, mas inserir-nos no sulco vivo da Tradição, que une cada um de nós à Sagrada Escritura. E o último passo da lectio divina é a contemplação. Aqui as palavras e os pensamentos dão lugar ao amor, como entre os noivos que por vezes se olham em silêncio. O texto bíblico permanece, mas como um espelho, como um ícone a ser contemplado. E assim tem-se o diálogo.
Através da oração, a Palavra de Deus vem habitar em nós e nós habitamos nela. A Palavra inspira bons propósitos e apoia a ação; dá-nos força, dá-nos serenidade, e até quando nos põe em crise, nos dá paz. Em dias “maus” e confusos, assegura ao coração um núcleo de confiança e amor que o protege dos ataques do maligno.
É assim que a Palavra de Deus se faz carne – permito-me usar esta expressão: faz-se carne - naqueles que a acolhem em oração. Em alguns textos antigos emerge a intuição de que os cristãos se identificam tão intimamente com a Palavra que, mesmo se todas as Bíblias do mundo fossem queimadas, um “molde” dela ainda poderia ser salvo através da marca que deixou na vida dos santos. Esta é uma bonita expressão.
A vida cristã é obra de obediência e ao mesmo tempo de criatividade. Um bom cristão deve ser obediente, mas deve ser criativo. Obediente porque ouve a Palavra de Deus; criativo, porque tem dentro o Espírito Santo que o impele a praticá-la, a anunciá-la. Jesus diz isto no final de um dos seus discursos proferidos em parábolas, com esta comparação: «Todo o escriba instruído acerca do reino dos céus é semelhante a um pai de família que tira coisas novas e velhas do seu tesouro» – o coração (Mt 13, 52). As Sagradas Escrituras são um tesouro inesgotável. Que o Senhor nos conceda, a todos nós, haurir delas cada vez mais através da oração. Obrigado.
Papa Francisco
Catequese na audiência geral 27.01.2021
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Catequese. A oração pela unidade dos cristãos
Nesta catequese centrar-me-ei na oração pela unidade dos cristãos. De fato, a semana de 18 a 25 de janeiro é dedicada em particular a isto, a invocar de Deus o dom da unidade a fim de superar o escândalo das divisões entre os crentes em Jesus. Depois da Última Ceia, Ele rezou pelos seus, «para que todos sejam um só» (Jo 17, 21). Foi a sua oração antes da Paixão, poderíamos dizer o seu testamento espiritual. Observamos, contudo, que o Senhor não ordenou aos discípulos a unidade. Nem lhes fez um discurso para motivar a sua necessidade. Não, Ele rezou ao Pai por nós, para que fôssemos um só. Isto significa que não somos suficientes, apenas com as nossas forças, para realizar a unidade. A unidade é, antes de mais, um dom, é uma graça a ser pedida com a oração.
Cada um de nós precisa dela. Com efeito, damo-nos conta de que não somos capazes de preservar a unidade nem sequer dentro de nós mesmos. O Apóstolo Paulo também sentiu um conflito dilacerante dentro de si: querer o bem e estar inclinado para o mal (cf. Rm 7, 19). Ele compreendeu que a raiz de tantas divisões à nossa volta - entre pessoas, na família, na sociedade, entre povos e até entre crentes - está dentro de nós. O Concílio Vaticano II afirma que «os desequilíbrios de que sofre o mundo atual estão ligados com aquele desequilíbrio fundamental que se radica no coração do homem. Porque no íntimo do próprio homem muitos elementos se combatem. [...] Sofre assim em si mesmo a divisão, da qual tantas e tão grandes discórdias se originam para a sociedade» (Gaudium et spes, 10). Portanto, a solução para as divisões não é opor-se a alguém, porque a discórdia gera mais discórdia. O verdadeiro remédio começa pelo pedir a Deus a paz, a reconciliação, a unidade.
Isto aplica-se antes de mais aos cristãos: a unidade só pode vir como fruto da oração. Os esforços diplomáticos e os diálogos académicos não são suficientes. Jesus sabia isto e abriu-nos o caminho através da oração. Deste modo, a nossa oração pela unidade é uma humilde mas confiante participação na oração do Senhor, o qual prometeu que cada oração feita em seu nome será ouvida pelo Pai (cf. Jo 15, 7). Neste ponto, podemos perguntar-nos: “Rezo pela unidade?”. É a vontade de Jesus, mas se revirmos as intenções pelas quais rezamos, provavelmente compreenderemos que rezamos pouco, talvez nunca, pela unidade dos cristãos. Mas a fé no mundo depende disto; com efeito, o Senhor pediu a unidade entre nós «para que o mundo creia» (Jo 17, 21). O mundo não acreditará porque o convenceremos com bons argumentos, mas se tivermos testemunhado o amor que nos une e nos torna próximos de todos.
Neste tempo de graves dificuldades, a oração é ainda mais necessária para que a unidade prevaleça sobre os conflitos. É urgente pôr de lado os particularismos a fim de promover o bem comum, e para isso o nosso bom exemplo é fundamental: é essencial que os cristãos continuem o caminho rumo à unidade plena e visível. Nas últimas décadas, graças a Deus, foram dados muitos passos em frente, mas é necessário perseverar no amor e na oração, sem desanimar e incansavelmente. Trata-se de um percurso que o Espírito Santo suscitou na Igreja, nos cristãos e em todos nós, e do qual nunca voltaremos atrás. Sempre em frente!
Rezar significa lutar pela unidade. Sim, lutar, porque o nosso inimigo, o diabo, como a própria palavra diz, é o divisor. Jesus pede a unidade no Espírito Santo, fazer unidade. O diabo divide sempre porque para ele é conveniente dividir. Ele insinua a divisão, em todo o lado e de todas as maneiras, enquanto o Espírito Santo faz convergir sempre em unidade. O diabo, em geral, não nos tenta com a alta teologia, mas com as fraquezas dos irmãos. Ele é astuto: amplia os erros e defeitos dos outros, semeia a discórdia, provoca a crítica e cria divisão. O caminho de Deus é outro: Ele aceita-nos como somos, ama-nos muito, mas ama-nos como somos e aceita-nos como somos; aceita-nos diferentes, aceita-nos pecadores, e impele-nos sempre para a unidade. Podemos examinar-nos e perguntar-nos se, nos locais onde vivemos, estamos a fomentar conflitos ou a lutar para crescer em unidade com os instrumentos que Deus nos deu: a oração e o amor. Ao contrário, alimenta-se a conflitualidade com o mexerico, sempre, falando mal dos outros. O mexerico é a arma mais à mão que o diabo tem para dividir a comunidade cristã, para dividir a família, para dividir os amigos, para dividir sempre. O Espírito Santo inspira-nos sempre a unidade.
O tema desta Semana de Oração refere-se precisamente ao amor: “Permanecei no meu amor e dareis muito fruto” (cf. Jo 15, 5-9). A raiz da comunhão é o amor de Cristo, que nos faz superar os preconceitos para vermos nos outros um irmão e uma irmã que devemos amar sempre. Deste modo descobrimos que os cristãos de outras confissões, com as suas tradições, com a sua história, são dons de Deus, são dons presentes nos territórios das nossas comunidades diocesanas e paroquiais. Comecemos a rezar por eles e, se possível, com eles. Desta forma, aprenderemos a amá-los e a apreciá-los. A oração, recorda-nos o Concílio, é a alma de todo o movimento ecuménico (cf. Unitatis redintegratio, 8). Portanto, que a oração seja o ponto de partida para ajudar Jesus a realizar o seu sonho: que todos sejam um só.
Papa Francisco
Catequese na audiência geral 20.01.2021
Catequese - 21. A oração de louvor
Continuemos a catequese sobre a oração, e hoje damos espaço à dimensão do louvor.
Inspiramo-nos numa passagem crítica da vida de Jesus. Depois dos primeiros milagres e da participação dos discípulos no anúncio do Reino de Deus, a missão do Messias sofre uma crise. João Batista duvida e faz com que lhe chegue esta mensagem – João encontra-se na prisão: «És tu aquele que há de vir, ou devemos esperar outro?» (Mt 11, 3). Ele sente a angústia de não saber se errou no anúncio. Na vida há sempre momentos escuros, momentos de noite espiritual, e João está a passar um momento como esse. Há hostilidade nas aldeias perto do lago, onde Jesus tinha realizado muitos sinais prodigiosos (cf. Mt 11, 20-24). Ora, precisamente naquele momento de desilusão, Mateus relata um acontecimento verdadeiramente surpreendente: Jesus não eleva ao Pai uma lamentação, mas um hino de júbilo: «Bendigo-te, ó Pai, Senhor do céu e da terra, porque escondeste estas coisas aos sábios e entendidos e as revelaste aos pequeninos» (Mt 11, 25). Isto é, em plena crise, em plena escuridão na alma de tantas pessoas, como João Batista, Jesus bendiz o Pai, Jesus louva o Pai. Mas, porquê?
Antes de mais, louva-o pelo que é: «Pai, Senhor do céu e da terra». Jesus rejubila-se no seu espírito porque sabe e sente que o seu Pai é o Deus do universo e, vice-versa, o Senhor de tudo o que existe é o Pai, “o meu Pai”. O louvor brota desta experiência de sentir-se o “filho do Altíssimo”. Jesus sente-se filho do Altíssimo.
