Amados irmãos e irmãs, bom dia!
Hoje iniciamos um novo ciclo de catequeses sobre o tema da oração. A oração é o respiro da fé, é a sua expressão mais adequada. Como um grito que sai do coração de quem crê e se confia a Deus.
Pensemos na história de Bartimeu, um personagem do Evangelho (cf. Mc 10, 46-52 e par.) e, confesso-vos, para mim é o mais simpático de todos. Era cego, estava sentado a mendigar à beira da estrada, na periferia da sua cidade, Jericó. Não se trata de um personagem anónimo, tem um rosto, um nome: Bartimeu, ou seja, “filho de Timeu”. Um dia ouve dizer que Jesus passaria por ali. Com efeito, Jericó era uma encruzilhada de povos, continuamente atravessada por peregrinos e mercadores. Então Bartimeu põe-se à espreita: faria todo o possível para encontrar Jesus. Muitas pessoas faziam o mesmo: recordemos Zaqueu, que subiu à árvore. Muitos queriam ver Jesus, ele também.
Assim este homem entra nos Evangelhos como uma voz que grita a plenos pulmões. Ele não vê; não sabe se Jesus está perto ou longe, mas ouve-o, devido ao barulho da multidão, que num dado momento aumenta e se aproxima... Mas ele está completamente só, e ninguém se importa com isto. E o que faz Bartimeu? Grita. Grita e continua a bradar. Usa a única arma que possui: a voz. Começa a gritar: «Filho de David, Jesus, tem compaixão de mim!» (v. 47). E assim continua a bradar.
Os seus repetidos gritos incomodam, não parecem educados, e muitos repreendem-no, dizendo-lhe para se calar: “Sê educado, não faças assim!”. Mas Bartimeu não se cala, pelo contrário, grita ainda mais alto: «Filho de David, Jesus, tem compaixão de mim!» (v. 47). Aquela teimosia tão boa daqueles que procuram uma graça e batem, batem à porta do coração de Deus. Ele grita, bate à porta. A expressão “Filho de David” é muito importante; significa “Messias” — confessa o Messias — é uma profissão de fé que sai dos lábios daquele homem desprezado por todos.
E Jesus ouve o seu grito. O pedido de Bartimeu toca o seu coração, o coração de Deus, e para ele abrem-se as portas da salvação. Jesus manda chamá-lo. Ele dá um salto e aqueles que antes lhe diziam para se calar, agora conduzem-no ao Mestre. Jesus fala com ele, pede-lhe que manifeste o seu desejo — isto é importante — e então o grito torna-se um pedido: «Que eu volte a ver, Senhor!» (cf. v. 51).
Jesus diz-lhe: «Vai, a tua fé te salvou» (v. 52). Reconhece àquele homem pobre, indefeso e desprezado todo o poder da sua fé, que atrai a misericórdia e o poder de Deus. Fé significa ter duas mãos levantadas, uma voz que grita para implorar o dom da salvação. O Catecismo afirma que «a humildade é o fundamento da oração» (Catecismo da Igreja Católica, n. 2.559). A oração nasce da terra, do húmus — do qual deriva “humilde”, “humildade” — vem da nossa condição de precariedade, da nossa sede constante de Deus (cf. ibid., nn. 2.560-2.561).
A fé, vimo-lo em Bartimeu, é grito; a não-fé é sufocar aquele grito. Aquela atitude que as pessoas tinham, ao silenciá-lo: não eram pessoas de fé, mas ele sim. Sufocar aquele grito é uma espécie de “cumplicidade tácita”. A fé é protesto contra uma condição penosa da qual não compreendemos o motivo; a não-fé é limitar-se a padecer uma situação à qual nos adaptamos. A fé é esperança de ser salvo; a não-fé é acostumar-nos com o mal que nos oprime e continuar assim.
Queridos irmãos e irmãs, comecemos esta série de catequeses com o grito de Bartimeu, porque talvez numa figura como a sua já esteja tudo escrito. Bartimeu é um homem perseverante. Ao seu redor havia pessoas que explicavam que implorar era inútil, que era um vozear sem resposta, que era barulho que incomodava e nada mais, que por favor deixasse de gritar: mas ele não se calou. E, no final, conseguiu o que queria.
Mais forte do que qualquer argumentação contrária, no coração do homem há uma voz que invoca. Todos nós temos esta voz interior. Uma voz que sai espontaneamente, sem que ninguém a governe, uma voz que se interroga sobre o sentido do nosso caminho aqui na terra, especialmente quando nos encontramos na escuridão: “Jesus, tem compaixão de mim! Jesus, tem compaixão de mim!”. É uma bonita oração!
Mas não estão estas palavras esculpidas em toda a criação? Tudo invoca e suplica para que o mistério da misericórdia encontre o seu cumprimento definitivo. Não rezam só os cristãos: eles compartilham o clamor de oração com todos os homens e mulheres. Mas o horizonte ainda pode ser ampliado: Paulo afirma que toda a criação «geme e sofre as dores de parto» (Rm 8, 22). Com frequência, os artistas fazem-se intérpretes deste grito silencioso da criação, que pressiona em cada criatura e emerge sobretudo no coração do homem, pois o homem é um «mendigo de Deus» (cf. cic, n. 2.559). Bonita definição do homem: “mendigo de Deus”. Obrigado!
Papa Francisco
Catequese na audicência geral 06.05.2020
Catequeses sobre as Bem-aventuranças - 8
Bom dia, estimados irmãos e irmãs!
A catequese de hoje é dedicada à sétima bem-aventurança, a dos “pacificadores”, que são proclamados filhos de Deus. Regozijo-me por ela se realizar imediatamente após a Páscoa, porque a paz de Cristo é fruto da sua morte e ressurreição, como ouvimos na Leitura de São Paulo. Para compreender esta bem-aventurança, é preciso explicar o sentido da palavra “paz”, que pode ser mal entendido ou, às vezes, banalizado.
Devemos orientar-nos entre duas ideias de paz: a primeira é a bíblica, onde aparece a maravilhosa palavra shalom, que exprime abundância, prosperidade, bem-estar. Quando em hebraico se deseja shalom, deseja-se uma vida boa, plena, próspera, mas também de acordo com a verdade e a justiça, as quais terão cumprimento no Messias, Príncipe da paz (cf. Is 9, 6; Mq 5, 4-5).
Depois há o outro sentido, mais generalizado, em que a palavra “paz” é entendida como uma espécie de tranquilidade interior: estou tranquilo, estou em paz. Esta é uma ideia moderna, psicológica e mais subjetiva. Pensa-se geralmente que a paz é sossego, harmonia, equilíbrio interior. Este conceito da palavra “paz” é incompleto e não pode ser absolutizado, porque na vida o desassossego pode ser um importante momento de crescimento. Muitas vezes é o próprio Senhor que semeia a inquietação em nós para irmos ao seu encontro, para o encontrarmos. Neste sentido, é um momento importante de crescimento; enquanto pode acontecer que a tranquilidade interior corresponda a uma consciência domesticada, e não a uma verdadeira redenção espiritual. Muitas vezes o Senhor deve ser um “sinal de contradição” (cf. Lc 2, 34-35), abalando as nossas falsas certezas para nos conduzir à salvação. E nesse momento parece que não temos paz, mas é o Senhor que nos coloca neste caminho para alcançarmos a paz que Ele próprio nos concederá.
Neste ponto devemos recordar que o Senhor entende a sua paz como diferente da humana, a do mundo, quando diz: «Deixo-vos a paz, dou-vos a minha paz. Não vo-la dou como o mundo a dá» (Jo 14, 27). A de Jesus é outra paz, diferente da paz mundana.
Perguntemo-nos: como dá o mundo a paz? Se pensarmos nos conflitos bélicos, normalmente as guerras terminam de duas maneiras: ou com a derrota de uma das duas partes, ou com tratados de paz. Só podemos esperar e rezar para que se siga sempre este segundo caminho; mas temos de considerar que a história é uma série interminável de tratados de paz desmentidos por guerras sucessivas, ou pela metamorfose destas mesmas guerras em outras formas ou noutros lugares. Até no nosso tempo, uma guerra “aos pedaços” é travada em vários cenários e de diferentes formas (cf. Homilia no Sacrário Militar de Redipuglia, 13 de setembro de 2014; Homilia em Sarajevo, 6 de junho de 2015; Discurso ao Pontifício Conselho para os Textos Legislativos, 21 de fevereiro de 2020). Devemos pelo menos suspeitar que, no contexto de uma globalização feita sobretudo de interesses econômicos ou financeiros, a “paz” de uns corresponde à “guerra” de outros. E esta não é a paz de Cristo!
Ao contrário, como “dá” a sua paz o Senhor Jesus? Ouvimos São Paulo dizer que a paz de Cristo é “fazer de dois, um só” (cf. Ef 2, 14), anular a inimizade e reconciliar. E o caminho para realizar esta obra de paz é o seu corpo. Com efeito, Ele reconcilia todas as coisas e faz as pazes com o sangue da sua cruz, como o mesmo Apóstolo diz noutro lugar (cf. Cl 1, 20).
E aqui interrogo-me: todos podemos perguntar-nos: portanto, quem são os “pacificadores”? A sétima bem-aventurança é a mais ativa, explicitamente operativa; a expressão verbal é análoga àquela utilizada para a criação no primeiro versículo da Bíblia e indica iniciativa e laboriosidade. O amor pela sua natureza é criativo — o amor é sempre criativo — e procura a reconciliação custe o que custar. São chamados filhos de Deus aqueles que aprenderam a arte da paz e que a praticam, sabem que não há reconciliação sem o dom da própria vida, e que a paz deve ser procurada sempre e de todas as formas. Sempre e de todas as formas: não vos esqueçais disto! Deve ser procurada assim. Esta não é uma obra autônoma, fruto das próprias capacidades; é manifestação da graça recebida de Cristo, que é a nossa paz, que nos fez filhos de Deus.
O verdadeiro shalom e o autêntico equilíbrio interior brotam da paz de Cristo, que vem da sua Cruz e gera uma nova humanidade, encarnada numa infinita plêiade de Santos e Santas, inventivos e criativos, que conceberam formas sempre novas de amar. Os Santos e as Santas que edificam a paz. Esta vida de filhos de Deus, que pelo sangue de Cristo procuram e reencontram os seus irmãos, é a verdadeira felicidade. Bem-aventurados aqueles que seguem este caminho.
E de novo Feliz Páscoa a todos, na paz de Cristo!
Papa Francisco
Catequese na audiência geral 15.04.2020
Catequeses sobre as Bem-aventuranças - 7
Hoje lemos juntos a sexta bem-aventurança, que promete a visão de Deus e tem como condição a pureza do coração.
Diz um Salmo: «O meu coração pressente os teus dizeres: “Procurai a minha face!”. É a tua face, Senhor, que eu procuro. Não escondais de mim o Vosso rosto» (27, 8-9).
Esta linguagem manifesta a sede de uma relação pessoal com Deus, não mecânica, nem um pouco nebulosa, não: pessoal, que até o livro de Jó expressa como sinal de um relacionamento sincero. Diz assim o livro de Jó: «Os meus ouvidos tinham ouvido falar de Ti, mas, agora, viram-Te os meus próprios olhos» (Jb 42, 5). E muitas vezes eu penso que este é o caminho da vida, no nosso relacionamento com Deus. Conhecemos a Deus pelo ouvir dizer, mas com a nossa experiência vamos em frente, em frente, em frente e no final conhecê-lo-emos diretamente, se formos fiéis... E esta é a maturidade do Espírito.
Como se chega a esta intimidade, a conhecer Deus com os olhos? Pode-se pensar nos discípulos de Emaús, por exemplo, que têm o Senhor Jesus ao seu lado, «os seus olhos, porém, estavam impedidos de O reconhecerem» (Lc 24, 16). O Senhor abrir-lhes-á os olhos no final de uma viagem que culminará com o partir do pão e começará com uma censura: «Ó homens sem inteligência e lentos de espírito em crer em tudo quanto os profetas anunciaram!» (Lc 24, 25). Esta é a reprovação do início. Eis a origem da sua cegueira: o seu coração sem inteligência e lento. E quando o coração é insensato e lento, não se veem as coisas. Veem-se um pouco enevoadas. Aqui está a sabedoria desta bem-aventurança: para a contemplar é necessário cair em nós mesmos e dar lugar a Deus, porque, como diz Santo Agostinho, «Deus é mais íntimo de mim do que eu mesmo» (“interior intimo meo”: Confissões, III, 6, 11). Para ver Deus não é preciso mudar de óculos ou de ponto de observação, nem mudar os autores teológicos que ensinam o caminho: é preciso libertar o coração dos seus enganos! Só este é o caminho.
Esta é uma maturação decisiva: quando percebemos que o nosso pior inimigo está muitas vezes escondido no nosso coração. A batalha mais nobre é contra os enganos interiores que os nossos pecados geram. Porque os pecados mudam a visão interior, eles mudam a avaliação das coisas, eles fazem-nos ver coisas que não são verdadeiras, ou pelo menos que não são tão verdadeiras.
Por conseguinte, é importante entender o que é “pureza do coração”. Para o fazer, é preciso lembrar que para a Bíblia o coração não consiste apenas em sentimentos, mas é o lugar mais íntimo do ser humano, o espaço interior onde uma pessoa é ela mesma. Isto, de acordo com a mentalidade bíblica.
