A paz de Páscoa
Estimados irmãos e irmãs, bom dia!
Estamos a meio da Semana Santa, que vai desde o Domingo de Ramos até ao Domingo de Páscoa. Ambos os domingos são caraterizados pela festa que tem lugar em torno de Jesus. Mas são duas festas diferentes.
No domingo passado vimos Cristo entrar solenemente em Jerusalém, como uma festa, acolhido como Messias: e para Ele mantos foram estendidos pelo caminho (cf. Lc 19, 36) e ramos cortados das árvores (cf. Mt 21, 8). A multidão exultante bendiz «aquele que vem, o Rei», e aclama: «Paz no céu e glória no mais alto dos céus» (Lc 19, 38). Estas pessoas celebram, pois veem na entrada de Jesus a chegada de um novo rei, que traria paz e glória. Esta era a paz que aquele povo esperava: uma paz gloriosa, fruto de uma intervenção real, a de um poderoso messias que libertaria Jerusalém da ocupação romana. Outros provavelmente sonharam com a restauração de uma paz social e viram em Jesus o rei ideal, que iria alimentar as multidões com pães, como ele já tinha feito, e realizar grandes milagres, trazendo assim mais justiça ao mundo.
Mas Jesus nunca fala sobre isto. Ele tem uma Páscoa diferente à sua frente, não uma Páscoa triunfal. A única coisa que lhe interessa na preparação da sua entrada em Jerusalém é montar «um jumentinho atado em que nunca montou pessoa alguma» (v. 30). É assim que Cristo traz a paz ao mundo: através da mansidão e da doçura, simbolizada por aquele jumento preso sobre o qual ninguém jamais montou. Ninguém, porque a maneira de Deus de fazer as coisas é diferente da do mundo. Com efeito, pouco antes da Páscoa, Jesus explica aos discípulos: «Deixo-vos a paz, dou-vos a minha paz. Não vo-la dou como o mundo a dá» (Jo 14, 27). São duas modalidades diversas: um modo como o mundo nos dá a paz e um modo como Deus nos dá a paz. São diferentes.
A paz que Jesus nos dá na Páscoa não é a paz que segue as estratégias do mundo, que acredita poder obtê-la através da força, da conquista e de várias formas de imposição. Esta paz, na realidade, é apenas um intervalo entre guerras: sabemo-lo bem. A paz do Senhor segue o caminho da mansidão e da cruz: é ocupar-se do próximo. Com feito, Cristo assumiu sobre si o nosso mal, o nosso pecado e a nossa morte. Assumiu sobre si tudo isto. Desta forma, ele libertou-nos. Ele pagou por nós. A sua paz não é o fruto de algum compromisso, mas nasce do dom de si mesmo. Esta paz mansa e corajosa, no entanto, é difícil de aceitar. De facto, a multidão que aclamava Jesus é a mesma que alguns dias depois grita “Crucifica-o” e, com medo e desilusão, não levanta um dedo por Ele.
A este propósito, uma grande história de Dostoievski, a chamada Lenda do Grande Inquisidor, é sempre relevante. Fala de Jesus que, após vários séculos, regressa à Terra. É imediatamente recebido pela multidão festiva, que o reconhece e o aclama. “Ah, voltaste! Vem, vem conosco!”. Mas, depois é preso pelo Inquisidor, que representa a lógica do mundo. O Inquisidor interroga-o e critica-o ferozmente. A última razão para a reprimenda é que Cristo, embora pudesse, nunca quis tornar-se César, o maior rei deste mundo, preferindo deixar o homem livre em vez de o subjugar e resolver os seus problemas com a força. Ele poderia ter estabelecido a paz no mundo, submetendo o coração livre, mas precário, do homem pela força de um poder superior, mas ele não queria fazê-lo: respeitou a nossa liberdade. «Tu – diz o Inquisidor a Jesus – aceitando o mundo e a púrpura dos Césares, terias fundado o reino universal e dado a paz universal» (Os irmãos Karamazov, Milão 2012, 345); e com uma sentença incisiva conclui: «Se há alguém que tenha merecido mais do que ninguém a nossa fogueira, esse alguém és tu» (348). Eis o engano que se repete na história, a tentação de uma falsa paz, baseada no poder, que depois leva ao ódio e à traição de Deus e a tanta amargura na alma.
