SANTA MISSA DA SOLENIDADE DA EPIFANIA DO SENHOR
HOMILIA DO PAPA FRANCISCO
Basílica de São Pedro
Quinta-feira, 6 de janeiro de 2022
Os Magos estão de viagem para Belém. E a sua peregrinação interpela-nos também a nós, chamados a caminhar para Jesus, porque é Ele a estrela polar que ilumina os céus da vida e orienta os passos para a verdadeira alegria. Mas, qual foi o ponto de partida da peregrinação dos Magos ao encontro de Jesus? O que é que levou estes homens do Oriente a porem-se em viagem?
Tinham ótimas desculpas para não partir: eram sábios e astrólogos, tinham fama e riqueza; de posse duma tal segurança cultural, social e económica, podiam acomodar-se no que tinham e sabiam, deixando-se estar tranquilos. Mas não; deixam-se inquietar por uma pergunta e um sinal: «Onde está Aquele que nasceu? Vimos despontar a sua estrela» (Mt 2, 2). O seu coração não se deixa amortecer na choça da apatia, mas está sedento de luz; não se arrasta pesadamente na preguiça, mas está abrasado pela nostalgia de novos horizontes. Os seus olhos não estão voltados para a terra, mas são janelas abertas para o céu. Como afirmou Bento XVI, eram «pessoas de coração inquieto (...); homens à espera, que não se contentavam com seus rendimentos assegurados e com uma posição social (...); eram indagadores de Deus» (Homilia, 06/I/2013).
Mas esta saudável inquietação, que os levou a peregrinar, donde nasce? Nasce do desejo. Eis o seu segredo interior: saber desejar. Meditemos nisto. Desejar significa manter vivo o fogo que arde dentro de nós e nos impele a buscar mais além do imediato, mais além das coisas visíveis. Desejar é acolher a vida como um mistério que nos ultrapassa, como uma friesta sempre aberta que nos convida a olhar mais além, porque a vida não é «toda aqui», é também «noutro lugar». É como uma tela em branco que precisa de ser colorida. Um grande pintor, Van Gogh, escreveu que a necessidade de Deus o impelia a sair de noite para pintar as estrelas (cf. Carta a Theo, 09/V/1889). Isto deve-se ao facto de Deus nos ter feito assim: empapados de desejo; orientados, como os Magos, para as estrelas. Podemos dizer, sem exagerar, que nós somos aquilo que desejamos. Porque são os desejos que ampliam o nosso olhar e impelem a vida mais além: além das barreiras do hábito, além duma vida limitada ao consumo, além duma fé repetitiva e cansada, além do medo de arriscar, de nos empenharmos pelos outros e pelo bem. «A nossa vida – dizia Santo Agostinho – é uma ginástica do desejo» (Tratados sobre a primeira Carta de João, IV, 6).
Irmãos e irmãs, como no caso dos Magos, também a nossa viagem da vida e o nosso caminho da fé têm necessidade de desejo, de impulso interior. Às vezes vivemos um espírito de «parque de estacionamento», vivemos estacionados, sem este ímpeto do desejo que nos impele para diante. Será bom perguntar-nos: a que ponto estamos nós na viagem da fé? Não estaremos já há bastante tempo bloqueados, estacionados numa religião convencional, exterior, formal, que deixou de aquecer o coração e já não muda a vida? As nossas palavras e ritos despertam no coração das pessoas o desejo de caminhar ao encontro de Deus ou são «língua morta», que fala apenas de si mesma e a si mesma? É triste quando uma comunidade de crentes já não tem desejos, arrastando-se, cansada, na gestão das coisas, em vez de se deixar levar por Jesus, pela alegria explosiva e desinquietadora do Evangelho. É triste quando um sacerdote fechou a porta do desejo; é triste cair no funcionarismo clerical! É muito triste...
Na nossa vida e nas nossas sociedades, a crise da fé tem a ver também com o desaparecimento do desejo de Deus. Tem a ver com a sonolência do espírito, com o hábito de nos contentarmos em viver o dia a dia, sem nos interrogarmos acerca daquilo que Deus quer de nós. Debruçamo-nos demasiado sobre os mapas da terra, e esquecemo-nos de erguer o olhar para o céu; estamos empanturrados com muitas coisas, mas desprovidos da nostalgia do que nos falta. Nostalgia de Deus. Fixamo-nos nas necessidades, no que havemos de comer e vestir (cf. Mt 6, 25), deixando dissipar-se o anseio por aquilo que o ultrapassa. E deparamo-nos com a bulimia de comunidades que têm tudo e muitas vezes já nada sentem no coração. Pessoas fechadas, comunidades fechadas, bispos fechados, padres fechados, consagrados fechados. Porque a falta de desejo leva à tristeza, à indiferença. Comunidades tristes, padres tristes, bispos tristes.
Com os olhos pousados sobretudo em nós mesmos, perguntemo-nos: como está a viagem da minha fé? É uma pergunta que hoje nos podemos colocar, cada um de nós. Como está a viagem da minha fé? Está estacionada ou está em caminho? A fé, para partir uma vez e outra, precisa de ser deflagrada pelo detonador do desejo, de colocar-se em jogo na aventura duma relação sentida e vivaz com Deus. Mas o meu coração vive ainda animado pelo desejo de Deus? Ou deixo que o hábito e as deceções o apaguem? Hoje, irmãos e irmãs, é o dia bom para nos colocarmos estas perguntas. Hoje é o dia bom para voltar a alimentar o desejo. E como fazer? Vamos à «escola de desejo», vamos ter com os Magos. Ensinar-nos-ão, na sua escola do desejo. Fixemos os passos que dão e tiremos algumas lições.
Em primeiro lugar, partem quando aparece a estrela: ensinam-nos que é preciso voltar a partir sempre cada dia, tanto na vida como na fé, porque a fé não é uma armadura que imobiliza, mas uma viagem fascinante, um movimento contínuo e desinquietador, sempre à procura de Deus, sempre com o discernimento, naquele caminho.
Depois, os Magos em Jerusalém perguntam: perguntam onde está o Menino. Ensinam-nos que precisamos de interrogativos, de ouvir com atenção as perguntas do coração, da consciência; porque frequentemente é assim que fala Deus, que Se nos dirige mais com perguntas do que com respostas. Devemos aprender bem isto: Deus dirige-Se a nós mais com perguntas do que com respostas. Mas deixemo-nos desinquietar pelos interrogativos das crianças, pelas dúvidas, as esperanças e os desejos das pessoas do nosso tempo. A estrada é deixar-se questionar.
Além disso os Magos desafiam Herodes. Ensinam-nos que temos necessidade duma fé corajosa, que não tenha medo de desafiar as lógicas obscuras do poder, tornando-se semente de justiça e fraternidade numa sociedade onde, ainda hoje, muitos “herodes” semeiam morte e massacram pobres e inocentes, na indiferença da multidão.
Por fim, os Magos regressam «por outro caminho» (Mt 2, 12): provocam-nos a percorrer estradas novas. É a criatividade do Espírito, que faz sempre coisas novas. É também, neste momento, uma das tarefas do Sínodo que nós estamos a realizar: caminhar numa escuta conjunta, para que o Espírito nos sugira caminhos novos, estradas para levar o Evangelho ao coração de quem é indiferente, vive alheado, de quem perdeu a esperança mas procura aquilo que sentiram os Magos: uma «imensa alegria» (Mt 2, 10). Sair para mais além, caminhar para a frente.
No ponto culminante da viagem dos Magos, porém, há um momento crucial: tendo chegado ao destino, viram o Menino e «prostrando-se adoraram-No» (2, 11). Adoram. Lembremo-nos disto: a viagem da fé só encontra ímpeto e cumprimento na presença de Deus. Só se recuperarmos o gosto da adoração é que se renova o desejo. O desejo leva-te à adoração e a adoração renova em ti o desejo. Porque o desejo de Deus cresce apenas permanecendo diante de Deus. Porque só Jesus cura os desejos. De quê? Cura-os da ditadura das necessidades. Com efeito, o coração adoece quando os desejos coincidem apenas com as necessidades; ao passo que Deus eleva os desejos e purifica-os; cura-os, sanando-os do egoísmo e abrindo-nos ao amor por Ele e pelos irmãos. Por isso, não esqueçamos a Adoração, a oração de adoração que é pouco comum entre nós: adorar, em silêncio. Por isso não esqueçamos a adoração, por favor.
E procedendo assim, cada dia, como os Magos, teremos a certeza de que, mesmo nas noites mais escuras, brilha uma estrela. É a estrela do Senhor, que vem cuidar da nossa frágil humanidade. Ponhamo-nos a caminho rumo a Ele. Não demos à apatia e à resignação a força de nos cravar na tristeza duma vida medíocre. Abramo-nos à inquietude do Espírito, corações inquietos. O mundo espera dos crentes um renovado ímpeto para o Céu. Como os Magos, levantemos a cabeça, ouçamos o desejo do coração, sigamos a estrela que Deus faz brilhar sobre nós. E como indagadores inquietos, permaneçamos abertos às surpresas de Deus. Irmãos e irmãs, sonhemos, procuremos, adoremos.
foto: site do Vaticano 06.01.22
Catequese sobre São José 5. São José, migrante perseguido e corajoso
Hoje gostaria de vos apresentar São José como um migrante perseguido e corajoso. Assim o descreve o Evangelista Mateus. Esta particular vicissitude da vida de Jesus, que vê como protagonistas também José e Maria, é tradicionalmente conhecida como “a fuga para o Egito” (cf. Mt 2, 13-23). A família de Nazaré sofreu tal humilhação e experimentou em primeira pessoa a precariedade, o medo e a dor de ter que deixar a sua terra. Ainda hoje muitos dos nossos irmãos e irmãs são obrigados a viver a mesma injustiça e sofrimento. A causa é quase sempre a prepotência e a violência dos poderosos. Isto aconteceu também com Jesus.
Através dos Magos, o rei Herodes toma conhecimento do nascimento do “rei dos Judeus”, e a notícia perturba-o. Sente-se inseguro, sente-se ameaçado no seu poder. Assim reúne todas as autoridades de Jerusalém para se informar sobre o lugar do nascimento, e pede aos Magos para lho comunicarem com exatidão, a fim de que - diz falsamente - também ele possa ir adorá-lo. No entanto, compreendendo que os Magos tinham partido por outro caminho, concebeu um propósito nefasto: matar todas as crianças de Belém até aos dois anos, pois de acordo com o cálculo dos Magos, tal era a época em que Jesus tinha nascido.
Entretanto, um anjo ordena a José: « Levanta-te, toma o Menino e Sua Mãe, foge para o Egito e fica lá até que eu te avise, pois Herodes procurará o Menino para O matar» (Mt 2, 13). Pensemos em tantas pessoas que hoje sentem esta inspiração dentro: “Fujamos, escapemos, porque aqui é perigoso”. O plano de Herodes evoca o do Faraó, de lançar ao Nilo todos os meninos do povo de Israel (cf. Êx 1, 22). E a fuga para o Egito recorda toda a história de Israel, a partir de Abraão, que também viveu ali (cf. Gn 12, 10), até José, filho de Jacob, vendido pelos irmãos (cf. Gn 37, 36), tornando-se depois “chefe do país” (cf. Gn 41, 37-57); e a Moisés, que libertou o seu povo da escravidão dos egípcios (cf. Êx 1, 18).
A fuga da Sagrada Família para o Egito salva Jesus, mas infelizmente não impede que Herodes leve a cabo o seu massacre. Assim, encontramo-nos diante de duas personalidades opostas: por um lado, Herodes com a sua ferocidade e, por outro, José com o seu esmero e a sua coragem. Herodes quer defender o seu poder, a sua “pele” com uma crueldade impiedosa, como atestam também as execuções de uma das suas esposas, de alguns dos seus filhos e de centenas de adversários. Era um homem cruel, para resolver os problemas só tinha uma receita: “eliminar”. Ele é o símbolo de muitos tiranos de ontem e de hoje. E para eles, para estes tiranos, as pessoas não contam: conta o poder, e quando precisam de espaço de poder, eliminam as pessoas. E isto acontece ainda hoje: não temos que ir à história antiga, acontece hoje. É o homem que se torna “lobo” para os outros homens. A história está cheia de personalidades que, vivendo à mercê dos seus temores, procuram vencê-los, exercendo o poder de forma despótica e praticando gestos de violência desumanos. Mas não devemos pensar que só viveremos na perspectiva de Herodes se nos tornarmos tiranos, não! Na realidade, é uma atitude em que todos nós podemos cair, sempre que procuramos afugentar os nossos medos com a prepotência, ainda que seja apenas verbal ou feita de pequenos abusos cometidos para mortificar quem está ao nosso lado. Também nós temos no coração a possibilidade de ser pequenos Herodes.
José é o oposto de Herodes: em primeiro lugar, é «um homem justo» (Mt 1, 19), enquanto Herodes é um ditador; além disso, demonstra-se corajoso ao cumprir a ordem do Anjo. Podemos imaginar as peripécias que teve de enfrentar durante a longa e perigosa viagem, e as dificuldades que enfrentou durante a permanência num país estrangeiro, com outra língua: inúmeras dificuldades! A sua coragem sobressai também na hora do regresso quando, tranquilizado pelo Anjo, supera os seus compreensíveis receios, estabelecendo-se com Maria e Jesus em Nazaré (cf. Mt 2, 19-23). Herodes e José são dois personagens opostos, que refletem as duas faces da humanidade de sempre. É um lugar-comum errado considerar a coragem como virtude exclusiva do herói. Na realidade, a vida quotidiana de cada pessoa – a tua, a minha, de todos nós – exige coragem: não é possível viver sem a coragem! A coragem para enfrentar as dificuldades de cada dia. Em todos os tempos e culturas encontramos homens e mulheres corajosos que, para ser coerentes com a sua crença, superaram toda a espécie de dificuldades, suportando injustiças, condenações e até a morte. Coragem é sinónimo de fortaleza que, com a justiça, a prudência e a temperança, faz parte do grupo de virtudes humanas chamadas “cardeais”.
A lição que José nos deixa hoje é a seguinte: é verdade, a vida apresenta-nos sempre adversidades, perante as quais podemos sentir-nos também ameaçados, amedrontados, mas não é mostrando o pior de nós, como faz Herodes, que podemos superar certos momentos, mas agindo como José, que reage ao medo com a coragem da confiança na Providência de Deus. Hoje acho que é necessária uma oração por todos os migrantes, por todos os perseguidos, por todos aqueles que são vítimas de circunstâncias adversas: quer sejam circunstâncias políticas, históricas ou pessoais. Mas, pensemos em tantas pessoas vítimas das guerras que querem fugir da sua pátria e não conseguem; pensemos nos migrantes que empreendem este caminho para ser livres e muitos morrem ao longo da estrada ou no mar; pensemos em Jesus nos braços de José e Maria, em fuga, e vejamos n’Ele cada um dos migrantes de hoje. A migração de hoje é uma realidade diante da qual não podemos fechar os olhos. É um escândalo social da humanidade!
São José,
vós que experimentastes o sofrimento de quem deve fugir
vós que fostes obrigado a fugir
para salvar a vida dos entes mais queridos,
amparai todos aqueles que fogem por causa da guerra,
do ódio e da fome.
Ajudai-os nas suas dificuldades,
fortalecei-os na esperança e fazei com que encontrem acolhimento e solidariedade.
Guiai os seus passos e abri o coração de quantos os podem ajudar. Amém!
Papa Francisco
Catequese na audiência geral 29.12.21
Imagem: B. Murillo
Na noite, acende-se uma luz. Aparece um anjo, a glória do Senhor envolve os pastores e finalmente chega o anúncio há séculos esperado: «Hoje (…) nasceu-vos um Salvador, que é o Messias Senhor» (Lc 2, 11). Mas surpreende aquilo que o anjo acrescenta para indicar aos pastores como encontrar Deus que veio à terra. «Isto vos servirá de sinal: encontrareis um menino envolto em panos e deitado numa manjedoura» (2, 12). Eis o sinal: um menino. E é tudo: um menino na tosca pobreza duma manjedoura. Cessam luzes, fulgor, coros de anjos. Só um menino. Nada mais! Como predissera Isaías: «Um menino nasceu para nós» (Is 9, 5).
O Evangelho insiste neste contraste. Narra o nascimento de Jesus, começando por César Augusto, que ordena o recenseamento de toda a terra: mostra o primeiro imperador na sua grandeza. Mas, logo a seguir, leva-nos a Belém, onde, de grande, não há nada: apenas um menino pobre envolto em panos, rodeado por pastores. E ali está Deus, na pequenez. Eis a mensagem: Deus não cavalga a grandeza, mas desce na pequenez. A pequenez é a estrada que escolheu para chegar até nós, tocar-nos o coração, salvar-nos e levar-nos de volta para aquilo que conta.
Irmãos e irmãs, ao parar diante do presépio, fixemo-nos no centro: deixemos para trás luzes e decorações – que são belas – e contemplemos o Menino. Na sua pequenez, está Deus inteiro. Reconheçamo-Lo: «Menino, vós sois Deus, Deus-Menino». Deixemo-nos invadir por este espanto alvoroçado. Aquele que abraça o universo, precisa de ser tomado nos braços. Ele, que fez o sol, tem de ser aquecido. A ternura em pessoa precisa de ser mimada. O amor infinito tem um coração minúsculo, que emite batimentos leves. A Palavra eterna é infante, isto é, incapaz de falar. O Pão da vida tem de ser nutrido. O criador do mundo não tem onde morar. Hoje inverte-se tudo: Deus vem, pequenino, ao mundo. A sua grandeza oferece-se na pequenez.
E nós – perguntemo-nos – sabemos acolher esta estrada de Deus? É o desafio de Natal: Deus revela-Se, mas os homens não O compreendem. Faz-Se pequeno aos olhos do mundo… e nós continuamos a procurar a grandeza segundo o mundo, talvez até em nome d’Ele. Deus abaixa-Se… e nós queremos subir para o pedestal. O Altíssimo indica a humildade… e nós pretendemos sobressair. Deus vai à procura dos pastores, dos invisíveis… nós buscamos visibilidade, fazermo-nos ver. Jesus nasce para servir… e nós passamos os anos atrás do sucesso. Deus não busca força nem poder; pede ternura e pequenez interior.
Eis o que devemos pedir a Jesus no Natal: a graça da pequenez. «Senhor, ensinai-nos a amar a pequenez. Ajudai-nos a compreender que é a estrada para a verdadeira grandeza». Mas que significa, concretamente, acolher a pequenez? Em primeiro lugar, significa acreditar que Deus quer vir às pequenas coisas da nossa vida, quer habitar nas realidades quotidianas, nos gestos simples que realizamos em casa, na família, na escola, no trabalho. É na nossa existência ordinária que Ele quer realizar coisas extraordinárias. Trata-se duma mensagem de grande esperança: Jesus convida-nos a valorizar e redescobrir as pequenas coisas da vida. Se Ele está lá connosco, que nos falta? Então deixemos para trás o lamento por causa da grandeza que não temos. Renunciemos às lamúrias e rostos amuados, à avidez que nos deixa insatisfeitos. A pequenez, a maravilha daquela Criança pequenina: esta é a mensagem.
