Em entrevista a Padre Gruen, em 13 de julho de 2002, ele afirmou: “não dá para determinar quando e como, propriamente certas, as nossas opções nasceram. Ao longo da vida, surgem fatores cuja importância só mais tarde é que conseguimos avaliar. Esses fatores vão-se entrelaçando com outros, até uma circunstância especial desencadear o novo.”
De fato, pode ser difícil identificar o momento exato em que fazemos escolhas significativas, mas certos acontecimentos atuam como divisores de águas nas nossas vidas. Assim percebo o quanto foi marcante a presença e a produção do Padre Gruen.
Há 50 anos, ele integrou o grupo responsável pela elaboração do projeto de Ensino Religioso e exerceu docência no curso oferecido pela UFJF. Em 1974, apresentou o documento “Um Anteprojeto: Reflexões e Proposições sobre o Ensino Religioso na Escola Pública,” com o apoio do Instituto Central de Filosofia e Teologia da Universidade Católica de Minas Gerais (PUC Minas). Nesse anteprojeto, ele destacou a distinção entre Ensino Religioso e Catequese, defendendo que os docentes de Ensino Religioso deveriam ser formados em Ciências das Religiões. Essa ideia foi reiterada na década de 80, quando, atuando como membro do Conselho Estadual de Educação de Minas Gerais, foi relator do Parecer n. 18/80.
Durante a década de 70, Gruen colaborou com a Secretaria de Estado da Educação no esboço de um projeto pedagógico para o Ensino Religioso e publicou artigos que refletiam a sua preocupação com essa disciplina na escola pública e com a formação dos profissionais da área. Já naquela época, defendia um Ensino Religioso não confessional, fundamentado numa abordagem antropológica e tratando a religiosidade como objeto de estudo. Nos anos subsequentes, suas ideias foram aprimoradas, e suas publicações demonstraram uma evolução na sua perspectiva, sendo fundamental para a consolidação do Ensino Religioso enquanto componente curricular, especialmente pela distinção que estabeleceu entre Catequese e Ensino Religioso com base na linguagem adotada na sala de aula e na formação dos educandos.
Ao longo da sua carreira, Gruen atuou em diversos cursos de formação para gestores e docentes de Ensino Religioso no Brasil, com forte presença em Belo Horizonte, Minas Gerais. Foi fundamental na criação e condução do Curso de Metodologia e Filosofia do ERE, no Departamento Arquidiocesano de Ensino Religioso (DAER), e, em 1995, na PUC Minas, lecionou no Curso de Pós-graduação em Ensino Religioso, destinado ao aperfeiçoamento de Especialistas de Educação e docentes envolvidos na implementação do Ensino Religioso nas escolas. Um curso similar havia sido realizado em 1978 na UCMG para supervisores e docentes de Ensino Religioso, sob sua coordenação. O seu pensamento e prática inspiraram inúmeros profissionais dessa área. Gruen também participou diretamente do Grupo de Reflexão sobre o Ensino Religioso (GRERE) da CNBB e integrou a Comissão de Ensino Religioso no Regional Leste II.
Salesiano, nascido na Alemanha, amplamente respeitado como teólogo e exemplo de sabedoria, cultura, respeito e abertura ao diálogo inter-religioso, Wolfgang Gruen é uma inspiração por seu exemplo, modéstia e simplicidade, deixando uma marca profunda em todos que com ele conviveram.
Gratidão, mestre e amigo, por esses 97 anos de existência... E, neste dia especial, cabe a pergunta: “Valeu a pena? Tudo vale a pena se a alma não é pequena.” (Fernando Pessoa, 1934).
Gisele do Prado Siqueira (PUC-MG)
30.10.2024
Sessenta anos de Campanha da Fraternidade (CF)! Criada pela CNBB em 1964, a CF é um apoio aos cristãos para uma reflexão, a partir do Evangelho, sobre problemas que afligem a população: pobreza, meio ambiente, violência, individualismo, trabalho precário, educação, saúde. Como ação evangelizadora da Igreja, todos os batizados são convocados a testemunhar a fé que se expressa no amor aos irmãos. A conversão tem uma dimensão pessoal, comunitária e sociopolítica. A penitência quaresmal deve ser externa e social, não só interna e individual (Sacrosanctum Concilium, 110).
Inspirada na Encíclica do Papa Francisco, Fratelli Tutti (FT), a CF-2024 tem como tema Fraternidade e Amizade social. Vós sois todos irmãos e irmãs (Mt 23, 8). O objetivo é despertar para o valor e a beleza da fraternidade, promovendo e fortalecendo os vínculos da amizade social para que, em Jesus Cristo, a justiça e a paz sejam realidade entre todas as pessoas e povos!
A amizade é a fonte da fraternidade. Dom de Deus, somos criados para a comunhão. A referência da amizade é Jesus Cristo que “nos liberta para amar com justiça” (Rom 6,20). Amizade tem a justiça como princípio: dar ao outro o que é dele por direito. Ou seja, não se reduz a afeto. Nesse sentido, a amizade é a virtude política para a convivência e a paz na sociedade.
Papa Francisco, na Fratelli Tutti (FT), apresenta as bases da fraternidade universal: amizade social, amor político, cultura do encontro. Amizade social significa um grande abraço universal que rompe muros e fronteiras geográficas. Por tanto, para pensar sistemas econômicos e estruturas políticas igualitárias, é preciso substituir o individualismo, o nacionalismo e o fanatismo pelo amor social.
O que aconteceu conosco? O mundo “está desmoronando e talvez se aproximando de um ponto de ruptura” (Laudate Deum, 2). Por que tanto ódio e violência, intolerância e brutalidade? Nessa era da estupidez, a CF de 2024 retoma a pergunta da CF de 1974: Onde está teu irmão? (Gn 4,9). Cinquenta anos depois, o capitalismo intensificou a Síndrome de Caim: egoísmo, obsessão pela prosperidade, pelo consumo, pela fama. A alterofobia – negação da humanidade do outro – está na origem dessa irracionalidade da ditadura do eu. As consequências são inevitáveis: aquecimento global, explosão das desigualdades sociais, concentração da riqueza, violência contra os direitos humanos, banalização do mal, racismo, violência de gênero, machismo, discriminação, bullying, cultura do ódio e do cancelamento, pobrefobia escancarada, uma sociedade anestesiada.
Como a fé pode nos inspirar a superar essa realidade? A fraternidade universal está no coração do Evangelho. Vós sois todos irmãos (Mt 23, 8)! Todo ser humano é reflexo do amor do Criador como fonte de amor. Todo ser humano “foi criado por meio do Filho e em vista Dele” (Col 1,15-17). Filho que nos deu uma Nova Lei: “amai-vos uns aos outros como eu vos amei” (Jo 13,34). Amizade social é uma resposta ao Amor: “Quem não ama não conhece a Deus, porque Deus é amor” (1 Jo 4, 7-8).
A verdadeira riqueza é o bem que fazemos aos outros. Através da parábola do Bom Samaritano (Lc 10, 25-37) Jesus nos ensina que a “amizade social e a fraternidade universal exigem um reconhecimento essencial: tomar consciência de quanto vale um ser humano, de quanto vale uma pessoa, sempre e em qualquer circunstância” (FT, 106). A expressão mais alta de amizade social é “amar ao mais desimportante e desprezado dos seres humanos como a um irmão, como se existisse apenas ele no mundo” (FT, 193). Priorizar os últimos na escala do poder político, social e econômico, os ignorados e invisíveis. “O que vocês fizeram ao menor dos meus irmãos, a mim o fizeram (Mt 25, 40). Ignorar o pobre é desprezar Deus. Não haverá fraternidade universal sem amizade com o pobre.