E além disso Jesus louva o Pai porque prefere os pequeninos. É o que Ele próprio experimenta, pregando nas aldeias: os “entendidos” e os “sábios” permanecem desconfiados e fechados, fazem cálculos; enquanto os “pequeninos” abrem-se e acolhem a mensagem. Ela só pode ser a vontade do Pai, e Jesus regozija-se com isto. Também nós devemos regozijar-nos e louvar a Deus porque as pessoas humildes e simples aceitam o Evangelho. Rejubilo-me quando vejo estas pessoas simples, esta gente humilde que vai em peregrinação, que reza, canta, louva, gente à qual talvez faltam muitas coisas mas a humildade leva-as a louvar a Deus. No futuro do mundo e nas esperanças da Igreja há sempre os “pequeninos”: aqueles que não se consideram melhores do que os outros, que estão conscientes dos próprios limites e dos seus pecados, que não querem dominar os outros, que em Deus Pai se reconhecem todos irmãos.
Assim, naquele momento de aparente fracasso, no qual tudo é escuridão, Jesus reza, louvando o Pai. E a sua oração leva-nos, também a nós leitores do Evangelho, a julgar de um modo diferente as nossas derrotas pessoais, as situações em que não vemos claramente a presença e a ação de Deus, quando parece que o mal prevalece e não há maneira de o impedir. Jesus, que tanto recomendou a oração de súplica, precisamente no momento em que teria motivos para pedir explicações ao Pai, ao contrário passa a louvá-lo. Parece uma contradição, mas a verdade está nisto.
Para quem é útil o louvor? Para nós ou para Deus? Um texto da liturgia eucarística convida-nos a rezar a Deus do seguinte modo: «Não necessitais do nosso louvor, mas através de um dom do vosso amor chamais-nos a dar-vos graças; os nossos hinos de bênção não aumentam a vossa grandeza, mas obtêm para nós a graça que nos salva» (Missal Romano, Prefácio comum IV). Ao louvar somos salvos.
A prece de louvor é útil para nós. O Catecismo define-a assim: «Participa da bem-aventurança dos corações puros que o amam na fé, antes de o verem na glória» (n. 2639). Paradoxalmente, deve ser praticada não só quando a vida nos enche de felicidade, mas sobretudo nos momentos difíceis, nos momentos escuros quando o caminho é íngreme. Este é também o tempo do louvor, como Jesus que no momento escuro louva o Pai. Pois aprendemos que através daquela subida, daquele caminho difícil, daquela vereda cansativa, daquelas passagens desafiadoras, se consegue ver um novo panorama, um horizonte mais aberto. Louvar é como respirar oxigénio puro: purifica-te a alma, faz com que olhes para longe, não te aprisiona no momento difícil e escuro das dificuldades.
Há um grande ensinamento naquela oração que desde há oito séculos nunca deixou de palpitar, a que São Francisco compôs no final da sua vida: o “Cântico do irmão sol” ou “das criaturas”. O Pobrezinho não o compôs num momento de alegria, de bem-estar, mas, pelo contrário, no meio das dificuldades. Francisco estava quase cego e sentia na sua alma o peso de uma solidão que nunca tinha sentido antes: o mundo não mudou desde o início da sua pregação, ainda há aqueles que se deixam dilacerar por disputas e, além disso, ele ouve aproximar-se os passos da morte. Poderia ser o momento da desilusão, daquela extrema desilusão e a percepção do próprio fracasso. Mas naquele instante de tristeza, naquele momento de escuridão, Francisco reza. De que modo reza? «Louvado sejais, ó meu Senhor…». Reza louvando. Francisco louva a Deus por tudo, por todos os dons da criação e até pela morte, que com coragem chama “irmã”, “irmã morte”. Estes exemplos dos Santos, dos cristãos, também de Jesus, de louvar a Deus nos momentos difíceis, abrem-nos as portas de um caminho muito grande rumo ao Senhor e purificam-nos sempre. O louvor purifica sempre.
Os Santos e as Santas demonstram-nos que podemos louvar sempre, nos momentos bons e maus, pois Deus é o Amigo fiel. Este é o fundamento do louvor: Deus é o Amigo fiel, e o seu amor nunca falha. Ele está sempre ao nosso lado, espera-nos sempre. Alguém dizia: “É a sentinela que está próxima de ti e faz com que vás em frente com segurança”. Nos momentos difíceis e escuros, encontremos a coragem de dizer: “Bendito és tu, ó Senhor”. Louvar o Senhor. Isto far-nos-á bem.
Papa Francisco
Catequese na audiência geral 14.01.2021
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Catequese - 20. A oração de ação de graças
Estimados irmãos e irmãs, bom dia!
Hoje gostaria de meditar sobre a oração de ação de graças. Inspiro-me num episódio narrado pelo evangelista Lucas. Enquanto Jesus está a caminho, dez leprosos vão ao seu encontro e imploram: «Jesus, Mestre, tem piedade de nós!» (17, 13). Sabemos que para os doentes de lepra, o sofrimento físico era acompanhado de marginalização social e de marginalização religiosa. Eram marginalizados. Jesus não evita um encontro com eles. Muitas vezes vai além dos limites impostos pelas leis e toca o doente – que não se podia fazer - abraça-o, cura-o. Neste caso, não há contato. À distância, Jesus convida-os a apresentar-se aos sacerdotes (v. 14), que, segundo a lei, estavam encarregados de certificar a cura. Jesus não diz mais nada. Ouviu o seu pedido, ouviu o seu grito de piedade, e envia-os imediatamente aos sacerdotes.
Aqueles dez confiam n'Ele, não permanecem lá até ao momento de serem curados, não: confiam e partem imediatamente, e enquanto caminham, os dez são curados. Então, os sacerdotes poderiam ter verificado a sua cura e readmiti-los na vida normal. Mas aqui está o ponto mais importante: daquele grupo, apenas um, antes de ir ter com os sacerdotes, volta para agradecer a Jesus e louvar a Deus pela graça recebida. Só um, os outros nove continuam o caminho. E Jesus observa que aquele homem era samaritano, uma espécie de “herege” para os judeus daquela época. Jesus comenta: «Não houve quem voltasse para dar glória a Deus, senão este estrangeiro?» (17, 18). A narração é comovedora!
Esta narração, por assim dizer, divide o mundo em dois: os que não agradecem e os que o fazem; os que tomam tudo como se lhes fosse devido, e os que aceitam tudo como dom, como graça. O Catecismo escreve: «Qualquer acontecimento e qualquer necessidade podem transformar-se em oferenda de ação de graças» (n. 2638). A oração de ação de graças começa sempre a partir do reconhecer-se precedidos pela graça. Fomos pensados antes que aprendêssemos a pensar; fomos amados antes que aprendêssemos a amar; fomos desejados antes que brotasse um desejo no nosso coração. Se olharmos para a vida desta forma, então o “agradecimento” torna-se o motivo-guia dos nossos dias. Muitas vezes esquecemos até de dizer “obrigado”.
Para nós, cristãos, a ação de graças deu o nome ao Sacramento mais essencial que existe: a Eucaristia. Com efeito, a palavra grega significa exatamente isto: agradecimento. Como todos os crentes, os cristãos bendizem a Deus pelo dom da vida. Viver é, sobretudo, ter recebido a vida. Todos nós nascemos porque alguém desejou a vida para nós. E esta é apenas a primeira de uma longa série de dívidas que contraímos vivendo. Dívidas de gratidão. Na nossa existência, mais do que uma pessoa fitou-nos com um olhar puro, gratuitamente. Muitas vezes são educadores, catequistas, pessoas que desempenharam o seu papel além da medida exigida pelo dever. E eles fizeram surgir em nós a gratidão. A amizade é também um dom pelo qual devemos estar sempre gratos.
Este “obrigado”, que devemos pronunciar continuamente, este obrigado que o cristão partilha com todos, dilata-se no encontro com Jesus. Os Evangelhos atestam que a passagem de Jesus suscitava frequentemente alegria e louvor a Deus naqueles que o encontravam. As histórias de Natal são povoadas de orantes, cujos corações foram alargados pela vinda do Salvador. E também nós fomos chamados a participar neste imenso júbilo. Isto também é sugerido pelo episódio dos dez leprosos que foram curados. Naturalmente, todos eles ficaram felizes por ter recuperado a saúde, podendo assim sair daquela interminável quarentena forçada que os excluía da comunidade. Mas entre eles havia um que acrescentou alegria à alegria: além da cura, regozijou-se por ter encontrado Jesus. Não só está livre do mal, mas agora também tem a certeza de ser amado. Este é o núcleo: quando agradeces, expressas a certeza de seres amado. Este é um passo grande: ter a certeza de ser amado. É a descoberta do amor como a força que governa o mundo. Dante disse: o Amor «que move o sol e as outras estrelas» (Paraíso, XXXIII, 145). Já não somos viajantes que vagueiam por aqui e por ali, não: temos uma casa, habitamos em Cristo, e desta “morada” contemplamos o resto do mundo, e parece-nos infinitamente mais bonito. Somos filhos do amor, somos irmãos do amor. Somos homens e mulheres de graça.
Portanto, irmãos e irmãs, procuremos estar sempre na alegria do encontro com Jesus. Cultivemos a alegria. O diabo, ao contrário, depois de nos ter enganado – com qualquer tentação - deixa-nos sempre tristes e sozinhos. Se estivermos em Cristo, nenhum pecado nem ameaça nos pode impedir de continuar o nosso percurso com alegria, com os nossos numerosos companheiros de caminho.