O próprio Evangelho de Mateus diz: «Se a luz que está em ti for trevas, quão grandes serão essas trevas» (6, 23). Esta «luz» é o olhar do coração, a perspetiva, a síntese, o ponto a partir do qual se lê a realidade (cf. Exort. ap. Evangelii gaudium, 143).
Mas o que significa coração «puro»? O puro de coração vive na presença do Senhor, conservando no coração o que é digno da relação com Ele; só assim possui uma vida “unificada”, linear, não tortuosa, mas simples.
Assim, o coração purificado é o resultado de um processo de libertação e renúncia. O puro de coração não nasce assim, experimentou uma simplificação interior, aprendendo a negar o mal em si mesmo, algo que na Bíblia se chama circuncisão do coração (cf. Dt 10, 16; 30, 6; Ez 44, 9; Jr 4, 4).
Esta purificação interior implica o reconhecimento daquela parte do coração que está sob a influência do mal — «Sabe, Padre, sinto-me assim, penso assim, vejo assim, e isto é mau»: reconhecer a parte má, a parte que está enevoada pelo mal — para aprender a arte de se deixar sempre ensinar e guiar pelo Espírito Santo. O percurso do coração doente, do coração pecador, do coração que não pode ver bem as coisas, porque está em pecado, até à plenitude da luz do coração é obra do Espírito Santo. É Ele quem nos guia por este caminho. Eis que, por este caminho do coração, chegamos a «ver Deus».
Nesta visão beatífica há uma dimensão futura, escatológica, como em todas as bem-aventuranças: é a alegria do Reino dos Céus para onde vamos. Mas há também a outra dimensão: ver Deus significa compreender os desígnios da Providência naquilo que nos acontece, reconhecer a sua presença nos Sacramentos, a sua presença nos nossos irmãos, especialmente nos pobres e nos que sofrem, e reconhecê-lo onde Ele se manifesta (cf. Catecismo da Igreja Católica, 2519).
Esta bem-aventurança é um pouco fruto das anteriores: se ouvimos a sede do bem que habita em nós e temos consciência de que vivemos de misericórdia, começa um caminho de libertação que dura a vida inteira e nos conduz ao Céu. É uma obra séria, uma obra que o Espírito Santo faz se lhe dermos espaço para que o faça, se estivermos abertos à ação do Espírito Santo. Por isso podemos dizer que é uma obra de Deus em nós — nas provas e purificações da vida — e esta obra de Deus e do Espírito Santo conduz a uma grande alegria, a uma paz verdadeira. Não tenhamos medo, abramos as portas do nosso coração ao Espírito Santo para que ele nos purifique e nos conduza por este caminho rumo à alegria plena.
Papa Francisco
Catequese na audiência geral 01.04.2020
Catequeses sobre as Bem-aventuranças - 6
Hoje meditamos sobre a quinta bem-aventurança, que diz: «Bem-aventurados os misericordiosos, porque alcançarão misericórdia» (Mt 5, 7). Nesta bem-aventurança há uma particularidade: é a única em que a causa e o fruto da felicidade coincidem, a misericórdia. Aqueles que exercem a misericórdia encontrarão misericórdia, serão “misericordiados”.
Este tema da reciprocidade do perdão não está presente apenas nesta bem-aventurança, mas é recorrente no Evangelho. E como poderia ser de outra forma? A misericórdia é o próprio coração de Deus! Jesus diz: «Não julgueis e não sereis julgados; não condeneis e não sereis condenados; perdoai e sereis perdoados» (Lc 6, 37). Sempre a mesma reciprocidade. E a Carta de Tiago afirma que «a misericórdia prevalece sempre sobre o julgamento» (2, 13).
Mas é sobretudo no Pai-Nosso que rezamos: «Perdoai-nos as nossas ofensas, assim como nós perdoamos a quem nos tem ofendido» (Mt 6, 12); e este é o único pedido retomado no final: «Porque, se perdoardes aos outros as suas ofensas, também o vosso Pai celeste vos perdoará; mas, se não perdoardes aos outros, tampouco o vosso Pai perdoará as vossas ofensas» (Mt 6, 14-15; cf. Catecismo da Igreja Católica, n. 2.838).
Existem dois elementos que não podem ser separados: o perdão oferecido e o perdão recebido. Mas muitas pessoas sentem-se em dificuldade, não conseguem perdoar. Muitas vezes o mal recebido é tão grande que conseguir perdoar se parece com a escalada de uma montanha muito alta: um esforço enorme; e pensamos: não se pode, isto não se pode! Esta questão da reciprocidade da misericórdia indica que temos necessidade de inverter a perspetiva. Sozinhos não conseguimos, precisamos da graça de Deus, devemos pedi-la. Com efeito, se a quinta bem-aventurança promete encontrar misericórdia, e no Pai-Nosso pedimos a remissão das dívidas, isto significa que somos essencialmente devedores e temos necessidade de encontrar misericórdia!
Todos nós somos devedores, todos! A Deus, que é tão generoso, e aos nossos irmãos. Cada pessoa sabe que não é o pai ou a mãe, o esposo ou a esposa, o irmão ou a irmã que deveria ser. Todos nós estamos “em falta” na vida. E precisamos de misericórdia. Sabemos que também nós praticamos o mal, falta sempre algo para o bem que deveríamos ter feito.
Mas é precisamente esta nossa pobreza que se torna a força para perdoar! Somos devedores e se, como ouvimos no início, formos medidos pela medida com que medimos os outros (cf. Lc 6, 38), então convém-nos alargar a medida e perdoar as ofensas, perdoar. Cada um deve recordar-se que tem necessidade de perdoar, que precisa do perdão, que precisa da paciência; este é o segredo da misericórdia: é perdoando que somos perdoados. Porque Deus nos precede e nos perdoa primeiro (cf. Rm 5, 8). Recebendo o seu perdão nós, por nossa vez, tornamo-nos capazes de perdoar. Assim, a nossa miséria e a nossa falta de justiça tornam-se ocasião para nos abrirmos ao reino dos céus, a uma medida maior, à medida de Deus, que é a misericórdia!
De onde nasce a nossa misericórdia? Jesus disse-nos: «Sede misericordiosos, como o vosso Pai é misericordioso» (Lc 6, 36). Quanto mais aceitarmos o amor do Pai, tanto mais amaremos (cf. Catecismo da Igreja Católica, n. 2.842). A misericórdia não é uma dimensão entre outras, mas constitui o cerne da vida cristã: não há cristianismo sem misericórdia [cf. São João Paulo II, Encíclica Dives in misericordia (30 de novembro de 1980); Bula Misericordae vultus (11 de abril de 2015); Carta Apostólica Misericordia et misera (20 de novembro de 2016)]. Se todo o nosso cristianismo não nos leva à misericórdia, erramos o caminho, pois a misericórdia é a única meta verdadeira de todo o caminho espiritual. Constitui um dos frutos mais bonitos da caridade (cf. Catecismo da Igreja Católica, n. 1.829).
Recordo que este tema foi escolhido desde o primeiro Angelus que recitei como Papa: a misericórdia. E isto ficou muito gravado em mim, como uma mensagem que, como Papa, eu deveria transmitir sempre, uma mensagem que deve ser de todos os dias: a misericórdia. Recordo que naquele dia assumi também uma atitude um pouco “descarada” de fazer publicidade de um livro sobre a misericórdia, que tinha acabado de ser publicado pelo cardeal Kasper. E naquele dia senti muito fortemente que, como Bispo de Roma, esta é a mensagem que devo transmitir: misericórdia, misericórdia, por favor, perdão!
A misericórdia de Deus é a nossa libertação e a nossa felicidade. Vivemos de misericórdia e não nos podemos dar ao luxo de viver sem misericórdia: é o ar que se deve respirar! Somos demasiado pobres para estabelecer as condições, temos necessidade de perdoar, porque precisamos de ser perdoados. Obrigado!
Papa Francisco
Catequese na audiência geral 18.03.2020
Catequeses sobre as Bem-aventuranças - 5
Amados irmãos e irmãs, bom dia!
Na audiência de hoje continuamos a meditar sobre o caminho luminoso da felicidade que o Senhor nos concedeu com as bem-aventuranças, e chegamos à quarta: «Bem-aventurados os que têm fome e sede de justiça, porque serão saciados» (Mt 5, 6).
Já encontramos a pobreza de espírito e o choro; agora somos confrontados com outro tipo de fraqueza, aquela ligada à fome e à sede. Fome e sede são necessidades básicas, referem-se à sobrevivência. Isto deve ser enfatizado: aqui não não se trata de um desejo genérico, mas de uma exigência vital e diária, como a alimentação.
Mas o que significa ter fome e sede de justiça? Certamente não estamos a falar daqueles que querem vingança, pelo contrário, na bem-aventurança precedente falamos de mansidão. Certamente as injustiças ferem a humanidade; a sociedade humana tem uma necessidade urgente de equidade, verdade e justiça social; recordemos que o mal sofrido pelas mulheres e pelos homens do mundo chega ao coração de Deus Pai. Que pai não sofreria pela dor dos seus filhos?
As Escrituras falam da dor dos pobres e oprimidos que Deus conhece e compartilha. Por ter ouvido o grito de opressão levantado pelos filhos de Israel — como narra o Livro do Êxodo (cf. 3, 7-10) — Deus desceu para libertar o seu povo. Mas a fome e a sede de justiça de que o Senhor nos fala é ainda mais profunda do que a legítima necessidade de justiça humana que cada homem carrega no seu coração.
No mesmo “Sermão da Montanha”, um pouco mais adiante, Jesus fala de uma justiça maior do que o direito humano ou a perfeição pessoal, dizendo: «Se a vossa virtude não superar a dos escribas e fariseus, não entrareis no reino dos Céus» (Mt 5, 20). E esta é a justiça que vem de Deus (cf. 1 Cor 1, 30).
Nas Escrituras encontramos uma sede expressa mais profundamente do que a sede física, que é um desejo colocado na raiz do nosso ser. Um salmo diz: «Vós, Senhor, sois o meu Deus, anseio por Vós. A minha alma está sedenta de Vós, o meu corpo anela por Vós, numa terra árida, exausta, sem água» (Sl 63, 2). Os Padres da Igreja falam desta inquietação que habita no coração do homem. Santo Agostinho diz: «Tu nos fizeste para ti, Senhor, e o nosso coração não encontrará a paz enquanto não repousar em ti» (Confissões, 1, 1.5). Há uma sede interior, uma fome interior, uma inquietação...
Em cada coração, até na pessoa mais corrupta e afastada do bem, está escondido um anseio de luz, mesmo que esteja sob escombros de engano e erro, mas há sempre uma sede de verdade e bondade, que é a sede de Deus. É o Espírito Santo que desperta esta sede: Ele é a água viva que moldou o nosso pó, Ele é o sopro criativo que lhe deu vida.
Por esta razão, a Igreja é enviada a proclamar a todos a Palavra de Deus, imbuída de Espírito Santo. Pois o Evangelho de Jesus Cristo é a maior justiça que pode ser oferecida ao coração da humanidade, que tem uma necessidade vital dele, mesmo sem se aperceber (cf. Catecismo da Igreja Católica, 2017: «A graça do Espírito Santo confere-nos a justiça de Deus. Unindo-nos, pela fé e pelo Batismo, à paixão e ressurreição de Cristo, o Espírito Santo faz-nos participar da sua vida»).
Por exemplo, quando um homem e uma mulher se casam têm a intenção de fazer algo grande e belo, e se mantiverem viva essa sede encontrarão sempre o caminho a seguir, no meio dos problemas, com a ajuda da Graça. Até os jovens têm esta fome, e não devem perdê-la! É necessário proteger e alimentar no coração das crianças este desejo de amor, de ternura, de acolhimento que expressam nos seus impulsos sinceros e luminosos.
Cada pessoa é chamada a redescobrir o que realmente importa, o que realmente precisa, o que a faz viver bem e, ao mesmo tempo, o que é secundário, e aquilo a que pode tranquilamente renunciar.
Jesus proclama nesta bem-aventurança — fome e sede de justiça — que há uma sede que não será desiludida; uma sede que, se for satisfeita, será saciada e será sempre bem sucedida, porque corresponde ao próprio coração de Deus, ao seu Espírito Santo que é amor, e também à semente que o Espírito Santo semeou nos nossos corações. Que o Senhor nos conceda esta graça: ter esta sede de justiça que é precisamente o desejo de o encontrar, de ver Deus e de fazer o bem aos outros.
Papa Francisco
Catequese na audiência geral 11.03.2020
Catequeses sobre as Bem-aventuranças - 4
Amados irmãos e irmãs, bom dia!
Na catequese de hoje, analisamos a terceira das oito bem-aventuranças do Evangelho de Mateus: «Bem-aventurados os mansos, porque possuirão a terra» (Mt 5, 5).
O termo “mansos” usado aqui significa literalmente meigo, dócil, gentil, sem violência. A mansidão manifesta-se em momentos de conflito, vê-se pela forma como se reage a uma situação hostil. Qualquer um pode parecer manso quando tudo está calmo, mas como reage “sob pressão” se for atacado, ofendido, agredido?
Numa passagem, São Paulo recorda a «mansidão e bondade de Cristo» (2 Cor 10, 1). E São Pedro, por sua vez, recorda a atitude de Jesus na Paixão: ele não respondia nem ameaçava, «mas entregava-se àquele que julga com justiça» (1 Pd 2, 23). E a mansidão de Jesus é vista fortemente na sua Paixão.