No final, segundo esta narração, o Inquisidor gostaria que Jesus «lhe dissesse algo, talvez até algo amargo, algo terrível». Mas Cristo reage com um gesto dócil e concreto: «aproxima-se dele em silêncio, e beija-o suavemente nos seus lábios velhos e exangues» (352). A paz de Jesus não domina os outros, nunca é uma paz armada: nunca! As armas do Evangelho são a oração, a ternura, o perdão e o amor gratuito ao próximo, o amor a todos. Esta é a forma de trazer a paz de Deus ao mundo. É por isso que a agressão armada destes dias, como qualquer guerra, representa um ultraje contra Deus, uma traição blasfema ao Senhor da Páscoa, preferindo ao seu rosto manso o do falso deus deste mundo. A guerra é sempre uma ação humana para levar à idolatria do poder.
Antes da sua última Páscoa, Jesus disse aos seus discípulos: «Não vos perturbeis, nem temais» (Jo 14, 27). Sim, porque enquanto o poder mundano só deixa destruição e morte – vimos isto nesses dias – a sua paz constrói a história, a começar pelo coração de cada homem que a acolhe. A Páscoa é então a verdadeira festa de Deus e do homem, porque a paz que Cristo conquistou na cruz no dom de si mesmo é-nos distribuída. É por isso que o Ressuscitado aparece aos discípulos no dia de Páscoa; e como os saúda? «A paz esteja convosco!» (Jo 20, 19.21). Esta é a saudação de Cristo vencedor, de Cristo ressuscitado.
Irmãos, irmãs, Páscoa significa “passagem”. Especialmente este ano, é a ocasião abençoada para passar do Deus mundano para o Deus cristão, da avidez que levamos dentro de nós para a caridade que nos liberta, da expectativa de uma paz trazida pela força para o compromisso de testemunhar concretamente a paz de Jesus. Irmãos e irmãs, coloquemo-nos perante o Crucificado, fonte da nossa paz, e peçamos-lhe paz do coração e paz no mundo.
Papa Francisco
Catequese na audiência Geral 13.04.22
Catequese sobre a Velhice 5. A fidelidade à visita de Deus para as próximas gerações
No nosso itinerário de catequeses sobre o tema da velhice, hoje olhamos para o terno quadro pintado pelo evangelista São Lucas, que mostra a cena de duas figuras de idosos, Simeão e Ana. A sua razão de vida, antes de se despedir deste mundo, é aguardar a visita de Deus. Esperavam que os visitasse Deus, ou seja, Jesus. Simeão sabe, através de uma premonição do Espírito Santo, que não morrerá antes de ter visto o Messias. Ana vai ao templo todos os dias, dedicando-se ao seu serviço. Ambos reconhecem a presença do Senhor no Menino Jesus, que enche de consolação a sua longa espera e tranquiliza a sua despedida da vida. Esta é uma cena de encontro com Jesus, e de despedida.
O que podemos aprender com estas duas figuras de anciãos cheios de vitalidade espiritual?