Mais ainda! Jesus não quer vir só às pequenas coisas da nossa vida, mas também à nossa pequenez: ao nosso sentir-nos fracos, frágeis, inadequados, talvez até errados. Irmã e irmão, se, como em Belém, te circunda a escuridão da noite, se em redor notas uma indiferença fria, se as feridas que trazes dentro te gritam «contas pouco, não vales nada, nunca serás amado como queres», nesta noite – se tu sentes isto – tens a resposta de Deus, que te diz: «Amo-te assim como és. A tua pequenez não Me assusta, as tuas fragilidades não Me preocupam. Fiz-Me pequeno por ti. Para ser o teu Deus, tornei-Me teu irmão. Amado irmão, amada irmã, não tenhas medo de Mim, mas reencontra em Mim a tua grandeza. Estou perto de ti e a única coisa que te peço é isto: confia em Mim e dá-Me guarida no teu coração».
Acolher a pequenez significa mais uma coisa: abraçar Jesus nos pequenos de hoje. Ou seja, amá-Lo nos últimos, servi-Lo nos pobres. São eles os mais parecidos com Jesus, nascido pobre. E é nos pobres que Ele quer ser honrado. Nesta noite de amor, um único medo nos assalte: ferir o amor de Deus, feri-lo desprezando os pobres com a nossa indiferença. São os prediletos de Jesus, que nos hão de acolher um dia no Céu. Uma poetisa escreveu: «Quem não encontrou o Céu cá em baixo, falhá-lo-á lá em cima» (E. Dickinson, Poems, XVII). Não percamos de vista o Céu, cuidemos de Jesus agora, acarinhando-O nos necessitados, porque Se identificou com eles.
Fixando de novo o presépio, vemos que, no seu nascimento, Jesus está rodeado precisamente pelos pequenos, pelos pobres. São os pastores. Eram os mais simples; e foram os que estiveram mais perto do Senhor. Encontraram-No, porque «pernoitavam nos campos, guardando os seus rebanhos durante a noite» (Lc 2, 8). Estavam lá para trabalhar, porque eram pobres e a sua vida não tinha horário, dependia do rebanho. Não podiam viver como e onde queriam, mas regulavam-se de acordo com as exigências das ovelhas que cuidavam. E Jesus nasceu lá próximo deles, perto dos esquecidos das periferias. Vem onde a dignidade do homem é posta à prova. Vem nobilitar os excluídos, revelando-Se primeiramente a eles: não a personalidades cultas e importantes, mas a gente pobre que trabalhava. Nesta noite, Deus vem encher de dignidade a dureza do trabalho. Recorda-nos como é importante dar dignidade ao homem com o trabalho, mas também dar dignidade ao trabalho do homem, porque o homem é senhor e não escravo do trabalho. No dia da Vida, repitamos: chega de mortes no trabalho! Empenhemo-nos para que cessem.
Olhemos uma última vez para o presépio, alongando a vista até às suas extremidades, onde já se vislumbram os Magos que vêm, peregrinos, para adorar o Senhor. Olhemos e compreendamos que, à volta de Jesus, tudo se compõe numa unidade: não estão só os últimos, os pastores, mas também os eruditos e os ricos, os Magos. Em Belém, estão juntos pobres e ricos, quem adora como os Magos e quem trabalha como os pastores. Tudo se harmoniza quando, no centro, está Jesus: não as nossas ideias sobre Jesus, mas Ele mesmo, o Vivente. Então, queridos irmãos e irmãs, voltemos a Belém, voltemos às origens: à essencialidade da fé, ao primeiro amor, à adoração e à caridade. Olhemos os Magos que vêm em peregrinação e, como Igreja sinodal, a caminho, vamos a Belém, onde está Deus no homem e o homem em Deus; onde o Senhor ocupa o primeiro lugar e é adorado; onde os últimos ocupam o lugar mais próximo d’Ele; onde pastores e Magos estão juntos numa fraternidade mais forte do que qualquer distinção. Que Deus nos conceda ser uma Igreja adoradora, pobre, fraterna. Isto é o essencial. Voltemos a Belém.
Faz-nos bem ir lá, dóceis ao Evangelho de Natal, que apresenta a Sagrada Família, os pastores e os Magos: são, todos, pessoas a caminho. Irmãos e irmãs, ponhamo-nos a caminho, porque a vida é uma peregrinação. Ergamo-nos, despertemos porque, nesta noite, acendeu-se uma luz. É uma luz suave e lembra-nos que, na nossa pequenez, somos filhos amados, filhos da luz (cf. 1 Tes 5, 5). Irmãos e irmãs, alegremo-nos juntos, porque ninguém apagará jamais esta luz, a luz de Jesus, que, desde esta noite, brilha no mundo.
SOLENIDADE DO NATAL DO SENHOR
HOMILIA DO PAPA FRANCISCO
24.12.21
O nascimento de Jesus
Hoje, poucos dias antes do Natal, gostaria de recordar convosco o acontecimento do qual a história não pode prescindir: o nascimento de Jesus.
A fim de cumprir o decreto do Imperador César Augusto que ordenava que todos se recenseassem na própria cidade de origem, José e Maria foram de Nazaré a Belém. Assim que chegaram, procuraram imediatamente uma hospedaria, porque o parto era iminente; mas infelizmente não a encontraram, e assim Maria foi obrigada a dar à luz numa manjedoura (cf. Lc 2, 1-7).
Pensemos: ao Criador do universo… a Ele não foi concedido um lugar para nascer! Talvez fosse uma antecipação do que o evangelista João diz: «Veio entre os seus, e os seus não o receberam» (1, 11); e do que o próprio Jesus dirá: «As raposas têm os seus covis e as aves do ar os seus ninhos, mas o Filho do Homem não tem onde reclinar a cabeça» (Lc 9, 58).
Um anjo anunciou a simples pastores o nascimento de Jesus. E foi uma estrela que indicou aos Magos o caminho para Belém (cf. Mt 2, 1, 9-10). O anjo é um mensageiro de Deus. A estrela recorda-nos que Deus criou a luz (Gn 1, 3) e que aquele Menino será “a luz do mundo”, como Ele mesmo se autodefinirá (cf. Jo 8, 12.46), a «verdadeira luz [...] que ilumina todo o homem» (Jo 1, 9), que «resplandece nas trevas, mas as trevas não a admitiram» (v. 5).
Os pastores personificam os pobres de Israel, pessoas humildes que interiormente vivem com a consciência da própria falta, e precisamente por isto confiam mais do que os outros em Deus. Eles foram os primeiros a ver o Filho de Deus feito homem, e este encontro muda-os profundamente. O Evangelho observa que voltaram «glorificando e louvando a Deus por tudo o que tinham ouvido e visto» (Lc 2, 20).
Os Magos estão também em volta de Jesus que acabou de nascer (cf. Mt 2, 1-12). Os Evangelhos não nos dizem que eles eram reis, nem o número, nem os nomes. Com certeza, sabe-se apenas que de um país distante do Oriente (pode-se pensar na Babilónia, na Arábia do Sul ou na Pérsia daquele tempo) partiram em busca do Rei dos Judeus, que nos seus corações identificaram com Deus, pois disseram que o queriam adorar. Os Magos representam os povos pagãos, em particular todos aqueles que ao longo dos séculos procuraram Deus e se propuseram encontrá-lo. Representam também os ricos e os poderosos, mas só aqueles que não são escravos da posse, que não estão “possuídos” pelas coisas que pensam possuir.
A mensagem dos Evangelhos é clara: o nascimento de Jesus é um acontecimento universal que diz respeito a todos os homens.
Amados irmãos e amadas irmãs, só a humildade é o caminho que nos conduz a Deus e, ao mesmo tempo, precisamente porque nos conduz a Ele, leva-nos também ao essencial da vida, ao seu verdadeiro significado, à razão mais fiável pela qual vale a pena viver a vida.
Só a humildade nos abre à experiência da verdade, da alegria genuína, do conhecimento que conta. Sem humildade, estamos “desligados”, somos excluídos da compreensão de Deus, da compreensão de nós mesmos. É preciso ser humilde para nos compreendermos a nós mesmos, e mais ainda para compreender Deus. Os Magos podiam ter sido grandes de acordo com a lógica do mundo, mas tornam-se pequenos, humildes, e por esta mesma razão conseguem encontrar Jesus e reconhecê-lo. Aceitam a humildade de procurar, de se pôr a caminho, de perguntar, de arriscar, de cometer erros...
Cada homem, no íntimo do seu coração, é chamado a procurar Deus: todos nós, temos aquela inquietação e o nosso trabalho consiste em não apagar aquela inquietação, mas deixá-la crescer, pois é a inquietação de procurar Deus; e, com a sua própria graça, pode encontrá-lo. Façamos nossa a oração de Santo Anselmo (1033-1109): «Senhor, ensinai-me a procurar-vos. Mostrai-vos, quando vos procuro. Não posso procurar-vos se não me ensinardes; nem encontrar-vos se não vos mostrardes. Que eu vos procure, desejando-vos e vos deseje procurando-vos! Que eu vos encontre, procurando-vos e vos ame, encontrando-vos! (Proslogion, 1).
Queridos irmãos e irmãs, gostaria de convidar todos os homens e mulheres a ir à gruta de Belém para adorar o Filho de Deus feito homem. Cada um de nós se aproxime do presépio que tem em casa ou na igreja, ou noutro lugar, e procure fazer um ato de adoração, intimamente: “Creio que tu és Deus, que este menino é Deus. Por favor, concede-me a graça da humildade para poder compreender isto”.
Em primeiro lugar, aproximando-nos do presépio e rezando, gostaria de colocar os pobres, que – como exortava São Paulo VI – «devemos amar, porque de certa forma eles são sacramento de Cristo; neles – nos famintos, nos sedentos, nos exilados, nos nus, nos doentes, nos encarcerados – Ele quis identificar-se misticamente. Devemos ajudá-los, devemos sofrer com eles, e também devemos segui-los, porque a pobreza é o caminho mais seguro para a plena posse do Reino de Deus» (Homilia, 1 de maio de 1969). Por isso devemos pedir a humildade como uma graça: “Senhor, que eu não seja soberbo, que não seja autossuficiente, que não me considere o centro do universo. Faz-me humilde. Dá-me a graça da humildade. E com esta humildade que eu possa encontrar-te. É o único caminho, sem humildade nunca encontraremos Deus: encontraremos nós mesmos. Pois uma pessoa sem humildade não tem horizontes diante de si, tem apenas um espelho: olha para si mesmo. Peçamos ao Senhor que quebre o espelho para que possamos olhar além, para o horizonte, onde Ele está. Mas isto deve ser feito por Ele: conceder-nos a graça e a alegria da humildade para percorrer este caminho.
Depois, irmãos e irmãs, gostaria de acompanhar a Belém, como fez a estrela com os Magos, todos aqueles que não têm uma inquietação religiosa, que não se colocam o problema de Deus, ou até lutam contra a religião, todos aqueles que são inadequadamente denominados ateus. Gostaria de lhes repetir a mensagem do Concílio Vaticano II: «A Igreja defende que o reconhecimento de Deus de modo algum se opõe à dignidade do homem, uma vez que esta dignidade se funda e se realiza no próprio Deus [...] a Igreja sabe perfeitamente que a sua mensagem está de acordo com os desejos mais profundos do coração humano» (Gaudium et spes, 21).
Voltemos para casa com o desejo dos anjos: «Paz na terra aos homens por Ele amados». Lembremo-nos sempre: «Não fomos nós que amámos Deus, mas foi ele que nos amou [...]. Ele amou-nos primeiro» (1 Jo 4, 10.19), procurou-nos. Não nos esqueçamos disto.
Esta é a razão da nossa alegria: fomos amados, fomos procurados, o Senhor procura-nos para nos encontrar, para nos amar ainda mais. Este é o motivo da alegria: saber que fomos amados sem qualquer mérito, somos sempre precedidos por Deus no amor, um amor tão concreto que se tornou carne e veio habitar entre nós, naquele Menino que vemos no presépio. Este amor tem um nome e um rosto: Jesus é o nome e o rosto do amor que é o fundamento da nossa alegria. Irmãos e irmãs, desejo-vos um feliz Natal, um bom e santo Natal. E gostaria que – sim, haverá os bons votos, as reuniões de família, isto é muito bonito, sempre – mas que haja também a consciência de que Deus vem “para mim”. Cada um diga: Deus vem para mim. A consciência de que para procurar Deus, para encontrar Deus, para aceitar Deus é necessária a humildade: olhar com humildade para a graça de quebrar o espelho da vaidade, da soberba, de olhar para nós mesmos. Olhar para Jesus, olhar para o horizonte, olhar para Deus que vem até nós e que toca o coração com aquela inquietação que nos conduz à esperança. Feliz e santo Natal!
Papa Francisco
Audiência geral 22.12.21
Catequese sobre São José 4. São José, homem do silêncio
Estimados irmãos e irmãs, bom dia!
Continuemos o nosso caminho de reflexão sobre São José. Depois de ter ilustrado o ambiente em que ele viveu, o seu papel na história da salvação e o seu ser justo e esposo de Maria, hoje gostaria de examinar outro aspecto importante da sua figura: o silêncio. Hoje, muitas vezes precisamos de silêncio. O silêncio é importante. Estou impressionado com um verso do Livro da Sabedoria que foi lido a pensar no Natal, que diz: “Quando a noite estava no silêncio mais profundo, a tua palavra desceu à terra”. No momento de maior silêncio Deus manifestou-se. É importante pensar no silêncio nesta época na qual ele parece ter tão pouco valor.
Os Evangelhos não registam quaisquer palavras de José de Nazaré, nada, nunca falou. Isto não significa que ele fosse taciturno, não, há uma razão mais profunda. Com este silêncio, José confirma o que Santo Agostinho escreveu: «Na medida em que cresce em nós a Palavra – o Verbo que se fez homem – diminuem as palavras» (Sermão 288, 5: PL 38, 1307). Na medida em que Jesus – a vida espiritual – cresce, as palavras diminuem. Isto que podemos definir o “papagalismo” – falar como papagaios continuamente – diminui um pouco. João Batista, que é «a voz que clama no deserto: “Preparai o caminho do Senhor”» (Mt 3, 1), diz em relação ao Verbo: «Ele deve crescer e eu diminuir» (Jo 3, 30). Significa que Ele deve falar e eu devo ficar calado e José com o seu silêncio convida-nos a deixar espaço à Presença da Palavra feita carne, a Jesus.
O silêncio de José não é mutismo; é um silêncio cheio de escuta, um silêncio laborioso, um silêncio que faz emergir a sua grande interioridade. «O Pai pronunciou uma palavra, e foi o Filho – comentou São João da Cruz – e ela fala sempre em eterno silêncio, e no silêncio deve ser ouvida pela alma» (Dichos de luz y amor, BAC, Madrid, 417, n. 99).
Jesus cresceu nesta “escola”, na casa de Nazaré, com o exemplo diário de Maria e José. E não surpreende que ele próprio procurará espaços de silêncio nos seus dias (cf. Mt 14, 23) e convidará os seus discípulos a fazerem esta experiência, por exemplo: «Vinde, retiremo-nos a um lugar deserto, e repousai um pouco» (Mc 6, 31).
Como seria bom se cada um de nós, seguindo o exemplo de São José, conseguisse recuperar esta dimensão contemplativa da vida aberta precisamente pelo silêncio. Mas todos sabemos por experiência que não é fácil: o silêncio assusta-nos um pouco, porque nos pede para entrarmos em nós mesmos e encontrarmos a parte mais verdadeira de nós. Muita gente tem receio do silêncio, deve falar, falar, falar ou ouvir rádio, televisão…, mas não pode aceitar o silêncio porque tem medo. O filósofo Pascal observou que «toda a infelicidade dos homens provém de uma só coisa: não saber ficar tranquilo num quarto» (Pensamentos, 139).
Queridos irmãos e irmãs, aprendamos de São José a cultivar espaços de silêncio, nos quais possa surgir outra Palavra, isto é, Jesus, a Palavra: a do Espírito Santo que habita em nós e que traz Jesus. Não é fácil reconhecer esta Voz, que muitas vezes se confunde com os milhares de vozes de preocupações, tentações, desejos e esperanças que nos habitam; mas sem este treino que provém precisamente da prática do silêncio, até a nossa fala pode adoecer. Sem a prática do silêncio o nosso falar adoece. Ele, em vez de fazer resplandecer a verdade, pode tornar-se uma arma perigosa. De facto, as nossas palavras podem tornar-se adulação, jactância, mentira, maledicência, calúnia. É um dado da experiência que, como nos lembra o Eclesiástico, «a língua mata mais do que a espada» (28, 18). Jesus disse-o claramente: quem fala mal do irmão ou da irmã, quem calunia o próximo, é homicida (cf. Mt 5, 21-22). Mata com a língua. Não acreditamos nisto, mas é a verdade. Recordemos as vezes que matamos com a língua, envergonhar-nos-íamos! Contudo, far-nos-á muito bem, tanto bem.
A sabedoria bíblica afirma que «morte e vida estão no poder da língua: quem fizer bom uso dela comerá o seu fruto» (Pr 18, 21). E o apóstolo Tiago, na sua Carta, desenvolve este antigo tema do poder, positivo e negativo, da palavra com exemplos impressionantes, diz assim: «Se alguém não peca pela palavra, esse é um homem perfeito, capaz de dominar o seu corpo [...] a língua é um pequeno membro e gloria-se de grandes coisas [...] Com ela bendizemos a Deus Pai, e com ela amaldiçoamos os homens, feitos à semelhança de Deus. De uma mesma boca procedem a bênção e a maldição» (3, 2-10).
Por este motivo, devemos aprender de José a cultivar o silêncio: aquele espaço de interioridade nos nossos dias nos quais damos ao Espírito a oportunidade de nos regenerar, de nos consolar, de nos corrigir. Não estou a dizer que devemos cair num mutismo, não, mas devemos cultivar o silêncio. Cada um olhe para dentro de si mesmo: muitas vezes estamos a fazer um trabalho e quando terminamos procuramos imediatamente o celular para fazer outra coisa, somos sempre assim. E isto não ajuda, faz-nos escorregar para a superficialidade. A profundidade do coração cresce com o silêncio, um silêncio que não é mutismo, como eu disse, mas que deixa espaço à sabedoria, à reflexão e ao Espírito Santo. Por vezes temos medo dos momentos de silêncio, mas não devemos recear! O silêncio far-nos-á muito bem. E o benefício para os nossos corações curará também a nossa língua, as nossas palavras e, sobretudo, as nossas escolhas. Com efeito, José uniu o silêncio à ação. Ele não falou, mas fez, e assim mostrou-nos o que Jesus disse outrora aos seus discípulos: «Nem todo o que me diz Senhor, Senhor, entrará no reino dos Céus, mas sim aquele que faz a vontade do meu Pai que está nos Céus» (Mt 7, 21). Palavras fecundas quando falamos e temos a recordação daquela canção “Parole, parole, parole…” [“Palavras, palavras, palavras…”] e nenhuma substância. Silêncio, falar o suficiente, às vezes morder a língua um pouquinho, que faz bem, em vez de dizer parvoíces.