Na Escritura a palavra “manso” também indica aquele que não possui terras; e por isso nos impressiona que a terceira bem-aventurança diga precisamente que os mansos «possuirão a terra».
Na verdade, esta bem-aventurança menciona o Salmo 37, que ouvimos no início da catequese. Também nele, é estabelecida uma relação entre a mansidão e a posse da terra. Estas duas coisas, pensando bem, parecem incompatíveis. Na verdade, a posse da terra é a área típica de conflito: luta-se muitas vezes por um território, para se obter hegemonia sobre uma determinada área. Nas guerras prevalece o mais forte e conquista outras terras.
Mas vejamos bem o verbo usado para indicar a posse dos mansos: eles não conquistam a terra; não se diz «bem-aventurados os mansos porque eles conquistarão a terra». Eles “possuem-na”. Bem-aventurados os mansos porque “possuirão” a terra. Nas Escrituras, o verbo “possuir” tem um significado maior. O Povo de Deus chama “posse” precisamente à terra de Israel que é a Terra Prometida.
Esta terra é uma promessa e uma oferenda para o povo de Deus, e torna-se sinal de algo muito maior do que apenas território. Há uma “terra” — permiti o trocadilho — que é o Céu, isto é, a terra para onde caminhamos: os novos céus e a nova terra rumo à qual caminhamos (cf. Is 65, 17; 66, 22; 2 Pd 3, 13; Ap 21, 1).
Então o manso é aquele que “possui” o mais sublime dos territórios. Ele não é um cobarde, um “débil” que encontra uma moralidade alternativa para se manter fora dos problemas. De modo algum! Trata-se de uma pessoa que recebeu uma herança e não a quer perder. O manso não é um indulgente, mas o discípulo de Cristo que aprendeu a defender uma terra diferente. Ele defende a sua paz, defende a sua relação com Deus, defende os seus dons, os dons de Deus, preservando a misericórdia, a fraternidade, a confiança, a esperança. Porque as pessoas mansas são pessoas misericordiosas, fraternas, confiantes e esperançosas.
Aqui devemos mencionar o pecado da ira, um movimento violento cujo impulso todos nós conhecemos. Quem nunca se zangou? Todos. Devemos inverter a bem-aventurança e questionar-nos: quantas coisas destruímos com a ira? O que perdemos? Um momento de cólera pode destruir muitas coisas; perde-se o controlo e não se avalia o que é realmente importante, e pode-se arruinar o relacionamento com um irmão, às vezes sem remédio. Devido à ira, tantos irmãos já não se falam, afastam-se uns dos outros. É o oposto de mansidão. A mansidão reúne, a ira separa.
A mansidão significa conquistar muitas coisas. A mansidão é capaz de conquistar o coração, salvar amizades e muitas outras coisas, porque as pessoas ficam zangadas mas depois acalmam-se, refletem e corrigem os seus passos, e assim pode-se reconstruir com a mansidão.
A “terra” a ser conquistada com mansidão é a salvação daquele irmão do qual fala o próprio Evangelho de Mateus: «Se te der ouvidos, terás ganho o teu irmão» (Mt 18, 15). Não há terra mais bela do que o coração do próximo, não há território mais belo para ganhar do que a paz reencontrada com um irmão. E esta é a terra que se deve possuir com mansidão!
Papa Francisco
Catequese nas quartas-feiras - 19.02.2020
Catequeses sobre as Bem-aventuranças - 1
Amados irmãos e irmãs, bom dia!
Hoje iniciamos uma série de catequeses sobre as Bem-aventuranças no Evangelho de Mateus (5, 1-11). Este texto abre o “Sermão da Montanha” e iluminou a vida dos crentes, e também de muitos não-crentes. É difícil não se comover com estas palavras de Jesus, e é justo o desejo de as compreender e acolher cada vez mais plenamente. As Bem-aventuranças contêm o “bilhete de identidade” do cristão — este é o nosso bilhete de identidade — porque delineiam o rosto do próprio Jesus, o seu estilo de vida.
Agora enquadremos estas palavras de Jesus globalmente; nas próximas catequeses comentaremos cada uma das bem-aventuranças, uma de cada vez.
Antes de tudo, é importante como surgiu o anúncio desta mensagem: Jesus, vendo a multidão que o seguia, sobe à suave encosta que rodeia o lago da Galileia, senta-se e, dirigindo-se aos discípulos, anuncia as bem-aventuranças. Portanto, a mensagem é dirigida aos discípulos, mas no horizonte está a multidão, ou seja, toda a humanidade. É uma mensagem para toda a humanidade.
Além disso, a “montanha” faz recordar o Sinai, onde Deus entregou os Mandamentos a Moisés. Jesus começa a ensinar uma nova lei: ser pobre, ser manso, ser misericordioso... Estes “novos mandamentos” são muito mais que normas. De facto, Jesus nada impõe, mas revela o caminho da felicidade — o seu caminho — repetindo a palavra “felizes” oito vezes.
Cada Bem-aventurança compõe-se de três partes. Inicia sempre com a palavra “felizes”; depois vem a situação na qual os felizes se encontram: pobreza de espírito, aflição, fome e sede de justiça, e assim por diante; por fim há o motivo da bem-aventurança, introduzido pela conjunção “porque”: “Felizes estes porque, felizes aqueles porque...” Assim as Bem-aventuranças são oito e seria bom aprendê-las de cor para as repetir, a fim de ter na mente e no coração esta lei que Jesus nos deu.
Prestemos atenção a este facto: o motivo da bem-aventurança não é a situação atual, mas a nova condição que os bem-aventurados recebem como dom de Deus: “porque deles é o reino do céu”, “porque serão consolados”, “porque possuirão a terra”, e assim por diante.
No terceiro elemento, que é precisamente o motivo da felicidade, Jesus usa muitas vezes um futuro passivo: “serão consolados”, “possuirão a terra”, “serão saciados”, “alcançarão a misericórdia”, “serão chamados filhos de Deus”.
Mas o que significa a palavra “feliz”? Por que começa cada uma das oito Bem-aventuranças com a palavra “feliz”? O termo original não indica alguém que tem a barriga cheia ou está bem na vida, mas é uma pessoa que está em condição de graça, que progride na graça de Deus e no caminho de Deus: a paciência, a pobreza, o serviço aos outros, a consolação... Quantos progridem nestes aspetos são felizes e serão bem-aventurados.
Deus, para se doar a nós, escolhe muitas vezes caminhos impensáveis, talvez os dos nossos limites, das nossas lágrimas, das nossas derrotas. É a alegria pascal da qual falam os nossos irmãos orientais, aquela que tem os estigmas, mas está viva, atravessou a morte e experimentou o poder de Deus. As Bem-aventuranças conduzem-nos à alegria, sempre; são o caminho para alcançar a alegria. Far-nos-á bem hoje abrir o Evangelho de Mateus, capítulo cinco, versículos de um a onze e ler as Bem-aventuranças — talvez várias vezes durante a semana — para compreender este caminho tão bonito, tão seguro da felicidade que o Senhor nos propõe.
Papa Francisco
Catequese na audiência geral 29.01.2020
Catequeses sobre as Bem-aventuranças - 2
Amados irmãos e irmãs, bom dia!
Hoje confrontamo-nos com a primeira das oito bem-aventuranças do Evangelho de Mateus. Jesus começa a proclamar o seu caminho para a felicidade com um anúncio paradoxal: «Felizes os pobres em espírito, porque deles é o Reino do Céu» (5, 3). Um caminho surpreendente, e um estranho objeto de bem-aventurança, a pobreza.
Devemos perguntar-nos: o que se entende aqui por “pobres”? Se Mateus usasse apenas esta palavra, então o significado seria simplesmente econômico, ou seja, indicaria pessoas que têm pouco ou nenhum meio de subsistência e precisam da ajuda dos outros.
Mas o Evangelho de Mateus, ao contrário de Lucas, fala de “pobres em espírito”. O que significa isto? O espírito, segundo a Bíblia, é o sopro de vida que Deus comunicou a Adão; é a nossa dimensão mais íntima, digamos, a dimensão espiritual, a mais íntima, a que nos torna humanos, o núcleo mais profundo do nosso ser. Então os “pobres em espírito” são aqueles que são e se sentem pobres, mendigos, nas profundezas do seu ser. Jesus proclama-os bem-aventurados, porque o Reino do Céu lhes pertence.
Quantas vezes nos foi dito o contrário! É preciso ser algo na vida, ser alguém... É necessário ser famoso... É disto surgem a solidão e a infelicidade: se eu tenho que ser “alguém”, estou em competição com os outros e vivo numa preocupação obsessiva pelo meu ego. Se não aceito ser pobre, odeio tudo o que me lembra a minha fragilidade. Porque essa fragilidade me impede de ser uma pessoa importante, uma pessoa rica não só de dinheiro, mas de fama, de tudo.
Todos, diante de si, sabem que, por mais que se esforcem, permanecem sempre radicalmente incompletos e vulneráveis. Não há pintura alguma que cubra esta vulnerabilidade. Todos são vulneráveis dentro. É preciso ver onde. Mas como vivemos mal se rejeitamos os próprios limites! Vive-se mal. Não se digere o limite. Está ali. Pessoas orgulhosas não pedem ajuda, não podem pedir ajuda porque têm de ser autossuficientes. E quantas delas precisam de ajuda, mas o orgulho impede que peçam ajuda. E como é difícil admitir um erro e pedir perdão! Quando dou conselhos aos recém-casados, que me perguntam como levar por diante o seu matrimônio, respondo-lhes: “Há três palavras mágicas: com licença, obrigado, desculpa”. São palavras que vêm da pobreza de espírito. Não se deve ser intrometido, mas pedir licença: “Que te parece se fizermos isto?”, para que haja diálogo em família, esposo e esposa dialogam. “Fizeste isto por mim, obrigado, eu precisava”. Depois cometem-se sempre erros, vacila-se: “Desculpa”. E geralmente, casais, os recém-casados, aqueles que estão aqui e muitos, dizem-me: “A terceira é a mais difícil”, pedir desculpa, pedir perdão. Porque o homem orgulhoso não consegue. Ele não pode pedir desculpa: ele tem sempre razão. Não é pobre de espírito. Ao contrário, o Senhor nunca se cansa de perdoar; somos nós que infelizmente nos cansamos de pedir perdão (cf. Angelus, 17 de março de 2013). O cansaço de pedir perdão: esta é uma doença horrível!
Por que é difícil pedir perdão? Porque isso humilha a nossa imagem hipócrita. No entanto, viver procurando esconder as nossas falhas é cansativo e angustiante. Jesus Cristo diz-nos: ser pobre é uma ocasião de graça; e mostra-nos o caminho para sair desta fadiga. É-nos dado o direito de sermos pobres em espírito, porque este é o caminho do Reino de Deus.
Mas há uma coisa fundamental que deve ser reiterada: não nos devemos transformar para nos tornarmos pobres em espírito, não devemos fazer transformação alguma porque já somos pobres! Nós somos pobres... ou mais claramente: somos “muito pobres” em espírito! Nós precisamos de tudo. Somos todos pobres em espírito, somos mendigos. É a condição humana.
O Reino de Deus é dos pobres em espírito. Há aqueles que têm os reinos deste mundo: possuem bens e conforto. Mas são reinos que acabam. O poder dos homens, mesmo os maiores impérios, passam e desaparecem. Muitas vezes vemos nas notícias ou nos jornais que aquele governante forte e poderoso ou aquele governo que ontem existia e hoje já não existe, caiu. As riquezas deste mundo desaparecem, e o dinheiro também. Os idosos ensinavam-nos que a mortalha não tinha bolsos. Isto é verdade. Nunca vi atrás de um cortejo fúnebre um camião para a mudança. Ninguém leva nada. Estas riquezas ficam aqui.
O Reino de Deus é dos pobres em espírito. Há aqueles que têm os reinos deste mundo, têm bens e conforto. Mas nós sabemos que eles acabam. Reina deveras quem sabe amar o verdadeiro bem mais do que a si mesmo. Tal é o poder de Deus.
Como se mostrou Cristo poderoso? Pois Ele soube fazer o que os reis da terra não fazem: dar a sua vida pelos homens. E esse é o verdadeiro poder. Poder da fraternidade, poder da caridade, poder do amor, poder da humildade. Foi o que Cristo fez.
Nisto reside a verdadeira liberdade: quem tem este poder de humildade, de serviço, de fraternidade, é livre. Ao serviço desta liberdade está a pobreza louvada pelas bem-aventuranças.
Pois existe uma pobreza que devemos aceitar, a do nosso ser, e uma pobreza que, ao contrário, devemos procurar, a pobreza concreta, das coisas deste mundo, para sermos livres e podermos amar. Devemos procurar sempre a liberdade do coração, a liberdade que está enraizada na pobreza de nós mesmos.
Papa Francisco
Catequese na audiência Geral 5.02.2020
imagem: site do Vaticano
Catequeses sobre as Bem-aventuranças - 3
Amados irmãos e irmãs, bom dia!
Empreendemos o caminho das bem-aventuranças e hoje analisamos a segunda: bem-aventurados os que choram, porque serão consolados.