É preciso agir para “alargar o espaço da nossa tenda” (Is 54, 2), pois “quem não pratica a justiça não é de Deus” (1 Jo 3, 10). Ainda que seja “difícil ter olhos às injustiças que cometemos” (Dom Helder Câmara), cada pessoa está desafiada a identificar aquelas vaidades e interesses egoístas que impedem olhar o outro com amor e respeitar a diversidade de cor, religião, cultura, orientação sexual. Na comunidade e no ambiente de trabalho, ações simples podem gerar uma “cultura da amizade”: fazer novas amizades, desfazer panelinhas, combater discriminações.
Na esfera social, são expressões de empenho pela fraternidade universal: o voluntariado junto aos mais pobres, o enfrentamento ao racismo e ao machismo, um firme compromisso com a democracia, a justiça social e os direitos humanos, promover a fraternidade e combater o ódio nas redes sociais e atuar corajosamente junto aos movimentos sociais.
Todas as pessoas são iguais em dignidade. Somos todos irmãos e irmãs. “Todos são importantes, todos são necessários, todos são rostos diferentes da mesma humanidade amada por Deus” (FT – Oração cristã ecumênica).
Élio Gasda, SJ é professor e pesquisador no departamento de Teologia da Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia (FAJE)
In: site da FAJE
imagem: cartaz da CF/2024
Na quarta-feira de cinzas de 2024 foi lançada, em todo o Brasil, a Campanha da Fraternidade sobre amizade social, cujo lema é “Vós sois todos irmãos”. Seu objetivo é despertar para a beleza da fraternidade humana, promovendo e fortalecendo os vínculos da amizade social, para que, em Jesus Cristo, a paz seja realidade entre todos.
Entre seus propósitos, está a missão de compreender como a mentalidade de divisão está afetando o conjunto da vida, inclusive a dimensão religiosa, e identificar as principais causas da atual mentalidade de oposição e conflito, que gera a incapacidade de ver nas outras pessoas um irmão e irmã. Pretende-se, também, conscientizar sobre a necessidade de superar as divisões e polarizações, construindo a unidade em meio à pluralidade.
O texto-base destaca os Sinais de predisposição à fraternidade e amizade social, e afirma que a fraternidade inscrita em nossa natureza humana a partir da comum filiação divina impele-nos constantemente, apesar dos desequilíbrios causados pelo pecado original, a viver a amizade social querida por Deus.
Outro dado a ser considerado é a solidariedade que caracteriza o povo brasileiro e que se manifesta de forma gratuita e voluntária nas grandes tragédias, sejam elas naturais ou criminosas, quando as comunidades se mobilizam, organizam-se e colocam em comum bens e serviços necessários para o socorro das vítimas, realizando, mesmo que temporariamente, a fraternidade e amizade social querida por Deus em todo tempo e lugar.
Também é mencionada a sadia e complementar pluralidade existente entre todos os seres humanos nas suas mais diversas expressões, dom da multiforme fecundidade do Criador para promover a integração e o crescimento da família humana, a partir da valorização de nossas diferenças.
Mas o texto também alerta sobre os riscos de nosso tempo, como o uso e a exploração do outro, a indiferença generalizada, os julgamentos precipitados, a rejeição gratuita, o ódio desmedido, o combate a pessoas e não a ideias ou propostas, a morte sem sentido, como aquelas das crianças nas creches e escolas atacadas por jovens e adultos armados. Tudo isso nos leva a crer que o mal de que padece a nossa sociedade é o da alterofobia, ou seja, medo, rejeição, aversão a tudo aquilo que é outro, que não sou eu mesmo. Vivemos fisicamente próximos, mas absolutamente distantes.
Tornamo-nos incapazes de nos colocar no lugar do outro, incapazes do que Jesus chama no Evangelho de compaixão, de padecer o sofrimento alheio. Vivemos um agudo processo de subjetivação, isto é, a única ótica que importa é a minha. E ignoramos o que o refrão cantado durante o Sínodo da Amazônia nos ensinou: “tudo está interligado como se fôssemos um, tudo está interligado nessa Casa Comum”.
Dom Leomar Antônio Brustolin
Arcebispo Metropolitano de Santa Maria e presidente da Comissão Episcopal para Animação Bíblico-Catequética da CNBB
14.02.24
A família é a base da felicidade. Porém, quando nela persiste o egoísmo, o orgulho ou o ressentimento, torna-se numa espécie de pedra atada a todos, impedindo qualquer um dos seus membros de ter paz.
Sem perdão não há família. Todos erramos uns com os outros. Pelo que só com amor se podem sarar estas feridas. Na verdade, o perdão é uma prova concreta do amor que une os que decidem viver e lutar pela alegria duradoura juntos.
Uma família precisa de espaço e tempo entre aqueles que a compõem. O respeito pelo outro exige que guardemos alguma distância e sejamos pacientes. Sem liberdade não há nem verdade nem felicidade. Estar presente não significa invadir um espaço que não é meu. Amar é dar espaço e tempo. Também por isso é que uma família é muito maior do que a soma dos seus membros!
Uma família alimenta-se da fé, da confiança partilhada, de valores comuns, de sonhos em que os outros também entram, de uma vontade comum de que não haja ali solidão não desejada. Numa família todos somos um eu e um nós.
Sem um compromisso que se renove e cumpra a cada dia, apenas subsiste um conjunto de pessoas que não são uma verdadeira família, mas que assim se arrastam umas às outras para uma verdadeira tristeza por vezes disfarçada de sossego, mas que, por isso mesmo, se torna ainda mais trágica a sua tristeza.
As tribulações são parte constante da vida individual e familiar. Por isso, importa que aproveitemos os raros dias de bonança para descansar com vista às tempestades que, com certeza, apesar de em tempo incerto, se aproximam.
Face às contrariedades, não devemos abandonar os nossos. Por piores que sejam as adversidades e por menos bons que nos pareçam aqueles que, apesar de tudo, devemos amar.
Uma família mantém-se unida e firme na tribulação. Resiste às angústias, aos desesperos, à aparente falta de amor, de sentido e de justiça do mundo e dos outros.
Se eu não sei ser justo, porque não sei julgar com o conhecimento de tudo o que importa, então porque passo tanto tempo da minha vida a culpar e a condenar os outros a começar pelos da minha família?
José Luis Nunes Martins
In: imissio.net 23.06.2023
imagem: pexels.com
Existem pessoas que se identificam com os valores católicos, mas não participam da vida comunitária em paróquias, associações ou movimentos e, por isso, dizem ser (ou dizemos nós que são) católicos não-praticantes. Sempre achei essa expressão muito estranha. É como se uma pessoa casada dissesse - «sou esposo, mas não praticante.» Não faz sentido.
A linguagem católica pode ser, por vezes, mais prescritiva do que persuasiva. Durante muito tempo falou-se (e fala-se ainda) daquilo que não podemos fazer, dizer ou pensar. A linguagem que começa com um “não” gera bloqueio. E há quem diga — «Mas existem situações em que temos de dizer “não”.» — ou talvez a linguagem precise de uma renovação. Sempre que alguém amigo ou conhecido nos diz ser um católico não-praticante, temos a oportunidade de renovar a nossa linguagem e a sua experiência, começando por um “sim” — «Sabes, eu penso que tu és antes um católico simpatizante.»
A linguagem bloqueadora do não fecha as nossas comunidades aos católicos simpatizantes que possuem uma experiência maior do que nós quanto ao modo como o mundo pensa fora do âmbito católico. E se abraçarmos o significado da palavra “católico”, que quer dizer “universal”, ninguém está fora senão aquele que se coloca fora por opção pessoal. Alguém que acolhe na sua vida os valores católicos, sem participar de qualquer vida comunitária, reconhece o seu valor universal e ao contrastar-se com valores diferentes desses diante de outras pessoas afastadas do catolicismo, pode fazer experiências católicas (universais) sem ser conotado de “católico”. Por isso, a sua vivência tem valor universal fazendo dele um católico simpatizante.