Entretanto, aprendemos que a fidelidade da espera aguça os sentidos. De resto, como sabemos, o Espírito Santo faz exatamente isto: ilumina os sentidos. No antigo hino Veni Creator Spiritus, com que ainda hoje invocamos o Espírito Santo, dizemos: «Accende lumen sensibus», acende uma luz para os sentidos, ilumina os nossos sentidos. O Espírito é capaz de o fazer: aguça os sentidos da alma, apesar dos limites e das feridas dos sentidos do corpo. A velhice debilita, de uma forma ou de outra, a sensibilidade do corpo: um é mais cego, outro é mais surdo... No entanto, uma velhice que se exerceu na expetativa da visita de Deus não perderá a sua passagem: aliás, estará ainda mais pronta para a colher, terá mais sensibilidade para receber o Senhor quando Ele passar. Recordemos que a atitude do cristão consiste em estar atento às visitas do Senhor, porque o Senhor entra na nossa vida com inspirações, com o convite a sermos melhores. E Santo Agostinho dizia: “Tenho medo de Deus quando Ele passa” - “Mas por que tens medo?” - “Tenho medo de não o ver e deixá-lo passar”. É o Espírito Santo que prepara os sentidos para compreender quando o Senhor nos visita, como fez com Simeão e Ana.
Hoje, mais do que nunca, precisamos disto: temos necessidade de uma velhice dotada de sentidos espirituais vivos e capaz de reconhecer os sinais de Deus, ou seja, o Sinal de Deus, que é Jesus. Um sinal que sempre nos põe em crise: Jesus põe-nos em crise porque é «sinal de contradição» (Lc 2, 34) - mas que nos enche de alegria. Porque a crise não nos traz necessariamente tristeza, não: estar em crise, prestando serviço ao Senhor, muitas vezes dá-nos paz e alegria. A anestesia dos sentidos espirituais - e isto é terrível - a anestesia dos sentidos espirituais, na excitação e atordoamento dos sentidos do corpo, é uma síndrome generalizada numa sociedade que cultiva a ilusão da juventude eterna, e a sua caraterística mais perigosa consiste em ser quase inconsciente. Não se tem a consciência de estar anestesiado. E isto acontece: sempre ocorreu e continua a acontecer nos nossos tempos. Os sentidos anestesiados, sem compreender o que acontece; os sentidos interiores, os sentidos do espírito para compreender a presença de Deus ou a presença do mal, anestesiados, não distinguem.
Quando perdemos a sensibilidade do tato ou do paladar, damo-nos imediatamente conta. A da alma, a sensibilidade da alma, ao contrário, podemos ignorá-la por muito tempo, viver sem nos darmos conta de que perdemos a sensibilidade da alma. Ela não se refere simplesmente ao pensamento de Deus ou da religião. A insensibilidade dos sentidos espirituais diz respeito à compaixão e à piedade, à vergonha e ao remorso, à fidelidade e à dedicação, à ternura e à honra, à responsabilidade própria e à dor pelo próximo. É curioso: a insensibilidade não te faz compreender a compaixão, não te faz entender a piedade, não te faz sentir vergonha ou remorso por teres feito algo mau. É assim: os sentidos espirituais anestesiados confundem tudo e, espiritualmente, já não sentimos tais coisas. E a velhice torna-se, por assim dizer, a primeira perda, a primeira vítima desta perda de sensibilidade. Numa sociedade que exerce a sensibilidade sobretudo por prazer, só pode haver a perda de atenção pelos mais frágeis e prevalecer a competição dos vencedores. É assim que se perde a sensibilidade. Certamente, a retórica da inclusão é a fórmula ritual de cada discurso politicamente correto. Mas ainda não confere uma verdadeira correção às práticas da normal convivência: uma cultura da ternura social tem dificuldade de crescer. Não: o espírito da fraternidade humana - que julguei necessário relançar com força - é como uma peça de vestiário descartada, para admirar, sim, mas... num museu. Perde-se a sensibilidade humana, perdem-se estes movimentos do espírito que nos tornam humanos.
É verdade, na vida real podemos observar, com comovente gratidão, muitos jovens capazes de honrar até ao fundo esta fraternidade. Mas o problema é exatamente este: existe um descarte, um descarte culpado, entre o testemunho desta linfa vital da ternura social e o conformismo que obriga a juventude a contar a sua história de modo completamente diferente. O que podemos fazer para preencher esta lacuna?