Acima de tudo, não deixemos de agradecer: se formos portadores de gratidão, o mundo também se tornará melhor, talvez só um pouco, mas é suficiente para lhe transmitir um pouco de esperança. O mundo precisa de esperança e com a gratidão, com esta atitude de dizer obrigado, transmitimos um pouco de esperança. Tudo está unido, tudo está interligado, e cada um pode desempenhar a sua parte onde quer que esteja. O caminho para a felicidade é aquele que São Paulo descreveu no final de uma das suas cartas: «Orai sem cessar. Dai graças em todas as circunstâncias, pois a respeito de vós esta é a vontade de Deus, em Jesus Cristo. Não extingais o Espírito!» (1 Ts 5, 17-19). Não extingais o Espírito, bom programa de vida! Não extinguir o Espírito que temos dentro leva-nos à gratidão.
Papa Francisco
Catequese na audiência geral 30.12.2020
SOLENIDADE DO NATAL DO SENHOR
HOMILIA DO PAPA FRANCISCO
Nesta noite, cumpre-se a grande profecia de Isaías: «Um menino nasceu para nós, um filho nos foi dado» (Is 9, 5).
Um filho nos foi dado. Com frequência se ouve dizer que a maior alegria da vida é o nascimento duma criança. É algo de extraordinário, que muda tudo, desencadeia energias inesperadas e faz ultrapassar fadigas, incómodos e noites sem dormir, porque traz uma grande felicidade na posse da qual nada parece pesar. Assim é o Natal: o nascimento de Jesus é a novidade que nos permite renascer dentro, cada ano, encontrando n’Ele força para enfrentar todas as provações. Sim, porque Jesus nasce para nós: para mim, para ti, para todos e cada um de nós. A preposição «para» reaparece várias vezes nesta noite santa: «um menino nasceu para nós», profetizou Isaías; «hoje nasceu para nós o Salvador», repetimos no Salmo Responsorial; Jesus «entregou-Se por nós» (Tit 2, 14), proclamou São Paulo; e, no Evangelho, o anjo anunciou «hoje nasceu para vós um Salvador» (Lc 2, 11). Para mim, para vós…
Mas, esta locução «para nós» que nos quer dizer? Que o Filho de Deus, o Bendito por natureza, vem fazer-nos filhos benditos por graça. Sim, Deus vem ao mundo como filho para nos tornar filhos de Deus. Que dom maravilhoso! Hoje Deus deixa-nos maravilhados, ao dizer a cada um de nós: «Tu és uma maravilha». Irmã, irmão, não desanimes! Estás tentado a sentir-te como um erro? Deus diz-te: «Não é verdade! És meu filho». Tens a sensação de não estar à altura, temor de ser inapto, medo de não sair do túnel da provação? Deus diz-te: «Coragem! Estou contigo». Não to diz com palavras, mas fazendo-Se filho como tu e por ti, para te lembrar o ponto de partida de cada renascimento teu: reconhecer-te filho de Deus, filha de Deus. Este é o ponto de partida de qualquer renascimento. Este é o coração indestrutível da nossa esperança, o núcleo incandescente que sustenta a existência: por baixo das nossas qualidades e defeitos, mais forte do que as feridas e fracassos do passado, os temores e ansiedades face ao futuro, está esta verdade: somos filhos amados. E o amor de Deus por nós não depende nem dependerá jamais de nós: é amor gratuito. Esta noite não encontra outra explicação, senão na graça. Tudo é graça. O dom é gratuito, sem mérito algum da nossa parte, pura graça. Esta noite «manifestou-se – disse-nos São Paulo – a graça de Deus» (Tit 2, 11). Nada é mais precioso!
Um filho nos foi dado. O Pai não nos deu uma coisa qualquer, mas o próprio Filho unigénito, que é toda a sua alegria. Todavia, ao considerarmos a ingratidão do homem para com Deus e a injustiça feita a tantos dos nossos irmãos, surge uma dúvida: o Senhor terá feito bem em dar-nos tanto? E fará bem em confiar ainda em nós? Não estará Ele a sobrestimar-nos? Sim, sobrestima-nos; e fá-lo porque nos ama a preço da sua vida. Não consegue deixar de nos amar. É feito assim, tão diferente de nós. Sempre nos ama, e com uma amizade maior de quanta possamos ter a nós mesmos. É o seu segredo para entrar no nosso coração. Deus sabe que a única maneira de nos salvar, de nos curar por dentro, é amar-nos. Não há outra maneira! Sabe que só melhoramos acolhendo o seu amor incansável, que não muda, mas muda-nos a nós. Só o amor de Jesus transforma a vida, cura as feridas mais profundas, livra do círculo vicioso insatisfação, irritação e lamento.
Um filho nos foi dado. Na pobre manjedoura dum lúgubre estábulo, está precisamente o Filho de Deus. E aqui levanta-se outra questão: porque veio Ele à luz durante a noite, sem um alojamento digno, na pobreza e enjeitado, quando merecia nascer como o maior rei no mais lindo dos palácios? Porquê? Para nos fazer compreender até onde chega o seu amor pela nossa condição humana: até tocar com o seu amor concreto a nossa pior miséria. O Filho de Deus nasceu descartado para nos dizer que todo o descartado é filho de Deus. Veio ao mundo como vem ao mundo uma criança débil e frágil, para podermos acolher com ternura as nossas fraquezas. E para nos fazer descobrir uma coisa importante: como em Belém, também connosco Deus gosta de fazer grandes coisas através das nossas pobrezas. Colocou toda a nossa salvação na manjedoura dum estábulo, sem temer as nossas pobrezas. Deixemos que a sua misericórdia transforme as nossas misérias!
Eis o que quer dizer um filho nasceu para nós. Mas há ainda um «para» que o anjo disse aos pastores: «Isto servirá de sinal para vós: encontrareis um menino (…) deitado numa manjedoura» (Lc 2, 12). Este sinal – o Menino na manjedoura – é também para nós, para nos orientar na vida. Em Belém, que significa «casa do pão», Deus está numa manjedoura, como se nos quisesse lembrar que, para viver, precisamos d’Ele como de pão para a boca. Precisamos de nos deixar permear pelo seu amor gratuito, incansável, concreto. Mas quantas vezes, famintos de divertimento, sucesso e mundanidade, nutrimos a vida com alimentos que não saciam e deixam o vazio dentro! Disto mesmo Se lamentava o Senhor, pela boca do profeta Isaías: enquanto o boi e o jumento conhecem a sua manjedoura, nós, seu povo, não O conhecemos a Ele, fonte da nossa vida (cf. Is 1, 2-3). É verdade: insaciáveis de ter, atiramo-nos para muitas manjedouras vãs, esquecendo-nos da manjedoura de Belém. Esta manjedoura, pobre de tudo mas rica de amor, ensina que o alimento da vida é deixar-se amar por Deus e amar os outros. Dá-nos o exemplo Jesus: Ele, o Verbo de Deus, é infante; não fala, mas oferece a vida. Nós, ao contrário, falamos muito, mas frequentemente somos analfabetos em bondade.
Um filho nos foi dado. Quem tem uma criança pequena, sabe quanto amor e paciência são necessários. É preciso alimentá-la, cuidar dela, limpá-la, ocupar-se da sua fragilidade e das suas necessidades, muitas vezes difíceis de compreender. Um filho faz-nos sentir amados, mas ensina também a amar. Deus nasceu menino para nos impelir a cuidar dos outros. Os seus ternos gemidos fazem-nos compreender como tantos dos nossos caprichos são inúteis. E temos tantos! O seu amor desarmado e desarmante lembra-nos que o tempo de que dispomos não serve para nos lamentarmos, mas para consolar as lágrimas de quem sofre. Deus vem habitar perto de nós, pobre e necessitado, para nos dizer que, servindo aos pobres, amá-Lo-emos a Ele. Desde aquela noite, como escreveu uma poetisa, «a residência de Deus é próxima da minha. O mobiliário é o amor» (E. Dickinson, Poems, XVII).
Um filho nos foi dado. Sois Vós, Jesus, o Filho que me torna filho. Amais-me como sou, não como eu me sonho ser. Bem o sei! Abraçando-Vos, Menino da manjedoura, reabraço a minha vida. Acolhendo-Vos, Pão de vida, também eu quero dar a minha vida. Vós que me salvais, ensinai-me a servir. Vós que não me deixais sozinho, ajudai-me a consolar os vossos irmãos, porque, a partir desta noite – como Vós sabeis – são todos meus irmãos.
Papa Francisco 24.12.2020
Imagem: site do Vaticano
Catequese sobre o Natal
Estimados irmãos e irmãs, bom dia!
Nesta catequese, no período que antecede o Natal, gostaria de oferecer alguns pontos de reflexão em preparação para a celebração do Natal. Na Liturgia da Noite ressoará o anúncio do anjo aos pastores: «Não temais, eis que vos anuncio uma Boa Nova que será alegria para todo o povo: hoje nasceu-vos na Cidade de David um Salvador, que é Cristo Senhor. Isto servir-vos-á de sinal, achareis um recém-nascido envolto em faixas e posto numa manjedoura» (Lc 2, 10-12).
Imitando os pastores, também nós caminhamos espiritualmente para Belém, onde Maria deu à luz o Menino num estábulo, «pois - diz São Lucas - não havia para eles lugar na hospedaria» (2, 7). O Natal tornou-se uma festa universal e até quem não acredita sente o encanto deste evento. Contudo, os cristãos sabem que o Natal é um acontecimento decisivo, um fogo eterno que Deus acendeu no mundo, e não pode ser confundido com coisas efémeras. É importante que não seja reduzido a uma celebração meramente sentimental ou consumista. No domingo passado chamei a atenção sobre este problema, evidenciando que o consumismo nos sequestrou o Natal. Não: o Natal não se deve reduzir a festa unicamente sentimental ou consumista, rica de prendas e bons votos, mas pobre de fé cristã, e pobre também de humanidade. Portanto, é necessário refrear uma certa mentalidade mundana, incapaz de compreender o núcleo incandescente da nossa fé, que é o seguinte: «E o Verbo fez-se carne e habitou entre nós, e vimos a sua glória, a glória que o Filho unigénito recebe do seu Pai, cheio de graça e de verdade» (Jo 1, 14). Este é o núcleo do Natal, aliás: é a verdade do Natal, não há outra.