As pessoas afastam-se das Igrejas e comunidades católicas por sermos abertos ou fechados? Estou a incluir-me no grupo de católicos praticantes, e a pergunta parece retórica, mas a minha experiência é que os católicos consideram-se pessoas abertas, mas os outros sentem que são fechadas. Por outro lado, quem se considera um católico simpatizante, sente ser aberto e que participar numa comunidade católica levaria a fechar-se. Não conheço a experiência do leitor, mas a minha é a de que somos todos abertos “e” fechados. Porém, o caminho a percorrer juntos talvez seja o de sermos abertos e ponderados.
Ser ponderado implica pensarmos sobre as coisas antes de nós pronunciarmos sobre essas. E mesmo quando o fazemos, convém trabalhar continuamente a humildade por desconhecermos aspectos essenciais que podem fragilizar a nossa opinião. Um exemplo seria a moral sexual. Muitos católicos simpatizantes e praticantesdesconhecem os grandes desenvolvimentos que se deram no pensamento e experiência católicas desde que S. João Paulo II introduziu a Teologia do Corpo. Um outro exemplo seria a relação com a ciência. Muitos católicos simpatizantes e praticantes desconhecem aquilo que chamaria de Teologia da Dúvida onde o diálogo científico-teológico se torna um modo de nos aproximarmos de uma experiência de Deus menos infantil e mais profunda.
O católico não-praticante é aquele que possui valores católicos, até pode participar da vida comunitária, mas não vive e dá testemunho desses valores. Basta pensar naquelas pessoas criticam sempre os outros, exercem abuso de autoridade ou de outra natureza ou não dão espaço ao amor recíproco, achando-se donas dos empenhos ou lugares religiosos que lhe foram confiados. Por outro lado, um grande desafio para os que simpatizam com os valores católicos será desconhecerem esses valores em profundidade suficiente, de tal modo que as razões de não participarem na vida comunitária são pobres.
Uma vez fui a um grupo de jovens nas Mercês próximo de Sintra. Um dos jovens que participava assiduamente nos encontros era ateu. Não acredita em Deus, mas acredita e vivia o valores católicos. Era um católico simpatizante para quem Deus é um Mistério “inacreditável”. Gostaria de ser mais como ele porque as pessoas inacreditáveis são aquelas que não cessam de nos surpreender, como Deus.
No tempo presente em que entramos numa dimensão religiosa mais orientada para a espiritualidade, parece-me relevante reconhecer que todo o católico simpatizante que não vai à missa ou participa na vida comunitária, não está fora, mas dentro da Igreja. Ele habita nas periferias existenciais da sociedade, trabalho, e lá procura (quer se dê conta ou não disso) uma união com Deus através dos valores católicos do amor fraterno, misericordioso, sincero e autêntico. A sua missão é alargar os espaços eclesiais que não se definem pelas estruturas físicas, mas pela vivência dos valores. Por isso, da próxima vez que alguém te disser ser um católico não-praticante, oferece uma correção fraterna pacífica dizendo-lhe com serenidade que ele é antes um católico simpatizante.
Miguel Oliveira Panão
In: imissio.net 20.04.23
Imagem: pexels.com
Talvez o elemento cultural mais forte do presente seja a ferida. A própria pandemia — tal, como agora, a experiência devastadora da guerra, mesmo se localizada — deixam a descoberto uma vulnerabilidade global que não queríamos ver e obriga as sociedades, no seu todo, a fazer contas com feridas antigas e recentes. A vulnerabilidade associada à experiência humana pede, de facto, para ser lida como realidade mais intrínseca, transversal e vasta. Há um estrutural défice de cuidado, que vem de muito longe e de muito fundo. Não admira, por isso, que a necessidade de reconhecer a ferida, de a narrar, de colocá-la no centro do debate público, de a atender e de lhe fazer justiça se tenha tornado uma aspiração tão forte do nosso tempo. A ferida é um património e uma responsabilidade que pertence a todos. Recordo o que escreveu Hofmannsthal (1874-1929) num precioso livro que a Assírio publicou há uns anos e que passou, entre nós, praticamente despercebido, “Livro dos Amigos” (Assírio, 2002): “Ninguém pode dizer que se conhece profundamente se é apenas ela ou ele próprio, e não ao mesmo tempo também um outro.” De facto, não há futuro a não ser na reciprocidade eticamente qualificada entre a situação de quem fala e de quem escuta.
A história da dor é, infelizmente, quase sempre uma história submersa, negligenciada face aos discursos dominantes, remetida para as trincheiras de uma solidão que poucos ouvem. A ponto de se achar que é um inconsequente idealismo pensar a vitória sobre as diversas formas de mal. Na cela da prisão nazi, onde viveu os últimos meses da sua vida, depois de uma participação na tentativa fracassada de atentado contra Hitler, o teólogo cristão Dietrich Bonhoeffer (1906-1945) escreveu: “No curso das nossas existências, não falamos facilmente de vitória: é uma palavra que nos parece demasiado grande. Ao longo dos anos sofremos demasiadas derrotas, demasiados momentos de fracasso e fragilidade. E contudo, o espírito que habita em nós deseja o sucesso final contra o mal.” É verdade que o próprio Bonhoeffer foi enforcado, escassos dez dias antes de o campo de concentração ser libertado pelas forças aliadas, mas ele foi no terrível século XX (e o século XXI infelizmente não se está a revelar menos terrível) uma testemunha dos desejos do espírito contra a tirania do mal. O desejo desse espírito que pulsa dentro de cada ser humano é uma força que não se rende. E — para quem o quiser escutar — ele acentua a urgência de construir um novo pacto social, uma nova visão cultural partilhada, que seja capaz de introduzir e sustentar, no seu interior, dinâmicas de escuta, de encontro, de devolução de liberdade e de justiça, de verdadeira pacificação e de cura. Para isso, porém, precisamos de reaprender todos a ser coprotagonistas no artesanato interminável que é a construção da paz e de desenvolver a cultura do cuidado.
Em dias como estes que dramaticamente o mundo vive, onde assistimos às consequências do delírio do poder, é importante, por exemplo, rever criticamente o impacto das lideranças autoritárias, baseadas no brutal princípio da violência. O futuro precisa de líderes com maior consciência da vulnerabilidade da terra e dos seus moradores, capazes de dialogar com as necessidades reais das pessoas, mais empáticos do que autoritários, capazes de desenvolver formas de escuta e de corresponsabilidade, investindo na confiança em vez do controlo, promovendo a compreensão de que o lucro e a posse violenta, o consumo ou o domínio não são as únicas coisas pelas quais vale a pena lutar.
Dom José Tolentino Mendonça
In: imissio.net 01.04.23
Imagem: bigstock
Desde 1964 a Igreja do Brasil promove durante a quaresma uma Campanha da Fraternidade. A quaresma é um tempo marcado pelo chamado à conversão: mudança de vida (mentalidade, sentimento, atitude), volta ao Senhor, adesão ao seu Evangelho. Essa conversão é tanto pessoal (conversão do coração), quanto social (transformação da sociedade). Para ajudar na vivência do espírito quaresmal, a Igreja convida a intensificar a prática da oração, do jejum e da caridade. E para que a caridade não se reduza a uma ação meramente assistencial, a Igreja do Brasil, retomando a doutrina social da Igreja, promove uma Campanha da Fraternidade que trata de algum problema grave da sociedade que exige mudança e que compromete todas pessoas e instituições.
Pela terceira vez a Campanha da Fraternidade trata do problema da fome, chamando atenção para um dos pecados mais graves de nossa sociedade e convidando os cristãos e o conjunto da sociedade a se empenharem na superação dessa injustiça e desse crime que é um verdadeiro pecado que clama ao Céu: “Repartir o pão” (1975); “Pão para quem tem fome” (1985); “Dai-lhes vós mesmos de comer” (2023).