Concluamos com uma oração:
São José, homem do silêncio,
vós que no Evangelho não proferistes palavra alguma,
ensinai-nos a jejuar de palavras vãs,
a redescobrir o valor das palavras que edificam, encorajam, consolam e apoiam.
Estai próximo de quantos sofrem por causa das palavras que ferem,
como as calúnias e as maledicências,
e ajudai-nos a unir sempre as ações às palavras. Amém.
Papa Francisco
Catequese na audiência Geral 15.12.21
Imagem: pexels.com
Catequese sobre São José 3. José, homem justo e esposo de Maria
Continuemos o nosso caminho de reflexão sobre a figura de São José. Hoje gostaria de explorar o seu ser “justo” e “noivo de Maria”, e assim dar uma mensagem a todos os noivos, incluindo os recém-casados. Muitos acontecimentos ligados a José são contados nos evangelhos apócrifos, ou seja, evangelhos não canónicos, que também influenciaram a arte e vários lugares de culto. Estes escritos, que não estão na Bíblia – são histórias que a piedade cristã narrava naquele tempo – respondem ao desejo de preencher as lacunas narrativas dos Evangelhos canónicos, aqueles que estão na Bíblia, os quais nos dão tudo o que é essencial para a fé e a vida cristã.
O evangelista Mateus. Isto é importante: o que diz o Evangelho sobre José? Não o que dizem os evangelhos apócrifos, que não são negativos nem maus; são bonitos, mas não são a Palavra de Deus. Ao contrário, os Evangelhos, que estão na Bíblia, são a Palavra de Deus. Entre eles está o evangelista Mateus que define José um homem “justo”. Ouçamos a sua narração: «Eis como nasceu Jesus Cristo: Maria, sua mãe, estava desposada com José. Antes de coabitarem, aconteceu que ela concebeu por virtude do Espírito Santo. José, seu esposo, que era homem de bem, não querendo difamá-la, resolveu rejeitá-la secretamente» (1, 18-19). Pois os noivos, quando a noiva não era fiel ou engravidava, deviam denunciá-la! E as mulheres naquele tempo eram apedrejadas. Mas José era justo. E disse: “Não, eu não farei isto. Ficarei calado”.
Para compreender o comportamento de José em relação a Maria, é útil recordar os costumes matrimoniais do antigo Israel. O matrimónio compreendia duas fases bem definidas. A primeira era como um noivado oficial, que já implicava uma nova situação: em particular, a mulher, embora continuasse a viver na casa do seu pai por mais um ano, era de facto considerada a “esposa” do noivo. Ainda não viviam juntos, mas era como se ela fosse sua esposa. O segundo ato era a transferência da noiva da casa do seu pai para a casa do noivo. Isto acontecia com uma procissão festiva, que completava o matrimónio. E as amigas da noiva acompanhavam-na até lá. De acordo com estes costumes, o facto que «antes que fossem viver juntos, Maria estava grávida», expunha a Virgem à acusação de adultério. E esta culpa, segundo a Lei antiga, devia ser punida com a lapidação (cf. Dt 22, 20-21). No entanto, na prática judaica posterior, uma interpretação mais moderada tinha-se tornado realidade e apenas impunha o ato de repúdio, com consequências civis e criminais para a mulher, mas não o apedrejamento.
O Evangelho diz que José era “homem de bem” precisamente porque estava sujeito à lei como qualquer israelita piedoso. Mas dentro dele, o amor por Maria e a confiança nela sugeriam um modo de salvar a observância da lei e a honra da sua esposa: ele decidiu dar-lhe o ato de repúdio em segredo, sem clamor, sem a sujeitar à humilhação pública. Escolheu o caminho do segredo, sem julgamento nem vingança. Mas quanta santidade em José! Nós, que assim que temos um pouco de notícias folclóricas ou negativas sobre alguém, vamos imediatamente à tagarelice! José, ao contrário, fica calado.
Mas o evangelista Mateus acrescenta: «José, filho de Davi, não temas receber Maria por esposa, pois o que nela foi concebido vem do Espírito Santo. Ela dará à luz um filho, a quem porás o nome de Jesus, porque ele salvará o seu povo de seus pecados» (1, 20-21). A voz de Deus intervém no discernimento de José e, através de um sonho, revela-lhe um significado maior do que a sua própria justiça. E como é importante para cada um de nós cultivar uma vida justa e, ao mesmo tempo, sentir que estamos sempre a precisar da ajuda de Deus! Para poder alargar os nossos horizontes e considerar as circunstâncias da vida sob um ponto de vista diferente e mais amplo. Muitas vezes sentimo-nos prisioneiros pelo que nos aconteceu: “Mas vejam o que me aconteceu!” e continuamos prisioneiros daquela situação má que nos aconteceu; mas precisamente perante algumas circunstâncias da vida, que inicialmente parecem dramáticas, existe uma Providência que com o tempo toma forma e ilumina com significado até a dor que nos atingiu. A tentação é fecharmo-nos nessa dor, nesse pensamento das coisas desagradáveis que nos aconteceram. E isto não é bom. Leva à tristeza e à amargura. O coração amargo é tão triste.
Gostaria que fizéssemos uma pausa e refletíssemos sobre um pormenor desta história narrada no Evangelho que muitas vezes ignoramos. Maria e José são dois noivos que provavelmente tinham sonhos e expetativas sobre as suas vidas e o seu futuro. Deus parece intervir como um acontecimento inesperado na sua vicissitude, embora com alguma dificuldade inicial, ambos abrem o coração para a realidade que lhes é apresentada.
Estimados irmãos e irmãs, muitas vezes as nossas vidas não são como as imaginamos. Especialmente nas relações de amor, de afeto, temos dificuldade em passar da lógica do apaixonamento para a do amor maduro. E temos de passar do apaixonamento para o amor maduro. Vós, recém-casados, pensai bem nisto. A primeira fase é sempre marcada por um certo encantamento, que nos faz viver imersos num mundo imaginário que muitas vezes não corresponde à realidade dos factos. Mas precisamente quando o apaixonamento com as suas expetativas parece chegar ao fim, neste momento o verdadeiro amor pode começar. Com efeito, amar não é pretender que o outro ou a vida corresponda à nossa imaginação; pelo contrário, significa escolher com total liberdade assumir a responsabilidade pela vida que nos é oferecida. É por isso que José nos dá uma lição importante, ele escolheu Maria “com olhos abertos”. E podemos dizer que com todos os riscos. Pensai, no Evangelho de João, uma reprimenda que fazem os doutores da lei a Jesus é esta: “Não somos filhos que provêm de lá”, referindo-se à prostituição. Porque sabiam como Maria tinha engravidado e queriam difamar a mãe de Jesus. Para mim este é o trecho mais sujo e demoníaco do Evangelho. E o risco de José dá-nos esta lição: assumir a vida como vem. Deus interveio nela? Assumo-a. E José comportou-se como o anjo do Senhor lhe ordenara: de facto o Evangelho diz: «Despertando, José fez como o anjo do Senhor lhe havia mandado e recebeu em sua casa a sua esposa. E, sem que ele a tivesse conhecido, ela deu à luz o seu filho, que recebeu o nome de Jesus» (Mt 1, 24-25). Os noivos cristãos são chamados a dar testemunho deste amor, que tem a coragem de passar da lógica do apaixonamento para a do amor maduro. E esta é uma escolha exigente que, em vez de aprisionar a vida, pode fortalecer o amor para que seja duradouro face às provações do tempo. O amor de um casal continua na vida e amadurece todos os dias. O amor do noivado é um pouco – permiti-me que o diga – um pouco romântico. Vós vivestes-o, mas depois começa o amor maduro, quotidiano, o trabalho, as crianças que chegam. E, por vezes, aquele romantismo desaparece um pouco. Mas não há amor? Sim, mas amor maduro. “Mas sabe, padre, por vezes discutimos...”. Isto acontece desde o tempo de Adão e Eva até aos dias de hoje: que os esposos brigam é o pão nosso de cada dia. “Mas não deveríamos discutir?”. Sim, é possível. “E padre, mas por vezes erguemos a voz” – “Acontece”. “E também por vezes os pratos voam” – “Acontece”. Mas como assegurar que não prejudica a vida do matrimónio? Escutai bem: nunca terminai o dia sem fazer a paz. Tivemos uma discussão, disse-te coisas más, meu Deus, disse-te palavras más. Mas agora o dia acaba: tenho de fazer a paz. Sabei por que? Porque a guerra fria do dia seguinte é muito perigosa. Não deixeis que no dia seguinte comece uma guerra. Por isso que se deve fazer as pazes antes de ir para a cama. Lembrai-vos sempre: nunca terminar o dia sem fazer a paz. E isto irá ajudar-vos na vida de casado. Este percurso do apaixonamento para o amor maduro é uma escolha exigente, mas devemos seguir por esse caminho.
E também desta vez concluímos com uma oração a São José.
São José,
vós que amastes Maria com liberdade
e optastes por renunciar da sua imaginação para criar espaço à realidade,
ajudai cada um de nós a deixarmo-nos surpreender por Deus
e acolher a vida não como um acontecimento imprevisto do qual nos devemos defender,
mas como um mistério que esconde o segredo da verdadeira alegria.
Obtende alegria e radicalidade para todos os noivos cristãos,
Mas conservando sempre a consciência
De que só a misericórdia e o perdão tornam o amor possível. Amém.
Papa Francisco
Catequese na audiência geral 01.12.21
imagem: S. José, Mariotto di Nardo
Catequese sobre São José 2. São José na história da salvação
Na quarta-feira passada começamos o ciclo de catequeses sobre a figura de São José – o ano dedicado a ele está a findar. Hoje continuamos este percurso centrando-nos no seu papel na história da salvação.
Jesus é referido nos Evangelhos como «filho de José» (Lc 3, 23; 4, 22; Jo 1, 45; 6, 42) e «filho do carpinteiro» (Mt 13, 55; Mc 6, 3). Os Evangelistas Mateus e Lucas, ao narrarem a infância de Jesus, dão espaço ao papel de José. Ambos compõem uma «genealogia» para realçar a historicidade de Jesus. Mateus, dirigindo-se sobretudo aos judeus-cristãos, parte de Abraão e chega a José, definido como «o esposo de Maria, de quem nasceu Jesus, que se chama Cristo» (1, 16). Lucas, por sua vez, remonta até Adão, começando diretamente por Jesus, que «era filho de José», mas especifica: «como se supunha» (3, 33). Portanto, ambos os Evangelistas apresentam José não como o pai biológico, mas como o pai de Jesus a pleno título. Através dele, Jesus cumpre a história da aliança e da salvação entre Deus e o homem. Para Mateus esta história começa com Abraão, para Lucas com a própria origem da humanidade, isto é, com Adão.
O evangelista Mateus ajuda-nos a compreender que a figura de José, embora aparentemente marginal, discreta, em segunda linha, representa antes de tudo um elemento central na história da salvação. José vive o seu protagonismo sem nunca querer apoderar-se da cena. Se pensarmos nisto, «as nossas vidas são tecidas e sustentadas por pessoas comuns - habitualmente esquecidas - que não aparecem nas manchetes dos jornais e revistas […] Quantos pais, mães, avôs e avós, professores mostram às nossas crianças, com pequenos gestos, e com gestos do dia a dia, como enfrentar e atravessar uma crise, readaptando hábitos, levantando o olhar e estimulando a oração! Quantas pessoas rezam, se imolam e intercedem pelo bem de todos» (Carta ap. Patris corde, 1). Assim, todos podem encontrar em São José, o homem que passa despercebido, o homem da presença diária, da presença discreta e escondida, um intercessor, um apoio e um guia em tempos de dificuldade. Ele lembra-nos que todos aqueles que aparentemente estão escondidos, ou na “segunda linha”, têm um protagonismo inigualável na história da salvação. O mundo precisa destes homens e destas mulheres: homens e mulheres na segunda linha, mas que apoiam o desenvolvimento da nossa vida, de cada um de nós, e que com a oração, com o exemplo, com o ensinamento nos apoiam no caminho da vida.
No Evangelho de Lucas, José aparece como o guardião de Jesus e de Maria. E por esta razão ele é também «o “Guardião da Igreja”: mas, se foi o guardião de Jesus e de Maria, trabalha, agora que está nos céus, e continua a ser o guardião, neste caso da Igreja; porque a Igreja é o prolongamento do Corpo de Cristo na história e ao mesmo tempo, na maternidade da Igreja, espelha-se a maternidade de Maria. José, continuando a proteger a Igreja – por favor, não vos esqueçais disto: hoje, José protege a Igreja – continua a proteger o Menino e sua mãe» (ibid., 5). Este aspeto da guarda de José é a grande resposta ao relato do Génesis. Quando Deus pede a Caim que preste contas da vida de Abel, ele responde: «Sou porventura o guarda do meu irmão?» (4, 9). José, com a sua vida, parece querer dizer-nos que somos sempre chamados a sentirmo-nos guardas dos nossos irmãos, guardas dos que nos são próximos, daqueles que o Senhor nos confia através das muitas circunstâncias da vida.
Uma sociedade como a nossa, que foi definida “líquida”, pois parece que não tem consistência. Eu corrigiria aquele filósofo que cunhou esta definição e diria: mais do que líquida, gasosa, uma sociedade propriamente gasosa. Esta sociedade líquida, gasosa, encontra na história de José uma indicação muito clara da importância dos vínculos humanos. De fato, o Evangelho narra-nos a genealogia de Jesus, não só por uma razão teológica, mas também para recordar a cada um de nós que a nossa vida é constituída por laços que nos precedem e acompanham. O Filho de Deus escolheu o caminho dos vínculos para vir ao mundo, a via da história: não desceu ao mundo magicamente, não. Percorreu o caminho histórico que fazemos todos nós.
Estimados irmãos e irmãs, penso em tantas pessoas que lutam para encontrar relacionamentos significativos na sua vida, e por para isso mesmo lutam, sentem-se sozinhas, falta-lhes força e coragem para ir em frente. Gostaria de concluir com uma oração que ajude a eles e a todos nós a encontrar em São José um aliado, um amigo e um apoio.
São José,
vós que guardastes o vínculo com Maria e Jesus,
ajudai-nos a cuidar das relações na nossa vida.
Que ninguém experimente o sentimento de abandono
que vem da solidão.
Que cada um de nós se reconcilie com a própria história,
com aqueles que nos precederam,
e reconheça inclusive nos erros cometidos
um modo pelo qual a Providência abriu o seu caminho,
e o mal não teve a última palavra.
Mostrai-vos amigo para aqueles que mais lutam,
e como apoiastes Maria e Jesus nos momentos difíceis,
assim apoiai também a nós no nosso caminho. Amém.
Papa Francisco
Catequese na audiência geral 25.11.21
imagem: site do Vaticano
Catequese sobre São José 1. São José e o ambiente em que viveu
A 8 de dezembro de 1870, o Beato Pio IX proclamou São José padroeiro da Igreja universal. Depois de 150 anos daquele evento, estamos a viver um ano especial dedicado a São José, e na Carta Apostólica Patris corde recolhi algumas reflexões sobre a sua figura. Nunca como hoje, neste tempo marcado por uma crise global com diferentes componentes, ele pode ser apoio, conforto e orientação para nós. Por isso decidi dedicar-lhe um ciclo de catequeses, que espero nos possa ajudar ulteriormente a deixar-nos iluminar pelo seu exemplo e pelo seu testemunho. Durante algumas semanas falaremos de São José.
Na Bíblia há mais de dez personagens com o nome de José. O mais importante de todos é o filho de Jacó e Raquel, que, através de várias vicissitudes, de escravo, tornou-se a segunda pessoa mais importante no Egito depois do Faraó (cf. Gn 37-50). O nome José em hebraico significa “Deus aumente, Deus faça crescer”. É um desejo, uma bênção baseada na confiança na providência e refere-se especialmente à fecundidade e ao crescimento dos filhos. De fato, este mesmo nome revela-nos um aspeto essencial da personalidade de José de Nazaré. Ele é um homem cheio de fé na providência: acredita na providência de Deus, tem fé na providência de Deus. Toda a sua ação, narrada no Evangelho, é ditada pela certeza de que Deus “faz crescer”, que Deus “aumenta”, que Deus “acrescenta”, ou seja, que Deus providencia à continuação do seu desígnio de salvação. E nisto, José de Nazaré é muito parecido com José do Egito.
As principais referências geográficas relativas a José – Belém e Nazaré – também desempenham um papel importante na compreensão da sua figura.
No Antigo Testamento, a cidade de Belém é chamada Beth Lechem, “Casa do pão”, ou também Efrata, devido à tribo que se estabeleceu naquele território. No entanto, em árabe, o nome significa “Casa da carne”, provavelmente devido ao grande número de rebanhos de ovinos e caprinos na área. Não foi por acaso, de facto, que quando Jesus nasceu, os pastores foram as primeiras testemunhas do acontecimento (cf. Lc 2, 8-20). À luz da história de Jesus, estas alusões ao pão e à carne referem-se ao mistério da Eucaristia: Jesus é o pão vivo que desce do céu (cf. Jo 6, 51). Ele próprio dirá de si: «Quem comer a minha carne e beber o meu sangue viverá eternamente» (Jo 6, 54).
Belém é mencionada várias vezes na Bíblia, desde o Livro do Génesis. Belém está também ligada à história de Rute e Noémi, narrada no pequeno, mas maravilhoso Livro de Rute. Rute deu à luz um filho chamado Obed, do qual por sua vez nasceu Jessé, o pai do rei David. E José, o pai legal de Jesus, descende preciosamente da linhagem de David. Então o profeta Miqueias predisse grandes coisas sobre Belém: «E tu, Bet-Ephrata, tão pequena entre as famílias de Judá, é de ti que me há de sair aquele que governará Israel» (Mi 5, 1). O evangelista Mateus retomará esta profecia e ligá-la-á à história de Jesus como o seu evidente cumprimento.
De fato, o Filho de Deus não escolheu Jerusalém como o lugar da sua encarnação, mas Belém e Nazaré, duas aldeias periféricas, longe do clamor da crónica e do poder da época. Contudo, Jerusalém era a cidade amada pelo Senhor (cf. Is 62, 1-12), a «cidade santa» (Dn 3, 28), escolhida por Deus para lá habitar (cf. Zc 3, 2; Sl 132, 13). Ali, com efeito, habitavam os doutores da Lei, os escribas e fariseus, os chefes dos sacerdotes e os anciãos do povo (cf. Lc 2, 46; Mt 15, 1; Mc 3, 22; Jo 1, 19; Mt 26, 3).