O Natal convida-nos a refletir, por um lado, sobre a dramaticidade da história, em que homens e mulheres, feridos pelo pecado, procuram incessantemente a verdade, vão em busca de misericórdia e de redenção; e, por outro, sobre a bondade de Deus, que veio ao nosso encontro para nos comunicar a Verdade que salva e para nos tornar participantes da sua amizade e da sua vida. Recebemos este dom de graça, é pura graça, sem o nosso mérito. Há um Santo Padre que diz: “Mas olhai deste lado, do outro, de lá: procurai o mérito e só encontrareis graça”. Tudo é graça, um dom de graça. Recebemos este dom de graça através da simplicidade e da humanidade do Natal, e ele pode remover dos nossos corações e das nossas mentes o pessimismo que hoje se difundiu ainda mais por causa da pandemia. Podemos superar esta sensação de desconcerto inquietador, sem nos deixarmos dominar pelas derrotas e fracassos, na consciência redescoberta de que aquele Menino humilde e pobre, escondido e indefeso, é o próprio Deus, que se fez homem para nós. O Concílio Vaticano II, numa célebre passagem da Constituição sobre a Igreja no mundo contemporâneo, diz-nos que este acontecimento se refere a cada um de nós: «Pela sua encarnação, Ele, o Filho de Deus, uniu-se de certo modo a cada homem. Trabalhou com mãos humanas, pensou com uma inteligência humana, agiu com uma vontade humana, amou com um coração humano. Nascido da Virgem Maria, tornou-se verdadeiramente um de nós, semelhante a nós em tudo, exceto no pecado» (Constituição Pastoral Gaudium et spes, 22). Mas Jesus nasceu há dois mil anos, e diz respeito a mim? – Sim, diz respeito a ti e a mim, a cada um de nós. Jesus é um de nós: Deus, em Jesus, é um de nós.
Esta realidade dá-nos muita alegria e coragem. Deus não nos desprezou, não olhou para nós de longe, não passou ao nosso lado, não sentiu repulsa da nossa miséria, não se vestiu com um corpo aparente, mas assumiu plenamente a nossa natureza e condição humana. Nada excluiu, exceto o pecado: a única coisa que Ele não tem. Toda a humanidade está n’Ele. Ele assumiu tudo o que somos, tal como somos. Isto é essencial para a compreensão da fé cristã. Refletindo sobre o seu caminho de conversão, Santo Agostinho escreve nas suas Confissões: «Ainda não tinha a humildade suficiente para possuir o meu Deus, o humilde Jesus, ainda não conhecia os ensinamentos da sua fraqueza» (Confissões VII, 8). E qual é a fraqueza de Jesus? A “fraqueza” de Jesus é um “ensinamento”! Porque nos revela o amor de Deus. O Natal é a festa do Amor encarnado, do amor nascido por nós em Jesus Cristo. Jesus Cristo é a luz dos homens que resplandece nas trevas, que dá sentido à existência humana e a toda a história.
Queridos irmãos e irmãs, que estas breves reflexões nos ajudem a celebrar o Natal com maior consciência. Mas há outra forma de preparação que quero lembrar, tanto a vós como a mim, e que está ao alcance de todos: meditar um pouco em silêncio diante do presépio. O presépio é uma catequese daquela realidade, do que foi feito naquele ano, naquele dia, que ouvimos no Evangelho. Por este motivo, no ano passado escrevi uma Carta, que nos fará bem reler. Intitula-se “Admirabile signum”, “Sinal admirável”. Na escola de São Francisco de Assis, podemos tornar-nos um pouco crianças, permanecer em contemplação da cena da Natividade, deixando que renasça em nós a admiração da forma “maravilhosa” como Deus quis vir ao mundo. Peçamos a graça da admiração: face a este mistério, a esta realidade tão terna, tão bela, tão próxima dos nossos corações, que o Senhor nos conceda a graça da admiração, para que O encontremos, para que nos aproximemos d'Ele, para que nos aproximemos de todos nós. Isto irá renascer em nós a ternura. Há dias, falando com alguns cientistas, comentava-se a inteligência artificial e os robôs... há robôs programados para tudo e para todos, e isto vai progredindo. E eu disse-lhes: “Mas o que nunca serão capazes de fazer os robôs?” Eles pensaram, deram sugestões, mas no final concordaram num ponto: a ternura. Isto os robôs não serão capazes de fazer. E é isto que Deus nos traz hoje: uma forma maravilhosa pela qual Deus quis vir ao mundo, o que reaviva a ternura em nós, a ternura humana que está próxima daquela de Deus. E hoje temos tanta necessidade de ternura, tanta necessidade de carícias humanas, face a tanta miséria! Se a pandemia nos obrigou a estar mais distantes, Jesus, no presépio, mostra-nos o caminho da ternura para estarmos próximos, para sermos humanos. Sigamos este caminho.
Feliz Natal!
Papa Francisco
Catequese na audiência geral 23.12.2020
Catequese - 19. A oração de intercessão
Amados irmãos e irmãs, bom dia!
Quem reza nunca deixa o mundo para trás. Se a oração não recolhe as alegrias e tristezas, as esperanças e angústias da humanidade, torna-se uma atividade “decorativa”, uma atitude superficial, teatral, uma atitude intimista. Todos precisamos de interioridade: de nos retirarmos para um espaço e um tempo dedicados ao nosso relacionamento com Deus. Mas isto não significa fugir à realidade. Na oração, Deus “toma-nos, abençoa-nos, e depois reparte-nos e oferece-nos”, pela fome de todos. Cada cristão é chamado a tornar-se, nas mãos de Deus, pão repartido e partilhado. Isto é, uma oração concreta, que não seja uma fuga.
Assim, homens e mulheres de oração procuram a solidão e o silêncio, não para não serem incomodados, mas para ouvir melhor a voz de Deus. Por vezes retiram-se do mundo, na intimidade do seu quarto, como Jesus recomendava (cf. Mt 6, 6), mas onde quer que estejam, mantêm sempre a porta do seu coração aberta: uma porta aberta para aqueles que rezam sem saber que estão a rezar; para aqueles que não rezam minimamente mas trazem dentro de si um grito abafado, uma invocação oculta; para aqueles que cometeram um erro e perderam o rumo... Qualquer pessoa pode bater à porta de um orante e encontrar nele ou nela um coração compassivo, que reza sem excluir ninguém. A oração é o nosso coração e a nossa voz, e faz-se coração e voz de muitas pessoas que não sabem rezar ou não rezam, ou não querem rezar ou estão impossibilitadas de o fazer: somos o coração e a voz destas pessoas, que se elevam até Jesus, ao Pai, somos intercessores. Na solidão quem ora – quer na solidão de muito tempo quer na solidão de meia hora – separa-se de tudo e de todos para encontrar tudo e todos em Deus. Assim o orante reza pelo mundo inteiro, carregando sobre os ombros as suas dores e os seus pecados. Reza por todos e por cada pessoa: é como se ele fosse a “antena” de Deus neste mundo. Em cada pobre que bate à porta, em cada pessoa que perdeu o sentido das coisas, aquele que reza vê o rosto de Cristo.
O Catecismo escreve: «Interceder, pedir a favor de outrem, é próprio, [...] dum coração conforme com a misericórdia de Deus» (n. 2635). Isto é belíssimo. Quando rezamos estamos em sintonia com a misericórdia de Deus: misericórdia em relação aos nossos pecados - que é misericordioso conosco - mas também misericórdia para com quantos pediram para rezar por eles, pelos quais queremos rezar em sintonia com o coração de Deus. Esta é a verdadeira oração. Em sintonia com a misericórdia de Deus, aquele coração misericordioso. «No tempo da Igreja, a intercessão cristã participa na de Cristo: é a expressão da comunhão dos santos» (ibid.). O que significa participar na intercessão de Cristo, quando intercedo por alguém ou rezo por alguém? Porque Cristo diante do Pai é intercessor, reza por nós, e ora mostrando ao Pai as chagas das suas mãos; porque Jesus fisicamente, com o seu corpo está perante o Pai. Jesus é o nosso intercessor, e rezar é fazer um pouco como Jesus: interceder em Jesus junto do Pai, pelos outros. E isto é muito bom.
A oração preocupa-se pelo homem. Simplesmente pelo homem. Aquele que não ama o irmão não reza seriamente. Pode-se dizer: em espírito de ódio não se pode rezar; em espírito de indiferença não se pode rezar. A oração só se dá em espírito de amor. Quem não ama finge que reza, ou pensa que reza, mas não reza, pois falta precisamente o espírito que é o amor. Na Igreja, aquele que conhece a tristeza ou a alegria do outro vai mais a fundo do que aquele que investiga os “sistemas máximos”. É por isso que existe uma experiência do humano em cada oração, porque as pessoas, por muitos erros que possam cometer, nunca devem ser rejeitadas nem descartadas.