A fome não é um dado natural. Não é fruto do acaso ou do destino. Não é mera consequência de preguiça ou comodismo pessoal. Nem muito menos é vontade ou castigo de Deus. Ela é um produto social. É resultado das tremendas injustiças e desigualdades que caracterizam nossa sociedade e fazem com que uns tenham tanto e outros tenham tão pouco ou quase nada. A situação atual do Povo Yanomami em Roraima é o exemplo mais vivo e dramático da injustiça e desigualdade de nossa sociedade: Fruto do egoísmo e da cobiça de garimpeiros, madeireiros e empresários; fruto de um modelo econômico que sacrifica vidas humanas e toda natureza no altar do deus-mercado/lucro; fruto da indiferença social, da cultura do consumismo e da busca de enriquecimento a qualquer preço; fruto da cumplicidade de políticos e governos genocidas que fecham os olhos diante desses crimes ou até mesmo estimulam essas práticas criminosas.
Mas a situação do Povo Yanomami não é um fato isolado. O drama da fome está presente ao longo da história do Brasil. E é a expressão mais cruel e perversa do modelo capitalista de sociedade que se implantou aqui ao logo de mais de 500 anos. Uma série de políticas públicas desenvolvidas na primeira década do século reduziu bastante o drama da fome no Brasil, fazendo com que o país saísse do mapa da fome em 2014. Mas o desmonte progressivo dessas políticas a partir de 2016, agravado com a pandemia da Covid-19, fez com que o Brasil voltasse ao mapa da fome.
Os dados são alarmantes: 33 milhões de pessoas passando fome (15,5% de toda população ou o equivalente à população das cidades de São Paulo, Rio de Janeiro, Brasília, Salvador, Fortaleza, Belo Horizonte e Manaus); mais de 125 milhões de pessoas em situação de insegurança alimentar (58,1% de toda população). Isso é bem mais grave nas regiões Nordeste (21%) e Norte (27%) e na zona rural (18,6%). E atinge sobretudo pessoas pretas ou pardas e famílias chefiadas por mulheres. Em março de 2020 estimava-se cerca de 222 mil pessoas em situação de rua e esse número cresceu assustadoramente na pandemia, como se pode ver em qualquer grande cidade.
Essa situação é muito mais escandalosa e criminosa se considerarmos que não falta alimento no Brasil. Aliás, o país bate recordes anuais na produção para exportação de milho, soja, trigo, carne etc. A fome no Brasil, vale repetir, é fruto da injustiça e da desigualdade social. É um pecado mortal que clama ao céu! E pode ser eliminada com a solidariedade de todos e com vontade e decisão políticas. Como tantas vezes repetiu o presidente Lula “é preciso colocar o rico no imposto de renda e o pobre no orçamento”. Precisamos lutar para que isso se torne realidade.
A ordem de Jesus aos discípulos diante da multidão “Dai-lhes vós mesmos de comer” (Mt 14, 16) ecoa com muita força entre nós, sobretudo nesse tempo quaresmal em que somos chamados à conversão. Certamente, nenhuma pessoa ou comunidade pode resolver o problema. Mas cada um pode compartilhar um pouco do que tem e cada comunidade, grupo, pastoral ou movimento pode contribuir para superar essa situação: doando cesta básica; ajudando pessoas a desenvolverem alguma atividade produtiva; promovendo feiras da agricultura familiar e economia solidária; exigindo dos governos a compra dos produtos da agricultura familiar; defendendo os programas de transferência de renda como “bolsa família” e “bolsa catador”, a reforma agrária e políticas públicas de saúde (SUS), educação, moradia...
Isso é questão de humanidade e justiça social!
Isso é questão de fé e critério de salvação ou de condenação!
Pe. Francisco Aquino Junior é mestre e doutor em Teologia, presbítero da Diocese de Limoeiro do Norte – CE, professor de teologia da Faculdade Católica de Fortaleza (FCF) e da Universidade Católica de Pernambuco (UNICAP).
In: IHU 23.02.23
Imagem: Getty Images
É absurdamente complicado encontrar esperança no meio do caos. No meio das tragédias arbitrárias que assolam o mundo já tão ferido e magoado. É complicado acreditar que conseguimos encontrar a fé e a alegria quando tudo à nossa volta parece destruído, incerto, caótico e pouco límpido. Não conseguimos manter-nos à tona. Mais uma vez, avizinha-se uma crise económica. Os nós que nos unem apertam-se cada vez mais e deixam-nos sem ar para respirar. Muita gente vai olhando para o espelho sem saber, já, que pessoa mora ali.
No entanto, e ainda que nos seja profundamente difícil arrancar linhas de luz à cara da escuridão, ainda é possível. Ainda não está tudo perdido, nem estará nunca. Perdidos estão, sim, os que perderam a vida ou os que estão na iminência de a ver desvanecer-se. A nós, ainda nos resta a luz prometida de dias melhores. Prometida por quem? Pela nossa própria alma. Pelo nosso próprio coração que não se cansa de lutar, mesmo confuso ou atribulado.
Ainda estamos a tempo de encontrar caminhos bonitos, mais simples e menos cinzentos. Pode não ser já. Pode não parecer viável. Mas acreditamos que mais à frente poderá ser melhor do que hoje. Poderemos, até, ser melhor do que somos. Saber mais do que sabemos. Compreender mais do que, atualmente, compreendemos.
É possível encontrar esperança no meio do caos. Para cada um de nós terá um nome distinto. Uma cara diferente. Um sol diferente. Mas haverá, sempre, uma luz para cada um de nós. Para cada tragédia que se assoma. Para cada injustiça que se pratica. Para cada maldade humana que tenha a ilusão de vingar.
Vamos por caminhos destruídos. Prédios e vidas espezinhados. Gritos de horror e de incredulidade. Avançamos como quem não sabe onde deve colocar os pés. Ou o propósito. Mas vamos juntos.
Vamos juntos. E esse consolo tem de bastar-nos quando não tivermos muito mais.
Mas… a possibilidade de ir juntos não será o tanto que nos falta quando não nos resta nada?
Marta Arrais
In: imissio.net 08.02.23
Catequese no mundo atual: desafios e possibilidades (II)
2 – A dimensão sociocultural atual
Continuando nossa leitura do Diretório para a Catequese de 2020, ao ler a realidade atual, o documento apresenta o ponto de vista sociocultural.
Nesta leitura, o documento fala sobre os processos de comunicação de massa, buscando destacar os benefícios e os malefícios desses processos. De um lado, a comunicação aproxima, possibilita trocas e aprendizados. De outro, pode manipular as consciências, produzir violência e isolamento. Estamos atentos: o que nos une é dialógico, o que nos divide e produz guerras entre nós é diabólico!
Com tantos meios para nos comunicarmos, produziu-se a sociedade da informação. Vejamos que ter informações é algo bom, ajuda a conhecermos as situações para tomarmos decisões que são importantes para nossa vida. De outro, também cansa o tempo todo recebermos e produzirmos informações. Ainda mais quando não temos condições (conhecimento, tempo etc.) para compreendê-las. Para isso, indica o Diretório, é necessária uma educação que ensine a pensar criticamente e ofereça um caminho de amadurecimento nos valores.
Diante disso, o Diretório nos pede que olhemos para essa realidade com espírito de fé, entendendo que nossa missão é levar às pessoas de hoje o Evangelho da alegria que tudo renova e vivifica. Assim, somos convidados a entrar nos diversos espaços da vida social, como a escola, a investigação científica e o ambiente de trabalho, as redes sociais e de comunicação, nos âmbitos onde se empreendem esforços pela paz, pelo desenvolvimento, pelo cuidado com a criação, pela defesa dos direitos dos mais fracos; mas, também, no mundo do tempo livre, do turismo, do bem-estar, no espaço da literatura, da música e das várias expressões artísticas. Todos esses são espaços onde devemos fazer chegar a alegria do Evangelho, não por imposição ou cansaço, mas pelo diálogo, testemunho de serviço e busca do bem comum. Para isso, é preciso ter uma atitude de escuta e diálogo, examinando todas as coisas, mantendo o que é bom (cf. 1Ts 5,21).