É por isso que a escolha de Belém e Nazaré nos diz que a periferia e a marginalidade são prediletas a Deus. Jesus não nasceu em Jerusalém com toda a corte… não: nasceu numa periferia e transcorreu a sua vida, até aos 30 anos, naquela periferia, trabalhando como carpinteiro, como José. Para Jesus, as periferias e a marginalidade são prediletas. Não levar esta realidade a sério equivale a não levar a sério o Evangelho e a obra de Deus, que continua a manifestar-se nas periferias geográficas e existenciais. O Senhor age sempre de maneira escondida nas periferias, também na nossa alma, nas periferias da alma, dos sentimentos, talvez sentimentos dos quais nos envergonhamos; mas o Senhor está ali para nos ajudar a ir em frente. O Senhor continua a manifestar-se nas periferias, quer geográficas quer existenciais. Em particular, Jesus vai em busca dos pecadores, entra nas suas casas, fala com eles, chama-os à conversão. E foi até repreendido por isto: “Mas, veja, este Mestre – diziam os doutores da lei – veja este Mestre: come junto com os pecadores, suja-se, vai à procura daqueles que não praticam o mal, mas o sofrem: os doentes, os famintos, os pobres, os últimos”. Jesus vai sempre rumo às periferias. E isto deve dar-nos muita confiança, pois o Senhor conhece as periferias do nosso coração, as periferias da nossa alma, as periferias da nossa sociedade, da nossa cidade, da nossa família, isto é, aquela parte um pouco obscura que não mostramos talvez por vergonha.
Sob este aspeto, a sociedade daquela época não é muito diferente da nossa. Hoje também há um centro e uma periferia. E a Igreja sabe que é chamada a anunciar a boa nova a partir das periferias. José, que é um carpinteiro de Nazaré e que confia no plano de Deus para a sua jovem noiva e para si mesmo, recorda à Igreja que fixe o olhar naquilo que o mundo ignora deliberadamente. Hoje José ensina-nos isto: “Não olhemos para as coisas que o mundo louva, olhemos para os ângulos, as sombras, as periferias, para aquilo que o mundo não quer”. Ele lembra a cada um de nós que demos importância ao que os outros descartam. Neste sentido, é verdadeiramente um mestre do essencial: lembra-nos que o que é realmente valioso não atrai a nossa atenção, mas requer um discernimento paciente para ser descoberto e valorizado. Descubramos o que é válido. Peçamos-lhe que interceda para que toda a Igreja possa recuperar este discernimento, esta capacidade de discernir, esta capacidade de avaliar o que é essencial. Comecemos de novo a partir de Belém, comecemos de novo a partir de Nazaré.
Hoje gostaria de transmitir uma mensagem a todos os homens e mulheres que vivem nas periferias geográficas mais esquecidas do mundo ou que experimentam situações de marginalidade existencial. Que encontreis em São José a testemunha e o protetor para quem olhar. A ele podemos recorrer com esta oração, prece “feita em casa”, mas nascida do coração:
São José,
vós que sempre confiastes em Deus,
e fizestes as vossas escolhas
guiado pela sua providência
ensinai-nos a não contar tanto com os nossos projetos
mas com o seu desígnio de amor.
Vós que viestes das periferias
ajudai-nos a converter o nosso olhar
e a preferir o que o mundo descarta e marginaliza.
Confortai quantos se sentem sozinhos
e apoiai quantos se comprometem em silêncio
para defender a vida e a dignidade humana. Amém.
Papa Francisco
Catequese na audiência Geral de 17.11.21
Catequese sobre a Carta aos Gálatas 15. Não nos deixemos tomar pelo cansaço
Chegamos ao fim das catequeses sobre a Carta aos Gálatas. Sobre quantos outros aspetos deste texto de São Paulo poderíamos ter refletido! A palavra de Deus é uma fonte inesgotável. E nesta Carta o Apóstolo falou-nos como evangelizador, como teólogo e como pastor.
O santo bispo Inácio de Antioquia tem uma bela expressão quando escreve: «Há apenas um mestre que falou e o que disse foi feito; mas as coisas que ele fez em silêncio são dignas do Pai. Quem possui a palavra de Jesus também pode ouvir o seu silêncio» (Ad Ephesios, 15, 1-2). Podemos dizer que o Apóstolo Paulo foi capaz de dar voz a este silêncio de Deus. As suas intuições mais originais ajudam-nos a descobrir a novidade perturbadora contida na revelação de Jesus Cristo. Foi um verdadeiro teólogo, que contemplava o mistério de Cristo e o transmitia com a sua inteligência criativa. E foi também capaz de cumprir a sua missão pastoral a uma comunidade desorientada e confusa. Ele fez isto com métodos diferentes: usou ironia, rigor, mansidão... Reivindicou a própria autoridade como apóstolo, mas ao mesmo tempo não escondeu as fraquezas do seu caráter. O poder do Espírito realmente escavou no seu coração: o encontro com Cristo Ressuscitado conquistou e transformou toda a sua vida, e dedicou-a inteiramente ao serviço do Evangelho.
Paulo nunca pensou num cristianismo com traços irénicos, sem vigor nem energia, pelo contrário. Defendeu a liberdade que Cristo trouxe com uma paixão que ainda hoje nos comove, especialmente se pensarmos no sofrimento e na solidão que teve de suportar. Estava convencido de que tinha recebido uma chamada à qual só ele podia responder; e queria explicar aos Gálatas que também eles foram chamados a essa liberdade, que os aliviava de todas as formas de escravidão, porque os tornava herdeiros da antiga promessa e, em Cristo, filhos de Deus. E consciente dos riscos que este conceito de liberdade comportava, nunca minimizou as consequências. Estava ciente dos riscos que comporta a liberdade cristã, mas não minimizou as consequências. Reiterou com parrésia, isto é, com coragem, aos crentes que a liberdade não equivale de modo algum à libertinagem, nem conduz a formas de autossuficiência presunçosas. Pelo contrário, Paulo colocou a liberdade à sombra do amor e estabeleceu o seu exercício coerente ao serviço da caridade. Toda esta visão foi colocada no horizonte da vida de acordo com o Espírito Santo, que leva ao cumprimento da Lei doada por Deus a Israel e impede de cair novamente na escravidão do pecado. A tentação é sempre de voltar atrás. Uma definição dos cristãos, que está na Escritura, diz que nós, cristãos, não somos pessoas que voltam atrás, que vão para trás. Uma bonita definição. E a tentação é de ir para trás para nos sentirmos mais seguros; voltar apenas à Lei, descuidando a vida nova do Espírito. É isto que Paulo nos ensina: a verdadeira Lei tem a sua plenitude nesta vida do Espírito que Jesus nos doou. E esta vida do Espírito só pode ser vivida na liberdade, a liberdade cristã. E esta é uma das coisas mais bonitas!
No final deste itinerário de catequeses, parece-me que pode surgir em nós uma atitude dupla. Por um lado, o ensinamento do Apóstolo gera entusiasmo em nós; sentimo-nos impelidos a seguir imediatamente o caminho da liberdade, a «caminhar segundo o Espírito». Caminhar sempre segundo o Espírito: torna-nos livres. Por outro, estamos conscientes das nossas limitações, pois sentimos todos os dias como é difícil ser dócil ao Espírito, para seguir a sua ação benéfica. Pode então surgir o cansaço que diminui o entusiasmo. Sentimo-nos desanimados, fracos, às vezes marginalizados em relação ao estilo de vida da mentalidade mundana. Santo Agostinho sugere como reagir a esta situação, referindo-se ao episódio evangélico da tempestade no lago. Diz: «A fé de Cristo no teu coração é como Cristo no barco. Ouves insultos, cansas-te, aborreces-te e Cristo dorme. Desperta Cristo, move a tua fé! Até no tumulto, és capaz de fazer algo. Move a tua fé. Cristo acorda e fala contigo... Por isso, desperta Cristo... Acredita no que foi dito e haverá uma grande calma no teu coração» (Sermões 163/B 6). Nos momentos de dificuldade somos como – diz Santo Agostinho aqui – na barca no momento da tempestade. E o que fizeram os Apóstolos? Acordaram Cristo que dormia enquanto havia a tempestade; mas Ele estava presente. A única coisa que podemos fazer nos momentos de dificuldade é “despertar” Cristo que está dentro de nós, mas “dorme” como na barca. É assim mesmo. Devemos despertar Cristo no nosso coração e só então poderemos contemplar as coisas com o seu olhar, porque Ele vê para além da tempestade. Através desse seu olhar sereno, podemos ver um panorama que, por nós mesmos, nem sequer é possível divisar.
Neste caminho desafiador mas fascinante, o Apóstolo lembra-nos que não nos podemos dar ao luxo de nos cansarmos de fazer o bem. Não vos canseis de praticar o bem. Devemos confiar que o Espírito vem sempre em auxílio da nossa fraqueza e concede-nos o apoio de que necessitamos. Aprendamos então a invocar o Espírito Santo com mais frequência! Alguém pode dizer: “E como se invoca o Espírito Santo? Porque sei rezar ao Pai, com o Pai-Nosso; sei rezar a Nossa Senhora com a Ave-Maria; sei rezar a Jesus com a Prece das Chagas, mas ao Espírito? Qual é a oração do Espírito Santo?”. A oração ao Espírito Santo é espontânea: deve brotar do teu coração. Nos momentos de dificuldade, deves dizer: “Vinde, Santo Espírito!”. A palavra-chave é: “Vinde”. Mas deves dizê-lo com a tua linguagem, com as tuas palavras. Vinde, porque estou em dificuldade; vinde, pois estou na escuridão, na obscuridade; vinde, pois não sei o que fazer; vinde, pois estou prestes a cair. Vinde, vinde! É a palavra do Espírito para chamar o Espírito. Aprendamos a invocar com mais frequência o Espírito Santo! Podemos fazê-lo com palavras simples, em vários momentos do dia. E podemos levar conosco, talvez dentro do nosso Evangelho de bolso, a bela oração que a Igreja recita no Pentecostes: «Vinde, Santo Espírito / E mandai do céu um raio da vossa luz / Vinde, Pai dos pobres / Vinde, ó Distribuidor dos bens / Vinde, ó Luz dos corações! / Vinde, Consolador ótimo / doce Hóspede e suave alegria das almas / Vinde aliviar os trabalhos...». Vinde! E continua assim, é uma linda oração. O núcleo da prece é “vinde”, assim Nossa Senhora e os Apóstolos rezavam depois que Jesus ascendeu ao Céu; estavam sozinhos no Cenáculo e invocavam o Espírito. Far-nos-á bem recitá-la frequentemente. Vinde, Espírito Santo! E com a presença do Espírito nós salvaguardamos a liberdade. Seremos livres, cristãos livres, não apegados ao passado no sentido negativo da palavra, não acorrentados a práticas, mas livres com a liberdade cristã, aquela que nos faz amadurecer. Esta prece ajudar-nos-á a caminhar no Espírito, na liberdade e na alegria, pois quando o Espírito Santo vem, vem a alegria, a verdadeira alegria. O Senhor vos abençoe!
Papa Francisco
Catequese na audiência geral 10.11.21
Catequese sobre a Carta aos Gálatas 14. Caminhar segundo o Espírito
Estimados irmãos e irmãs, bom dia!
No excerto da Carta aos Gálatas que acabamos de ouvir, São Paulo exorta os cristãos a caminhar segundo o Espírito Santo (cf. 5, 16.25). Há um estilo: caminhar segundo o Espírito Santo. Com efeito, crer em Jesus significa segui-lo, ir atrás d’Ele no seu caminho, como fizeram os primeiros discípulos. E significa, ao mesmo tempo, evitar o caminho oposto, o do egoísmo, de procurar o próprio interesse, ao qual o Apóstolo chama «desejo da carne» (v. 16). O Espírito é o guia neste caminho pela vereda de Cristo, um caminho maravilhoso, mas também cansativo, que começa no Batismo e dura a vida inteira. Pensemos numa longa excursão nas montanhas: é fascinante, a meta atrai-nos, mas requer muito esforço e tenacidade.
Esta imagem pode ser-nos útil para entrar no mérito das palavras do Apóstolo: “Caminhar segundo o Espírito”, “deixar-se guiar” por Ele. São expressões que indicam uma ação, um movimento, um dinamismo que impede de parar nas primeiras dificuldades, mas provoca a confiar na «força que vem do alto» (O Pastor de Hermas, 43, 21). Percorrendo este caminho, o cristão adquire uma visão positiva da vida. Isto não significa que o mal presente no mundo tenha desaparecido, ou que faltem os impulsos negativos do egoísmo e do orgulho; significa, antes, acreditar que Deus é sempre mais forte do que a nossa resistência e maior do que os nossos pecados. E isto é importante!
Ao exortar os Gálatas a seguir este caminho, o Apóstolo coloca-se ao seu nível. Abandona o verbo no imperativo – «caminhai» (v. 16) – e usa o “nós” no indicativo: «caminhamos segundo o Espírito» (v. 25). Como que para dizer: caminhamos na mesma sintonia e somos guiados pelo Espírito Santo. É uma exortação, um modo exortativo. São Paulo sente que esta exortação é necessária também para si mesmo. Embora sabendo que Cristo vive nele (cf. 2, 20), está convencido também de que ainda não atingiu a meta, o cume da montanha (cf. Fl 3, 12). O Apóstolo não se coloca acima da sua comunidade, não diz: “Sou o líder, vós sois os outros; alcancei o cume da montanha e vós estais a caminho” – não diz isto – mas põe-se no meio, a caminho com todos, para dar exemplo concreto do modo como é necessário obedecer a Deus, correspondendo cada vez mais e melhor à guia do Espírito. E como é bom quando encontramos pastores que caminham com o seu povo e que não se afastam dele. Isto é muito bonito; faz bem à alma!
Este “caminhar segundo o Espírito” não é apenas uma ação individual: diz respeito igualmente à comunidade como um todo. Com efeito, construir a comunidade seguindo o caminho indicado pelo Apóstolo é entusiasmante, mas desafiante. Os “desejos da carne”, as “tentações” – por assim dizer – que todos nós temos, ou seja, inveja, preconceito, hipocrisia, ressentimentos continuam a fazer-se sentir, e o recurso a um preceito rígido pode ser uma tentação fácil, mas ao fazê-lo desviar-nos-íamos do caminho da liberdade e, em vez de subir ao cume, voltaríamos para baixo. Seguir o caminho do Espírito requer, antes de mais, dar lugar à graça e à caridade. Dar espaço à graça de Deus, sem receio. Depois de ter feito ouvir a sua voz de modo severo, Paulo convida os Gálatas a ocupar-se das dificuldades uns dos outros e, se alguém cometer um erro, a usar mansidão (cf. 5, 22). Ouçamos as suas palavras: «Irmãos, se alguém for surpreendido nalguma falta, vós, que sois animados pelo Espírito, admoestai-o com espírito de mansidão; e tu, tem cuidado ti mesmo, para não caíres também tu em tentação. Carregai os fardos uns dos outros» (6, 1-2). Uma atitude muito diferente da tagarelice; não, isto não é segundo o Espírito! Segundo o Espírito, é ter esta doçura com o irmão para o corrigir e vigiar sobre nós mesmos com humildade, para que nós não caiamos naqueles pecados.
Com efeito, quando somos tentados a julgar mal os outros, como é frequentemente acontece, devemos primeiro refletir sobre a nossa fragilidade. Como é fácil criticar os outros! Mas há pessoas que parecem ter uma licenciatura em tagarelice. Todos os dias criticam os outros. Mas olha para ti mesmo! É bom perguntar-nos o que nos motiva a corrigir um irmão ou uma irmã, e se não somos, de alguma forma, corresponsáveis pelo seu erro. O Espírito Santo, além de nos doar a mansidão, convida-nos à solidariedade, a carregar os fardos dos outros. Quantos fardos há na vida de uma pessoa: a doença, a falta de trabalho, a solidão, a dor... E quantas outras provas que exigem a proximidade e o amor dos irmãos! Podem-nos ajudar as palavras de Santo Agostinho, quando comenta este mesmo excerto: «Portanto, irmãos, se alguém for apanhado nalguma falha [...] corrigi-o desta maneira, com mansidão. E se tu levantares a voz, ama interiormente. Se encorajares, se te mostrares paterno, se repreenderes, se fores severo, ama!» (Sermões 163/B 3). Amai sempre! A regra suprema da correção fraterna é o amor: querer o bem dos nossos irmãos e irmãs. Trata-se de tolerar os problemas dos outros, os defeitos dos outros em silêncio na oração, e depois encontrar o modo correta de os ajudar a corrigir-se. E isto não é fácil! A maneira mais fácil é a tagarelice. Esfolar a outra pessoa como se eu fosse perfeito. E isto não deve ser feito. Mansidão. Paciência. Oração. Proximidade!
Percorramos com alegria e paciência este caminho, deixando-nos guiar pelo Espírito Santo!
Papa Francisco
Catequese na audiência geral 03.11.21
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Catequese sobre a Carta aos Gálatas 13. O fruto do Espírito
A pregação de São Paulo é totalmente centrada em Jesus e no seu mistério pascal. De facto, o Apóstolo apresenta-se como anunciador de Cristo, e de Cristo crucificado (cf. 1 Cor 2, 2). Aos Gálatas, tentados a basear a sua religiosidade na observância de preceitos e tradições, ele recorda o centro da salvação e da fé: a morte e a ressurreição do Senhor. Fá-lo colocando diante deles o realismo da cruz de Jesus. Escreve: «Quem vos fascinou para não obedecerdes à verdade, vós, perante cujos olhos foi apresentado Jesus Cristo crucificado?» (Gl 3, 1). Quem vos fascinou para vos afastar de Cristo Crucificado? Trata-se de um momento terrível para os Gálatas…
Ainda hoje, muitos procuram a certeza religiosa em vez do Deus vivo e verdadeiro, concentrando-se em rituais e preceitos em vez de abraçar o Deus do amor com todo o seu ser. E esta é a tentação dos novos fundamentalistas, daqueles aos quais parece que a estrada a percorrer provoque temor e não vão em frente, mas voltam para trás pois se sentem mais seguros: procuram a segurança de Deus e não o Deus da segurança. É por isso que Paulo pede aos Gálatas que voltem ao essencial, a Deus que nos dá a vida em Cristo crucificado. Ele testemunha isto em primeira pessoa: «Já não sou eu que vivo, é Cristo que vive em mim» (Gl 2, 20). E no final da Carta, afirma: «Quanto a mim, Deus me livre de me gloriar a não ser na cruz de Nosso Senhor Jesus Cristo» (6, 14).