Quando um crente, movido pelo Espírito Santo, reza pelos pecadores, não faz seleções, não emite juízos de condenação: reza por todos. E também reza por si. Nesse momento, ele sabe que nem sequer é muito diferente das pessoas por quem reza: sente-se pecador, entre os pecadores, e reza por todos. A lição da parábola do fariseu e do publicano é sempre viva e atual (cf. Lc 18, 9-14): não somos melhores do que qualquer outra pessoa, somos todos irmãos numa afinidade de fragilidade, de sofrimento e de pecado. Portanto, uma oração que podemos dirigir a Deus é esta: Senhor, nenhum vivente é justo na vossa presença (cf. Sl 143, 2) – assim diz o salmo: Senhor, nenhum vivente é justo na vossa presença, nenhum de nós: somos todos pecadores - somos todos devedores que têm contas a ajustar; não há ninguém que seja impecável aos teus olhos. Senhor tem piedade de nós. E com este espírito a oração é fecunda, pois vamos com humildade diante de Deus rezar por todos. Ao contrário, o fariseu rezava de maneira soberba: “Dou-te graças, Senhor, porque não sou como os pecadores; sou justo, faço sempre…”. Esta não é oração: é olhar-se no espelho, para a própria realidade, olhar-se no espelho maquilhado pela soberba.
O mundo avança graças a esta cadeia de orantes que intercedem, e que na sua maioria são desconhecidos... mas não a Deus! Há muitos cristãos desconhecidos que, em tempos de perseguição, puderam repetir as palavras de nosso Senhor: «Pai, perdoa-lhes, pois não sabem o que fazem» (Lc 23, 34).
O bom pastor permanece fiel mesmo perante a constatação do pecado do próprio povo: o bom pastor continua a ser pai mesmo quando os filhos se afastam e o abandonam. Persevera no serviço de pastor até perante aqueles que o levam a sujar as mãos; não fecha o coração a quem talvez o tenha feito sofrer.
A Igreja, em todos os seus membros, tem a missão de praticar a oração de intercessão, intercede pelos outros. Em particular, é dever de todos aqueles que desempenham um papel de responsabilidade: pais, educadores, ministros ordenados, superiores de comunidades... Tal como Abraão e Moisés, devem por vezes “defender” perante Deus as pessoas que lhes foram confiadas. Na realidade, trata-se de olhar para elas com os olhos e o coração de Deus, com a sua mesma invencível compaixão e ternura. Rezar com ternura pelos outros.
Irmãos e irmãs, somos todos folhas da mesma árvore: cada desprendimento lembra-nos a grande piedade que devemos nutrir, na oração, uns pelos outros. Rezemos uns pelos outros: far-nos-á bem e fará bem a todos. Obrigado!
Papa Francisco
Catequese na audiência geral 16.12.2020
Catequese - 18. A oração de súplica
Continuemos com as nossas reflexões sobre a oração. A oração cristã é totalmente humana - rezamos como pessoas humanas, como somos - inclui louvor e súplica. Com efeito, quando Jesus ensinou os seus discípulos a rezar, fê-lo com o “Pai-Nosso” para que nos colocássemos com Deus numa relação de confiança filial e lhe fizéssemos todos os nossos pedidos. Imploramos a Deus os dons mais elevados: a santificação do seu nome entre os homens, a vinda do seu senhorio, a realização da sua vontade de bem em relação ao mundo. O Catecismo recorda: «Há uma hierarquia nas petições: primeiro, o Reino; depois, tudo quanto é necessário para o acolher e para cooperar com a sua vinda» (n. 2632). Mas no “Pai-Nosso” rezamos também pelos dons mais simples, pelas dádivas mais comuns, tais como o “pão nosso de cada dia” - que também significa saúde, casa, trabalho, coisas do dia a dia; e que significa inclusive a Eucaristia, necessária para a vida em Cristo - tal como rezamos pelo perdão dos pecados - que é uma coisa diária; precisamos sempre de perdão - e portanto de paz nas nossas relações; e por fim, que nos ajude nas tentações e nos liberte do mal.
Pedir, suplicar. Isto é muito humano! Ouçamos novamente o Catecismo: «É pela oração de petição que traduzimos a consciência da nossa relação com Deus: enquanto criaturas, não somos a nossa origem, nem donos das adversidades, nem somos o nosso fim último; mas também, sendo pecadores, sabemos, como cristãos, que nos afastamos do nosso Pai. A petição é já um regresso a Ele» (n. 2629).
Se alguém se sente mal por ter feito coisas ruins - é um pecador - quando recita o Pai-Nosso, já está a aproximar-se do Senhor. Por vezes podemos acreditar que não precisamos de nada, que nos bastamos nós próprios e que vivemos em completa autossuficiência. Às vezes isto acontece! Mas mais cedo ou mais tarde esta ilusão desaparece. O ser humano é uma invocação, que por vezes se torna um grito, muitas vezes reprimido. A alma assemelha-se a uma terra árida e sedenta, como diz o Salmo (cf. 63, 2). Todos vivemos, num ou noutro momento da nossa existência, o tempo da melancolia ou da solidão. A Bíblia não hesita em mostrar a condição humana marcada pela doença, injustiça, traição de amigos, ou ameaça de inimigos. Por vezes parece que tudo se desmorona, que a vida vivida até agora tem sido em vão. E nestas situações aparentemente sem esperança, só há uma saída: o grito, a oração: «Senhor, ajuda-me!». A oração abre vislumbres de luz na escuridão mais espessa. «Senhor, ajuda-me!». Isto abre o caminho, abre o caminho.
Nós, seres humanos, partilhamos este apelo de ajuda com toda a criação. Não somos os únicos que “oramos” neste imenso universo: cada fragmento da criação traz consigo o desejo de Deus. E São Paulo expressou-o deste modo. Diz assim: «Sabemos que toda a criação geme e sofre as dores de parto até ao presente. Não só ela, mas também nós, que temos as primícias do Espírito, gememos em nós mesmos» (Rm 8, 22-23). Em nós ressoa o gemido multiforme das criaturas: das árvores, das rochas, dos animais... Tudo anseia pelo seu cumprimento. Tertuliano escreveu: «Todas as criaturas rezam, os animais e as feras rezam e dobram os joelhos; quando saem dos estábulos ou das tocas, levantam a cabeça para o céu e não permanecem com a boca fechada, os seus gritos ressoam de acordo com os seus hábitos. E também as aves, assim que levantam voo, sobem rumo ao céu e abrem as asas como se fossem mãos em forma de cruz, chilreando algo que se parece com a oração» (De oratione, XXIX). Esta é uma expressão poética para comentar o que diz São Paulo,“que toda a criação geme, reza”. Mas somos os únicos a rezar conscientemente, a saber que nos voltamos para o Pai, e entramos em diálogo com o Pai.
Portanto, não nos devemos escandalizar quando sentimos necessidade de rezar, não nos envergonhemos. E especialmente quando estamos em necessidade, peçamos. Jesus falando de um homem desonesto, que deve prestar contas ao seu senhor, diz o seguinte: “De mendigar, tenho vergonha”. E muitos têm este sentimento: temos vergonha de pedir; temos vergonha de pedir ajuda, de pedir a alguém que nos ajude a alcançar um objetivo, e também temos vergonha de pedir a Deus. Não devemos sentir vergonha de rezar e dizer: “Senhor, preciso disto”, “Senhor, enfrento esta dificuldade”, “Ajuda-me!”. É o grito do coração a Deus que é Pai. E devemos aprender a fazer isto também em tempos felizes; dar graças a Deus por tudo o que nos é concedido, e não considerar nada garantido ou devido: tudo é graça. O Senhor dá-nos sempre, sempre, e tudo é graça, tudo. A graça de Deus. No entanto, não sufoquemos a súplica que surge espontaneamente em nós. A oração de pedir anda de mãos dadas com a aceitação do nosso limite e da nossa criaturalidade. Até se pode não a acreditar em Deus, mas é difícil não acreditar na oração: ela simplesmente existe; apresenta-se-nos como um grito; e todos temos de lidar com esta voz interior que pode permanecer em silêncio durante muito tempo, mas um dia acorda e grita.
Irmãos e irmãs, sabemos que Deus vai responder. Não há nenhum orante no Livro dos Salmos que eleve a sua lamentação e não seja ouvido. Deus responde sempre: hoje, amanhã, mas Ele responde sempre, de um modo ou de outro. Ele responde sempre. A Bíblia repete-o inúmeras vezes: Deus ouve o grito de quem o invoca. Até os nossos pedidos hesitantes, que permanecem no fundo do coração, que também temos vergonha de expressar, o Pai ouve-os e quer conceder-nos o Espírito Santo, que anima cada oração e transforma tudo. É uma questão de paciência, sempre, suportar a espera. Agora estamos no tempo do Advento, um tempo típico de espera do Natal. Estamos à espera. Vê-se bem isto. Mas também toda a nossa vida está à espera. E a oração está sempre à espera, porque sabemos que o Senhor vai responder. Até a morte treme quando um cristão reza, pois sabe que cada pessoa que reza tem um aliado mais forte do que ela: o Senhor Ressuscitado. A morte já foi derrotada em Cristo, e chegará o dia em que tudo será definitivo, e ela não desafiará mais a nossa vida nem a nossa felicidade.
Aprendamos a estar à espera do Senhor. O Senhor vem visitar-nos, não só nestas grandes festas - Natal, Páscoa - mas o Senhor visita-nos todos os dias na intimidade do nosso coração, se estivermos à espera. E muitas vezes não percebemos que o Senhor está próximo, que Ele bate à nossa porta e deixamo-lo passar. “Tenho medo de Deus quando passa; tenho medo que Ele passe e eu não repare”, dizia Santo Agostinho. E o Senhor passa, o Senhor vem, o Senhor bate à porta. Mas se os vossos ouvidos estiverem cheios de outros ruídos, não ouvirão o chamamento do Senhor.