Na Igreja particular (dioceses) e em cada comunidade cristã ou grupo eclesial, atentos a essa realidade, somos convidados a formular a compreensão do querigma (anúncio) mais adequada às várias mentalidades, para que o processo da catequese esteja verdadeiramente inculturado nas múltiplas situações e o Evangelho ilumine a vida de todos.
Assim, os espaços humanos, como o contexto urbano das grandes cidades, o contexto rural e o das culturas locais tradicionais nos são apresentados como desafios, mas também possibilidades para a ação catequética.
A catequese, então, é motivada a oferecer espaços e ações comunitários de fé em que, vencendo o anonimato nas grandes cidades, se reconhece o valor de cada pessoa e a todas é oferecido o bálsamo da fé pascal para aliviar as feridas. São espaços de oração e de comunhão, em que a paróquia como comunidade de comunidades, com proximidade fraterna, revela a maternidade da Igreja e dá um testemunho concreto de misericórdia e ternura, que gera orientação e sentido para a própria vida da cidade. No contexto da vida no campo, a catequese é convidada a valorizar as experiências comunitárias, o amor pela natureza e a simplicidade como se busca conduzir a vida.
É preciso também propor processos de evangelização e de catequese adequados à cultura dos povos originários (indígenas e outros), sem nunca impor a própria cultura. Aprender a ver as “sementes do Verbo” presentes nessas realidades, em suas pessoas e costumes, louvando a Deus, e aprendendo a olhar para todas as pessoas com respeito e amor, ajudando-as a amadurecer na fé e a crescer como seguidoras de Jesus.
Também, a catequese deverá, sobretudo, ter o cuidado de apreciar a força evangelizadora das expressões da piedade popular, integrando-as e valorizando-as no seu processo formativo e deixando-se inspirar pela forma dos ritos e dos símbolos do povo, como maneiras de conservar a fé e a transmiti-la de uma geração à outra.
Em todas as situações, o discernimento deve ajudar a compreender as trevas e luzes presentes nas diversas culturas, salientando o que é bom, fazendo multiplicar os valores do Reino (amor, partilha, respeito, cuidado com a vida etc.) já presentes e ajudando a superar as visões e posturas que são contraditórias a esses valores (preconceitos, autoritarismos, exclusões etc.).
Suzana Costa Coutinho
Mestra em Educação, jornalista, professora da Especialização em Catequética do Regional Leste 2
18.01.23
imagem: pexels.com
Catequese no mundo atual: desafios e possibilidades
1. A diversidade religiosa no mundo atual
O Diretório para a Catequese de 2020 apresenta uma leitura da realidade em seu Capítulo X, A catequese diante dos cenários culturais contemporâneos, com os números 319 a 393. Apresentamos uma visão geral desse capítulo, no sentido e ajudar em sua leitura, para a formação de nossos(as) catequistas.
Ler a realidade é tarefa da Igreja, porque está inserida na comunidade humana. Os “sinais dos tempos”, metáfora usada por Jesus, descrita em Lucas 21. Mas, como podemos descrever o tempo atual? O magistério da Igreja tem ensinado que estamos vivendo um tempo de viragem epocal, ou seja, de mudanças profundas na forma como vivemos, sentimos e pensamos. Esse tempo é marcado por contradições, entre coisas boas e ruins, e carregado de anseios de paz e justiça, de encontro e solidariedade.
Nessa realidade, a Igreja tem um desafio, que é viver a dimensão profética da evangelização. Ou seja, de opor-se a processos centrados na injustiça, na exclusão dos pobres e que colocam no centro, como principal, o dinheiro, para anunciar que Jesus veio para que todos tenham vida e a tenham em plenitude. Ao conhecer melhor a realidade emque se vive, e buscar ser profética, a catequese se coloca plenamente ao serviço da inculturação da fé.
O Diretório de 2020 apresenta duas palavras para compreendermos os tempos atuais: pluralismo e complexidade. As duas rementem à ideia de que há uma diversidademuito grande e uma mistura de coisas, o que pede que sejamos observadores atentos e que não deixemos de ver as “costuras” que existem entre as dimensões, fenômenos, fatos e situações que envolvem a vida das pessoas, nossas comunidades e o mundo em geral. Esses fatos estão, de alguma forma, entrelaçados.
Isso se explica pelo processo de globalização, seja das comunicações, da economia e da política, bem como da cultura ou culturas. Temos o uso massivo dos meios de comunicação que aumentaram as conexões e as interdependências entre questões e setores. Isso trouxe coisas positivas e outras nem tanto. É preciso discernir.
O modelo de observação para um bom discernimento, apresentado pelo papa Francisco, é o do poliedro, figura geométrica com muitos lados. Mas, todos os lados pertencem à mesma figura. Ou seja, os vários acontecimentos e setores da vida, ainda que sejam contraditórios, às vezes, inclusive, divergentes, estão relacionados entre si e formam o mesmo chão no qual pisamos.
Por isso, o conselho que nos dá o Diretório é de que possamos ler os fenômenos de pontos de vista diferentes, mas colocando-os em relação entre si. Amadurecer um olhar mais profundo e sábio em relação à realidade, assumindo a perspectiva sinodal, com presenças e papéis diversos, para que a evangelização se realize de modo mais participativo.
Do ponto de vista religioso, o Diretório apresenta o ambiente ecumênico ou multirreligioso, com a presença de diversas igrejas, religiões e formas de vivência da espiritualidade. Se isso demonstra que as pessoas sentem necessidade da vida religiosa e a procuram, de outro, encontramos também aquelas que, mesmo dentro das nossas igrejas, são indiferentes e insensíveis à busca pela transcendência, pela espiritualidade, ou ainda a vivem de forma relativa (conforme lhes convém) ou sincrética (misturando concepções e manifestações de diferentes expressões religiosas). Há, ainda, os que se colocam contra as formas de transcendência, contra as religiões, sejam elas quais forem. Nesse mundo com tantas vozes diferentes e, muitas vezes, divergentes, muitos se sentem confusos e desorientados.
Então, qual o papel da catequese, diante dessa pluralidade e complexidade da vida religiosa de hoje? São apresentadas, de forma geral, duas posturas que se intercalam e devem estar presentes na ação catequética. A primeira, é a de conhecer melhor e mais profundamente a própria fé, neste caso, a fé católica. Convida-nos a nos formarmos melhor, a conhecermos melhor o pensamento da Igreja por meio de seus documentos, para amadurecermos em nossa própria fé (dar “razão à nossa fé”). E ajudarmos outros cristãos católicos a fazerem também isso, o que é papel mesmo da catequese, propondo o encontro que leve a conhecer, amar e seguir Jesus Cristo.
O segundo ponto é, amadurecendo na caminhada de fé cristã católica, estarmos em diálogo respeitoso com as outras religiões e igrejas cristãs, para darmos testemunho do amor de Cristo por todas as pessoas, para que o “mundo creia”, não apenas por meio do anúncio da Palavra de Deus, mas também pela vivência do amor cristão, fonte e meta desse anúncio.
Nesse sentido, o Diretório nos convida a entender a multiplicidade de possibilidades religiosas como uma oportunidade, visto que, a partir da liberdade que as pessoas têm de escolher como viverão sua fé, ao conhecer Jesus e sua proposta, façam uma adesão ao Senhor como um ato profundamente pessoal e gratuito, maduro e consciente.
Daí também nos mostra o vínculo profundo que a catequese deve ter com a evangelização: é que ela forma nos cristãos uma identidade clara e segura, serenamente capaz de, em diálogo com o mundo, dar razão da esperança cristã com mansidão, respeito e consciência reta (cf. 1Pd 3,15a16).