Na língua grega em que o Evangelho é escrito, esta bem-aventurança é expressa com um verbo que não está no passivo — na verdade os bem-aventurados não são vítimas desse choro — mas no ativo: «os que choram»; choram, mas por dentro. É uma atitude que se tornou central na espiritualidade cristã, à qual os padres do deserto, os primeiros monges da história, chamaram “penthos”, ou seja, uma dor interior que se abre a uma relação com o Senhor e com o próximo.
Este choro, nas Escrituras, pode ter dois aspetos: o primeiro é pela morte ou sofrimento de alguém. O outro aspecto são as lágrimas pelo pecado — pelo próprio pecado — quando o coração sangra pela dor de ter ofendido a Deus e ao próximo.
Trata-se, portanto, de amar o outro de maneira tal que nos vinculamos a ele ou a ela até compartilharmos a sua dor. Há pessoas que permanecem distantes, um passo atrás; ao contrário, é importante que os outros conquistem o nosso coração.
Falei muitas vezes do dom das lágrimas, e de como é precioso (cf. Exort. ap. pós-sin. Christus vivit, 76; Discurso aos jovens da Universidade de São Tomás, Manila, 18 de janeiro de 2015; Homilia na quarta-feira de Cinzas, 18 de fevereiro de 2015). Podemos amar de uma forma fria? Podemos amar por função, por dever? Claro que não. Há alguns aflitos para consolar, mas às vezes há também consolados para afligir, para despertar, que têm um coração de pedra e não aprenderam a chorar. É necessário também despertar as pessoas que não se deixam comover pela dor dos outros.
O luto, por exemplo, é um caminho amargo, mas pode ser útil para abrir os olhos para a vida e para o valor sagrado e insubstituível de cada pessoa, e nesse momento percebemos quão curto é o tempo.
Há um segundo significado desta paradoxal bem-aventurança: chorar pelo pecado.
Aqui é necessário distinguir: há aqueles que estão irados por terem cometido um erro. Mas isto é orgulho. Ao contrário, há quem chora pelo mal feito, pelo bem omitido, e pela traição do relacionamento com Deus. Este é o choro por não ter amado, que nasce da preocupação pelas outras pessoas. Neste caso, choramos porque não correspondemos ao Senhor que nos ama tanto, e entristece-nos o pensamento do bem que não praticamos; este é o significado do pecado. Estes dizem: «Ofendi aquele que amo», e isto os faz sofrer até às lágrimas. Deus seja abençoado se houver estas lágrimas!
Este é o tema dos próprios erros a enfrentar, difícil mas vital. Pensemos no choro de São Pedro, que o levará a um amor novo e muito mais verdadeiro: é um choro que purifica, que renova. Pedro olhou para Jesus e chorou: o seu coração foi renovado. Ao contrário de Judas, que não aceitou ter errado e, pobre homem, suicidou-se. A compreensão do pecado é um dom de Deus, é uma obra do Espírito Santo. Nós, sozinhos, não conseguimos entender o pecado. É uma graça que devemos pedir. Senhor, que eu entenda o mal que cometi ou o que posso cometer. Este é um dom muito grande e depois de ter compreendido isto, vem o choro de arrependimento.
Um dos primeiros monges, Efrém, o Sírio, diz que um rosto lavado pelas lágrimas é de uma beleza indescritível (cf. Discurso ascético). A beleza do arrependimento, a beleza do choro, a beleza da contrição! A vida cristã tem sempre a sua melhor expressão na misericórdia. Sábio e bem-aventurado é aquele que acolhe a dor relacionada com o amor, porque receberá a consolação do Espírito Santo que é a ternura de Deus que perdoa e corrige. Deus perdoa sempre: não nos esqueçamos disto. Deus perdoa sempre, até os piores pecados, sempre. O problema está em nós, que nos cansamos de pedir perdão, fechamo-nos e não pedimos perdão. É este o problema, mas Ele está ali para perdoar.
Se tivermos sempre em mente que Deus «não nos tratou segundo os nossos pecados, nem nos castigou segundo as nossas culpas» (Sl 103, 10), vivemos na misericórdia e na compaixão, e em nós surge o amor. Que o Senhor nos conceda amar em abundância, amar com o sorriso, com a proximidade, com o serviço e também com o choro.
Papa Francisco
Catequese na audiência geral 12.02.2020
Catequese sobre os Atos dos Apóstolos - 18
Queridos irmãos e irmãs, bom dia!
Na leitura dos Atos dos Apóstolos, continua o caminho do Evangelho no mundo e o testemunho de São Paulo é cada vez mais marcado pelo selo do sofrimento. Mas isto é algo que cresce com o tempo na vida de Paulo. Paulo não é apenas o fervoroso evangelizador, o intrépido missionário entre os pagãos, que dá vida a novas comunidades cristãs, mas também a testemunha sofredora do Ressuscitado (cf. At 9, 15-16).
A chegada do Apóstolo a Jerusalém, descrita no capítulo 21 dos Atos, provocou um ódio feroz contra ele, reprovando-o: «Mas este era um perseguidor! Não confieis!». Como foi para Jesus, também para ele Jerusalém é a cidade hostil. Ele foi ao templo, foi reconhecido, foi levado para ser linchado e foi salvo in extremis pelos soldados romanos. Acusado de ensinar contra a Lei e contra o templo, ele é preso e começa a sua peregrinação como prisioneiro, primeiro diante do sinédrio, depois diante do procurador romano em Cesareia e, por fim, diante do rei Agripa. Lucas destaca a semelhança entre Paulo e Jesus, ambos odiados pelos seus adversários, publicamente acusados e reconhecidos como inocentes pelas autoridades imperiais; e assim Paulo é associado à paixão do seu Mestre, e a sua paixão torna-se um evangelho vivo. Venho da Basílica de São Pedro e lá tive a minha primeira audiência, esta manhã, com os peregrinos ucranianos, de uma diocese ucraniana. Quão perseguidas foram estas pessoas, quanto sofreram pelo Evangelho! Mas eles não negociaram a fé. São um exemplo. Hoje, no mundo, na Europa, muitos cristãos são perseguidos e dão a vida pela sua fé, ou são perseguidos com luvas brancas, isto é, deixados de lado, marginalizados... O martírio é o ar da vida de um cristão, de uma comunidade cristã. Haverá sempre mártires entre nós: este é o sinal de que estamos a seguir o caminho de Jesus. É uma bênção do Senhor, para que haja entre o povo de Deus, alguém que dá este testemunho de martírio.
Paulo é chamado a defender-se das acusações e, no final, na presença do rei Agripa II, a sua apologia transforma-se num testemunho eficaz de fé (cf. At 26, 1-23).
Depois Paulo fala da sua conversão: Cristo ressuscitado tornou-o cristão e confiou-lhe a missão entre as nações, «para lhes abrires os olhos e fazê-los passar das trevas à luz, e da sujeição de Satanás para Deus. Alcançarão, assim, o perdão dos seus pecados e a parte que lhes cabe na herança, juntamente com os santificados pela fé» em Cristo (v. 18). Paulo obedeceu a este encargo e mais não fez do que mostrar como os profetas e Moisés predisseram o que ele agora anuncia: «que o Messias tinha de sofrer e que, sendo o primeiro a ressuscitar de entre os mortos, anunciaria a luz ao povo e aos pagãos» (v. 23). O testemunho apaixonado de Paulo comove o coração do rei Agripa, a quem falta apenas o passo decisivo. Então o rei diz: «Por pouco não me persuades a fazer-me cristão!» (v. 28). Paulo é declarado inocente, mas não pode ser libertado porque ele apelou para César. Assim continua a viagem imparável da Palavra de Deus para Roma. Paulo, acorrentado, acaba por chegar aqui a Roma.
A partir deste momento, o retrato de Paulo é o do preso cujas correntes são o sinal da sua fidelidade ao Evangelho e do testemunho dado ao Ressuscitado.
As cadeias são certamente uma prova humilhante para o Apóstolo, que o mundo vê como um «malfeitor» (2 Tm 2, 9). Mas o seu amor por Cristo é tão forte que também estas cadeias são lidas com os olhos da fé; fé que para Paulo não é «uma teoria, uma opinião sobre Deus e o mundo», mas «o impacto do amor de Deus no seu coração [...] é o amor a Jesus Cristo» (Bento XVI, Homilia por ocasião do Ano Paulino, 28 de junho de 2008).
Queridos irmãos e irmãs, Paulo ensina-nos a perseverança na provação e a capacidade de ler tudo com os olhos da fé. Hoje pedimos ao Senhor, por intercessão do Apóstolo, que reavive a nossa fé e nos ajude a ser fiéis até ao fim à nossa vocação de cristãos, discípulos do Senhor, missionários.
Papa Francisco
Audiência Geral 11.12.2019
Catequese sobre os Atos dos Apóstolos - 19
Amados irmãos e irmãs, bom dia!
O livro dos Atos dos Apóstolos, na parte final, diz-nos que o Evangelho continua a sua viagem não só por terra mas por mar, num barco que conduz Paulo, prisioneiro, de Cesareia para Roma (cf. At 27, 1-28, 16), ao coração do Império, para que se realize a palavra do Ressuscitado: «sereis minhas testemunhas... até aos confins do mundo» (At 1, 8). Lede o Livro dos Atos dos Apóstolos e vereis como o Evangelho, com a força do Espírito Santo, chega a todos os povos, se torna universal. Pegai nele. Lede-o.
A navegação encontra condições desfavoráveis logo desde o início. A viagem torna-se perigosa. Paulo aconselha a não prosseguir a nevegação, mas o centurião não lhe dá ouvidos e confia no piloto e no armador. A viagem continua e desencadeia-se um vento tão forte que a tripulação perde o controle e deixa o barco ir à deriva.
Quando a morte parece próxima e o desespero invade todos, Paulo intervém e tranquiliza os companheiros dizendo o que ouvimos: «Esta noite, apareceu-me um Anjo de Deus, a quem pertenço e a quem sirvo, e disse-me: “Nada receies, Paulo. É necessário que compareças diante de César e, por isso, Deus concedeu-te a vida de todos quantos navegam contigo”» (At 27, 23-24). Até na provação, Paulo nunca deixa de ser o guardião da vida dos outros e o animador da sua esperança.
Lucas mostra-nos assim que o plano que conduz Paulo a Roma salva não só o Apóstolo, mas também os seus companheiros de viagem, e o naufrágio, de uma situação de infortúnio, transforma-se numa oportunidade providencial para o anúncio do Evangelho.
Ao naufrágio segue-se a chegada à ilha de Malta, cujos habitantes mostram um acolhimento atencioso. Os malteses são bons, são mansuetos, são acolhedores já desde aquela época. Chove e faz frio e eles acendem uma fogueira para garantir algum calor e alívio aos náufragos. Aqui também Paulo, como verdadeiro discípulo de Cristo, se coloca ao serviço para alimentar a fogueira com alguns ramos. Durante estas operações ele é mordido por uma víbora mas não sofre dano algum: as pessoas, vendo isso, dizem: «Com certeza, esse homem é assassino, pois conseguiu salvar-se do mar, mas a justiça divina não o deixa viver». Eles esperaram pelo momento em que ele caísse morto, mas ele não sofreu nenhum dano e até foi confundido — em vez de um malfeitor — com uma divindade. Na verdade, esse benefício vem do Senhor ressuscitado que o assiste, segundo a promessa feita antes de subir ao céu e dirigida aos crentes: «apanharão serpentes com as mãos e, se beberem algum veneno mortal, não sofrerão nenhum mal; hão de impor as mãos aos doentes e eles ficarão curados» (Mc 16, 18). A história diz-nos que a partir daquele momento deixou de haver víboras em Malta: esta é a bênção de Deus pelo acolhimento deste povo muito bondoso.
De fato, para Paulo, a estadia em Malta torna-se uma ocasião propícia para dar “carne” à palavra que ele anuncia e assim exercer um ministério de compaixão na cura dos doentes. E esta é uma lei do Evangelho: quando um crente experimenta a salvação, não a conserva para si mesmo, mas põe-na em circulação. «O bem tende sempre a comunicar-se. Toda a experiência autêntica de verdade e de beleza procura, por si mesma, a sua expansão; e qualquer pessoa que viva uma libertação profunda adquire maior sensibilidade face às necessidades dos outros» (Exort. ap. Evangelii gaudium, 9). Um cristão “provado” pode certamente tornar-se mais próximo daqueles que sofrem porque sabe o que significa o sofrimento, e manter o seu coração aberto e sensível à solidariedade para com os outros.
Paulo ensina-nos a viver as provas aproximando-nos de Cristo, para amadurecer a «convicção de que Deus pode atuar em qualquer circunstância, mesmo no meio de aparentes fracassos» e a «certeza, que a pessoa que se oferece e entrega a Deus por amor, seguramente será fecunda» (ibid., 279). O amor é sempre fecundo, o amor a Deus é sempre fecundo, e se vos deixardes prender pelo Senhor e se receberdes os dons do Senhor, isto permitir-vos-á oferecê-los aos outros. O amor de Deus vai sempre além.
Peçamos hoje ao Senhor que nos ajude a viver todas as provações amparados pela energia da fé; e a ser sensíveis aos muitos náufragos da história que chegam aos nossos litorais exaustos, para que também nós saibamos acolhê-los com aquele amor fraterno que vem do encontro com Jesus. É isto que salva do gelo da indiferença e da desumanidade.