Irmãos e irmãs, permanecer à espera: nisto consiste a oração!
Papa Francisco
Catequese na audiência geral 09.12.2020
Catequese - 17. A bênção
Hoje refletimos sobre uma dimensão essencial da oração: a bênção. Continuemos as reflexões sobre a oração. Nas narrações da criação (cf. Gn 1-2) Deus abençoa continuamente a vida, sempre. Abençoa os animais (1, 22), abençoa o homem e a mulher (1, 28), e no final abençoa o sábado, dia de descanso e de fruição de toda a criação (2, 3). É Deus quem abençoa. Nas primeiras páginas da Bíblia, é uma repetição contínua de bênçãos. Deus abençoa, mas também os homens abençoam, e depressa descobre-se que a bênção possui uma força especial, que acompanha o destinatário ao longo da vida e dispõe o coração humano a deixar-se mudar por Deus (Conc. Ecum. Vat. II, Const. Sacrosanctum concilium, 61).
Portanto, no início do mundo há Deus que “bendiz”, abençoa, bendiz. Ele vê que cada obra das suas mãos é boa e bela, e quando chega ao homem e se cumpre a criação, Ele reconhece que é «muito boa» (Gn 1, 31). Pouco tempo depois, aquela beleza que Deus imprimiu na sua obra será alterada e o ser humano tornar-se-á uma criatura degenerada, capaz de difundir o mal e a morte no mundo; mas jamais nada poderá apagar a primeira marca de Deus, uma marca de bondade que Deus colocou no mundo, na natureza humana, em todos nós: a capacidade de abençoar e o facto de sermos abençoados. Deus não errou com a criação, nem com a criação do homem. A esperança do mundo reside completamente na bênção de Deus: Ele continua a amar-nos, Ele primeiro, como diz o poeta Péguy, (Le porche du mystère de la deuxième vertu, 1ª ed. 1911. Ed. Port., Os portais do mistério da segunda virtude, Edições Paulinas, Portugal [2014]) continua a esperar o nosso bem.
A grande bênção de Deus é Jesus Cristo, é o grande dom de Deus, o seu Filho. É uma bênção para toda a humanidade, é uma bênção que nos salvou a todos. Ele é a Palavra eterna com a qual o Pai nos abençoou, «quando éramos ainda pecadores» (Rm 5, 8) diz São Paulo: Palavra que se fez carne e foi oferecida por nós na cruz.
São Paulo proclama com comoção o desígnio de amor de Deus e diz assim: «Bendito seja Deus, Pai de nosso Senhor Jesus Cristo, que do alto do céu nos abençoou com toda a bênção espiritual em Cristo e nos escolheu nele antes da criação do mundo, para sermos santos e irrepreensíveis, diante dos seus olhos. No seu amor predestinou-nos para sermos adotados como filhos seus por Jesus Cristo, segundo o beneplácito da sua livre vontade, para fazer resplandecer a sua maravilhosa graça, que nos foi concedida por Ele no Amado» (Ef 1, 3-6). Não há pecado que possa cancelar completamente a imagem de Cristo presente em cada um de nós. Nenhum pecado pode cancelar aquela imagem que Deus nos concedeu. A imagem de Cristo. Pode desfigurá-la, mas não a pode subtrair à misericórdia de Deus. Um pecador pode permanecer nos seus erros por muito tempo, mas Deus é paciente até ao fim, esperando que no final aquele coração se abra e mude. Deus é como um bom pai e como uma boa mãe, também Ele é uma boa mãe: nunca deixam de amar o seu filho, por mais que ele possa errar, sempre. Faz-me lembrar as muitas vezes que vi pessoas na fila para entrar na prisão. Tantas mães que esperam na fila para entrar e ver o seu filho na prisão: não deixam de amar o seu filho e sabem que as pessoas que passam no autocarro pensam “Ah, esta é a mãe do prisioneiro”. Contudo, não sentem vergonha, ou melhor, sentem vergonha, mas ficam ali, pois o filho é mais importante do que a vergonha. Portanto, somos mais importantes para Deus do que todos os pecados que podemos cometer, porque Ele é pai, Ele é mãe, Ele é puro amor, Ele abençoou-nos para sempre. E Ele nunca deixará de nos abençoar.
Uma forte experiência é ler estes textos bíblicos de bênção numa prisão, ou numa comunidade de recuperação. Fazer com que as pessoas que permanecem abençoadas apesar dos seus graves erros, sintam que o Pai celeste continua a amá-las e espera que elas finalmente se abram ao bem. Se até os seus parentes mais próximos os abandonaram porque agora são considerados irrecuperáveis, para Deus continuam a ser sempre filhos. Deus não pode cancelar em nós a imagem de filho, cada um de nós é filho, é filha. Às vezes acontecem milagres: homens e mulheres renascem. Porque encontram a bênção que os unge como filhos. Pois a graça de Deus muda a vida: aceita-nos como somos, mas nunca nos deixa como somos.
Pensemos no que Jesus fez com Zaqueu (cf. Lc 19, 1-10), por exemplo. Todos viam nele o mal; ao contrário, Jesus vê nele um vislumbre de bem, e dali, da sua curiosidade em ver Jesus, faz passar a misericórdia que salva. Assim, mudou primeiro o coração e depois a vida de Zaqueu. Nas pessoas menosprezadas e rejeitadas, Jesus via a bênção indelével do Pai. Zaqueu é um pecador público, ele praticou muitas ações más, mas Jesus via aquele sinal indelével da bênção do Pai e por isso teve compaixão. Aquela frase que se repete tanto no Evangelho, “teve compaixão”, e aquela compaixão leva Jesus a ajudá-lo e a mudar o seu coração. Mais ainda, chegou a identificar-se com cada pessoa em necessidade (cf. Mt 25, 31-46). No trecho do “protocolo” final sobre o qual seremos todos julgados, Mateus 25, Jesus diz: “Tive fome, estava nu, estava na prisão, estava no hospital, estava ali...”.
A Deus que abençoa, nós também respondemos abençoando: - Deus ensinou-nos a abençoar e nós devemos abençoar - é a oração de louvor, de adoração, de ação de graças. O Catecismo escreve: «A oração de bênção é a resposta do homem aos dons de Deus: uma vez que Deus abençoa, o coração do homem pode responder, bendizendo Aquele que é a fonte de toda a bênção» (n. 2626). A oração é alegria e gratidão. Deus não esperou que nos convertêssemos para começar a amar-nos, mas fê-lo muito antes, quando ainda estávamos no pecado.
Não podemos só abençoar este Deus que nos abençoa, devemos abençoar tudo n'Ele, todo o povo, abençoar Deus e abençoar os irmãos, abençoar o mundo: esta é a raiz da mansidão cristã, a capacidade de se sentir abençoado e a capacidade de abençoar. Se todos fizéssemos isto, certamente não haveria guerras. Este mundo precisa de bênção e nós podemos dar a bênção e receber a bênção. O Pai ama-nos. E tudo o que nos resta é a alegria de o abençoar e a alegria de lhe agradecer, e de aprender com Ele a não amaldiçoar, mas a abençoar. E aqui apenas uma palavra para as pessoas que estão habituadas a amaldiçoar, as pessoas que têm sempre na boca, até no coração, uma palavra negativa, uma maldição. Cada um de nós pode pensar: tenho o hábito de amaldiçoar desta maneira? E peçamos ao Senhor a graça de mudar este hábito porque temos um coração abençoado e de um coração abençoado a maldição não pode sair. Que o Senhor nos ensine a nunca amaldiçoar, mas a abençoar.
Papa Francisco
Catequese na audiência geral 02.12.2020
Catequese - 16. A oração da Igreja nascente
Os primeiros passos da Igreja no mundo foram cadenciados pela oração. Os escritos apostólicos e a grande narração dos Atos dos Apóstolos restituem-nos a imagem de uma Igreja a caminho, de uma Igreja ativa, mas que encontra nas reuniões de oração a base e o ímpeto para a ação missionária. A imagem da Comunidade primitiva de Jerusalém é um ponto de referência para todas as outras experiências cristãs. No Livro dos Atos, Lucas escreve: «Eles perseveravam na doutrina dos apóstolos, nas reuniões em comum, na fração do pão e nas orações» (2, 42). A comunidade persevera na oração.
Aqui encontramos quatro caraterísticas essenciais da vida eclesial: primeira, a escuta do ensinamento dos apóstolos; segunda, a salvaguarda da comunhão recíproca; terceira, a fração do pão; e quarta, a oração. Elas lembram-nos que a existência da Igreja tem sentido, se permanecer firmemente unida a Cristo, isto é, na comunidade, na sua Palavra, na Eucaristia e na oração. É o modo de nos unirmos a Cristo. A pregação e a catequese dão testemunho das palavras e dos gestos do Mestre; a busca constante da comunhão fraterna preserva dos egoísmos e dos particularismos; a fração do pão realiza o sacramento da presença de Jesus no meio de nós: Ele nunca estará ausente, na Eucaristia é precisamente Ele, Ele vive e caminha conosco. E por fim, a oração, que é o espaço do diálogo com o Pai, através de Cristo no Espírito Santo.