Suzana Costa Coutinho
Mestra em Educação, jornalista, professora da Especialização em Catequética do Regional Leste 2
18.01.23
imagem: pexels.com
No passado domingo, dia 23, celebrou-se o Dia Mundial das Missões, com o tema «Sereis minhas testemunhas!». Esta frase pronunciou-a Jesus ressuscitado aos seus discípulos, pouco antes de ser elevado aos céus, como é relatado nos Atos dos Apóstolos: «Recebereis a força do Espírito Santo, que descerá sobre vós, e sereis minhas testemunhas em Jerusalém, por toda a Judeia e Samaria e até aos confins do mundo» (At 1, 8).
A força do Espírito Santo, que cobriu de graças os discípulos de Jesus e os levou a viver vidas extraordinárias, é a mesma força que nos é oferecida a cada um. Decorridos mais de dois mil anos, todos os cristãos continuam a ser convidados a testemunhar Cristo, nas suas vidas, através das suas palavras e das suas ações. Na mensagem para o Dia Mundial das Missões de 2022, o Papa Francisco dizia-nos que é essa a verdadeira «identidade da Igreja»: evangelizar, dando testemunho de Cristo Ressuscitado. Jesus exorta os discípulos a partirem, a irem para lá dos seus lugares habituais. As narrativas dos Atos dos Apóstolos nascem desse movimento missionário, e dão-nos a imagem incrível de uma Igreja «em saída».
Todas as vezes que falei com alguém que partiu em missão, para um país distante, por algum período de tempo, deixando certezas e confortos para trás, foi-me muito fácil reconhecer nessa pessoa uma paixão que perdurou, uma chama que não mais se apagou. Ir até aos confins do mundo, ir para lá das suas fronteiras, fez com que a missão se fizesse vida e, no regresso a casa, a vida se tornasse missão. Como refere o Papa Francisco, os missionários são enviados por Jesus ao mundo «não só para dar testemunho, mas também e sobretudo para ser testemunhas de Cristo.» Ao jeito de S. Paulo, não é a si próprios que devem anunciar, não são os seus talentos e qualidades que devem embandeirar, mas sim a vida, a paixão, a morte e a ressurreição de Jesus, que se entregou todo por amor ao Pai e à humanidade. Por isso, as vidas destes homens e mulheres se transfiguram em missão, passam a ser missão. Tal como S. Paulo, eles clamam: «Trazemos sempre no nosso corpo a morte de Jesus, para que também a vida de Jesus seja manifesta no nosso corpo» (2 Cor 4, 10).
É notável como as Missões, pelo rasgar de comodismos e fronteiras, se revestem de uma universalidade tal que nenhuma realidade humana se lhes escapa. No entanto, como afirma Francisco, «hoje, apesar de todas as facilidades resultantes dos progressos modernos, ainda existem áreas geográficas aonde não chegaram os missionários testemunhas de Cristo com a Boa Nova do seu amor». Ora, Deus não se desorienta e, com engenho, continua a inspirar homens e mulheres para missões surpreendentes, capazes de contornar esta impossibilidade de estarem presentes em certas partes do mundo como testemunhas de Jesus Ressuscitado. No início deste mês, fomos, em família, e com outras famílias amigas, visitar o Carmelo de S. José, em Fátima. Uma das Irmãs Carmelitas Descalças recebeu-nos e dispôs do seu tempo para nos falar da sua vocação, da sua comunidade e da Família Carmelita Descalça de Fátima. As horas passaram, e pareceram-nos demasiado breves para tantas perguntas que foram surgindo. Uma vida passada em clausura inquieta-nos e interpela-nos, a miúdos e a graúdos, e fascinou-nos a alegria e a certeza enérgica da Irmã Margarida quando disse que, na sua vida contemplativa, com a sua oração, chegava a todas as partes do mundo. Como afirmam na sua página, apesar de estarem em clausura, as Irmãs vivem perto das preocupações da Igreja e do mundo e apresentam-nas a Deus nas suas orações – «uma forma de apostolado fecundo e eficaz».
Nem todos somos chamados a partir em missão para países distantes. Nem todos somos chamados a uma vida contemplativa. Porém, todos somos convidados a testemunhar Cristo nas nossas vidas, através de palavras e ações. Deixemo-nos inspirar pelos missionários, que tudo abandonam para partir, e pelos contemplativos, que fazem da oração vida, e procuremos dar novo sentido a cada gesto do dia a dia. Não apenas nas nossas «grandes» missões, como mães e pais, filhos, trabalhadores, leigos comprometidos, mas também nas pequenas tarefas do quotidiano. Para que este desejo de servir a Deus chegue até aos confins do nosso ser, para lá das nossas vontades e fraquezas, que tantas vezes se erguem como fronteiras intransponíveis. Mudemos a nossa atitude interior ao realizar uma tarefa rotineira ou uma tarefa que nos pareça menos apetecível, oferecendo-a por quem mais precisa, por quem sofre. Orientando a ação para Deus, ela será um meio privilegiado de união com Ele. Aí estaremos não só a dar testemunho, mas a sermos fecunda e verdadeiramente testemunhas de Cristo.
Suzana Mendes Gonçalves
25.10.22
In: pontosj.pt
A vergonha e a ausência de informações dificultam a busca por apoio para depressão, estresse, ansiedade, entre outros transtornos, que comprometem o trabalho de prevenção ao suicídio. Tomando como referência essa observação e dados da OMS, que reforça que o suicídio é a 3ª causa de morte de jovens brasileiros entre 15 e 29 anos.
Esses números e os riscos para saúde mental aumentaram na pandemia e, por isso, temos um motivo a mais para combater o estigma e lançar luzes sobre o problema do suicídio. A covid-19 chegou junto com o crescente aumento de transtornos mentais e automutilação entre os jovens.
Pais e escolas precisam saber identificar se um adolescente está sofrendo, bem como os profissionais de saúde que estão na linha de frente do atendimento.
Segundo Viktor Frankl, neuropsiquiatria austríaco e fundador da Logoterapia e Análise Emocional, o vazio existencial é a consequência da frustação da vontade de sentido, a falta do sentido da vida.
Hoje o maior fator de risco de suicídios entre adolescentes e jovens é o vazio existencial.
Mas o que é exatamente o vazio existencial¿ Para entender o que é o vazio existencial primeiro precisamos compreender o que é o sentido da vida, porque assim como Frankl nos diz, o vazio existencial é a falta do sentido da vida.
Nós cristãos temos um sentido universal que é a busca pela santidade. Mas como descobrimos qual o sentido da nossa vida no dia a dia¿ O sentido da vida é único para cada momento.
O sentido é aquela experiência que eu faço quando me dou conta que vale a pena viver por algo ou por alguém, dedicar-se, sair de si, doar-se. A essência da nossa existência é a auto transcendência, o sair de si e voltar-se ao outro. O sentido da vida é a própria vida, como nos é dada.
Muitas pessoas sofrem, caem no vazio existencial porque buscam somente as consequências da chamada “felicidade”; a vontade pelo ter, a vontade pelo prazer e a vontade pelo poder.
Quando perdemos o sentido da vida ou não buscamos a ele, buscando direto as consequências da felicidade, essa busca nos frustra e vem o vem o vazio porque somos pessoas para realizar sentido.
A motivação principal da vida é a vontade de sentido, somos movidos pela vontade de sentido. Nós devemos ser fermento na massa e não deixar viver como massa. Quando as coisas vão mal, se não fizermos o melhor que pudermos para fazê-las progredirem tudo será pior ainda, diz Frankl.
“O subjetivismo relativista, sem normas, sem valores, fecha a pessoa no egoísmo, tornando-a prisioneira dos seus caprichos e prazer,”, diz Bento XVI. Vivendo-a prisioneira dos seus caprichos, vive também o vazio existencial.
Mas como sair do meu egoísmo e viver a auto transcendência, me abrir para outro, olhar para fora¿ Realizando valores. Os valores se tornam reais na minha vida quando se tornam atos concretos, quando se tornam vividos no dia a dia e isso depende da nossa responsabilidade, da nossa resposta.
O chamado da vida nos permite realizar valores e assim encontrar sentido.