Se nós perdermos o fio da nossa vida espiritual, se mil problemas e pensamentos nos assolarem, façamos nossos os conselhos de Paulo: coloquemo-nos diante de Cristo Crucificado, comecemos de novo a partir d’Ele. Peguemos o Crucifixo nas mãos, tenhamo-lo perto do nosso coração. Ou façamos uma pausa em adoração antes da Eucaristia, onde Jesus é Pão partido para nós, o Crucificado Ressuscitado, o poder de Deus que derrama o seu amor nos nossos corações.
E agora, novamente guiados por São Paulo, demos um ulterior passo. Perguntemo-nos: o que acontece quando encontramos Jesus Crucificado na oração? Verifica-se o que aconteceu sob a cruz: Jesus entrega o Espírito (cf. Jo 19, 30), ou seja, doa a sua própria vida. E o Espírito, que flui da Páscoa de Jesus, é o princípio da vida espiritual. É Ele que muda o coração: não as nossas obras. É Ele que muda o coração, não as coisas que nós fazemos, mas a ação do Espírito Santo em nós muda o coração! É ele quem guia a Igreja, e nós somos chamados a obedecer à sua ação, que vai para onde e como ele quiser. Além disso, foi precisamente a constatação de que o Espírito Santo descia sobre todos e que a sua graça agia sem exclusão que convenceu também os mais relutantes dos Apóstolos de que o Evangelho de Jesus era destinado a todos e não a uns poucos privilegiados. E aqueles que procuram a segurança, o pequeno grupo, as coisas claras como outrora, afastam-se do Espírito, não deixam que a liberdade do Espírito entre neles. Assim, a vida da comunidade regenera-se no Espírito Santo; e é sempre graças a Ele que alimentamos a nossa vida cristã e continuamos a nossa luta espiritual.
Precisamente o combate espiritual é outro grande ensinamento da Carta aos Gálatas. O Apóstolo apresenta duas frentes opostas: por um lado as «obras da carne», por outro o «fruto do Espírito». Quais são as obras da carne? São comportamentos contrários ao Espírito de Deus. O Apóstolo chama-lhes obras da carne não porque há algo de errado ou mau na nossa carne humana; pelo contrário, vimos como ele insiste no realismo da carne humana suportada por Cristo na cruz! Carne é uma palavra que indica o homem na sua dimensão terrena, fechado em si mesmo, numa vida horizontal, onde os instintos mundanos são seguidos e a porta se fecha ao Espírito, que nos eleva e nos abre a Deus e aos outros. Mas a carne também nos lembra que tudo isto envelhece, que tudo isto passa, apodrece, enquanto o Espírito dá vida. Paulo enumera assim as obras da carne, que se referem ao uso egoísta da sexualidade, a práticas mágicas que são idolatrias e ao que mina as relações interpessoais, como «contendas, ciúmes, iras, rixas, discórdias, partidos…» (cf. Gl 5,19-21). Tudo isto é o fruto – digamos assim – da carne, de um comportamento apenas humano, “doentiamente” humano, pois o humano tem os seus valores, mas tudo isto é “doentiamente” humano.
O fruto do Espírito, ao contrário, é «caridade, alegria, paz, paciência, benignidade, bondade, fidelidade, mansidão, temperança» (Gl 5, 22): assim diz Paulo. Os cristãos, que no batismo se revestiram «de Cristo» (cf. Gl 3, 27), são chamados a viver deste modo. Pode ser um bom exercício espiritual, por exemplo, ler a lista de São Paulo e observar a própria conduta, para verificar se corresponde, se a nossa vida está verdadeiramente de acordo com o Espírito Santo, se dá estes frutos. A minha vida produz estes frutos de caridade, alegria, paz, paciência, benignidade, bondade, fidelidade, mansidão, temperança? Por exemplo, os três primeiros são caridade, paz e alegria: por isto se reconhece se uma pessoa é habitada pelo Espírito Santo. Uma pessoa que está em paz, que rejubila e que ama: com estas três caraterísticas vê-se a ação do Espírito.
Este ensinamento do Apóstolo representa também um grande desafio para as nossas comunidades. Por vezes, aqueles que se aproximam da Igreja têm a impressão de estarem perante uma grande quantidade de comandos e preceitos: mas não, esta não é a Igreja! Esta pode ser qualquer associação. Na realidade, porém, a beleza da fé em Jesus Cristo não pode ser apreendida com base em demasiados mandamentos e numa visão moral que, desenvolvendo-se em muitas correntes, pode fazer-nos esquecer a fecundidade original do amor, alimentado pela oração que doa a paz e pelo testemunho jubiloso. Da mesma forma, a vida do Espírito expressa nos sacramentos não pode ser abafada por uma burocracia que impede o acesso à graça do Espírito, autor da conversão do coração. E quantas vezes nós mesmos, sacerdotes ou bispos, temos tanta burocracia para dar um Sacramento, para acolher as pessoas, que consequentemente dizem: “Não, não gosto disto”, e vão embora, e não veem em nós, muitas vezes, a força do Espírito que regenera, que nos faz novos. Por conseguinte, temos a grande responsabilidade de anunciar Cristo crucificado e ressuscitado, animados pelo sopro do Espírito de amor. Pois só este Amor tem o poder de atrair e mudar o coração do homem.
Papa Francisco
Catequese na audiência geral 27.10.21
Catequese sobre a Carta aos Gálatas 12. A liberdade se realiza na caridade
Nestes dias falamos da liberdade de fé, ouvindo a Carta aos Gálatas. Mas lembrei-me do que Jesus dizia sobre a espontaneidade e liberdade das crianças, quando uma criança teve a liberdade de se aproximar e de se mover como se estivesse na sua casa... E Jesus diz-nos: “Também vós, se não vos comportardes como crianças, não entrareis no Reino dos Céus”. A coragem de se aproximar do Senhor, de estar aberto ao Senhor, de não ter medo do Senhor: agradeço àquela criança a lição que deu a todos nós. E que o Senhor a ajude na sua limitação, no seu crescimento, porque deu este testemunho que lhe veio do coração. As crianças não têm um tradutor automático do coração para a vida: o coração vai em frente.
Na sua Carta aos Gálatas, o Apóstolo Paulo introduz-nos um pouco de cada vez, lentamente, na grande novidade da fé. É de facto uma grande novidade, pois não se limita a renovar algum aspecto da vida, mas reconduz-nos para aquela “vida nova” que recebemos no Batismo. Nele foi derramado sobre nós o maior dom, ser filhos de Deus. Renascidos em Cristo, passamos de uma religiosidade feita de preceitos para uma fé viva, que tem o seu centro na comunhão com Deus e com os irmãos, isto é, na caridade. Passamos da escravidão do medo e do pecado para a liberdade dos filhos de Deus. Mais uma vez, a palavra liberdade.
Hoje procuremos compreender melhor qual é, para o Apóstolo, o âmago desta liberdade. Paulo afirma que é tudo, menos «um pretexto para a carne» (Gl 5, 13): ou seja, a liberdade não é um modo libertino de viver, segundo a carne, ou segundo o instinto, desejos individuais e impulsos egoístas; pelo contrário, a liberdade de Jesus leva-nos a estar – escreve o Apóstolo – «ao serviço uns dos outros» (ibidem). Mas é isto escravidão? Sim, a liberdade em Cristo contém alguma “escravidão”, alguma dimensão que nos leva ao serviço, a viver para os outros. Em síntese, a verdadeira liberdade é plenamente expressa na caridade. Mais uma vez encontramo-nos perante o paradoxo do Evangelho: somos livres para servir, não para fazer o que queremos. Somos livres quando servimos, e é disto que vem a liberdade; encontramo-nos plenamente na medida em que nos doamos. Encontramo-nos plenamente na medida em que nos doamos, em que temos a coragem de nos doar; possuímos a vida se a perdermos (cf. Mc 8, 35). Isto é Evangelho puro!
Mas como se pode explicar este paradoxo? A resposta do Apóstolo é simples e exigente: «mediante o amor» (Gl 5, 13). Não há liberdade sem amor. A liberdade egoísta do fazer o que quero não é liberdade, pois volta a si mesma, não é fecunda. Foi o amor de Cristo que nos libertou e é ainda o amor que nos liberta da pior escravidão, a do nosso ego; por conseguinte, a liberdade cresce com o amor. Mas, atenção: não com o amor intimista, com o amor das novelas, não com a paixão que simplesmente procura o que nos convém e aquilo de que gostamos, mas com o amor que vemos em Cristo, a caridade: este é o amor verdadeiramente livre e libertador. É o amor que resplandece no serviço gratuito, modelado segundo o de Jesus, que lava os pés aos seus discípulos, dizendo: «Dei-vos um exemplo para que também vós façais como Eu vos fiz» (Jo 13, 15). Servir uns aos outros.
Portanto, para Paulo a liberdade não significa “fazer o que apetece”. Este tipo de liberdade, sem finalidades nem referências, seria uma liberdade vazia, uma liberdade de circo: não funciona. E com efeito deixa um vazio interior: quantas vezes, depois de termos seguido apenas o nosso instinto, nos damos conta de que sentimos um grande vazio interior e que abusamos do tesouro da nossa liberdade, da beleza de poder escolher o verdadeiro bem para nós mesmos e para os demais. Só esta liberdade é plena, concreta, dado que nos insere na vida real de cada dia. A verdadeira liberdade liberta-nos sempre; ao contrário, quando buscamos a liberdade do “aquilo de que gosto e não gosto”, no final permanecemos vazios.
Noutra Carta, a primeira aos Coríntios, o Apóstolo responde àqueles que têm uma ideia errada de liberdade. “Tudo é lícito!”, dizem eles. “Sim, mas nem tudo é benéfico”, responde Paulo. “Tudo é lícito!” – “Sim, mas nem tudo edifica”, objeta o Apóstolo. E acrescenta: «Ninguém procure o próprio interesse, senão os dos outros» (1 Cor 10, 23-24). Esta é a regra para desmascarar qualquer liberdade egoísta. Também àqueles que são tentados a reduzir a liberdade apenas aos próprios gostos, Paulo apresenta a exigência do amor. A liberdade guiada pelo amor é a única que liberta os outros e nós mesmos, que sabe ouvir sem impor, que sabe amar sem forçar, que constrói e não destrói, que não explora os demais para a sua conveniência e que pratica o bem sem procurar o próprio benefício. Em suma, se a liberdade não estiver ao serviço – eis o teste – se a liberdade não estiver ao serviço do bem, corre o risco de ser estéril e de não dar frutos. Por outro lado, a liberdade animada pelo amor conduz aos pobres, reconhecendo no seu rosto o de Cristo. Portanto, o serviço uns aos outros permite a Paulo, escrevendo aos Gálatas, fazer uma observação que não é de modo algum secundária: assim, falando da liberdade que os outros Apóstolos lhe deram de evangelizar, frisa que recomendaram apenas uma coisa: recordar-se dos pobres (cf. Gl 2, 10). Isto é interessante! Quando, depois da luta ideológica, Paulo e os Apóstolos concordaram, eis o que os Apóstolos lhe disseram: “Vai em frente, continua e não te esqueças dos pobres”, isto é, que a tua liberdade de pregador seja uma liberdade ao serviço dos outros, não para ti mesmo, de fazer o que te apetece.
Contudo, sabemos que uma das mais generalizadas noções modernas de liberdade é esta: “A minha liberdade acaba onde começa a tua”. Mas aqui falta a relação, o relacionamento! Trata-se de uma visão individualista. Por outro lado, aqueles que receberam o dom da libertação trazida por Jesus não podem pensar que a liberdade consiste em afastar-se dos outros, sentindo-os incómodos; não podem ver o ser humano fechado em si mesmo, mas sempre parte de uma comunidade. A dimensão social é fundamental para os cristãos, dado que lhes permite olhar para o bem comum e não para o interesse particular.
Sobretudo neste momento histórico, temos necessidade de redescobrir a dimensão comunitária, não individualista, da liberdade: a pandemia ensinou-nos que precisamos uns dos outros, mas não é suficiente sabê-lo, devemos escolhê-lo concretamente todos os dias, decidir empreender aquele caminho. Digamos e acreditemos que os outros não são um obstáculo para a minha liberdade, mas constituem a possibilidade de a realizar plenamente. Pois a nossa liberdade nasce do amor de Deus e cresce na caridade.
Papa Francisco
Catequese na audiência geral 20.10.21
Catequese sobre a Carta aos Gálatas 11. A liberdade cristã, fermento universal de libertação
Estimados irmãos e irmãs, bom dia!
No nosso itinerário catequético sobre a Carta aos Gálatas, pudemos concentrar-nos no que São Paulo considera o âmago da liberdade: o facto de, com a morte e ressurreição de Jesus Cristo, termos sido libertados da escravidão do pecado e da morte. Por outras palavras: somos livres porque fomos libertados, libertados por graça – não por pagamento – libertados pelo amor, que se torna a lei suprema e nova da vida cristã. O amor: somos livres porque fomos libertados gratuitamente. Este é precisamente o ponto-chave.
Hoje gostaria de salientar como esta novidade de vida nos abre para acolher cada povo e cultura e, ao mesmo tempo, abre cada povo e cultura a uma maior liberdade. Na verdade, São Paulo diz que para aqueles que aderem a Cristo, já não importa se são judeus ou pagãos. Conta apenas «a fé que atua pela caridade» (Gl 5, 6). Crer que fomos libertados e crer em Jesus Cristo que nos libertou: esta é a fé ativa pela caridade. Os detratores de Paulo – aqueles fundamentalistas que lá tinham chegado – atacavam-no por esta novidade, alegando que tinha tomado esta posição por oportunismo pastoral, ou seja, para “agradar a todos”, minimizando as exigências recebidas da sua mais estreita tradição religiosa. É o mesmo discurso dos fundamentalistas de hoje: a história repete-se sempre. Como podemos ver, a crítica a cada novidade evangélica não é apenas da nossa época, mas tem uma longa história. No entanto, Paulo não permanece em silêncio. Responde com parrésia – é uma palavra grega que indica coragem, força – e diz: «Porventura procuro eu agora conciliar o favor dos homens, ou o de Deus? Ou procuro agradar aos homens? Se procurasse agradar aos homens, não seria servo de Cristo» (Gl 1, 10). Já na sua primeira Carta aos Tessalonicenses expressou-se em termos semelhantes, dizendo que na pregação «nunca usamos de adulação, [...] nem fomos levados por interesse algum [...]. Não procuramos a glória entre os homens» (1 Ts 2, 5-6), que são as vias do “faz de conta”; uma fé que não é fé, é mundanidade.
Mais uma vez, o pensamento de Paulo mostra-se de uma profundidade inspirada. Para ele, aceitar a fé significa renunciar não ao coração das culturas e tradições, mas apenas ao que pode impedir a novidade e a pureza do Evangelho. Porque a liberdade obtida pela morte e ressurreição do Senhor não entra em conflito com as culturas e tradições que recebemos, mas introduz nelas uma nova liberdade, uma novidade libertadora, a do Evangelho. Com efeito, a libertação obtida através do batismo permite-nos adquirir a plena dignidade de filhos de Deus, de modo que, enquanto permanecemos firmemente enxertados nas nossas raízes culturais, ao mesmo tempo abrimo-nos ao universalismo da fé, que entra em cada cultura, reconhece os germes de verdade presentes nela e desenvolve-os, levando à plenitude o bem nelas contido. Aceitar que fomos libertados por Cristo – a sua paixão, a sua morte, a sua ressurreição – é aceitar e levar a plenitude também às diversas tradições de cada povo. A verdadeira plenitude.
Na chamada à liberdade descobrimos o verdadeiro significado da inculturação do Evangelho. Qual é este verdadeiro significado? Ser capaz de proclamar a Boa Nova de Cristo Salvador, respeitando o que é bom e verdadeiro nas culturas. Isto não é fácil! Há muitas tentações de impor o próprio modelo de vida como se fosse o mais evoluído e desejável. Quantos erros foram cometidos na história da evangelização ao querer impor apenas um modelo cultural! A uniformidade como regra de vida não é cristã! A unidade sim, a uniformidade não! Por vezes, nem sequer se renunciou à violência a fim de fazer prevalecer o próprio ponto de vista. Pensemos nas guerras. Desta forma, a Igreja privou-se da riqueza de tantas expressões locais que têm em si as tradições culturais de povos inteiros. Mas isto é exatamente o oposto da liberdade cristã! Por exemplo, vem-me à mente quando se afirmou o modo de fazer apostolado na China com o padre Ricci ou na Índia com o padre De Nobili… [Alguém dizia]: “Mas não, isto não é cristão!”. Sim, é cristão, está na cultura do povo.
Em suma, a visão de liberdade própria de Paulo é iluminada e enriquecida pelo mistério de Cristo, que na sua encarnação – como recorda o Concílio Vaticano II – se uniu de certo modo a cada homem (cf. Const. past. Gaudium et spes, 22). E isto significa que não há uniformidade, ao contrário, há a variedade, mas variedade unida. Disto deriva o dever de respeitar a origem cultural de cada pessoa, colocando-a num espaço de liberdade que não seja restringido por qualquer imposição ditada por uma única cultura predominante. Este é o significado de nos chamarmos católicos, de falarmos da Igreja católica: não é uma denominação sociológica para nos distinguir dos outros cristãos; católico é um adjetivo que significa universal: a catolicidade, a universalidade. Igreja universal, isto é, católica, significa que a Igreja tem em si, na própria natureza, uma abertura a todos os povos e culturas de todos os tempos, pois Cristo nasceu, morreu e ressuscitou para todos.
Por outro lado, a cultura está, pela sua natureza, em contínua transformação. Pensemos em como somos chamados a proclamar o Evangelho neste momento histórico de grande mudança cultural, onde parece predominar a tecnologia cada vez mais avançada. Se pretendêssemos falar da fé como se fazia nos séculos passados, correríamos o risco de já não sermos compreendidos pelas novas gerações. A liberdade da fé cristã – a liberdade cristã – não indica uma visão estática da vida e da cultura, mas uma visão dinâmica, uma visão dinâmica inclusive da tradição. A tradição cresce, mas sempre com a mesma natureza. Por conseguinte, não pretendamos ter a posse da liberdade. Recebemos um dom que deve ser preservado. E é a liberdade que pede a cada um de nós para permanecer num caminho constante, orientados para a sua plenitude. É a condição de peregrinos; é o estado dos caminhantes, num êxodo contínuo: libertados da escravidão para caminhar rumo à plenitude da liberdade. E este é o grande dom que Jesus Cristo nos doou. O Senhor libertou-nos da escravidão gratuitamente e pôs-nos na via para caminhar na plena liberdade.
Papa Francisco
Catequese na audiência geral 13.10.21
Catequese sobre a Carta aos Gálatas 10. Cristo nos libertou
Estimados irmãos e irmãs, bom dia!
Hoje retomamos a nossa reflexão sobre a Carta aos Gálatas. Nela, São Paulo escreveu palavras imortais sobre a liberdade cristã. O que é a liberdade cristã? Reflitamos hoje sobre este tema: a liberdade cristã.