Na Igreja, tudo o que cresce fora destas “coordenadas” está desprovido de fundamento. Para discernir uma situação devemos perguntar-nos como, nesta situação, existem estas quatro coordenadas: a pregação, a busca constante da comunhão fraterna - a caridade - a fração do pão - ou seja, a vida eucarística - e a oração. Cada situação deve ser avaliada à luz destas quatro coordenadas. O que não entrar nestas coordenadas está desprovido de eclesialidade, não é eclesial. É Deus quem faz a Igreja, não o clamor das obras. A Igreja não é um mercado; a Igreja não é um grupo de empresários que vão em frente com este novo empreendimento. A Igreja é obra do Espírito Santo, que Jesus nos enviou para nos congregar. A Igreja é precisamente a obra do Espírito na comunidade cristã, na vida comunitária, na Eucaristia, na oração, sempre. E tudo o que cresce fora destas coordenadas está sem fundamento, é como uma casa construída sobre a areia (cf. Mt 7, 24-27). É Deus quem faz a Igreja, não o clamor das obras. É a palavra de Jesus que enche os nossos esforços de significado. É na humildade que se constrói o futuro do mundo.
Às vezes, sinto grande tristeza quando vejo alguma comunidade que, com boa vontade, comete um erro porque pensa em fazer a Igreja com reuniões, como se fosse um partido político: a maioria, a minoria, o que pensa este, ele, o outro... “É como um Sínodo, um caminho sinodal que devemos percorrer”. Pergunto-me: onde está o Espírito Santo? Onde está a oração? Onde está o amor comunitário? Onde está a Eucaristia? Sem estas quatro coordenadas, a Igreja torna-se uma sociedade humana, um partido político - maioritário, minoritário - as mudanças são feitas como se fosse uma empresa, pela maioria ou minoria... Mas não há Espírito Santo. E a presença do Espírito Santo é garantida precisamente por estas quatro coordenadas. Para avaliar uma situação, se é eclesial ou não, perguntemo-nos se existem estas quatro coordenadas: a vida comunitária, a oração, a Eucaristia... [a pregação], como se desenvolve a vida com estas quatro coordenadas. Se faltar isto, faltará o Espírito, e se faltar o Espírito, seremos uma bonita associação humanitária, de beneficência, muito bem, até um partido, digamos assim, eclesial, mas não há Igreja. E é por isso que a Igreja não pode crescer através destas coisas: não cresce por proselitismo, como qualquer empresa, cresce por atração. E quem move a atração? O Espírito Santo. Nunca esqueçamos esta expressão de Bento XVI: “A Igreja não cresce por proselitismo, cresce por atração”. Se faltar o Espírito Santo, que atrai para Jesus, ali não haverá Igreja alguma. Bem, haverá um bom clube de amigos, com boas intenções, mas não haverá Igreja, não haverá sinodalidade.
Lendo os Atos dos Apóstolos, descobrimos que o poderoso motor da evangelização são as reuniões de oração, onde aqueles que participam experimentam diretamente a presença de Jesus e são tocados pelo Espírito. Os membros da primeira comunidade - mas isto é sempre verdade, também para nós, hoje - compreendem que a história do encontro com Jesus não parou no momento da Ascensão, mas continua na sua vida. Narrando o que o Senhor disse e fez - a escuta da Palavra - rezando para entrar em comunhão com Ele, tudo se torna vivo. A oração infunde luz e calor: o dom do Espírito faz nascer neles o fervor.
A este respeito, o Catecismo tem uma expressão muito densa. Diz assim: «O Espírito Santo [...] recorda Cristo à sua Igreja orante, também a conduz para a verdade integral e suscita formulações novas que exprimirão o insondável mistério de Cristo operante na vida, sacramentos e missão da Igreja» (n. 2625). Eis a obra do Espírito na Igreja: recordar Jesus. O próprio Jesus disse-o: Ele ensinar-vos-á e recordar-vos-á. A missão consiste em recordar Jesus, mas não como exercício mnemónico. Percorrendo os caminhos da missão, os cristãos recordam Jesus quando o tornam novamente presente; e dele, do seu Espírito, recebem o “impulso” para ir, proclamar e servir. Na oração, o cristão mergulha no mistério de Deus que ama cada homem, aquele Deus que deseja que o Evangelho seja pregado a todos. Deus é Deus para todos, e em Jesus todos os muros de separação foram definitivamente abatidos: como diz São Paulo, Ele é a nossa paz, ou seja, «Ele, que de dois povos fez um só» (Ef 2, 14). Jesus realizou a unidade.
Assim, a vida da Igreja primitiva é ritmada por uma sucessão contínua de celebrações, convocações, tempos de oração quer comunitária quer pessoal. E é o Espírito que dá força aos pregadores que se põem a caminho, e que por amor a Jesus sulcam os mares e enfrentam perigos, submetendo-se a humilhações.
Deus doa amor, Deus pede amor. Esta é a raiz mística de toda a vida crente. Os primeiros cristãos em oração, mas também nós que viemos muitos séculos mais tarde, todos vivemos a mesma experiência. O Espírito anima tudo. E qualquer cristão que não tiver medo de dedicar tempo à oração, pode fazer próprias as palavras do apóstolo Paulo: «A minha vida presente, na carne, vivo-a na fé no Filho de Deus, que me amou e se entregou por mim» (Gl 2, 20). A oração torna-nos conscientes disto. Só no silêncio da adoração experimentamos toda a verdade destas palavras. Temos que retomar o sentido da adoração. Adorar, adorar Deus, adorar Jesus, adorar o Espírito. O Pai, o Filho e o Espírito: adorar. Em silêncio! A prece da adoração é a oração que nos faz reconhecer Deus como início e fim de toda a história. E esta oração é o fogo vivo do Espírito que dá força ao testemunho e à missão. Obrigado!
Papa Francisco
Imagem: site do Vaticano
Catequese na audiência geral 25.11.2020
Catequese - 15. A Virgem Maria, mulher orante
No nosso caminho de catequeses sobre a oração, hoje encontramos a Virgem Maria como Mulher orante. Nossa Senhora rezava. Quando o mundo ainda não a conhece, quando é uma simples donzela, noiva de um homem da casa de David, Maria reza. Podemos imaginar a jovem de Nazaré, recolhida em silêncio, em diálogo contínuo com Deus, que em breve lhe teria confiado a sua missão. Ela já é cheia de graça e imaculada, desde a concepção, mas ainda nada sabe sobre a sua vocação surpreendente e extraordinária, e sobre o mar tempestuoso que terá de sulcar. Uma coisa é certa: Maria pertence ao grande exército dos humildes de coração, que os historiadores oficiais não incluem nos seus livros, mas com quem Deus preparou a vinda do seu Filho.
Maria não governa autonomamente a sua vida: espera que Deus tome as rédeas do seu caminho e a guie para onde Ele quer. É dócil, e com esta sua disponibilidade predispõe os grandes acontecimentos que envolvem Deus no mundo. O Catecismo recorda-nos a sua presença constante e atenciosa no desígnio benévolo do Pai e ao longo da vida de Jesus (cf. CIC, 2617-2618).
Maria encontra-se em oração, quando o arcanjo Gabriel lhe vai levar o anúncio a Nazaré. O seu “Eis-me!”, pequeno e imenso, que naquele momento faz saltar de alegria toda a criação, na história da salvação tinha sido precedido por muitos outros “eis-me!”, por muitas obediências confiantes, por tantas disponibilidades à vontade de Deus. Não há melhor maneira de rezar do que colocar-se, como Maria, em atitude de abertura, de coração aberto a Deus: “Senhor, o que Tu quiseres, quando Tu quiseres e como Tu quiseres!”. Ou seja, o coração aberto à vontade de Deus. E Deus responde sempre. Quantos fiéis vivem assim a sua oração! Quem é mais humilde de coração, reza assim: digamos com humildade essencial; com humildade simples: “Senhor, o que Tu quiseres, quando Tu quiseres e como Tu quiseres!”. Reza assim, sem se zangar porque os dias estão cheios de problemas, mas indo ao encontro da realidade e consciente de que é no amor humilde, no amor oferecido em cada situação, que nos tornamos instrumentos da graça de Deus. Senhor, o que Tu quiseres, quando Tu quiseres e como Tu quiseres! Uma oração simples, mas que consiste em pôr a nossa vida nas mãos do Senhor: que Ele nos guie! Todos nós podemos orar desta forma, quase sem palavras.
A oração sabe acalmar a inquietação: mas nós estamos inquietos, queremos sempre as coisas antes de as pedirmos, e queremo-las imediatamente. Esta inquietação fere-nos, e a oração sabe acalmar a inquietação, sabe transformá-la em disponibilidade. Quando estou inquieto, rezo e a oração abre o meu coração, tornando-me disponível à vontade de Deus. Nos poucos instantes da Anunciação, a Virgem Maria soube rejeitar o medo, embora tenha previsto que o seu “sim” lhe teria causado provações muito duras. Se na oração compreendermos que cada dia concedido por Deus é uma chamada, então dilataremos o coração e acolheremos tudo. Aprende-se a dizer: “O que quiseres, Senhor. Promete-me apenas que estarás presente em cada passo do meu caminho”. Isto é importante: pedir ao Senhor a sua presença em cada passo do nosso caminho: que não nos deixe sozinhos, que não nos deixe cair em tentação, que não nos abandone nos momentos difíceis. Conclui-se assim o Pai-Nosso é assim: a graça que o próprio Jesus nos ensinou a pedir ao Senhor.