Valorar não é dar valor a algo, mas reconhecer que cada coisa tem seu valor, que cada coisa ou acontecimento vivido bom ou ruim é importante, porque me torna melhor.
Frankl dizia que existe duas vias para encontrar o sentido da vida, ter alguém para amar e uma obra a realizar. Para ele o sentido da vida não é algo pelo qual se deve perguntar, mas sentir.
Todos os dias podemos encontrar sentido para realizarmos algo para o outro, Jesus em Lc 24,49 já nos avisava que a promessa de Deus Pai seria cumprida e que nós deveríamos ser obedientes e esperar o tempo de Deus e seríamos revestidos da força do alto. E assim revestidos por ela, mesmo nas nossas dificuldades e limitações, podemos auto transcender, sair de nós mesmos e servirmos a Deus nos irmãos, combatendo assim o vazio existencial.
Jornada Mundial da Juventude
Vatican News 08.1022
Quando nos solicitam que sejamos testemunha de alguém ou de algum acontecimento, temos plena consciência que só podemos testemunhar o que vimos e ouvimos, ou o que vivemos.
Jesus pediu aos seus discípulos para serem suas testemunhas, para que a sua mensagem chegasse a todos. Pois eles viram, ouviram e viveram a vida de Jesus como sendo sua.
Hoje em dia, cabe-nos a nós ser suas testemunhas. Ser testemunha de Jesus é viver a nossa vida como exemplo para os outros. É viver uma vida de total entrega aos outros.
Ser testemunha do amor é dar-se por amor! Ser missionário é isto mesmo, ser testemunha do grande amor que Jesus tem por cada um de nós. Ser missionário é entregar-se ao outro sem esperar nada em troca. É levar Jesus aos outros, como quem oferece o melhor e maior presente.
Sempre tive a vontade de partir em missão, mas sempre me faltou a coragem. Mas depois da primeira experiência, a vontade de repetir, uma e outra vez, é cada vez maior. Nunca nos cansamos de ir ao encontro do outro, de sair do nosso conforto e partir em busca do desconhecido, mas na certeza que iremos encontrar irmãos, de braços abertos, para nos receber.
Durante a experiência missionária, vivemos momentos de verdadeiro encontro com o outro e com Deus. E apesar de muitas diferenças visíveis (culturais, linguísticas e raciais), percebemos que afinal somos todos iguais. Amamos, choramos, rimos e principalmente vivemos com o sentido de entreajuda.
Existe uma frase que os moçambicanos usam que, resume tudo isto que é ser testemunha de Jesus. “Tamos juntos”, é quase como que um cumprimento entre eles. Mas é também reflexo da vivência, porque aconteça o que acontecer, seja em que luta estiveres “tamos juntos”. Nunca estamos sós.
Ser missionário é ser e estar com o outro! Ser missionário é ser feliz!
Ana Marujo
10.10.2022
In: imissio.net
Parece não haver espaço para pensar de outra forma que não seja a que rima com otimismo e positividade. Levaram-nos a crer que é errado chorar, que não devemos mostrar o que sentimos e que, se o fizermos, devemos mostrar sempre uma versão bonitinha, sublinhada daquele cor-de-rosa das nuvens que vemos nos desenhos animados.
No entanto, a vida não é nada disso. Não é uma paisagem bonitinha nem simples, na maioria das vezes. Tem escarpas capazes de rasgar joelhos ou almas, trilhos que nos fazem perder o rumo e o norte, armadilhas que nos fazem resvalar todas as certezas e ideias pré-concebidas. É nesses dias que não precisamos que nos digam coisas como:
“não fiques assim”
“olha para o lado bom de tudo isto”
“pensa positivo”
Pensar positivo quando o que se sente é, precisamente, negativo é mascarar com uma mentira aquilo que se diz e que se é.
Pensar positivo como resposta a todos os problemas é, na realidade, criar mais um.
É preciso olhar com respeito para os nossos pensamentos negativos. Para o mau. Para a raiva que pode existir. Para a tristeza. Para o desânimo. E encontrar espaços sérios e seguros dentro de nós para lidar com isto. O pensamento positivo não é, de certeza, uma solução.
A ditadura do positivismo deixa-nos uma sensação de não pertencer, de não estar certo (ou válido) sentir o que sentimos. E essa sensação deixa marcas e feridas que podem, depois, apodrecer e ganhar formas demasiado feias.
Que saibamos pensar positivo quando for tempo disso e que saibamos “pensar negativo” quando sentirmos diferente do bom, da alegria e do que for feliz.
Há espaço para tudo o que és.
Há espaço para tudo o que somos.
Ou, pelo menos, devia haver.
O tema das alterações climáticas não é novidade e é atualmente tão debatido científica e politicamente que se tornou para muitos um assunto banal. O mais recente relatório de avaliação do Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas (IPCC) das Nações Unidas reforçou as preocupações em torno dos acontecimentos climáticos e levantou alarmantes cenários futuros. Simultaneamente, assistimos à ocorrência de eventos extremos como fogos e cheias que são sinais destas alterações e que têm profundas consequências ambientais e sociais.
Com a quantidade de informação a que somos expostos, incluindo opiniões divergentes de especialistas como climatologistas, é difícil para os “meros mortais” como nós compreenderem com o que lidamos. De um lado, temos uma comunidade científica a alertar para os danos ambientais causados pela humanidade e a afirmarem que, a este ritmo, estamos a caminhar para a próxima extinção em massa. Do outro, temos os climatologistas céticos que afirmam que pouco se sabe com certeza; e, por isso, não devemos fazer inferências com base em pressupostos tendenciosos. Não obstante, há aspetos com os quais até os mais céticos concordam, nomeadamente que “as temperaturas à superfície aumentaram desde 1880”, que “os seres humanos têm vindo a lançar dióxido de carbono para a atmosfera” e que “o dióxido de carbono e outros gases com efeito de estufa têm um efeito de aquecimento no planeta” (em “Alterações Climáticas: o que sabemos, o que não sabemos”, de Judith A. Curry 2019).
Certo, o panorama é complexo, mas este debate incessante sobre a gravidade da situação, sobre quem é o mais culpado e sobre como será o futuro desfoca-nos do essencial. Não precisamos ser cientistas para sabermos que os recursos da natureza são finitos e para avaliarmos grande parte dos modelos de produção e consumo vigentes como insustentáveis.
Isto não é suficiente para nos responsabilizarmos?
Podemos começar com o nosso coração. Trabalhando a nossa humildade, crescendo na consciência de que não somos proprietários dos recursos naturais e reconhecendo as limitações dos ecossistemas. Na carta encíclica sobre o cuidado pela casa comum Laudato Si’, o Papa Francisco chama a atenção para esta introspeção e convida-nos a encontrar soluções “não só na técnica, mas também numa mudança do ser humano; caso contrário, estaríamos a enfrentar apenas os sintomas”. Façamos uma avaliação ao nosso estilo de vida: faço escolhas que contribuem para a destruição do ambiente? Se sim, a preço de quê? De comodidade? Consigo alterar algum tipo de comportamento em prol do cuidado pela casa comum? É fácil responsabilizar os dirigentes políticos e empresas e argumentar que as escolhas ao nível individual não representam muito, mas se estas escolhas influenciarem opções políticas ou empresariais já podem ser representativas. Façamos a nossa quota parte com coragem, passando “do consumo ao sacrifício, da avidez à generosidade, do desperdício à capacidade de partilha” (Laudato Si’, §9).
Se a Terra é casa comum, então, a forma como nos relacionamos com a natureza é indissociável aos conceitos de fraternidade e justiça. Na carta encíclica Fratelli Tutti do Santo Padre sobre a fraternidade e a amizade social, somos convidados a combater a indiferença globalizada e a promover uma nova forma de vida, capaz de recuperar a sede de “pensar e agir em termos de comunidade, de prioridade da vida de todos sobre a apropriação dos bens por parte de alguns” (116). Este sair da própria bolha e amar mais, não só o que nos são próximos, mas todos, exige tempo e esforço.