A liberdade é um tesouro que só é verdadeiramente apreciado quando o perdemos. Para muitos de nós, habituados a viver em liberdade, muitas vezes parece mais um direito adquirido do que um dom e uma herança a ser preservada. Quantos desentendimentos em torno do tema da liberdade, e quantas visões diferentes se confrontaram ao longo dos séculos!
No caso dos Gálatas, o Apóstolo não podia suportar que esses cristãos, depois de terem conhecido e aceitado a verdade de Cristo, se deixassem atrair por propostas enganosas, passando da liberdade à escravidão: da presença libertadora de Jesus à escravidão do pecado, do legalismo, etc. Ainda hoje o legalismo é um nosso problema, o problema de muitos cristãos que se refugiam no legalismo, na casuística. Portanto, Paulo convida os cristãos a permanecerem firmes na liberdade que receberam através do batismo, sem se deixarem colocar de novo sob o «jugo da escravidão» (Gl 5, 1). Ele é justamente ciumento da liberdade. Está ciente de que alguns «falsos irmãos» – define-os deste modo – «que se intrometeram e entraram a espiar – como escreve – a liberdade que temos em Jesus Cristo a fim de nos reduzir à escravidão» (Gl 2, 4), voltar atrás, e Paulo não pode tolerar isto. A pregação que impede a liberdade em Cristo nunca seria evangélica: poderia ser pelagiana ou jansenista ou algo do género, mas não seria evangélica. Nunca se pode forçar em nome de Jesus, não se pode fazer de ninguém um escravo em nome de Jesus que nos liberta. A liberdade é um dom que nos é dado no batismo.
Mas o ensinamento de São Paulo sobre a liberdade é sobretudo positivo. O Apóstolo propõe o ensinamento de Jesus, que também encontramos no Evangelho de João: «Se permanecerdes na minha palavra, sereis meus verdadeiros discípulos; conhecereis a verdade e a verdade libertar-vos-á» (8, 31-32). Por conseguinte, acima de tudo, o apelo consiste em permanecer em Jesus, fonte da verdade que nos liberta. Portanto, a liberdade cristã baseia-se em dois pilares fundamentais: primeiro, a graça do Senhor Jesus; segundo, a verdade que Cristo nos revela e que é Ele próprio.
Em primeiro lugar, é o dom do Senhor. A liberdade que os Gálatas receberam – e nós como eles através do batismo – é o fruto da morte e ressurreição de Jesus. O Apóstolo concentra toda a sua pregação em Cristo, que o libertou dos vínculos com a sua vida passada: só dele brotam os frutos da nova vida de acordo com o Espírito. De facto, a liberdade mais verdadeira, a liberdade da escravidão do pecado, veio da Cruz de Cristo. Estamos livres da escravidão do pecado através da Cruz de Cristo. Precisamente nela, onde Jesus se deixou pregar, onde se fez escravo, Deus colocou a fonte da libertação do homem. Isto nunca deixa de nos surpreender: que o lugar onde somos despojados de toda a liberdade, nomeadamente a morte, pode tornar-se a fonte da liberdade. Mas este é o mistério do amor de Deus: não é facilmente compreendido, é vivido. O próprio Jesus anunciou-o quando disse: «O Pai ama-me, porque dou a minha vida para a retomar. Ninguém me tira. Sou Eu que a dou por Mim mesmo. Tenho poder para a dar e para tornar a tomá-la» (Jo 10, 17-18). Jesus realiza a sua plena liberdade ao entregar-se à morte; ele sabe que só desta forma pode obter vida para todos.
Paulo, como sabemos, viveu pessoalmente este mistério de amor. É por isso que diz aos Gálatas, com uma expressão extremamente audaz: «Fui crucificado com Cristo» (Gl 2, 19). Nesse ato de união suprema com o Senhor, sabe que recebeu o maior dom da sua vida: a liberdade. De facto, na cruz pregou «a carne com as suas paixões e desejos» (5, 24). Compreendemos quanto a fé animava o Apóstolo, quanto era grande a sua intimidade com Jesus e enquanto, por um lado, sentimos que nos falta isso, por outro, o testemunho do Apóstolo encoraja-nos a ir em frente nesta vida livre. O cristão é livre, deve ser livre e é chamado a não voltar a ser escravo de preceitos, de coisas estranhas.
O segundo pilar da liberdade é a verdade. Também neste caso é necessário recordar que a verdade da fé não é uma teoria abstrata, mas a realidade do Cristo vivo, que toca diretamente o significado quotidiano e global da vida pessoal. Quantas pessoas que não estudaram, nem sequer sabem ler nem escrever, mas compreenderam bem a mensagem de Cristo, têm esta sabedoria que as liberta. É a sabedoria de Cristo que entrou através do Espírito Santo no batismo. Quantas pessoas encontramos que vivem a vida de Cristo mais do que os grandes teólogos, por exemplo, oferecendo um testemunho precioso da liberdade do Evangelho. A liberdade torna-nos livres na medida em que transforma a vida de uma pessoa e a encaminha para o bem. Para sermos verdadeiramente livres, precisamos não só de nos conhecer a nós mesmos, a nível psicológico, mas sobretudo de sermos nós mesmos verdade, a um nível mais profundo. E ali, no coração, abrimo-nos à graça de Cristo. A verdade deve inquietar-nos – voltemos a esta palavra cristã: inquietar. Sabemos que há cristãos que nunca ficam inquietos: vivem sempre iguais, não há movimento nos seus corações, não há inquietude. Porquê? Porque a inquietação é o sinal de que o Espírito Santo age dentro de nós, e a liberdade é ativa, suscitada pela graça do Espírito Santo. É por isso que digo que a liberdade deve inquietar-nos, deve continuamente fazer-nos perguntas, para que possamos ir cada vez mais a fundo no que realmente somos. Desta forma, descobrimos que o caminho para a verdade e a liberdade é cansativo e dura a vida inteira. É difícil permanecer livre, é difícil; mas não é impossível. Coragem, levemos isto por diante, far-nos-á bem. É um caminho no qual somos guiados e apoiados pelo Amor que vem da Cruz: o Amor que nos revela a verdade e nos dá liberdade. E este é o caminho para a felicidade. A liberdade torna-nos livres, torna-nos alegres, torna-nos felizes.
Papa Francisco
Catequese na audiência geral 06.10.21
Catequese sobre a Carta aos Gálatas - 9. A vida na fé
Estimados irmãos e irmãs, bom dia!
No nosso percurso para compreender melhor o ensinamento de São Paulo, encontramo-nos hoje com um tema difícil, mas importante, o da justificação. O que é a justificação? Nós, como pecadores, tornámo-nos justos. Quem nos tornou justos? Este processo de mudança é a justificação. Nós, perante Deus, somos justos. É verdade que temos os nossos pecados pessoais, mas na base somos justos. Esta é a justificação. Houve muitos debates sobre este assunto, para encontrar a interpretação mais coerente com o pensamento do Apóstolo e, como muitas vezes acontece, houve também posições opostas. Na Carta aos Gálatas, bem como na Carta aos Romanos, Paulo insiste no facto de que a justificação vem da fé em Cristo. “Mas, eu sou justo porque cumpro todos os mandamentos”. Sim, mas a justificação não vem disto, vem antes: alguém te justificou, alguém te tornou justo perante Deus. “Sim, mas sou pecador!”. Sim, és justo, mas pecador, és justo na base. Quem te tornou justo? Jesus Cristo. Esta é a justificação.
O que está por detrás da palavra “justificação”, que é tão decisiva para a fé? Não é fácil chegar a uma definição completa, mas na totalidade do pensamento de São Paulo podemos simplesmente dizer que a justificação é a consequência da «misericórdia de Deus que oferece o perdão» (Catecismo da Igreja Católica, n. 1990). E este é o nosso Deus, tão bom, misericordioso, paciente, cheio de misericórdia, que continuamente doa o perdão, continuamente. Ele perdoa, e a justificação é Deus que perdoa desde o início cada um, em Cristo. A misericórdia de Deus que dá o perdão. De facto, através da morte de Jesus – e isto deve ser frisado: através da morte de Jesus – Deus destruiu o pecado e doou-nos o perdão e a salvação de uma forma definitiva. Assim justificados, os pecadores são acolhidos por Deus e reconciliados com Ele. É como um regresso à relação original entre o Criador e a criatura, antes que interviesse a desobediência do pecado. Portanto, a justificação que Deus realiza permite que recuperemos a inocência perdida com o pecado. Como ocorre a justificação? Responder a esta pergunta é descobrir outra novidade no ensinamento de São Paulo: a justificação ocorre por graça. Só pela graça: fomos justificados por pura graça. “Mas não posso, como fazem alguns, ir ter com o juiz e pagar para que ele me dê a justiça?”. Não, nisto não se pode pagar, pagou alguém por todos nós: Cristo. E de Cristo que morreu por nós vem aquela graça que o Pai concede a todos: a justificação vem pela graça.
O Apóstolo tem sempre em mente a experiência que mudou a sua vida: o encontro com Jesus ressuscitado no caminho de Damasco. Paulo tinha sido um homem orgulhoso, religioso e zeloso, convencido de que a justiça consistia na observância escrupulosa dos preceitos. Agora, porém, foi conquistado por Cristo, e a fé n’Ele transformou-o até às profundezas, permitindo-lhe descobrir uma verdade até então escondida: não somos nós que nos tornamos justos pelos nossos próprios esforços – não: não somos nós; mas é Cristo com a sua graça que nos torna justos. Assim Paulo, para ter um conhecimento pleno do mistério de Jesus, está disposto a renunciar a tudo aquilo do que antes era rico (cf. Fl 3, 7), pois descobriu que só a graça de Deus o salvou. Fomos justificados, fomos salvos por mera graça, não pelos nossos merecimentos. E isto dá-nos grande confiança. Somos pecadores, sim; mas seguimos o caminho da vida com esta graça de Deus que nos justifica cada vez que pedimos perdão. Mas não justifica naquele momento: já estamos justificados, mas vem perdoar-nos outra vez.
Para o Apóstolo, a fé tem um valor que abrange tudo. Toca cada momento e cada aspecto da vida do crente: desde o batismo até à partida deste mundo, tudo está impregnado pela fé na morte e ressurreição de Jesus, que concede a salvação. A justificação pela fé enfatiza a prioridade da graça, que Deus oferece a todos os que acreditam no seu Filho sem distinção alguma.
Contudo, não devemos concluir que para Paulo a Lei mosaica já não tenha valor; pelo contrário, continua a ser um dom irrevogável de Deus, é – escreve o Apóstolo – «santa» (Rm 7, 12). Inclusive para a nossa vida espiritual é essencial observar os mandamentos, mas também aqui não podemos confiar na nossa própria força: a graça de Deus que recebemos em Cristo é fundamental, aquela graça que nos vem da justificação que Cristo nos concedeu, que já pagou por nós. Dele recebemos aquele amor gratuito que nos permite, por nossa vez, amar de modo concreto.
Neste contexto, é bom recordar o ensinamento do Apóstolo Tiago, que escreve: «O homem é justificado pelas obras e não somente segundo a fé – poderia parecer o contrário, mas não é – […] Assim como o corpo sem alma é morto, assim também a fé sem obras é morta» (Tg 2, 24.26). A justificação, se não florescer com as nossas obras, ficará ali, debaixo da terra, como morta. Existe, mas nós devemos atuá-la com as nossas obras. Assim, as palavras de Tiago complementam o ensino de Paulo. Por conseguinte, para ambos a resposta da fé exige que sejamos ativos no amor a Deus e no amor ao próximo. Por que “ativos naquele amor”? Porque aquele amor nos salvou a todos, justificou-nos gratuitamente, de graça!
A justificação insere-nos na longa história da salvação, que mostra a justiça de Deus: perante as nossas contínuas quedas e insuficiências, Ele não se resignou, mas quis tornar-nos justos e fê-lo pela graça, através do dom de Jesus Cristo, da sua morte e ressurreição. Algumas vezes mencionei como é o caminho de Deus, qual é o estilo de Deus, e disse-o em três palavras: o estilo de Deus é proximidade, compaixão e ternura. Ele está sempre perto de nós, é compassivo e terno. E a justificação é precisamente a maior proximidade de Deus a nós, homens e mulheres, a maior compaixão de Deus por nós, homens e mulheres, a maior ternura do Pai. A justificação é este dom de Cristo, da morte e ressurreição de Cristo que nos liberta. “Mas, Padre, sou pecador, roubei...”. Sim, mas na base és justo. Deixa que Cristo implemente essa justificação. Não estamos condenados, na base, não: somos justos. Permiti-me a expressão: somos santos, na base. Mas depois, pelas nossas ações, tornamo-nos pecadores. Mas, na base, somos santos: deixemos que a graça de Cristo se eleve e que a justiça, aquela justificação nos dê forças para ir em frente. Assim, a luz da fé permite-nos reconhecer quão infinita é a misericórdia de Deus, a graça que age para o nosso bem. Mas a mesma luz mostra-nos também a responsabilidade que nos foi confiada de colaborar com Deus na sua obra de salvação. O poder da graça precisa de se conjugar com as nossas obras de misericórdia, que somos chamados a viver para dar testemunho de quão grande é o amor de Deus. Vamos em frente com esta confiança: todos fomos justificados, somos justos em Cristo. Devemos concretizar esta justiça com as nossas obras.
Papa Francisco
Catequese na audiência geral 29.09.21
Imagem: site do Vaticano na data acima.
Catequese sobre a Carta aos Gálatas - 8. Somos filhos de Deus
Prossigamos o nosso itinerário de aprofundamento da fé – da nossa fé – à luz da Carta de São Paulo aos Gálatas. O Apóstolo insiste com aqueles cristãos para que não se esqueçam da novidade da revelação de Deus que lhes foi anunciada. Em pleno acordo com o evangelista João (cf. 1 Jo 3, 1-2), Paulo evidencia que a fé em Jesus Cristo permitiu que nos tornássemos verdadeiramente filhos de Deus e também seus herdeiros. Nós, cristãos, damos frequentemente por certa esta realidade de ser filhos de Deus. Ao contrário, é bom recordar sempre com gratidão o momento em que nos tornamos tais, o do nosso batismo, para viver com maior consciência o grande dom recebido.
Se eu perguntasse hoje: quantos de vós sabem a data do próprio batismo?, penso que não haveria muitas mãos levantadas. No entanto trata-se da data na qual fomos salvos, a data em que nos tornámos filhos de Deus. Agora, aqueles que não a sabem, que perguntem ao padrinho, madrinha, pai, mãe, tio, tia: “Quando fui batizado? Quando fui batizada?”; e lembrai-vos dessa data todos os anos: é a data em que tornamos filhos de Deus. Concordais? Fareis isto? [respondem: sim!] É um “sim” sincero? [riem] Vamos em frente...
Com efeito, quando «vem a fé» em Jesus Cristo (v. 25), cria-se uma condição radicalmente nova que nos introduz na filiação divina. A filiação de que Paulo fala já não é a geral, que envolve todos os homens e mulheres como filhos e filhas do único Criador. No trecho que acabamos de ouvir, ele afirma que a fé permite ser filhos de Deus «em Cristo» (v. 26): esta é a novidade. É este “em Cristo” que faz a diferença. Não só filhos de Deus, como todos: todos, homens e mulheres, somos filhos de Deus, todos, qualquer que seja a religião que seguimos. Não. Mas “em Cristo” é o que distingue os cristãos, e isto acontece apenas na participação da redenção de Cristo e em nós no sacramento do batismo, começa assim. Jesus tornou-se nosso irmão, e pela sua morte e ressurreição reconciliou-nos com o Pai. Quantos recebem Cristo na fé através do batismo são “revestidos” d’Ele e da dignidade filial (cf. v. 27).
Nas suas Cartas, São Paulo refere-se várias vezes ao batismo. Para ele, ser batizado equivale a participar de modo efetivo e real no mistério de Jesus. Por exemplo, na Carta aos Romanos ele chega a ponto de dizer que, no batismo, morremos com Cristo e somos sepultados com Ele para viver com Ele (cf. 6, 3-14). Mortos com Cristo, sepultados com Ele para poder viver com Ele. E esta é a graça do batismo: participar na morte e ressurreição de Jesus. Portanto, o batismo não é apenas um rito externo. Aqueles que o recebem são transformados nas profundezas do seu ser, no seu íntimo, e possuem uma nova existência, precisamente a vida que lhes permite dirigir-se a Deus e invocá-lo com o nome de “Aba”, isto é “pai”. “Pai”? Não, “papá” (cf. Gl 4, 6).
O Apóstolo afirma com grande audácia que a identidade recebida através do batismo é totalmente nova, tanto que prevalece sobre as diferenças que existem a nível étnico-religioso: Isto é, explica-a assim: «Não há judeu nem grego»; e também a nível social: «Não há escravo nem livre; não há homem nem mulher» (Gl 3, 28). Estas expressões são lidas muitas vezes com demasiada pressa, sem compreender o valor revolucionário que possuem. Para Paulo, escrever aos Gálatas que em Cristo “não há judeu nem grego” era equivalente a uma autêntica subversão no âmbito étnico-religioso. O judeu, em virtude da pertença à povo escolhido, era privilegiado em relação ao pagão (cf. Rm 2, 17-20), e o próprio Paulo o afirma (cf. Rm 9, 4-5). Portanto, não surpreende que este novo ensinamento do Apóstolo pudesse soar como herético. “Mas como, todos iguais? Somos diferentes!”. Soa um pouco herético, não é? Também a segunda igualdade, entre “livres” e “escravos”, abre perspetivas chocantes. Para a sociedade antiga, a distinção entre escravos e cidadãos livres era vital. Por lei estes últimos gozavam de todos os direitos, enquanto aos escravos não era reconhecida nem sequer a dignidade humana. Isto acontece também hoje: muita gente no mundo, muita, milhões, não tem direito a comer, à educação, ao trabalho: são os novos escravos, são os que vivem nas periferias, explorados por todos. Também hoje existe escravidão. Pensemos nisto. Negamos a estas pessoas a dignidade humana, são escravos. Por fim, a igualdade em Cristo supera a diferença social entre os sexos, estabelecendo uma igualdade entre homem e mulher que era revolucionária naquela época e que hoje deve ser reafirmada. É preciso reafirmá-la também hoje. Quantas vezes nós ouvimos expressões que desprezam as mulheres! Quantas vezes ouvimos: “Mas não, não faças nada, [são] coisas de mulher”. Contudo, homem e mulher têm a mesma dignidade, e na história, inclusive hoje, existe uma escravidão das mulheres: as mulheres não têm as mesmas oportunidades dos homens. Devemos ler o que Paulo diz: somos iguais em Jesus Cristo.
Como podemos ver, Paulo afirma a profunda unidade que existe entre todos os batizados, qualquer que seja a sua condição, quer homens quer mulheres, iguais, pois cada um deles, em Cristo, é uma criatura nova. Cada distinção torna-se secundária no que diz respeito à dignidade de ser filho de Deus, que pelo seu amor alcança uma igualdade verdadeira e substancial. Todos, através da redenção de Cristo e do batismo que recebemos, somos iguais: filhos e filhas de Deus. Iguais.