Da narração de Simeão e Ana, mas também de outras histórias bíblicas da velhice sensível ao Espírito, vem uma indicação oculta que merece ser trazida à tona. Em que consiste concretamente a revelação que estimula a sensibilidade de Simeão e Ana? Consiste em reconhecer numa criança, que eles não geraram e que veem pela primeira vez, o sinal certo da visita de Deus. Eles aceitam que não são protagonistas, mas apenas testemunhas. E quando um indivíduo aceita não ser protagonista, mas se compromete como testemunha, tudo bem: aquele homem, aquela mulher, amadurece bem. Mas se tiver sempre vontade de ser protagonista, nunca amadurecerá neste caminho rumo à plenitude da velhice. A visita de Deus não se encarna na sua vida, daquele que quer ser protagonista e nunca testemunha, não os põe em cena como salvadores: Deus não se encarna na sua geração, mas na geração vindoura. Perdem o seu espírito, perdem a vontade de viver com maturidade e, como se costuma dizer, vivem superficialmente. É a grande geração dos superficiais, que não se dão ao luxo de sentir as coisas com a sensibilidade do espírito. Mas porque não se dão o luxo? Em parte, por preguiça, e em parte porque já não podem: perderam-na. É mau quando uma civilização perde a sua sensibilidade de espírito. Por outro lado, é bom quando encontramos anciãos como Simeão e Ana que mantêm esta sensibilidade do espírito e são capazes de compreender situações diferentes, pois estes dois compreenderam esta situação que os precedeu, que era a manifestação do Messias. Nenhum ressentimento ou recriminação por isto, quando se encontram nesta condição estática. Ao contrário, grande emoção e grande consolação, quando os sentidos espirituais ainda estão vivos. A emoção e a consolação de poder ver e anunciar que a história da sua geração não se perde nem se desperdiça, precisamente graças a um acontecimento que se encarna e se manifesta na geração seguinte. E é isto que uma pessoa idosa sente quando os seus netos vão falar com ela: sentem-se reavivados. “Ah, a minha vida ainda é aqui”. É tão importante ir ter com os idosos, é tão importante ouvi-los. É tão importante falar com eles, porque existe esta troca de civilização, esta troca de maturidade entre jovens e idosos. E assim, a nossa civilização prossegue de uma forma madura.
Só a velhice espiritual pode dar este testemunho, humilde e deslumbrante, tornando-o influente e exemplar para todos. A velhice que cultivou a sensibilidade da alma extingue toda a inveja entre as gerações, todo o ressentimento, toda a recriminação pelo advento de Deus na geração seguinte, que chega com a despedida da própria. E isto é o que acontece a um idoso aberto, a um jovem aberto: despede-se da vida, mas entrega - entre aspas - a sua vida à nova geração. E esta é aquela despedida de Simeão e Ana: “Agora posso ir em paz”. A sensibilidade espiritual da velhice é capaz de interromper a competição e o conflito entre as gerações de modo credível e definitivo. Ultrapassa esta sensibilidade: os idosos, com esta sensibilidade, ultrapassam o conflito, vão além, caminham para a unidade, não para o conflito. Isto é certamente impossível aos homens, mas é possível a Deus. E hoje precisamos tanto dela, a sensibilidade do espírito, a maturidade do espírito, precisamos de anciãos sábios, maduros em espírito, que nos deem esperança para a vida!
Papa Francisco
30.03.22
Catequese na audiência geral
Catequese sobre a Velhice 4. A despedida e a herança: memória e testemunho
Prezados irmãos e irmãs, bom dia!