Papa Francisco
Catequese na audiência Geral 8.01.2020
Catequese sobre os Atos dos Apóstolos - 20
Amados irmãos e irmãs!
Hoje concluímos a nossa catequese sobre os Atos dos Apóstolos com a última etapa missionária de São Paulo: Roma (cf. At 28, 14).
A viagem de Paulo, que foi uma com a do Evangelho, é a prova de que os caminhos dos homens, se vividos na fé, podem tornar-se um espaço de trânsito para a salvação de Deus, através da Palavra de fé que é um fermento ativo na história, capaz de transformar situações e abrir caminhos sempre novos.
Com a chegada de Paulo ao coração do Império acaba a narração dos Atos dos Apóstolos, que não termina com o martírio de Paulo, mas com a semeadura abundante da Palavra. O fim da narração de Lucas, centrada na viagem do Evangelho no mundo, contém e recapitula todo o dinamismo da Palavra de Deus, uma Palavra imparável que quer correr para comunicar a salvação a todos.
Em Roma, Paulo encontra antes de tudo os seus irmãos em Cristo, que o acolhem e lhe infundem coragem (cf. At 28, 15) e cuja calorosa hospitalidade faz pensar em quanto a sua chegada era esperada e desejada. Depois foi-lhe permitido viver sozinho sob custodia militaris, ou seja, com um soldado a guardá-lo, ele estava na prisão domiciliária. Apesar da sua condição de prisioneiro, Paulo pode encontrar-se com os chefes dos judeus para explicar porque foi forçado a apelar para César e para falar com eles sobre o reino de Deus. Ele procura convencê-los sobre Jesus, a partir das Escrituras e mostrando a continuidade entre a novidade de Cristo e a «esperança de Israel» (At 28, 20). Paulo reconhece-se profundamente judeu e vê no Evangelho que prega, ou seja, no anúncio de Cristo morto e ressuscitado, o cumprimento das promessas feitas ao povo eleito.
Depois deste primeiro encontro informal no qual os judeus estavam bem dispostos, seguiu-se outro mais oficial durante o qual, por todo o dia, Paulo anunciou o Reino de Deus e procurou abrir os seus interlocutores à fé em Jesus, partindo «da lei de Moisés e dos Profetas» (At 28, 23). Visto que nem todos estavam convencidos, ele denuncia o endurecimento do coração do povo de Deus, causa da sua condenação (cf. Is 6, 9-10), e celebra com paixão a salvação das nações que se mostram sensíveis a Deus e capazes de escutar a Palavra evangélica da vida (cf. At 28, 28).
Neste ponto da narração, Lucas conclui a sua obra mostrando-nos não a morte de Paulo, mas o dinamismo do seu sermão, de uma Palavra que «não está acorrentada» (2 Tm 2, 9) — Paulo não tem liberdade de movimento, mas é livre para falar porque a Palavra não está acorrentada — é uma Palavra pronta para ser semeada a mãos-cheias pelo Apóstolo. Paulo faz isto «com o maior desassombro e sem impedimento» (At 28, 31), numa casa onde acolhe aqueles que querem receber o anúncio do Reino de Deus e conhecer Cristo. Esta casa aberta a todos os corações em busca é a imagem da Igreja que, embora perseguida, incompreendida e acorrentada, não se cansa de acolher cada homem e cada mulher com um coração materno para lhes anunciar o amor do Pai que se fez visível em Jesus.
Queridos irmãos e irmãs, no final deste caminho, vivido juntos seguindo a corrida evangélica no mundo, que o Espírito reavive em cada um de nós o chamado a ser evangelizadores corajosos e jubilosos. Também nós, como Paulo, sejamos capazes de impregnar as nossas casas com o Evangelho e fazer com que elas se tornem cenáculos de fraternidade, onde possamos acolher Cristo vivo, que «vem ao nosso encontro em cada homem e em cada época» (cf. II Prefácio do Advento).
Papa Francisco
Catequese na audiência Geral 15.01.2020
Atos dos Apóstolos - 17
Queridos irmãos e irmãs, bom dia!
A viagem do Evangelho pelo mundo continua ininterrupta no Livro dos Atos dos Apóstolos, e atravessa a cidade de Éfeso, mostrando todo o seu poder salvífico. Graças a Paulo, cerca de doze homens recebem o batismo em nome de Jesus e experimentam a efusão do Espírito Santo que os regenera (cf. At 19, 1-7). Depois há várias maravilhas que acontecem através do Apóstolo: os doentes curados e os possuídos são libertados (cf. At 19, 11-12). Isto acontece porque o discípulo se assemelha com o seu Mestre (cf. Lc 6, 40) e o torna presente, comunicando aos seus irmãos a mesma vida nova que recebeu dele.
O poder de Deus que irrompe em Éfeso desmascara aqueles que desejam usar o nome de Jesus para realizar exorcismos, mas sem terem autoridade espiritual para o fazer (cf. At 19, 13-17), e revela a fraqueza da magia, que é abandonada por um grande número de pessoas que escolhem Cristo e renunciam às artes mágicas (cf. At 19, 18-19). Uma verdadeira inversão para uma cidade, como Éfeso, que foi um centro famoso para a prática da magia! Lucas enfatiza assim a incompatibilidade entre a fé em Cristo e a magia. Se escolheres Cristo, não podes recorrer ao mago: a fé significa abandonar-se nas mãos de um Deus confiável, que se faz conhecer não através de práticas ocultas, mas da revelação e com amor gratuito. Talvez alguns de vós me digam: “Ah, sim, isto de magia é uma coisa antiga: hoje, com a civilização cristã isto não acontece”. Mas tomai cuidado! Eu pergunto-vos: quantos de vós vão ler a sina, quantos de vós vão aos adivinhos para que lhes leiam as mãos ou as cartas? Ainda hoje, nas grandes cidades, os cristãos praticantes fazem essas coisas. E à pergunta: “Mas como é que, se crês em Jesus Cristo, vais ao mago, ao adivinho, a todas estas pessoas?”, respondem: “Creio em Jesus Cristo, mas por superstição vou também a elas”. Por favor: a magia não é cristã! Essas coisas que são feitas para adivinhar o futuro ou adivinhar muitas coisas ou mudar situações da vida, não são cristãs. A graça de Cristo traz-te tudo: reza e confia no Senhor.
A difusão do Evangelho em Éfeso prejudica o comércio dos ourives — outro problema — que fabricavam as estátuas da deusa Ártemis, fazendo da prática religiosa um verdadeiro negócio. Peço-vos que penseis nisto. Vendo diminuir aquela atividade que rendeu muito dinheiro, os ourives organizaram uma revolta contra Paulo, e os cristãos foram acusados de terem colocado em crise a categoria de artesãos, o santuário de Ártemis e a adoração desta deusa (cf. At 19, 23-28).
Depois, Paulo parte de Éfeso para Jerusalém e chega a Mileto (cf. At 20, 1-16). Aqui ele manda chamar os anciãos da Igreja de Éfeso — os presbíteros: ou seja, os sacerdotes — para fazer uma entrega de exortações “pastorais” (cf. At 20, 17-35). Estamos na fase final do ministério apostólico de Paulo e Lucas apresenta-nos o seu discurso de despedida, uma espécie de testamento espiritual que o Apóstolo dirige àqueles que, depois da sua partida, deverão guiar a comunidade de Éfeso. E esta é uma das páginas mais belas do Livro dos Atos dos Apóstolos: aconselho-vos a pegar hoje no Novo Testamento, na Bíblia, capítulo 20 e ler esta despedida de Paulo dos sacerdotes de Éfeso, que ele fez em Mileto. É um modo para compreender como o Apóstolo se despede e também como os sacerdotes de hoje se deveriam despedir, assim como se deveriam despedir todos os cristãos de hoje. É uma página linda.
Na parte exortativa, Paulo encoraja os responsáveis da comunidade, que ele sabe que vê pela última vez. E que lhes diz? “Vigiai sobre vós mesmos e sobre todo o rebanho”. Esta é a obra do pastor: ser vigilante, vigiar sobre si mesmo e sobre o rebanho. O pastor deve vigiar, o pároco deve vigiar, ser vigilante, os presbíteros devem vigiar, os bispos, o Papa devem vigiar. Vigiar para guardar o rebanho, e também vigiar sobre si mesmo, examinar a própria consciência e ver como se cumpre este dever de vigiar. «Tomai cuidado convosco e com todo o rebanho, de que o Espírito Santo vos constituiu administradores para apascentardes a Igreja de Deus, adquirida por Ele com o seu próprio sangue» (At 20, 28): assim diz São Paulo. Pede-se aos episcopi que se aproximem o mais possível do rebanho, resgatado pelo sangue precioso de Cristo, e que estejam dispostos a defendê-lo dos «lobos» (v. 29). Os Bispos devem estar muito próximos do povo para o guardar, para o defender; não devem estar afastados do povo. Depois de ter confiado esta tarefa aos responsáveis de Éfeso, Paulo entrega-os nas mãos de Deus e recomenda-os à «palavra da sua graça» (v. 32), fermento de qualquer crescimento e caminho de santidade na Igreja, convidando-os a trabalhar com as próprias mãos, como ele, para não serem um peso para os outros, a fim de ajudar os fracos e experimentar que «a felicidade está mais em dar do que em receber» (v. 35).
Queridos irmãos e irmãs, peçamos ao Senhor que renove em nós o seu amor pela Igreja e pelo depósito da fé que ela conserva, e que nos torne a todos corresponsáveis na preservação do rebanho, apoiando com a oração os pastores para que manifestem a firmeza e a ternura do Divino Pastor.
Papa Francisco
Audiência Geral - 04.12.2019
Catequese sobre os Atos dos Apóstolos - 16
Bom dia, prezados irmãos e irmãs!
Esta audiência realiza-se em dois grupos: os doentes estão na sala Paulo VI — já estive com eles, saudei-os e abençoei-os; são aproximadamente 250. Para eles será mais confortável lá, por causa da chuva — e nós aqui. Mas eles veem-nos na tela gigante. Saudemos os dois grupos com um aplauso.
Os Atos dos Apóstolos narram que Paulo, como evangelizador incansável, depois da sua permanência em Atenas, leva em frente a corrida do Evangelho no mundo. A nova etapa da sua viagem missionária é Corinto, capital da província romana da Acaia, uma cidade comercial e cosmopolita, graças à presença de dois portos importantes.
Como lemos no capítulo 18 dos Atos, Paulo encontra hospitalidade na casa de um casal, Áquila e Priscila (ou Prisca), obrigados a transferir-se de Roma para Corinto depois que o imperador Cláudio tinha decretado a expulsão dos judeus (cf. At 18, 2). Gostaria de abrir um parêntese. O povo judeu sofreu muito na história. Foi expulso, perseguido... E, no século passado, vimos muitas brutalidades que cometeram contra o povo judeu e estávamos todos convencidos de que isto tinha acabado. Mas hoje, o hábito de perseguir os judeus começa a renascer aqui e ali. Irmãos e irmãs, isto não é humano nem cristão. Os judeus são nossos irmãos! E não devem ser perseguidos. Entendestes? Aqueles esposos mostram que têm um coração cheio de fé em Deus e generoso para com os outros, capaz de dar lugar a quem, como eles, experimenta a condição de forasteiro. Esta sensibilidade leva-os a descentralizar-se de si mesmos para praticar a arte cristã da hospitalidade (cf. Rm 12, 13; Hb 13, 2) e abrir as portas da própria casa para acolher o Apóstolo Paulo. Assim, eles acolhem não só o evangelizador, mas também o anúncio que ele traz consigo: o Evangelho de Cristo, que é «o poder de Deus para a salvação de todos os que acreditam» (Rm 1, 16). E a partir daquele momento a sua casa impregna-se com o perfume da Palavra «viva» (Hb 4, 12) que anima os corações.
Áquila e Priscila partilham com Paulo também a atividade profissional de fabricar tendas. Com efeito, Paulo tinha grande estima pelo trabalho manual e considerava-o um espaço privilegiado de testemunho cristão (cf. 1 Cor 4, 12), assim como um modo correto de se manter, sem ser um fardo para os outros (cf. 1 Ts 2, 9; 2 Ts 3, 8) nem para a comunidade.
A casa de Áquila e Priscila em Corinto abre as suas portas não apenas ao Apóstolo, mas também aos irmãos e irmãs em Cristo. Com efeito, Paulo pode falar da «assembleia que se reúne em sua casa» (1 Cor 16, 19), que se torna “casa da Igreja”, “domus Ecclesiae”, um lugar de escuta da Palavra de Deus e de celebração da Eucaristia. Ainda hoje, nalguns países onde não há liberdade religiosa nem liberdade para os cristãos, eles reúnem-se numa casa, um pouco escondidos, para rezar e celebrar a Eucaristia. Ainda hoje existem estas casas, estas famílias, que se tornam um templo para a Eucaristia.
Depois de um ano e meio de permanência em Corinto, Paulo parte daquela cidade com Áquila e Priscila, e estabelecem-se em Éfeso. Também ali a casa deles passou a ser um lugar de catequese (cf. At 18, 26). Sucessivamente, os dois esposos voltarão para Roma e serão destinatários de um maravilhoso elogio, que o Apóstolo insere na sua carta aos Romanos. Paulo tinha um coração grato e assim escreveu sobre aqueles dois cônjuges na carta aos Romanos. Escutai: «Saudai Priscila e Áquila, meus colaboradores em Cristo Jesus, pessoas que, pela minha vida, expuseram a sua cabeça. Não sou apenas eu que lhes estou agradecido, mas todas as Igrejas dos gentios» (16, 3-4). Quantas famílias, em tempos de perseguição, arriscam a cabeça para manter escondidos aqueles que são perseguidos! Este foi o primeiro exemplo: a hospitalidade familiar, até em tempos difíceis.