Irmãos e irmãs, por conseguinte, somos chamados de modo mais positivo a viver uma nova vida que encontra a sua expressão fundadora na filiação em relação a Deus. Iguais porque somos filhos de Deus, e filhos de Deus porque nos remiu Jesus Cristo e entrámos nesta dignidade através do batismo. É também decisivo para todos nós, hoje, redescobrir a beleza de ser filhos de Deus, de ser irmãos e irmãs entre nós, pois estamos inseridos em Cristo que nos redimiu. As diferenças e os contrastes que criam separação não deveriam existir entre os crentes em Cristo. E um dos apóstolos, na Carta a Tiago, diz assim: “Estai atentos com as diferenças, pois não sois justos quando na assembleia (isto é, na Missa) entra alguém que usa um anel de ouro, está bem vestido: ‘Ah, vem, vem!’ e convidam-no a sentar no primeiro banco. Depois, se entra outra pessoa, malvestida e que se vê que é pobre, muito pobre: ‘sim, sim, senta-te ali, no fundo’”. Estas diferenças são feitas por nós, muitas vezes, de modo inconsciente. Não, somos iguais. Pelo contrário, a nossa vocação é tornar concreta e evidente a chamada à unidade de toda a raça humana (cf. Conc. Ecum. Vat. II, Const. Lumen gentium, 1). Tudo o que exacerba as diferenças entre as pessoas, muitas vezes causando discriminação, tudo isto, perante Deus, já não tem qualquer substância, graças à salvação realizada em Cristo. O que conta é a fé que age seguindo o caminho da unidade, indicado pelo Espírito Santo. E a nossa responsabilidade consiste em percorrer decisivamente este caminho da igualdade, mas a igualdade que é apoiada e realizada pela redenção de Jesus.
Obrigado. E não vos esqueçais, ao voltardes para casa: “Quando fui batizada? Quando fui batizado?”. Perguntai, para ter em mente sempre aquela data. E também para festejar quando chegar aquele dia. Obrigado.
Papa Francisco
catequese na audiência geral 08.09.21
Imagem: pexels.com
Catequese sobre a Carta aos Gálatas - 7. Gálatas insensatos
Continuaremos a explicação da Carta de São Paulo aos Gálatas. Isto não é uma coisa nova, esta explicação, uma coisa minha: o que estamos a estudar é o que diz São Paulo, num conflito muito sério, aos Gálatas. E é também Palavra de Deus, porque entrou na Bíblia. Não é algo que alguém inventou, não. Aconteceu naquele tempo e pode repetir-se. E, de facto, vimos que na história isto repetiu-se. Esta é simplesmente uma catequese sobre a Palavra de Deus, expressa na Carta de Paulo aos Gálatas, nada mais. Devemos ter sempre isto em mente. Nas catequeses anteriores vimos que o Apóstolo Paulo mostrou aos primeiros cristãos da Galácia como era perigoso deixar o caminho que tinham iniciado a percorrer ao aceitar o Evangelho. Com efeito, o risco é cair no formalismo, que é uma das tentações que nos leva à hipocrisia, da qual falávamos na semana passada. Cair no formalismo e negar a nova dignidade que receberam: a dignidade de remidos por Cristo. O trecho que acabámos de ouvir dá início à segunda parte da Carta. Até este ponto, Paulo falou da sua vida e da sua vocação: de como a graça de Deus transformou a sua existência, colocando-a completamente ao serviço da evangelização. Neste ponto, interpela diretamente os Gálatas: põe-nos diante das escolhas que fizeram e da sua condição atual, o que poderia anular a experiência de graça que viveram.
E os termos com os quais o Apóstolo se dirige aos Gálatas certamente não são gentis: ouvimo-los. Nas outras Cartas é fácil encontrar a expressão “irmãos” ou “caríssimos”, aqui não. Pois está zangado. Diz genericamente “Gálatas” e duas vezes lhes chama “insensatos”, que não é um termo gentil. Estultos, insensatos e pode dizer muitas coisas... Não o faz porque não são inteligentes, mas porque, quase sem se aperceberem, correm o risco de perder a fé em Cristo que aceitaram com tanto entusiasmo. São insensatos porque não se apercebem de que o perigo é o de perder o tesouro precioso, a beleza da novidade de Cristo. A desilusão e a tristeza do Apóstolo são evidentes. Não sem amargura, ele provoca esses cristãos a lembrarem-se do primeiro anúncio feito por ele, através do qual lhes ofereceu a possibilidade de obter uma liberdade até então inesperada.
O Apóstolo faz perguntas aos Gálatas a fim de despertar as suas consciências: por isso é tão forte. Trata-se de questões retóricas, pois os Gálatas sabem muito bem que a sua chegada à fé em Cristo é fruto da graça recebida através da pregação do Evangelho. Leva-os ao início da vocação cristã. A palavra que ouviram de Paulo centrou-se no amor de Deus, plenamente manifestado na morte e ressurreição de Jesus. Paulo não conseguiu encontrar uma expressão mais convincente do que aquela que provavelmente lhes tinha repetido várias vezes na sua pregação: «Já não sou eu que vivo, é Cristo que vive em mim; e a vida que agora vivo na carne, vivo-a na fé do Filho de Deus, que me amou e se entregou a si mesmo por mim» (Gl 2, 20). Paulo mais não queria saber do que de Cristo crucificado (cf. 1 Cor 2, 2). Os Gálatas devem olhar para este evento, sem se deixarem distrair por outros anúncios... Em suma, a intenção de Paulo é colocar os cristãos em condições para que se apercebam do que está em jogo e não se deixem encantar pela voz das sereias que os querem conduzir a uma religiosidade baseada unicamente na observância escrupulosa dos preceitos. Pois eles, os pregadores novos que chegaram à Galácia, convenceram-nos que deviam voltar atrás e observar também os preceitos que levam à perfeição antes da vinda de Cristo, que é a gratuidade da salvação.
Por outro lado, os Gálatas compreendiam muito bem ao que o Apóstolo se referia. Tinham certamente experimentado a ação do Espírito Santo nas comunidades: como nas outras Igrejas, também a caridade e vários outros carismas se tinham manifestado entre eles. Ao serem postos à prova, tiveram de responder que quanto tinham vivido era fruto da novidade do Espírito. Portanto no início da sua chegada à fé, estava a iniciativa de Deus e não a dos homens. O Espírito Santo tinha sido o protagonista da sua experiência; colocá-lo agora em segundo plano a fim de dar primazia às próprias obras – isto é ao cumprimento dos preceitos da Lei – seria uma insensatez. A santidade vem do Espírito Santo e é a gratuidade da redenção de Jesus: isto justifica-nos.
Deste modo, São Paulo convida também a nós a refletir: como vivemos a fé? Será que o amor de Cristo crucificado e ressuscitado permanece no centro da nossa vida quotidiana como fonte de salvação, ou será que nos contentamos com algumas formalidades religiosas para estar em paz com a nossa consciência? Como vivemos nós a fé? Estamos apegados ao tesouro precioso, à beleza da novidade de Cristo, ou preferimos algo que neste momento nos atrai, mas que depois nos deixa vazios por dentro? O efémero bate muitas vezes à porta dos nossos dias, mas é uma triste ilusão, que nos faz cair na superficialidade e nos impede de discernir aquilo por que realmente vale a pena viver. Irmãos e irmãs, no entanto, mantenhamos a certeza de que, mesmo quando somos tentados a afastar-nos, Deus continua a conceder os seus dons. Ao longo da história, e ainda hoje, se verificam coisas que se assemelham ao que aconteceu aos Gálatas. Também hoje algumas pessoas nos fazer arder as orelhas dizendo: “Não, a santidade está nestes preceitos, nestas coisas, é preciso fazer isto e aquilo”, e propõem-nos uma religiosidade rígida, a rigidez que nos tira aquela liberdade no Espírito que a redenção de Cristo nos dá. Estai atentos perante a rigidez que vos propõem: estai atentos. Pois por detrás de cada rigidez há algo negativo, não existe o Espírito de Deus. É por isso que esta Carta nos ajudará a não ouvir estas propostas meio fundamentalistas que nos fazem retroceder na nossa vida espiritual, e nos ajudará a avançar na vocação pascal de Jesus. É isto que o Apóstolo reitera aos Gálatas quando lhes recorda que o Pai «doa o Espírito abundantemente, e realiza obras maravilhosas entre vós» (3, 5). Ele fala no presente, não diz “o Pai doou o Espírito em abundância”, capítulo 3, versículo 5, não: diz “doa”; não diz “realizou”, não, “realiza”. Pois, apesar de todas as dificuldades que possamos colocar à sua ação, inclusive não obstante os nossos pecados, Deus não nos abandona, mas permanece connosco com o seu amor misericordioso. Deus está sempre próximo de nós com a sua bondade. É como aquele pai que todos os dias subia ao terraço para ver se o filho voltava: o amor do Pai não se cansa de nós. Peçamos a sabedoria de nos apercebermos sempre desta realidade e de afastar os fundamentalistas que nos propõem uma vida de ascese artificial, afastada da ressurreição de Cristo. A ascese é necessária, mas a ascese sábia, não artificial.
Papa Francisco
Catequese na audiência geral 01.09.2021
A Carta aos Gálatas relata um acontecimento bastante surpreendente. Como ouvimos, Paulo diz que repreendeu Cefas, ou seja, Pedro, perante a comunidade de Antioquia, porque o seu comportamento não era bom. O que aconteceu de tão grave para que Paulo se dirigisse a Pedro em termos tão severos? Será que Paulo exagerou dando demasiado espaço ao seu carácter sem saber como se conter? Veremos que este não é o caso, mas que mais uma vez está em questão a relação entre a Lei e a liberdade. E devemos insistir sobre isto muitas vezes.
Escrevendo aos Gálatas, Paulo menciona deliberadamente este episódio que tinha acontecido em Antioquia anos antes. Ele pretende recordar aos cristãos dessas comunidades que eles não devem absolutamente escutar aqueles que pregam a necessidade de serem circuncidados para ficar “sob a Lei” com todas as suas prescrições. Recordemos que foram estes pregadores fundamentalistas que chegaram lá e criaram confusão, e privando aquela comunidade da paz. Pedro foi criticado pelo seu comportamento à mesa. A Lei proibia que um judeu partilhasse refeições com não judeus. Mas o próprio Pedro, noutra ocasião, tinha ido a Cesareia, à casa do centurião Cornélio, apesar de saber que estava a transgredir a Lei. Então afirmara: «Deus mostrou-me que nenhum homem deve ser chamado profano ou impuro» (At 10, 28). Quando regressou a Jerusalém, os cristãos circuncidados que eram fiéis à Lei mosaica repreenderam Pedro pelo seu comportamento, mas ele justificou-se dizendo: «Recordei-me então da palavra do Senhor, quando Ele dizia: “João batizou em água; vós, porém, sereis batizados no Espírito Santo”. Se Deus, portanto, lhes concedeu o mesmo dom que a nós por terem acreditado no Senhor Jesus Cristo, quem era eu para opor-me a Deus?» (At 11, 16-17). Recordemos que o Espírito Santo veio naquele momento à casa de Cornélio quando lá estava Pedro.
Um fato semelhante também tinha acontecido em Antioquia, na presença de Paulo. Antes, Pedro estava à mesa sem qualquer dificuldade com os cristãos que tinham vindo do paganismo, mas quando alguns cristãos de Jerusalém – aqueles que provinham do judaísmo – circuncidados, chegaram à cidade, ele já não o fez, para não incorrer nas críticas deles. É este o erro: era mais atento às críticas, a dar uma boa impressão. Isto é grave aos olhos de Paulo, até porque Pedro estava a ser imitado por outros discípulos, antes de todos Barnabé, que com Paulo tinha evangelizado os Gálatas (cf. Gl 2, 13). Sem querer, o comportamento de Pedro – um pouco assim, aproximativo, nem claro nem transparente – criava uma divisão injusta na comunidade: “Eu sou puro… sigo por esta linha, faço assim, isto não se pode…”
Na sua repreensão – eis o núcleo do problema – Paulo usa um termo que permite entrar nos méritos da sua reação: hipocrisia (cf. Gl 2, 13). Esta é uma palavra que se repete muitas vezes: hipocrisia. Penso que todos nós compreendemos o que significa. A observância da Lei por parte dos cristãos levou a este comportamento hipócrita, que o Apóstolo pretende combater com força e convicção. Paulo era reto, tinha os seus defeitos – muitos, o seu caráter era terrível – mas era reto. O que é a hipocrisia? Quando dizemos: estai atentos que aquele é um hipócrita: o que queremos dizer? O que é hipocrisia? Pode-se dizer que é o medo da verdade. A hipocrisia tem medo da verdade. As pessoas preferem fingir do que ser elas mesmas. É como pintar a alma, como pintar as atitudes, o modo de proceder: não é a verdade. “Tenho medo de proceder como sou e disfarço-me com estas atitudes”. Fingir impede a coragem de dizer a verdade abertamente, e assim facilmente se evita a obrigação de a dizer sempre, em todo o lado e apesar de tudo. Fingir leva-te a isto: às meias-verdades. E as meias-verdades são uma ficção: pois a verdade ou é verdade ou não é verdade. Mas as meias-verdades são este modo de agir não verdadeiro. Prefere-se, como disse, fingir em vez de ser como se é, e a ficção impede aquela coragem, de dizer abertamente a verdade. E assim, não cumprimos a obrigação – e isto é um mandamento – de dizer sempre a verdade, em todos os lugares e apesar de tudo. Num ambiente em que as relações interpessoais são vividas sob a bandeira do formalismo, o vírus da hipocrisia propaga-se facilmente. Aquele sorriso que não vem do coração, aquele procurar estar bem com todos, mas com ninguém…
Há vários exemplos na Bíblia onde a hipocrisia é combatida. Um bom testemunho para combater a hipocrisia é o do velho Eleazar, a quem foi pedido que fingisse que comia carne sacrificada a divindades pagãs para salvar a sua vida: fingir que a comia, mas não a comia. Fingir que comia a carne suína, mas os amigos tinham-lhe preparado outra. Mas o homem temente a Deus respondeu: «Não é próprio da minha idade, respondeu ele, usar de tal fingimento, não suceda que muitos jovens, julgando que Eleazar, aos noventa anos, se tenha passado à vida dos gentios, pelo meu gesto de hipócrita e por amor a um pouco de vida, se deixem arrastar por minha causa; isto seria a desonra e a vergonha da minha velhice» (2 Mc 6, 24-25). Honesto: não entra no caminho da hipocrisia. Que bela página sobre a qual refletir para se afastar da hipocrisia! Os Evangelhos também registam várias situações em que Jesus repreende fortemente aqueles que parecem justos no exterior, mas no interior estão cheios de falsidade e iniquidade (cf. Mt 23, 13-29). Se tiverdes um pouco de tempo hoje lede o capítulo 23 do Evangelho de São Mateus e vede quantas vezes Jesus diz: “hipócritas, hipócritas, hipócritas”, e revela o que é a hipocrisia.
O hipócrita é uma pessoa que finge, lisonjeia e engana porque vive com uma máscara no rosto, e não tem a coragem de enfrentar a verdade. Por isso, não é capaz de amar verdadeiramente – um hipócrita não sabe amar – limita-se a viver pelo egoísmo e não tem a força para mostrar o seu coração com transparência. Há muitas situações em que a hipocrisia pode ocorrer. Muitas vezes esconde-se no local de trabalho, onde se procura parecer amigos dos colegas enquanto a competição leva a golpeá-los pelas costas. Em política, não é raro encontrar hipócritas que vivem uma vida dupla entre a esfera pública e a privada. A hipocrisia na Igreja é particularmente detestável, e infelizmente existe a hipocrisia na Igreja, há muitos cristãos e ministros hipócritas. Nunca devemos esquecer as palavras do Senhor: «Seja este o vosso modo de falar: sim, sim, não, não; tudo o que for além disto procede do espírito do mal» (Mt 5, 37). Irmãos e irmãs, pensemos hoje no que Paulo condena e que Jesus condena: a hipocrisia. E não tenhamos medo de ser verdadeiros, de dizer a verdade, de ouvir a verdade, de nos conformarmos com a verdade. Assim poderemos amar. Um hipócrita não sabe amar. Agir de outra forma que não seja a verdade significa pôr em perigo a unidade na Igreja, aquela pela qual o próprio Senhor rezou.
Papa Francisco
Catequese na audiência geral 25.08.2021
Imagem site do Vaticano
São Paulo, apaixonado por Jesus Cristo, pois tinha entendido bem o que era a salvação, ensinou-nos que os «filhos da promessa» (Gl 4, 28) – isto é, todos nós, justificados por Jesus Cristo – não estão sob o vínculo da Lei, mas são chamados ao estilo de vida exigente na liberdade do Evangelho. No entanto, a Lei existe. Mas existe de outro modo: a mesma Lei, os Dez Mandamentos, mas de outro modo, pois uma vez que o Senhor Jesus veio ela não pode justificar-se por si mesma. E portanto, na catequese de hoje, gostaria de explicar isto. E perguntemo-nos: qual é, segundo a Carta aos Gálatas, o papel da Lei? No trecho que ouvimos, Paulo diz que a Lei foi como um pedagogo. É uma bonita imagem, a do pedagogo sobre o qual falamos na audiência passada, uma imagem que merece ser compreendida no seu justo significado.
Parece que o Apóstolo sugere que os cristãos dividem a história da salvação em duas, e também a própria história pessoal. São dois os momentos: antes de se tornar crentes em Jesus Cristo e depois de ter recebido a fé. No centro está o acontecimento da morte e ressurreição de Jesus, que Paulo pregou a fim de suscitar a fé no Filho de Deus, fonte da salvação, e somos justificados em Cristo Jesus. Somos justificados pela gratuidade da fé em Cristo Jesus. Por conseguinte, partindo da fé em Cristo, há um “antes” e um “depois” em relação à própria Lei, pois a lei existe, os Mandamentos existem, mas há uma atitude antes da vinda de Jesus e outra depois. A história anterior é determinada pelo facto de estar “sob a Lei”. E quem percorria o caminho da Lei se salvava, era justificado; a história sucessiva – depois da vinda de Jesus – deve ser vivida seguindo o Espírito Santo (cf. Gl 5, 25). É a primeira vez que Paulo usa esta expressão: estar “sob a Lei”. O significado subjacente implica a ideia de uma servidão negativa, típica dos escravos: “estar submetido”. O Apóstolo torna-o explícito, dizendo que quando se está “sob a Lei” é como ser “vigiado” e “preso”, uma espécie de prisão preventiva. Este tempo, diz São Paulo, durou muito – desde Moisés até à vinda de Jesus – e perpetua-se enquanto se vive no pecado.