Com a oração, Maria acompanha toda a vida de Jesus, até à morte e ressurreição; e no final continua, e acompanha os primeiros passos da Igreja nascente (cf. At 1, 14). Maria reza com os discípulos que atravessaram o escândalo da Cruz. Reza com Pedro, que sucumbiu ao medo e chorou de remorso. Maria está ali, com os discípulos, no meio dos homens e das mulheres que o seu Filho chamou para formar a sua Comunidade. Maria não age como sacerdote entre eles, não! É a Mãe de Jesus que reza com eles, em comunidade, como um membro da comunidade. Reza com eles e por eles. E, mais uma vez, a sua oração precede o futuro que está prestes a cumprir-se: por obra do Espírito Santo, tornou-se Mãe de Deus, e por obra do Espírito Santo, torna-se Mãe da Igreja. Orando com a Igreja nascente, torna-se Mãe da Igreja, acompanha os discípulos nos primeiros passos da Igreja, em oração, à espera do Espírito Santo. Em silêncio, sempre em silêncio! A prece de Maria é silenciosa. O Evangelho só nos narra uma oração de Maria: em Caná, quando pede ao seu Filho, por aquelas pobres pessoas, que estão prestes a fazer má figura na festa. Mas, imaginemos: oferecer uma festa de casamento e terminá-la com leite, porque não havia vinho! Mas que vergonha! E Ela suplica e pede ao seu filho que resolva aquele problema. A presença de Maria é por si só oração, e a sua presença entre os discípulos no Cenáculo, à espera do Espírito Santo, é orante. Assim, Maria dá à luz a Igreja, é Mãe da Igreja. O Catecismo explica: «Na fé da sua humilde serva, o Dom de Deus - ou seja, o Espírito Santo - encontra o acolhimento que Ele esperava desde o princípio dos tempos» (Catecismo, n. 2617).
Na Virgem Maria, a natural intuição feminina é exaltada pela sua união singular com Deus na oração. Por este motivo, lendo o Evangelho, observamos que às vezes Ela parece desaparecer, para depois reaparecer nos momentos cruciais: Maria está aberta à voz de Deus que guia o seu coração, que orienta os seus passos onde a sua presença é necessária. Presença silenciosa de mãe e de discípula. Maria está presente porque é Mãe, mas está presente também porque é a primeira discípula, aquela que melhor aprendeu as coisas de Jesus. Maria nunca diz: “Vinde, resolverei os problemas”. Mas diz: “Fazei o que Ele vos disser”, indicando sempre com o dedo Jesus. Esta atitude é típica do discípulo, e ela é a primeira discípula: reza como Mãe, ora como discípula.
«Maria conservava todas estas palavras, ponderando-as no seu coração» (Lc 2, 19). Assim o evangelista Lucas retrata a Mãe do Senhor no Evangelho da infância. Tudo o que acontece ao seu redor acaba por ter um reflexo no fundo do seu coração: tanto os dias cheios de alegria, como os momentos mais sombrios, quando até Ela tem dificuldade de compreender por que caminhos deve passar a Redenção. Tudo acaba no seu coração, para poder ser joeirado mediante a oração e por ela transfigurado. Quer sejam as dádivas dos Magos, quer a fuga para o Egito, até à tremenda sexta-feira da paixão: a Mãe conserva tudo, apresentando-o a Deus no seu diálogo com Ele. Alguém comparou o coração de Maria com uma pérola de esplendor inigualável, formada e limada pela aceitação paciente da vontade de Deus, através dos mistérios de Jesus meditados na oração. Que bom se também nós pudéssemos assemelhar-nos um pouco à nossa Mãe! Com o coração aberto à Palavra de Deus, com o coração silencioso, com o coração obediente, com o coração que sabe receber a Palavra de Deus, deixando-a crescer com uma semente do bem da Igreja.
Papa Francisco
Catequese na audiência Geral 18.11.2020
imagem: Henry Ossawa Tanner (Anunciação)
Catequese - 14. A oração perseverante
Estimados irmãos e irmãs, bom dia!
Continuemos a catequese sobre a oração. Alguém me disse: “Fala demasiado de oração. Não é necessário”. Sim, é necessário. Porque, se não rezarmos, não teremos forças para ir em frente na vida. A oração é como o oxigénio da vida. A oração é atrair sobre nós a presença do Espírito Santo que nos leva sempre em frente. É por isso que falo muito sobre a oração.
Jesus deu exemplo de uma oração contínua, praticada com perseverança. O diálogo constante com o Pai, no silêncio e no recolhimento, é o ponto fulcral de toda a sua missão. Os Evangelhos apresentam-nos também as suas exortações aos discípulos, para que rezem com insistência, sem se cansar. O Catecismo recorda as três parábolas contidas no Evangelho de Lucas que sublinham esta caraterística da oração de Jesus (cf. CIC, 2613).
A oração deve ser antes de mais tenaz: como o personagem da parábola que, devendo um hóspede que chegou de repente, no meio da noite, vai bater à porta de um amigo e pede-lhe pão. O amigo responde “não!”, porque já está na cama, mas ele insiste, e insiste a ponto de o obrigar a levantar-se e a dar-lhe pão (cf. Lc 11, 5-8). Um pedido tenaz. Mas Deus é mais paciente do que nós, e quem bate à porta do seu coração com fé e perseverança não fica desiludido. Deus responde sempre. Sempre. O nosso Pai sabe bem do que precisamos; a insistência não serve para o informar ou convencer, mas para alimentar o desejo e a expetativa em nós.
A segunda parábola é a da viúva que se dirige ao juiz para que a ajude a obter justiça. Este juiz é corrupto, é um homem sem escrúpulos, mas no final, exasperado pela insistência da viúva, decide contentá-la (cf. Lc 18, 1-8). E pensa: “Mas, é melhor que lhe resolva o problema e me livre dela, sem que venha continuamente lamentar-se diante de mim”. Esta parábola faz-nos compreender que a fé não é o impulso de um momento, mas uma disposição corajosa para invocar Deus, até para “discutir” com Ele, sem se resignar ao mal e à injustiça.
A terceira parábola apresenta um fariseu e um publicano que vão ao Templo para rezar. O primeiro dirige-se a Deus gabando-se dos próprios méritos; o outro sente-se indigno até de entrar no santuário. Contudo, Deus não ouve a oração do primeiro, isto é, dos soberbos, mas atende a dos humildes (cf. Lc 18, 9-14). Não há verdadeira oração sem espírito de humildade. É precisamente a humildade que nos leva a pedir na oração.
O ensinamento do Evangelho é claro: é preciso rezar sempre, até quando tudo parece vão, quando Deus nos parece surdo e mudo, e que perdemos tempo. Mesmo que o céu se ofusque, o cristão não deixa de rezar. A sua oração anda de mãos dadas com a fé. E a fé, em muitos dias da nossa vida, pode parecer uma ilusão, uma labuta estéril. Há momentos escuros na nossa vida e nesses momentos a fé parece uma ilusão. Mas praticar a oração também significa aceitar esta dificuldade. “Pai, vou rezar e não ouço nada... Sinto-me assim, com um coração seco, com um coração árido”. Mas devemos continuar, com a dificuldade dos maus momentos, dos momentos nos quais não sentimos nada. Muitos santos e santas viveram a noite da fé e o silêncio de Deus - quando batemos à porta e Deus não responde - e estes santos foram perseverantes.
Nestas noites de fé, quem reza nunca está sozinho. Na verdade, Jesus não é apenas testemunha e mestre de oração, é muito mais. Ele acolhe-nos na sua oração, para podermos rezar n'Ele e através d'Ele. E isto é obra do Espírito Santo. É por este motivo que o Evangelho nos convida a rezar ao Pai em nome de Jesus. São João relata estas palavras do Senhor: «E tudo o que pedirdes ao Pai em meu nome, vo-lo darei, para que o Pai seja glorificado no Filho» (14, 13). E o Catecismo explica que «a certeza de sermos atendidos nas nossas petições baseia-se na oração de Jesus» (n. 2614). Ela dá as asas que a oração do homem sempre desejou possuir.
Como deixar de recordar aqui as palavras do Salmo 90-91, carregadas de confiança, que brotam de um coração que espera tudo de Deus: «Ele cobrir-te-á com as suas plumas, sob as suas asas encontrarás refúgio. A sua fidelidade ser-te-á um escudo de proteção. Tu não temerás os terrores noturnos, nem a flecha que voa à luz do dia, nem a peste que se propaga nas trevas, nem o mal que grassa ao meio-dia» (vv. 4-6). É em Cristo que esta maravilhosa oração se cumpre, é n'Ele que encontra a sua verdade plena. Sem Jesus, as nossas orações correriam o risco de se reduzir a esforços humanos, na maioria das vezes destinados ao fracasso. Mas Ele tomou sobre si cada grito, cada gemido, cada júbilo, cada súplica... cada prece humana. E não esqueçamos o Espírito Santo que ora em nós; é Ele que nos leva a orar, leva-nos a Jesus. É o dom que o Pai e o Filho nos deram para prosseguirmos ao encontro com Deus. E o Espírito Santo, quando oramos, é o Espírito Santo que reza nos nossos corações.
Cristo é tudo para nós, inclusive na nossa vida de oração. Santo Agostinho dizia-o com uma expressão iluminante, que também encontramos no Catecismo: Jesus, «sendo o nosso Sacerdote, ora por nós; sendo a nossa Cabeça, ora em nós; e sendo o nosso Deus, a Ele oramos. Reconheçamos, pois, n'Ele a nossa voz, e a voz d'Ele em nós» (n. 2616). E é por isso que o cristão que reza nada teme, confia-se ao Espírito Santo, que nos foi dado como dom e que reza em nós, suscitando a oração. Que seja o próprio Espírito Santo, Mestre de oração, a ensinar-nos o caminho da oração.
Papa Francisco
Catequese na audiência geral 11.11.2020
imagem: pexels.com
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