Entre os numerosos colaboradores de Paulo, Áquila e Priscila sobressaem como «modelos de uma vida conjugal responsavelmente comprometida ao serviço de toda a comunidade cristã» e recordam-nos que o cristianismo chegou até nós, graças à fé e ao compromisso na evangelização de muitos leigos como eles. Com efeito, «para se radicar na terra do povo, para se desenvolver vivamente, era necessário o compromisso destas famílias. Mas pensai que no início o Cristianismo era pregado pelos leigos. Também vós leigos sois responsáveis, mediante o vosso Batismo, de levar em frente a fé. Este era o compromisso de muitas famílias, destes esposos, destas comunidades cristãs, de fiéis leigos que ofereceram o “húmus” ao crescimento da fé» (cf. Bento XVI, Catequese, 7 de fevereiro de 2007). É bonita esta frase do Papa Bento XVI: os leigos oferecem o “húmus” para o crescimento da fé!
Peçamos ao Pai, que quis fazer dos esposos a sua «verdadeira “escultura” viva» (Exortação Apostólica Amoris laetitia, 11) — acho que aqui há recém-casados: prestai atenção à vossa vocação, deveis ser a verdadeira escultura viva — a fim de que derrame o seu Espírito sobre todos os casais cristãos para que, a exemplo de Áquila e Priscila, saibam abrir as portas do seu coração a Cristo e aos seus irmãos, transformando os próprios lares em igrejas domésticas. Bonita expressão: a casa é uma igreja doméstica, onde viver a comunhão e oferecer o culto da vida vivida com fé, esperança e caridade. Devemos rezar a estes dois Santos, Áquila e Priscila, para que ensinem as nossas famílias a ser como eles: uma igreja doméstica onde há “húmus”, a fim de que a fé cresça.
Papa Francisco
Catequese na audiência geral 13.11.2019
Catequese sobre os Atos dos Apóstolos - 15
Queridos irmãos e irmãs, bom dia!
Continuamos o nosso “caminho” com o livro dos Atos dos Apóstolos. Depois das provações em Filipos, Tessalónica e Bereia, Paulo chegou a Atenas, precisamente no coração da Grécia (cf. At 17, 15). Esta cidade, que vivia à sombra de antigas glórias apesar da decadência política, ainda mantinha a primazia da cultura. Aqui o Apóstolo «fremia de indignação, ao ver a cidade repleta de ídolos» (At 17, 16). Contudo, este “impacto” com o paganismo, em vez de o fazer fugir, estimula-o a criar uma ponte para dialogar com essa cultura.
Paulo escolhe familiarizar-se com a cidade e começa portanto a frequentar os lugares e as pessoas mais significativas. Vai à sinagoga, símbolo da vida de fé; vai à praça, símbolo da vida da cidade; e vai ao Areópago, símbolo da vida política e cultural. Ele encontra judeus, filósofos epicuristas e estoicos, e muitos outros. Encontra-se com todas as pessoas, não se fecha, vai falar com todas as pessoas. Assim Paulo observa a cultura e o ambiente de Atenas «a partir de um olhar contemplativo» que descobre aquele «Deus que habita nas suas casas, nas suas ruas e nas suas praças» (Evangelii gaudium, 71). Paulo não olha para a cidade de Atenas nem para o mundo pagão com hostilidade, mas com os olhos da fé. E isto faz-nos questionar sobre a nossa forma de olhar para as nossas cidades: observamo-las com indiferença? Com desprezo? Ou com a fé que reconhece os filhos de Deus no meio das multidões anónimas?
Paulo escolhe o olhar que o leva a abrir uma brecha entre o Evangelho e o mundo pagão. No coração de uma das mais famosas instituições do mundo antigo, o Areópago, ele realiza um extraordinário exemplo de inculturação da mensagem da fé: proclama Jesus Cristo aos adoradores dos ídolos, e não o faz agredindo-os, mas tornando-se «pontífice, construtor de pontes» (Homilia em Santa Marta, 8 de maio de 2013).
Paulo inspira-se no altar da cidade dedicado a «um deus desconhecido» (At 17, 23) — havia um altar com uma inscrição “ao deus desconhecido”; nenhuma imagem, nada, apenas aquela inscrição. A partir dessa “devoção” ao deus desconhecido, para entrar em empatia com os seus ouvintes, ele proclama que Deus «vive entre os cidadãos» (Evangelii gaudium, 71) e «não Se esconde de quantos O buscam com coração sincero, ainda que o façam tacteando» (ibid.). É precisamente esta presença que Paulo procura revelar: «Aquele que venerais sem o conhecer é esse que eu vos anuncio» (At 17, 23).
Para revelar a identidade do deus que os atenienses adoram, o Apóstolo parte da criação, isto é, da fé bíblica no Deus da revelação, para chegar à redenção e ao juízo, isto é, à própria mensagem cristã. Ele mostra a desproporção entre a grandeza do Criador e os templos construídos pelo homem, e explica que o Criador se faz procurar sempre para que todos o possam encontrar. Assim Paulo, segundo uma bela expressão do Papa Bento XVI, anuncia «Aquele que os homens ignoram, e todavia conhecem-No: o Ignorado-Conhecido» (Bento XVI, Encontro com o mundo da cultura no Collège des Bernardins, 12 de setembro de 2008). Em seguida, convida todos a ir além dos “tempos da ignorância” e a decidir-se pela conversão em vista do juízo iminente. Assim, Paulo chega ao querigma e alude a Cristo, sem o citar, definindo-o como o Homem, que Deus «designou, oferecendo a todos um motivo de crédito, com o facto de o ter ressuscitado de entre os mortos» (At 17, 31).
E aqui está o problema. A palavra de Paulo, que até agora tinha mantido os seus interlocutores em expectativa — porque era uma descoberta interessante — encontra um obstáculo: a morte e a ressurreição de Cristo parecem «loucura» (1 Cor 1, 23) e suscita zombaria e escárnio. Então Paulo afasta-se: a sua tentativa parece ter fracassado, mas ao contrário, alguns aderem à sua palavra e abrem-se à fé. Entre eles está um homem, Dionísio, um membro do Areópago, e uma mulher, Damaris. Também em Atenas o Evangelho se enraíza e pode correr em duas vozes: a do homem e a da mulher!
Peçamos também nós hoje ao Espírito Santo que nos ensine a construir pontes com a cultura, com quantos não creem ou com aqueles que têm um credo diferente do nosso. Sempre a construir pontes, sempre a estender a mão, sem agredir. Peçamos-lhe a capacidade de inculturar delicadamente a mensagem de fé, com um olhar contemplativo sobre quantos não conhecem Cristo, movidos por um amor que aquece também os corações mais endurecidos.
Papa Francisco
Ouvimos, no Evangelho (Mt 2, 1-12), que os Magos começam por manifestar a intenção que os move: «Vimos a sua estrela no Oriente e viemos adorá-Lo» (2, 2). Adorar é o objetivo do seu percurso, a meta do seu caminho. De facto, chegados a Belém, quando «viram o Menino com Maria, sua mãe, prostrando-se, adoraram-No» (2, 11). Se perdermos o sentido da adoração, falta-nos o sentido de marcha da vida cristã, que é um caminho rumo ao Senhor, e não a nós. O risco existe, como nos adverte o Evangelho, quando, a par dos Magos, mostra personagens incapazes de adorar.
O primeiro deles é o rei Herodes, que usa o verbo «adorar», mas de maneira falaciosa. Com efeito, pede aos Magos que o informem do local onde encontrarem o Menino, «para – diz ele – ir também eu adorá-Lo» (2, 8). Na realidade, Herodes adorava apenas a si mesmo e por isso, com uma mentira, o que ele queria era livrar-se do Menino. Que nos ensina isto? Que o homem, quando não adora a Deus, é levado a adorar-se a si mesmo; e a própria vida cristã, sem adorar o Senhor, pode tornar-se uma forma educada de se louvar a si mesmo e a sua habilidade: cristãos que não sabem adorar, não sabem rezar adorando. É um risco sério: servir-se de Deus, em vez de servir a Deus. Quantas vezes trocamos os interesses do Evangelho pelos nossos; quantas vezes revestimos de religiosidade aquilo que a nós nos convém; quantas vezes confundimos o poder segundo Deus, que é servir os outros, com o poder segundo o mundo, que é servir-se a si mesmo!
Além de Herodes, há outras pessoas no Evangelho que não conseguem adorar: são os sumos sacerdotes e os escribas do povo. Com extrema precisão, indicam a Herodes o local onde havia de nascer o Messias: em Belém da Judeia (cf. 2, 5). Conhecem as profecias, citam-nas de forma exata. Sabem aonde ir – são grandes teólogos, mesmo grandes! –, mas não vão. Disto, também podemos tirar uma lição: na vida cristã, não basta saber. Sem sair de si mesmo, sem ir ao encontro de Deus, sem O adorar, não O conhecemos. De pouco ou nada servem a teologia e a ação pastoral, senão se dobram os joelhos; senão se faz como os Magos, que não se limitaram a ser sábios organizadores duma viagem, mas caminharam e adoraram. Quando se adora, apercebemo-nos de que a fé não se reduz a um belo conjunto de doutrinas, mas é a relação com uma Pessoa viva, que devemos amar. É permanecendo face a face com Jesus que conhecemos o seu rosto. Quando O adoramos, descobrimos que a vida cristã é uma história de amor com Deus, onde não basta ter boas ideias sobre Ele, mas é preciso colocá-Lo em primeiro lugar, como faz um namorado com a pessoa amada. Assim deve ser a Igreja: uma adoradora enamorada de Jesus, seu esposo.
Ao principiar este ano, descubramos de novo a adoração como exigência da fé. Se soubermos ajoelhar diante de Jesus, venceremos a tentação de olhar apenas aos nossos interesses. De facto, adorar é fazer o êxodo da maior escravidão: a escravidão de si mesmo. Adorar é colocar o Senhor no centro, para deixarmos de estar centrados em nós mesmos. É predispor as coisas na sua justa ordem, reservando o primeiro lugar para Deus. Adorar é antepor os planos de Deus ao meu tempo, aos meus direitos, aos meus espaços. É aceitar o ensinamento da Escritura: «Ao Senhor, teu Deus, adorarás» (Mt 4, 10). «Teu Deus»: adorar é sentir que nos pertencemos mutuamente, eu e Deus. É tratá-Lo por «Tu» na intimidade, é depor a seus pés a nossa vida, permitindo-Lhe entrar nela. É fazer descer sobre o mundo a sua consolação. Adorar é descobrir que, para rezar, basta dizer «Meu Senhor e meu Deus!» (Jo 20, 28) e deixar-me invadir pela sua ternura.
Adorar é ir ter com Jesus, não com uma lista de pedidos, mas com o único pedido de estar com Ele. É descobrir que a alegria e a paz crescem com o louvor e a ação de graças. Quando adoramos, permitimos a Jesus que nos cure e transforme; adorando, damos ao Senhor a possibilidade de nos transformar com o seu amor, iluminar as nossas trevas, dar-nos força na fraqueza e coragem nas provações. Adorar é ir ao essencial: é o caminho para se desintoxicar de tantas coisas inúteis, de dependências que anestesiam o coração e estonteiam a mente. De facto, adorando, aprende-se a rejeitar o que não deve ser adorado: o deus dinheiro, o deus consumo, o deus prazer, o deus sucesso, o nosso eu arvorado em deus. Adorar é fazer-se pequenino na presença do Altíssimo, descobrir diante d’Ele que a grandeza da vida não consiste em ter, mas em amar. Adorar é descobrir-nos como irmãos e irmãs face ao mistério do amor que ultrapassa todas as distâncias: é beber o bem na fonte, é encontrar no Deus próximo a coragem de nos aproximarmos dos outros. Adorar é saber calar diante do Verbo divino, para aprender a dizer palavras que não magoem, mas consolem.
Adorar é um gesto de amor que muda a vida. É fazer como os Magos: levar ao Senhor o ouro, para Lhe dizer que nada é mais precioso do que Ele; oferecer-Lhe o incenso, para Lhe dizer que só com Ele se eleva para o alto a nossa vida; apresentar-Lhe a mirra – com ela se ungiam os corpos feridos e dilacerados – como promessa a Jesus de que socorreremos o próximo marginalizado e sofredor, porque nele está o Senhor. Habitualmente, ao rezar, sabemos pedir, agradecer ao Senhor; mas a Igreja deve progredir ainda mais na oração de adoração. Devemos crescer na adoração; a oração de adoração é uma ciência que temos de aprender todos os dias: rezar adorando.
Amados irmãos e irmãs, hoje cada um de nós pode interrogar-se: «Sou um cristão adorador?» A pergunta impõe-se-nos, pois muitos cristãos que rezam, não sabem adorar. Encontremos momentos para a adoração ao longo do nosso dia e criemos espaço para a adoração nas nossas comunidades. Cabe a nós, como Igreja, colocar em prática as palavras que acabamos de rezar no Salmo: «Adorar-Vos-ão, Senhor, todos os povos da terra». Adorando, descobriremos também nós, como os Magos, a direção certa do nosso caminho. E sentiremos, como os Magos, uma «imensa alegria» (Mt 2, 10).