A relação entre a Lei e o pecado será explicada de uma forma mais sistemática pelo Apóstolo na sua Carta aos Romanos, escrita alguns anos após a Carta aos Gálatas. Em síntese, a Lei leva a definir a transgressão e a tornar as pessoas conscientes do próprio pecado: “Fizeste isto, portanto a Lei – os Dez Mandamentos – diz assim: tu estás no pecado”. Aliás, como ensina a experiência comum, o preceito acaba por estimular a transgressão. Na Carta aos Romanos, escreve: «Quando estávamos na carne, as paixões pecaminosas, fortalecidas pela lei, operavam nos nossos membros e produziam frutos para a morte. Agora, porém, livres da lei, estamos mortos para o que nos sujeitara, de modo que servimos num espírito novo e não segundo uma lei antiquada» (7, 5-6). Porquê? Porque veio a justificação de Jesus Cristo. Paulo expõe a sua visão da Lei: «O aguilhão da morte é o pecado, e a força do pecado é a Lei» (1 Cor 15, 56). Um diálogo: tu estás submetido à Lei, e estás ali com a porta aberta ao pecado.
Neste contexto, a referência ao papel pedagógico desempenhado pela Lei assume o seu pleno sentido. Mas a Lei é o pedagogo, que te leva para onde? Para Jesus. No sistema escolar da antiguidade, o pedagogo não tinha a função que lhe atribuímos hoje, ou seja, dar educação a um jovem ou a uma jovem. Naquela época, ele era um escravo cuja tarefa consistia em acompanhar o filho do dono ao mestre e depois trazê-lo para casa. Desta forma devia protegê-lo do perigo, vigiar para que não se comportasse mal. A sua função era bastante disciplinar. Quando o jovem se tornava adulto, o pedagogo cessava as suas funções. O pedagogo ao qual Paulo se referia não era o professor, mas aquele que o acompanhava à escola, vigiava sobre o menino e depois levava-o para casa.
A referência à Lei, nestes termos, permite que São Paulo esclareça a sua função na história de Israel. A Torá, isto é, a Lei, fora um ato de magnanimidade por parte de Deus para com o seu povo. Depois da eleição de Abraão, outro ato importante foi a Lei: definir o caminho para ir em frente. Certamente tinha funções restritivas, mas ao mesmo tempo protegia o povo, educava-o, disciplinava-o e apoiava-o na sua fraqueza, sobretudo com a proteção face ao paganismo; naqueles tempos, havia muitos comportamentos pagãos. A Torá diz: “Existe um único Deus que nos pôs a caminho”. Um ato de bondade do Senhor. E certamente, como eu já disse, tivera funções restritivas, mas ao mesmo tempo, protegera o povo, educara-o, disciplinara-o, apoiara-o na sua debilidade. É por esta razão que o Apóstolo reflete sucessivamente, descrevendo a fase da menoridade. Diz assim: «Enquanto o herdeiro é menino, em nada difere do servo, ainda que seja senhor de tudo, pois está sob o domínio de tutores e administradores, até ao dia determinado pelo pai. Assim também nós, quando éramos meninos, estávamos subjugados pelos elementos do mundo» (Gl 4, 1-3). Em síntese, a convicção do Apóstolo é que a Lei tem certamente uma função positiva – portanto, como pedagogo, leva em frente – mas é uma função limitada no tempo. A sua duração não pode ser prolongada além, pois está ligada ao amadurecimento das pessoas e à sua escolha de liberdade. Quando se chega à fé, a Lei esgota o seu valor propedêutico e deve dar lugar a outra autoridade. O que isto significa? Que quando acaba a Lei, podemos dizer: “Cremos em Jesus Cristo e fazemos o que nos apetece?”. Não! Os Mandamentos existem, mas não nos justificam. Quem nos justifica é Jesus Cristo. Devemos observar os Mandamentos, mas eles não nos dão a justiça; há a gratuidade de Jesus Cristo, o encontro com Jesus Cristo que nos justifica gratuitamente. O mérito da fé é receber Jesus. O único mérito: abrir o coração. E o que fazemos com os Mandamentos? Devemos observá-los, mas como ajuda para o encontro com Jesus Cristo.
Este ensinamento sobre o valor da lei é muito importante e merece ser considerado cuidadosamente para não cair em equívocos nem dar passos falsos. Far-nos-á bem perguntar-nos se ainda vivemos no período em que precisamos da Lei, ou se estamos bem conscientes de que recebemos a graça de nos tornarmos filhos de Deus para viver no amor. De que maneira vivo? Temendo que se eu não fizer isto, irei para o inferno? Ou vivo também com aquela esperança, com a alegria da gratuidade da salvação em Jesus Cristo? É uma boa pergunta. E também a segunda: desprezo os Mandamentos? Não! Observo-os, mas não como absolutos, pois sei que quem me justifica é Jesus Cristo.
Papa Francisco
Catequese na audiência geral 18.08.21
Catequese sobre a Carta aos Gálatas - 4. A lei de Moisés
«O que é a lei?» (Gl 3, 19). Esta é a questão que, seguindo São Paulo, desejamos aprofundar hoje, a fim de reconhecer a novidade da vida cristã animada pelo Espírito Santo. Mas se há o Espírito Santo, se há Jesus que nos redimiu, o que é a Lei? Sobre isto vamos refletir hoje. O Apóstolo escreve: «Se vos deixardes guiar pelo Espírito, já não estais sob a lei» (Gl 5, 18). Ao contrário, os detratores de Paulo afirmaram que os Gálatas deviam seguir a Lei para ser salvos. Voltavam atrás. Eram nostálgicos de outros tempos, dos tempos antes de Jesus Cristo. O Apóstolo não está minimamente de acordo. Não foi nestes termos que ele tinha concordado com os outros Apóstolos em Jerusalém. Ele lembra-se bem das palavras de Pedro quando disse: «Por que tentais a Deus, impondo aos discípulos um jugo que nem os nossos pais nem nós pudemos suportar?» (At 15, 10). As disposições que emergiram daquele “primeiro concílio” - o primeiro concílio ecuménico foi o de Jerusalém e as disposições que surgiram daquele concílio eram muito claras, e diziam: «Pareceu-nos bem, ao Espírito Santo e a nós, não vos impor outro peso além do seguinte, indispensável: que vos abstenhais das carnes sacrificadas aos ídolos, do sangue, de animais sufocados, e da impureza» (At 15, 28-29). Algumas coisas que diziam respeito ao culto a Deus, à idolatria, referiam-se também à forma de compreender a vida daquela época.
Quando Paulo fala da Lei, refere-se normalmente à Lei mosaica, a Lei de Moisés, os Dez Mandamentos. Estava relacionado com a Aliança que Deus tinha estabelecido com o seu povo, um caminho para preparar aquela Aliança. Segundo vários textos do Antigo Testamento, a Torá - que é o termo hebraico com que se indica a Lei - é a coletânea de todas as prescrições e regras que os israelitas devem observar, em virtude da Aliança com Deus. Uma síntese eficaz do que é a Torá pode ser encontrada neste texto do Deuteronômio, que diz: «O Senhor alegrar-se-á de novo em tornar-te feliz, como se comprazia no tempo dos teus pais, contanto que obedeças à voz do Senhor, teu Deus, observando os seus mandamentos e os seus preceitos escritos neste livro da lei, e que voltes para o Senhor, teu Deus, com todo o teu coração e toda a tua alma» (30, 9-10). A observância da Lei garantiu ao povo os benefícios da Aliança e assegurou a sua ligação especial com Deus. Este povo, esta gente, estas pessoas, estão ligados a Deus e mostram esta união com Deus no cumprimento, na observância da Lei. Estabelecendo a Aliança com Israel, Deus ofereceu-lhe a Torá, a Lei, para que pudesse compreender a Sua vontade e viver em justiça. Pensamos que nessa altura havia necessidade de tal Lei, foi um grande dom que Deus ofereceu ao seu povo, porquê? Porque nessa altura havia paganismo em toda a parte, idolatria em toda a parte e o comportamento humano que deriva da idolatria, e por esta razão o grande dom de Deus ao seu povo é a Lei para ir em frente. Várias vezes, especialmente nos livros dos profetas, constata-se que a não observância dos preceitos da Lei constituía uma verdadeira traição da Aliança, provocando a reação da ira de Deus. A ligação entre Aliança e Lei era tão estreita que as duas realidades eram inseparáveis. A Lei é a expressão de que uma pessoa, um povo, está em aliança com Deus.
À luz de tudo isto, é fácil compreender como os missionários que se tinham infiltrado entre os Gálatas tiveram uma boa oportunidade ao afirmar que a adesão à Aliança também implicava a observância da Lei mosaica, como era na altura. No entanto, é precisamente sobre este ponto que podemos descobrir a inteligência espiritual de São Paulo e as grandes intuições que ele expressou, sustentado pela graça que recebeu para a sua missão evangelizadora.
O Apóstolo explica aos Gálatas que, na realidade, a Aliança com Deus e a Lei mosaica não estão indissoluvelmente ligadas. O primeiro elemento em que se baseia é que a Aliança estabelecida por Deus com Abraão se fundava na fé no cumprimento da promessa e não na observância da Lei, que ainda não existia. Abraão começou a caminhar muitos séculos antes da Lei. O Apóstolo escreve: «Afirmo, pois: a Lei, que chegou quatrocentos e trinta anos mais tarde [com Moisés], não pode anular o testamento feito por Deus [com Abraão], em boa e devida forma, e não pode anular a promessa. Pois, se a herança se obtivesse pela Lei, já não proviria da promessa. Ora, foi pela promessa que Deus concedeu a sua graça a Abraão» (Gl 3, 17-18). A promessa existia antes da Lei e a promessa a Abraão, a Lei, chegou 430 anos mais tarde. A palavra “promessa” é muito importante: o povo de Deus, nós cristãos, caminhamos pela vida olhando para uma promessa; a promessa é precisamente o que nos atrai, atrai-nos para o encontro com o Senhor.
Com este raciocínio, Paulo alcançou um primeiro objetivo: a Lei não é a base da Aliança porque veio mais tarde, foi necessária e justa, mas primeiro houve a promessa, a Aliança.
Um argumento como este desarma aqueles que afirmam que a Lei mosaica é uma parte constitutiva da Aliança. Não, a Aliança vem antes, é a chamada a Abraão. Com efeito, a Torá, a Lei, não está incluída na promessa feita a Abraão. Dito isto, não se deve pensar que São Paulo era contrário à Lei mosaica. Não, ele observava-a. Várias vezes nas suas Cartas, defende a sua origem divina e afirma que desempenha um papel muito específico na história da salvação. No entanto, a Lei não dá vida, não oferece o cumprimento da promessa, porque não está em condições de a poder cumprir. A Lei é um caminho que te leva a avançar para o encontro. Paulo usa uma palavra muito importante, a Lei é o “pedagogo” em relação a Cristo, o pedagogo em relação à fé em Cristo, ou seja, o mestre que te leva pela mão ao encontro. Aqueles que procuram a vida precisam de olhar para a promessa e para o seu cumprimento em Cristo.
Caríssimos, esta primeira exposição do Apóstolo aos Gálatas apresenta a novidade radical da vida cristã: todos aqueles que têm fé em Jesus Cristo são chamados a viver no Espírito Santo, que liberta da Lei, levando-a ao mesmo tempo a cumprimento segundo o mandamento do amor. Isto é muito importante, a Lei leva-nos a Jesus. Mas alguns de vós podem dizer-me: “Mas padre, uma coisa: quer dizer que se eu recitar o Credo não devo cumprir os Mandamentos?”. Não, os Mandamentos são atuais no sentido de que são “pedagogos”, que te conduzem ao encontro com Jesus. Mas se puseres de lado o encontro com Jesus e quiseres voltar a dar mais importância aos Mandamentos, isto não é bom. E foi precisamente este o problema daqueles missionários fundamentalistas, que se introduziam entre os Gálatas para os desorientar. Que o Senhor nos ajude a seguir pelo caminho dos Mandamentos, mas olhando para o amor a Cristo rumo ao encontro com Cristo, conscientes de que o encontro com Jesus é mais importante do que todos os Mandamentos.
Papa Francisco
Catequese na audiência geral 11.08.21
Imagem: site do Vaticano
Catequese sobre a Carta aos Gálatas - 3. O Evangelho é um só
Irmãos e irmãs, bom dia!
Quando se trata do Evangelho e da missão de evangelizar, Paulo entusiasma-se, deixa-se arrebatar. Parece não ver nada além desta missão que o Senhor lhe confiou. Tudo nele é dedicado a este anúncio, e ele não tem outro interesse a não ser o Evangelho. É o amor de Paulo, o interesse de Paulo, o ofício de Paulo: anunciar. Chega a ponto de dizer: «Cristo não me enviou a batizar, mas a pregar o Evangelho» (1 Cor 1, 17). Paulo interpreta toda a sua existência como uma chamada a evangelizar, a fazer conhecer a mensagem de Cristo, a fazer conhecer o Evangelho: «Ai de mim – diz – se não evangelizar» (1 Cor 9, 16). E escrevendo aos cristãos de Roma, apresenta-se simplesmente assim: «Paulo, servo de Jesus Cristo, Apóstolo por vocação, escolhido para anunciar o Evangelho de Deus» (Rm 1, 1). Esta é a sua vocação. Em síntese, a sua consciência é que foi “destinado” para levar o Evangelho a todos, e não pode fazer outra coisa senão dedicar-se com todas as suas forças a esta missão.
Portanto, compreende-se a tristeza, a desilusão e até a amarga ironia do Apóstolo em relação aos Gálatas, que aos seus olhos enveredam por um caminho errado, que os levará a um ponto de não retorno: erraram a estrada. O eixo em torno do qual tudo gira é o Evangelho. Paulo não pensa nos “quatro evangelhos”, como é espontâneo para nós. Com efeito, quando envia esta Carta, nenhum dos quatro evangelhos tinha sido escrito. Para ele, o Evangelho é o que ele prega, isto chama-se o querigma, isto é o anúncio. E qual anúncio? Da morte e ressurreição de Jesus como fonte de salvação. Um Evangelho que se exprime com quatro verbos: «Cristo morreu pelos nossos pecados, segundo as Escrituras; foi sepultado, e ressuscitou no terceiro dia, segundo as Escrituras; apareceu a Cefas» (1 Cor 15, 3-5). Este é o anúncio de Paulo, o anúncio que nos dá vida a todos. Este Evangelho é o cumprimento das promessas e a salvação oferecida a todos os homens. Quem o recebe reconcilia-se com Deus, é acolhido como um verdadeiro filho e recebe em herança a vida eterna.
Diante de um dom tão grande que foi dado aos Gálatas, o Apóstolo não consegue explicar porque eles pensam em aceitar outro “evangelho”, talvez mais sofisticado, mais intelectual, outro “evangelho”. Contudo, devemos notar que estes cristãos ainda não abandonaram o Evangelho anunciado por Paulo. O Apóstolo sabe que eles ainda estão a tempo de não dar um passo falso, mas admoesta-os com vigor, com muito vigor. O seu primeiro argumento aponta diretamente para o facto de que a pregação realizada pelos novos missionários – estes que pregam a novidade – não pode ser o Evangelho. Aliás, é um anúncio que distorce o verdadeiro Evangelho porque impede de alcançar a liberdade – uma palavra-chave – adquirida pela fé. Os Gálatas ainda são “principiantes” e a sua desorientação é compreensível. Ainda não conhecem a complexidade da Lei mosaica e o entusiasmo de abraçar a fé em Cristo leva-os a ouvir estes novos pregadores, iludindo-se de que a sua mensagem é complementar à de Paulo. E não é assim.
Contudo, o Apóstolo não pode arriscar que se criem compromissos num terreno tão decisivo. O Evangelho é um só e é aquele que ele anunciou; não pode haver outro. Atenção! Paulo não diz que o verdadeiro Evangelho é o seu, porque foi ele que o anunciou, não! Não o diz. Isto seria presunçoso, seria vanglória. Aliás, afirma que o “seu” Evangelho, o mesmo que os outros Apóstolos anunciavam noutros lugares, é o único autêntico, pois é o de Jesus Cristo. Assim escreve: «Faço-vos saber, irmãos, que o Evangelho que por mim foi anunciado não é segundo os homens. Porque não o recebi nem aprendi de homem algum, mas pela revelação de Jesus Cristo» (Gl 1, 11). Podemos compreender porque Paulo usa termos tão duros. Utiliza duas vezes a expressão “anátema”, que indica a exigência de manter afastado da comunidade aquilo que ameaça os seus fundamentos. E este novo “evangelho” ameaça os fundamentos da comunidade. Em suma, neste ponto, o Apóstolo não deixa espaço para a negociação: não se pode negociar. Com a verdade do Evangelho não se pode negociar. Ou recebes o Evangelho como é, como foi anunciado, ou recebes outra coisa. Mas o Evangelho não pode ser negociado. Não se transige: a fé em Jesus não é uma mercadoria a negociar: é salvação, é encontro, é redenção. Não se barateia.
Esta situação descrita no início da Carta parece paradoxal, pois todos os sujeitos em questão parecem ser animados por bons sentimentos. Os Gálatas que ouvem os novos missionários pensam que pela circuncisão serão ainda mais devotados à vontade de Deus e agradarão mais a Paulo. Os inimigos de Paulo parecem estar animados pela fidelidade à tradição, recebida dos pais, e consideram que a fé genuína consiste em observar a Lei. Face a esta suprema fidelidade, justificam até as insinuações e suspeitas a respeito de Paulo, considerado pouco ortodoxo no que se refere à tradição. O próprio Apóstolo está bem consciente de que a sua missão é de natureza divina – foi revelada pelo próprio Cristo, a ele! – e, por isso, é movido por um entusiasmo total pela novidade do Evangelho, que é uma novidade radical, não é uma novidade passageira: não há evangelhos “na moda”, o Evangelho é sempre novo, é a novidade. A sua ansiedade pastoral leva-o a ser severo, porque vê o grande risco que os jovens cristãos enfrentam. Em síntese, é precioso desenvencilhar-se neste labirinto de boas intenções para compreender a verdade suprema que se apresenta como a mais coerente com a Pessoa e a pregação de Jesus e com a sua revelação do amor do Pai. Isto é importante: saber discernir. Muitas vezes vimos na história, e vemos também hoje, algum movimento que prega o Evangelho com uma modalidade própria, às vezes com carismas verdadeiros, próprios; mas depois exagera e reduz todo o Evangelho ao “movimento”. E isto não é o Evangelho de Cristo: este é o Evangelho do fundador, da fundadora e este sim, poderá ajudar no início, mas no final não produz fruto pois não tem raízes profundas. Por isso, a palavra clara e decisiva de Paulo foi benéfica para os Gálatas e é salutar também para nós. O Evangelho é o dom de Cristo a nós, é Ele mesmo quem o revela. É isto que nos dá vida.
Papa Francisco
Catequese na audiência geral 04.08.21
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