Por fim, destaco o papel da educação e liderança na responsabilidade ambiental. Os jovens e crianças são os decisores do futuro e, por isso, é fundamental que as instituições de ensino e as famílias apontem para outro estilo de vida, capaz de cuidar dos ecossistemas. Não apenas as escolas e as famílias: todos nós somos convidados a ser exemplo nas pequenas ações diárias – evitar o desperdício alimentar, reduzir o consumo de água, produzir menos resíduos, apagar as luzes quando não são necessárias, plantar árvores –, amadurecendo os nossos hábitos e influenciando o estilo de vida de outros. Esta transformação pessoal nos pequenos gestos “faz parte duma criatividade generosa e dignificante, que põe a descoberto o melhor do ser humano” (Laudato Si’, §211).
Para a semana, dia 1 de setembro, a Igreja assinala o dia mundial de oração pelo cuidado da Criação, e até dia 4 de outubro somos convidados a viver o Tempo da Criação, em memória de São Francisco de Assis. E se aproveitarmos este tempo para renovarmos o nosso compromisso pelo bem comum?
Margarida Pessoa Vaz
In: pontosj.pt 23.08.21
Imagem: pexels-pixabay-51951
CFE 2021 - Fraternidade e diálogo: compromisso de amor
“Cristo é a nossa paz. Do que estava dividido fez uma unidade” (Ef 2,14a)
Pe. Geraldo De Mori
A Igreja Católica, junto com várias Igrejas cristãs membros do CONIC (Conselho Nacional de Igrejas Cristãs do Brasil), participam, na quaresma deste ano de 2021, de mais uma Campanha da Fraternidade Ecumênica (CFE). Paradoxalmente, o que está em jogo nesta CFE, a fraternidade e o diálogo, é posto rudemente à prova pelas polêmicas desencadeadas nas últimas semanas por diversos grupos, dentro e fora da Igreja, semeando confusão, escândalo e desorientação na cabeça dos fiéis e das pessoas que de fora seguem as discussões acaloradas contra e a favor da CFE de 2021. Este texto não tem a pretensão de “jogar mais lenha na fogueira”, mas quer ser uma contribuição no aprofundamento da intenção profunda do tema escolhido para preparar-se para celebrar o “grande mistério da fé” cristã, neste ano: a paixão, morte e ressurreição de Jesus de Nazaré.
Já há alguns anos o mundo e o Brasil experimentam um processo de polarização de origem política, social, cultural e religiosa. Sob muitos pontos de vista, discordar é constitutivo da existência humana. De fato, a dissenção é a assinatura da diferença e, neste sentido, é extremamente positiva. São muitas as diferenças a partir das quais há discordância nos grupos humanos: sociais (ricos e pobres), gênero (homem e mulher), étnicas (brancos, negros, amarelos), religiosas (cristãos, judeus, muçulmanos, hindus, budistas, tradições religiosas afro e ameríndias), familiares (pais, filhos, irmãos). Essas discordâncias fazem surgir a originalidade e a particularidade, e isso, em si, não é negativo, pois pode aportar uma nova perspectiva a determinado debate ou ponto de vista. Nem sempre, porém, a diferença, com as discordâncias que suscita, é experimentada como enriquecimento, sendo muitas vezes vivida como oposição e ameaça, tornando-se então rejeição, intolerância e violência, como o atesta a dramática história da humanidade.
Certos períodos da história humana são mais acolhedores das discordâncias introduzidas pela diferença e outros mais intolerantes. A primeira metade do século XX, por exemplo, foi marcada pelas guerras mundiais que eliminaram milhões de pessoas em nome de interesses de todo tipo (étnicos, ideológicos, econômicos etc.). Já na segunda metade desse mesmo século, parecia que a abertura a acolher a diferença havia vencido. Contudo, desde que ingressamos no século XXI, vivemos várias “guerras aos pedaços”, como tão bem se expressa o Papa Francisco. Essas guerras não se reduzem apenas aos conflitos entre nações, grupos étnicos e religiosos, mas se introduziram no coração mesmo das sociedades plurais e hipertecnológicas que compõem boa parte do mundo atual. Somos muitas vezes seus promotores ou difusores, por meio das redes sociais e das campanhas de todo tipo que buscam tornar o outro inimigo porque não pensa como nós.
Em grande parte, a última encíclica do Papa, Fratelli tutti, sobre a fraternidade e a amizade social, quer ajudar os cristãos e todas as pessoas de boa vontade a mergulharem na riqueza que é a diferença, com todas as discordâncias e ameaças que pode representar, apontando o caminho que conduz à sua acolhida e ao enriquecimento mútuo que pode provocar. Digno de nota nessa encíclica, que também se encontra no tema e no lema da CFE de 2021, é o texto bíblico a partir do qual o Papa busca aprofundar o tema da fraternidade e da amizade social: a parábola do bom samaritano. O próximo do homem espoliado e jogado à beira do caminho, segundo a resposta do doutor da lei à pergunta de Jesus, foi aquele que “usou de misericórdia com ele” (Lc 10,37). Esse texto é fundamental para se pensar o incômodo das inúmeras discordâncias suscitadas pela diferença do outro.
No Texto Base da CFE de 2021, o lema remete a Ef 2,14a: “Cristo é a nossa paz. Do que estava dividido fez uma unidade”. Nessa passagem, Paulo recorda o “muro” construído no templo de Jerusalém, que separava o espaço reservado aos pagãos (gentios) do espaço reservado aos judeus. Segundo o Apóstolo, em Cristo esse muro foi derrubado, do que estava dividido ele fez uma unidade. Em Gl 3,27, “Não há judeu nem grego, escravo ou livre, homem ou mulher, porque todos vós sois um em Cristo Jesus”, Paulo é ainda mais radical. Ele evoca não só a diferença religiosa, como a que aparece na parábola do Bom Samaritano, que é a base bíblica da encíclica do Papa Francisco, mas também a diferença social (escravo e livre) e de gênero (homem e mulher), mostrando como o ter sido revestido de Cristo pelo batismo, provoca uma mudança radical, que elimina tudo o que na diferença é motivo de separação, ódio, violência, guerra, intolerância, inimizade.
Só nos enriquecemos com as discordâncias da diferença se nos abrirmos ao diálogo. Este é o convite da CFE de 2021. Portanto, mais que nos deixar “distrair” pelos falsos argumentos que pretendem salvar uma suposta “catolicidade” da fé, urge, nesse tempo de quaresma, acolher o convite ao diálogo. A verdadeira fraternidade só é possível se nos abrirmos à acolhida daquilo que o outro possui como próprio, único, que me é oferecido como dom, da mesma maneira que eu, ao entrar em diálogo com o outro, me torno oferenda para que ele possa acolher-me e enriquecer-se com aquilo que lhe ofereço.
O caminho do diálogo não é, porém, fácil. Todos sabemos o quanto é difícil “abrir mão” do que Santo Inácio de Loyola chama do “próprio querer e interesse”. Sob muitos pontos de vista queremos impor nossa opinião, nosso ponto de vista, nosso jeito de ser e de fazer. Nem sempre estamos dispostos a viver no cotidiano os processos implicados no verdadeiro diálogo, temos muita dificuldade de “dar o braço a torcer”. Cientes disso, as igrejas cristãs que fazem parte do CONIC, inserem a dinâmica do diálogo na conversão, para a qual esse tempo da quaresma nos convida, preparando-nos para a celebração do mistério pascal, no qual Cristo reconciliou consigo o que estava dividido.
Oxalá possamos aproveitar a oportunidade única que nos é dada com essa CFE, destruindo os muitos muros que nos separam e criam inimizades e construindo espaços de reconhecimento e enriquecimento mútuos, nos quais experimentamos o sentido da paz!
Pe. Geraldo de Mori SJ
17.02.2021
In: site da Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia de BH
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