Papa Francisco
Homilia na Solenidade da Epifania do Senhor 06.01.2020
«Habitavam numa terra de sombras, mas uma luz brilhou sobre eles» (Is 9, 1). Esta profecia da Primeira Leitura realizou-se no Evangelho: de facto, enquanto os pastores velavam de noite nas suas terras, «a glória do Senhor refulgiu em volta deles» (Lc 2, 9). Na noite da terra, apareceu uma luz vinda do Céu. Que significa esta luz que se manifestou na escuridão? No-lo sugere o apóstolo Paulo quando diz: «Manifestou-se a graça de Deus». Nesta noite, a graça de Deus, «portadora de salvação para todos os homens» (Tt 2, 11), envolveu o mundo.
Mas, que é esta graça? É o amor divino, o amor que transforma a vida, renova a história, liberta do mal, infunde paz e alegria. Nesta noite, foi-nos mostrado o amor de Deus: é Jesus. Em Jesus, o Altíssimo fez-Se pequenino, para ser amado por nós. Em Jesus, Deus fez-Se Menino, para Se deixar abraçar por nós. Mas podemos ainda perguntar-nos: Porque é que São Paulo chama «graça» à vinda de Deus ao mundo? Para nos dizer que é completamente gratuita. Enquanto aqui, na terra, tudo parece seguir a lógica do dar para receber, Deus chega de graça. O seu amor ultrapassa qualquer possibilidade de negócio: nada fizemos para o merecer, e nunca poderemos retribuí-lo.
Manifestou-se a graça de Deus. Nesta noite, damo-nos conta de que, não sendo nós capazes da altura d’Ele, por amor nosso desceu à nossa pequenez; vivendo preocupados apenas com os nossos interesses, veio Ele habitar entre nós. O Natal lembra-nos que Deus continua a amar todo o homem, mesmo o pior. Hoje diz a mim, a ti, a cada um de nós: «Amo-te e sempre te amarei; és precioso aos meus olhos». Deus não te ama, porque pensas certo e te comportas bem; ama-te… e basta! O seu amor é incondicional, não depende de ti. Podes ter ideias erradas, podes tê-las combinado de todas as cores, mas o Senhor não desiste de te querer bem. Quantas vezes pensamos que Deus é bom, se formos bons; e castiga-nos, se formos maus; mas não é assim! Nos nossos pecados, continua a amar-nos. O seu amor não muda, não é melindroso; é fiel, é paciente. Eis o dom que encontramos no Natal: com maravilha, descobrimos que no Senhor está toda a gratuidade possível, toda a ternura possível. A sua glória não nos encandeia, nem a sua presença nos assusta. Nasce pobre de tudo, para nos conquistar com a riqueza do seu amor.
Manifestou-se a graça de Deus. Graça é sinónimo de beleza. Nesta noite, na beleza do amor de Deus redescobrimos também a nossa beleza, porque somos os amados de Deus. No bem e no mal, na saúde e na doença, felizes ou tristes, sempre aparecemos lindos a seus olhos: não pelo que fazemos, mas pelo que somos. Em nós, há uma beleza indelével, intangível; uma beleza incancelável, que é o núcleo do nosso ser. Deus no-lo recorda hoje, tomando amorosamente a nossa humanidade e assumindo-a, «desposando-a» para sempre.
A «grande alegria», anunciada aos pastores nesta noite, é verdadeiramente «para todo o povo». Naqueles pastores, que santos não eram certamente, estamos também nós, com as nossas fragilidades e fraquezas. Deus, tal como chamou a eles, chama a nós também, porque nos ama. E, nas noites da vida, diz-nos como a eles: «Não temais» (Lc 2, 10). Coragem, não percais a confiança nem a esperança; não penseis que amar seja tempo perdido! Nesta noite, o amor venceu o medo, manifestou-se uma nova esperança; a luz gentil de Deus venceu as trevas da arrogância humana. Humanidade, Deus ama-te e, por ti, fez-Se homem; já não estás sozinha.
Amados irmãos e irmãs, que fazer perante esta graça? Uma coisa só: acolher o dom. Antes que ir à procura de Deus, deixemo-nos procurar por Ele, que nos procura primeiro. Não partamos das nossas capacidades, mas da sua graça, porque é Ele, Jesus, o Salvador. Fixemos o olhar no Menino e deixemo-nos envolver pela sua ternura. As desculpas para não nos deixarmos amar por Ele, desapareceram: aquilo que está torto na vida, aquilo que não funciona na Igreja, aquilo que corre mal no mundo não poderá mais servir-nos de justificação. Passou a segundo plano, pois frente ao amor louco de Jesus, a um amor todo ele mansidão e proximidade, não há desculpas. E, assim, a questão no Natal é esta: «Deixo-me amar por Deus? Abandono-me ao seu amor que vem salvar-me?»
Um dom tão grande merece tanta gratidão! Acolher a graça é saber agradecer. Frequentemente, porém, as nossas vidas transcorrem alheias à gratidão. Hoje é o dia justo para nos aproximarmos do sacrário, do presépio, da manjedoura, e dizermos obrigado. Acolhamos o dom que é Jesus, para depois nos tornarmos dom como Jesus. Tornar-se dom é dar sentido à vida, sendo este o melhor modo para mudar o mundo: nós mudamos, a Igreja muda, a história muda, quando começamos a querer mudar, não os outros, mas a nós mesmos, fazendo da nossa vida um dom.
Assim no-lo mostra Jesus nesta noite: não mudou a História forçando alguém ou à força de palavras, mas com o dom da sua vida. Não esperou que nos tornássemos bons para nos amar, mas deu-Se gratuitamente a nós. Por nossa vez, não esperemos que o próximo se torne bom para lhe fazermos bem, que a Igreja seja perfeita para a amarmos, que os outros tenham consideração por nós para os servirmos. Comecemos nós. Isto é acolher o dom da graça. E a santidade consiste precisamente em preservar esta gratuidade.
Conta uma graciosa história que, no nascimento de Jesus, os pastores acorriam à gruta com vários dons. Cada um levava o que tinha, ora os frutos do seu trabalho, ora algo precioso. Mas, enquanto todos se prodigalizavam com generosidade, havia um pastor que não tinha nada. Era muito pobre, não tinha nada para oferecer. E enquanto todos se emulavam na apresentação dos seus dons, ele mantinha-se aparte, com vergonha. A dada altura, São José e Nossa Senhora sentiram dificuldade para receber todos os dons – eram tantos – , especialmente Maria que devia segurar nos braços o Menino. Então, vendo com as mãos vazias aquele pastor, pediu-lhe que se aproximasse e colocou-lhe Jesus nas mãos. Ao acolhê-Lo, aquele pastor deu-se conta de ter recebido aquilo que não merecia: ter nas mãos o maior dom da História. Olhou para as suas mãos, aquelas mãos que lhe pareciam sempre vazias: tornaram-se o berço de Deus. Sentiu-se amado e, superando a vergonha, começou a mostrar aos outros Jesus, porque não podia guardar para si o dom dos dons.
Querido irmão, querida irmã, se as tuas mãos te parecem vazias, se vês o teu coração pobre de amor, esta é a tua noite. Manifestou-se a graça de Deus, para resplandecer na tua vida. Acolhe-a e brilhará em ti a luz do Natal.
Catequese sobre os Atos dos Apóstolos - 14
Bom dia, estimados irmãos e irmãs!
Lendo os Atos dos Apóstolos vê-se que o Espírito Santo é o protagonista da missão da Igreja: é Ele quem guia o caminho dos evangelizadores, mostrando-lhes a vereda a seguir.
Vemos isto claramente no momento em que o Apóstolo Paulo, ao chegar a Troade, tem uma visão. Um Macedônio suplica-lhe: «Vem à Macedônia e ajuda-nos!» (At 16, 9). O povo da Macedônia do Norte é orgulhoso disto, muito orgulhoso de ter chamado Paulo, para que ele anunciasse Jesus Cristo. Lembro-me muito bem daquele bonito povo, que me recebeu com tanto entusiasmo: oxalá conserve a fé que Paulo lhe anunciou! O Apóstolo não hesita e parte para a Macedônia, certo de que é o próprio Deus que o envia, e chega a Filipos, «colônia romana» (At 16, 12) na Via Egnácia, para pregar o Evangelho. Paulo passa ali vários dias. São três os acontecimentos que caraterizam a sua permanência em Filipos, naqueles três dias: três acontecimentos importantes. 1) A evangelização e o batismo de Lídia e da sua família; 2) a prisão que sofreu, com Silas, depois de ter exorcizado uma escrava explorada pelos seus senhores; 3) a conversão e o batismo do seu carcereiro e da sua família. Vemos estes três episódios na vida de Paulo.
O poder do Evangelho visa sobretudo as mulheres de Filipos, em particular Lídia, uma comerciante de púrpura, na cidade de Tiatira, uma crente em Deus a quem o Senhor abre o coração «para aderir às palavras de Paulo» (At 16, 14). Com efeito, Lídia acolhe Cristo, recebe o Batismo com a sua família e hospeda aqueles que pertencem a Cristo, acolhendo Paulo e Silas na sua casa. Aqui temos o testemunho da chegada do cristianismo à Europa: o início de um processo de inculturação que continua até hoje. Ele veio da Macedônia.
Depois do entusiasmo experimentado na casa de Lídia, Paulo e Silas têm que enfrentar a dureza da prisão: passam da consolação da conversão de Lídia e da sua família para a desolação do cárcere, onde foram lançados por terem libertado, em nome de Jesus, «uma serva que tinha um espírito de adivinhação» e que «dava muito lucro aos seus senhores» com o trabalho de adivinha (At 16, 16). Os seus senhores ganhavam muito dinheiro e aquela pobre escrava fazia o que os adivinhos fazem: adivinhava o futuro, lia as mãos — como diz a canção, “prendi questa mano, zingara” [“pega nesta mão, cigana”] — e as pessoas pagavam por isto. Prezados irmãos e irmãs, ainda hoje há pessoas que pagam por isto. Lembro-me que na minha diocese, num parque muito grande, havia mais de 60 mesinhas, diante das quais estavam sentados os adivinhos e as adivinhas, que liam as mãos e as pessoas acreditavam nessas coisas! E pagavam. E isto acontecia também na época de São Paulo. Por retaliação, os seus senhores denunciam Paulo e conduzem os Apóstolos perante os magistrados com a acusação de desordem pública.
Mas o que acontece? Paulo está na prisão e, durante a sua detenção, verifica-se algo surpreendente. Está desolado, mas em vez de se queixar, Paulo e Silas cantam louvores a Deus e este louvor desencadeia um poder que os liberta: durante a oração, um tremor de terra abala os fundamentos da prisão, as portas abrem-se e as correntes de todos caem (cf. At 16, 25-26). Como a oração de Pentecostes, também a prece recitada na prisão provoca efeitos prodigiosos.
Julgando que os prisioneiros tinham escapado, o carcereiro estava prestes a suicidar-se, pois quando um prisioneiro escapava, os carcereiros pagavam com a própria vida; mas Paulo brada-lhe: «Estamos todos aqui!» (At 16, 27-28). Então, ele pergunta: «Que devo fazer para ser salvo?» (v. 30). A resposta é: «Acredita no Senhor Jesus, e assim tu e os teus sereis salvos» (v. 31). É neste ponto que se verifica a mudança: no meio da noite, o carcereiro e a sua família ouvem a palavra do Senhor, acolhem os Apóstolos, lavam as suas feridas — porque tinham sido espancados — e, com a sua família, recebem o Batismo; então, ele «entrega-se, com a família, à alegria de ter acreditado em Deus» (v. 34), prepara a mesa e convida Paulo e Silas a permanecer com eles: o momento da consolação! No meio da noite deste carcereiro anônimo, a luz de Cristo brilha e vence as trevas: as correntes do coração caem e, nele e na sua família, floresce uma alegria nunca experimentada. É assim que o Espírito Santo cumpre a missão: desde o início, do Pentecostes em diante, Ele é o protagonista da missão. E leva-nos adiante; devemos ser fiéis à vocação que o Espírito nos impele a abraçar. Para anunciar o Evangelho!
Peçamos também nós hoje ao Espírito Santo um coração aberto, sensível a Deus e hospitaleiro para com os nossos irmãos, como o de Lídia, e uma fé arrojada, como a de Paulo e de Silas, e inclusive um coração aberto, como o do carcereiro que se deixa tocar pelo Espírito Santo.
Papa Francisco
Catequese na audiência geral 30.10.2019
Catequese sobre os Atos dos Apóstolos - 13
O livro dos Atos dos Apóstolos nos diz que São Paulo, depois daquele encontro transformador com Jesus, é acolhido pela Igreja de Jerusalém graças à mediação de Barnabé e começa a anunciar Cristo. Mas, devido à hostilidade de alguns, ele é forçado a se mudar para Tarso, sua cidade natal, onde Barnabé se junta a ele para envolvê-lo na longa jornada da Palavra de Deus . Pode-se dizer que o livro dos Atos dos Apóstolos, que estamos comentando nesta catequese, é o livro do longo caminho da Palavra de Deus: a Palavra de Deus deve ser anunciada e anunciada em todos os lugares. Esta jornada começa após uma forte perseguição (cf. Hch 11,19); mas isso, em vez de ser uma medida de espera pela evangelização, torna-se uma oportunidade de expandir o campo onde semear a boa semente da Palavra. Os cristãos não têm medo. Eles devem fugir, mas fogem com a Palavra, e a espalham por toda parte.
Paulo e Barnabé chegaram pela primeira vez a Antioquia da Síria, onde ficam um ano inteiro para ensinar e ajudar a comunidade a criar raízes (cf. At 11,26). Eles anunciaram à comunidade judaica, aos judeus. Antioquia torna-se assim o centro da propulsão missionária, graças à pregação com a qual os dois evangelistas - Paulo e Barnabé - alcançam o coração dos crentes, que aqui em Antioquia são chamados pela primeira vez de "cristãos" (cf. . At 11, 26).
O livro de Atos revela a natureza da Igreja, que não é uma fortaleza, mas uma loja capaz de expandir seu espaço (cf. Is 54,2) e acomodar a todos. A Igreja está "saindo" ou não é uma igreja, ou está a caminho, sempre expandindo seu espaço para que todos possam entrar, ou ela não é uma igreja. «Uma igreja de portas abertas» (Exortação. Ap. Evangelii Gaudium , 46), sempre com as portas abertas. Quando vejo uma pequena igreja aqui, nesta cidade, ou quando a vejo na outra diocese de onde vim, com as portas fechadas, acho que é um mau sinal. As igrejas devem sempre ter suas portas abertas, porque são o símbolo do que é uma igreja: sempre aberta. A Igreja é chamada a ser sempre a casa aberta do Pai. [...] Dessa forma, se alguém quiser seguir um movimento do Espírito e vier buscar a Deus, não encontrará a frieza das portas fechadas »( ibid . , 47).
Mas essa novidade das portas se abre para quem ? Para os pagãos , porque os apóstolos pregavam aos judeus, mas também os pagãos bateram à porta da Igreja; e essa novidade de portas abertas aos pagãos desencadeia uma controvérsia muito viva. Alguns judeus afirmam a necessidade de se tornarem judeus através da circuncisão para salvar a si mesmos e depois receber o batismo. Eles dizem: "Se você não se circuncidar de acordo com o mosaico personalizado, não poderá se salvar" ( Atos 15,1), ou seja, você não pode receber o batismo mais tarde. Primeiro o rito judaico e depois o batismo: essa era a sua posição. E para resolver o problema, Paulo e Barnabé consultam o conselho dos apóstolos e dos anciãos em Jerusalém, e o que é considerado o primeiro conselho na história da Igreja, o conselho ou assembléia de Jerusalém , que Paulo é refere-se na Carta aos Gálatas (2,1-10).
Uma questão teológica, espiritual e disciplinar muito delicada é abordada: isto é, a relação entre a fé em Cristo e a observância da Lei de Moisés. No decurso da assembléia, os discursos de Pedro e Tiago, "colunas" da Igreja Matriz, são decisivos (cf. Atos 15.7-21; Gl 2.9). Eles convidam a não impor a circuncisão aos pagãos, mas apenas a pedir que rejeitem a idolatria e todas as suas expressões. Da discussão vem o caminho comum, e essa decisão, ratificada com a chamada carta apostólica enviada a Antioquia.
A assembléia de Jerusalém lança luz significativa sobre como lidar com as diferenças e buscar a "verdade na caridade" ( Ef 4:15). Lembra-nos que o método eclesial de resolução de conflitos se baseia no diálogo, constituído pela escuta atenta e paciente e pelo discernimento feito à luz do Espírito. De fato, é o Espírito que ajuda a superar os fechamentos e tensões e age nos corações para que alcancem a verdade e a bondade, para que alcancem a unidade. Este texto nos ajuda a entender a sinodalidade. É interessante, enquanto escrevem a Carta: os apóstolos começam dizendo: «O Espírito Santo e pensamos o que ... É típico da sinodalidade, da presença do Espírito Santo, caso contrário, não é sinodalidade, é parlamentar, parlamento, outra coisa.
Peçamos ao Senhor que fortaleça em todos os cristãos, especialmente nos bispos e sacerdotes, o desejo e a responsabilidade da comunhão. Que nos ajuda a viver o diálogo, a escuta e o encontro com nossos irmãos e irmãs na fé e com os que estão longe, a gostar e manifestar a fecundidade da Igreja, chamada a ser em todos os momentos «mãe jubilosa» da muitos filhos (cf. Sl 113, 9).
Papa Francisco
Catequese na audiência geral 23.10.2019
imagem: site do Vaticano
(texto traduzido do espanhol no site do Vaticano)
Catequese sobre os Atos dos Apóstolos - 11
Queridos irmãos e irmãs, bom dia!
Partindo do episódio do apedrejamento de Estêvão, aparece uma figura que, ao lado de Pedro, é a mais presente e incisiva dos Atos dos Apóstolos: a de «um jovem chamado Saulo» (At 7, 58). Ele é descrito no início como aquele que aprova a morte de Estêvão e quer «destruir a Igreja» (cf. At 8, 3); mas depois tornar-se-á o instrumento escolhido por Deus para anunciar o Evangelho às nações (cf. At 9, 15; 22, 21; 26, 17).
Com a autorização do sumo sacerdote, Saulo perseguia os cristãos e capturava-os. Vós, que pertenceis a alguns povos que foram perseguidos por ditaduras, compreendeis bem o que significa perseguir pessoas e capturá-las. Foi o que o Saulo fez. E ele fez isso pensando que estava a servir a lei do Senhor. Lucas diz que Saulo “respirava” sempre «ameaças e mortes contra os discípulos do Senhor» (At 9, 1): nele há um sopro que cheira a morte, não a vida.
O jovem Saulo é retratado como um intransigente, isto é, alguém que manifesta intolerância para com aqueles que pensam de modo diferente, absolutiza a sua identidade política ou religiosa e reduz o outro a um inimigo potencial a ser combatido. Um ideólogo. Em Saulo, a religião foi transformada em ideologia: ideologia religiosa, ideologia social, ideologia política. Só depois de ter sido transformado por Cristo, então ensinará que a verdadeira batalha «não é contra os seres humanos [...], mas contra [...] os Dominadores deste mundo de trevas, e contra os espíritos do mal» (Ef 6, 12). Ele ensinará que não se devem combater as pessoas, mas o mal que inspira as suas ações.
A condição raivosa — porque Saulo era raivoso — e conflituosa de Saulo convida todos a questionar-se: como vivo eu a minha vida de fé? Vou ao encontro dos outros ou ponho-me contra os outros? Pertenço à Igreja universal (bons e maus, todos) ou tenho uma ideologia seletiva? Adoro Deus ou adoro formulações dogmáticas? Como é a minha vida religiosa? A fé em Deus que professo torna-me amigável ou hostil àqueles que são diferentes de mim?
Lucas diz-nos que, enquanto Saulo se dedica totalmente a erradicar a comunidade cristã, o Senhor está nas suas pegadas para comover o seu coração e convertê-lo a si. É o método do Senhor: comove o coração. O Ressuscitado toma a iniciativa e manifesta-se a Saulo no caminho de Damasco, acontecimento narrado três vezes no Livro dos Atos (cf. At 9, 3-19; 22, 3-21; 26, 4-23). Através da combinação de “luz” e “voz”, típica das teofanias, o Ressuscitado aparece a Saulo e pede-lhe que responda pela sua fúria fratricida: «Saulo, Saulo, porque me persegues?» (At 9, 4). Aqui o Ressuscitado manifesta o seu ser um só com aqueles que crêem n'Ele: atacar um membro da Igreja é como atacar o próprio Cristo! Também quantos são ideólogos porque querem a “pureza” — entre aspas — da Igreja, atacam Cristo.
A voz de Jesus diz a Saulo: «Ergue-te, entra na cidade e dir-te-ão o que tens a fazer» (At 9, 6). Mas Saulo, quando se levanta, já não vê nada, está cego, e de homem forte, autoritário e independente, torna-se fraco, necessitado e dependente dos outros, porque não vê. A luz de Cristo ofuscou-o e tornou-o cego: «assim vê-se também exteriormente o que era a sua realidade interior, a sua cegueira em relação à verdade, à luz que é Cristo» (Bento xvi, Audiência Geral, 3 de Setembro de 2008).
Deste “corpo a corpo” entre Saulo e o Ressuscitado, tem início uma transformação que mostra a “páscoa pessoal” de Saulo, a sua passagem da morte para a vida: o que antes era glória torna-se «lixo» a ser rejeitado para adquirir o verdadeiro ganho que é Cristo e a vida nele (cf. Fl 3, 7-8).
Paulo é batizado. O batismo marca assim para Saulo, como para cada um de nós, o início de uma nova vida, e é acompanhado por um novo olhar sobre Deus, sobre Si mesmo e sobre os outros, que de inimigos se tornam irmãos em Cristo.
Peçamos ao Pai que faça experimentar também a nós, como Saulo, o impacto com o seu amor, o único que pode transformar um coração de pedra num coração de carne (cf. Ez 11, 15), capaz de acolher em si mesmo «os mesmos sentimentos, que estão em Cristo Jesus» (Fl 2, 5).
Papa Francisco
Catequese na audiência geral 9.10.2019
Catequese sobre os Atos dos Apóstolos - 12
Amados irmãos e irmãs, bom dia!
A viagem do Evangelho no mundo, que São Lucas narra nos Atos dos Apóstolos está acompanhada pela máxima criatividade de Deus que se manifesta de maneira surpreendente. Deus quer que os seus filhos superem qualquer particularismo para se abrirem à universalidade da salvação. Esta é a finalidade: superar os particularismos e abrir-se à universalidade da salvação, pois Deus deseja salvar todos. Quantos renasceram da água e do Espírito — os batizados — são chamados a sair de si mesmos e a abrir-se aos outros, a viver a proximidade, o estilo do viver juntos, que transforma qualquer relação interpessoal numa experiência de fraternidade (cf. Exort. ap. Evangelii gaudium, 87).
Pedro, protagonista nos Atos dos Apóstolos juntamente com Paulo, é a testemunha deste processo de “fraternização” que o Espírito deseja introduzir na história. Pedro vive um evento que assinala uma mudança decisiva para a sua existência. Enquanto reza, recebe uma visão que serve de “provocação” divina, para suscitar nele uma mudança de mentalidade. Vê uma grande toalha que desce do alto, dentro da qual há vários animais: quadrúpedes, répteis e aves, e ouve uma voz que o convida a alimentar-se com aquelas carnes. Ele, sendo bom judeu, responde afirmando que nunca comeu nada de impuro, como exigido pela Lei do Senhor (cf. Lv 11). Então a voz insiste vigorosamente: «O que foi purificado por Deus não o consideres tu impuro» (At 10, 15).
Com este facto o Senhor quer que Pedro deixe de avaliar os eventos e as pessoas segundo as categorias do puro e do impuro, mas que aprenda a ir adiante, a fim de considerar a pessoa e as intenções do seu coração. Com efeito, o que torna o homem impuro não vem de fora mas só de dentro, do coração (cf. Mc 7, 21). Jesus disse isto claramente.
Depois daquela visão, Deus envia Pedro a casa de um estrangeiro não circuncidado, Cornélio, «centurião da coorte itálica [...] Piedoso e temente a Deus» que dava largas esmolas ao povo e orava continuamente a Deus (cf. At 10, 1-2), mas não era judeu.
Naquela casa de pagãos, Pedro anuncia Cristo crucificado e ressuscitado e o perdão dos pecados a todo aquele que crê n’Ele. E enquanto Pedro fala, sobre Cornélio e os seus familiares efunde-se o Espírito Santo. E Pedro batiza-os em nome de Jesus Cristo (cf. At 10, 48).
Este acontecimento extraordinário — é a primeira vez que se verifica uma coisa deste gênero — difunde-se em Jerusalém, onde os irmãos escandalizados com o comportamento de Pedro, o reprovam asperamente (cf. At 11, 1-3). Pedro fez algo que ia além dos costumes, que ia além da lei, e por isso o censuraram. Mas depois do encontro com Cornélio, Pedro sente-se mais livre de si mesmo e mais em comunhão com Deus e com os demais, pois viu a vontade de Deus na ação do Espírito Santo. Portanto, pode compreender que a eleição de Israel não é a recompensa devido a méritos, mas o sinal da chamada gratuita a ser mediação da bênção divina entre os povos pagãos.
Queridos irmãos, aprendamos do príncipe dos Apóstolos que um evangelizador não pode ser um impedimento para a obra criadora de Deus, o qual «quer que todos os homens sejam salvos» (1 Tm 2, 4), mas alguém que favorece o encontro dos corações com o Senhor. E nós, como nos comportamos com os nossos irmãos, sobretudo com quantos não são cristãos? Somos impedimento para o encontro com Deus? Obstaculamos o seu encontro com o Pai ou favorecemo-lo?
Peçamos hoje a graça de nos deixarmos impressionar com as surpresas de Deus, de não impedir a sua criatividade, mas de reconhecer e favorecer as vias sempre novas através das quais o Ressuscitado efunde o seu Espírito no mundo e atrai os corações fazendo-se conhecer como o «Senhor de todos» (At 10, 36). Obrigado.
Papa Francisco
Catequese na audiência geral 16.10.2019
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