Na Bíblia, a narração da morte do velho Moisés é precedida pelo seu testamento espiritual, chamado “Cântico de Moisés”. Este Cântico é, em primeiro lugar, uma bonita profissão de fé, que reza assim: «Proclamarei o nome do Senhor: / darei glória ao nosso Deus! / Ele é a Rocha: perfeitas são as suas obras / justos, todos os seus caminhos; / Ele é um Deus de lealdade, não de iniquidade; é justo e reto» (Dt 32, 3-4). Mas é também a memória da história vivida com Deus, das aventuras do povo formado a partir da fé no Deus de Abraão, Isaac e Jacob. E, portanto, Moisés também se recorda das amarguras e desilusões do próprio Deus: a sua fidelidade continuamente posta à prova pela infidelidade do seu povo. O Deus fiel e a resposta do povo infiel: como se o povo quisesse pôr à prova a fidelidade de Deus. E Ele permanece sempre fiel, próximo do seu povo. Este é precisamente o cerne do Cântico de Moisés: a fidelidade de Deus que nos acompanha ao longo de toda a vida.
Quando Moisés pronuncia esta profissão de fé, está no limiar da terra prometida, e também da sua despedida da vida. Tinha cento e vinte anos, lê-se na narração, «mas a sua vista nunca enfraqueceu» (Dt 34, 7). A capacidade de ver, de ver realmente, de ver até simbolicamente, como os idosos, que sabem ver as coisas, o significado mais profundo das coisas. A vitalidade do seu olhar é um dom precioso: permite-lhe transmitir a herança da sua longa experiência de vida e de fé, com a necessária lucidez. Moisés vê a história e transmite-a; os idosos veem a história e transmitem-na.
Uma velhice à qual é concedida esta lucidez é um dom precioso para a geração que há de vir. A escuta pessoal e direta da narração da história de fé vivida, com todos os seus altos e baixos, é insubstituível. Lê-la nos livros, vê-la nos filmes, consultá-la na internet, por muito útil que seja, nunca será a mesma coisa. Esta transmissão - que é a verdadeira tradição, a transmissão concreta do idoso ao jovem! - esta transmissão falta muito hoje, e cada vez mais, às novas gerações. Porquê? Porque segundo esta nova civilização os idosos são material descartável, os velhos devem ser descartados. É uma brutalidade! Não, não deve ser assim! A narração direta, de pessoa a pessoa, tem tons e modos de comunicação que nenhum outro meio pode substituir. Um idoso que viveu muito tempo, e recebe o dom de um testemunho lúcido e apaixonado da sua história, é uma bênção insubstituível. Seremos nós capazes de reconhecer e honrar este dom dos idosos? A transmissão da fé - e do sentido da vida - segue hoje este caminho de escuta dos idosos? Posso dar um testemunho pessoal. Aprendi o ódio e a raiva pela guerra com o meu avô, que combateu no Piave em 1914: ele transmitiu-me esta raiva pela guerra. Porque me falou sobre os sofrimentos da guerra. E isto não se aprende nos livros, nem de outra forma; aprende-se assim, transmitindo-o dos avós aos netos. E isto é insubstituível. A transmissão da experiência de vida dos avós aos netos. Hoje, infelizmente, não é assim, e pensa-se que os avós são material descartável: não! São a memória viva de um povo, e os jovens e as crianças devem ouvir os avós.
Na nossa cultura, tão “politicamente correta”, este caminho parece ser impedido de muitas maneiras: na família, na sociedade, na própria comunidade cristã. Alguns até propõem a abolição do ensino da história, como informação supérflua sobre mundos que já não são atuais, que tira recursos ao conhecimento do presente. Como se tivéssemos nascido ontem!
Por outro lado, a transmissão da fé carece frequentemente da paixão própria de uma “história vivida”. Transmitir a fé não é dizer coisas, “blá-blá-blá”. É narrar a experiência de fé. Então, dificilmente pode levar a escolher o amor para sempre, a fidelidade à palavra dada, a perseverança na dedicação, a compaixão pelos rostos feridos e desanimados? Claro, as histórias da vida devem ser transformadas em testemunho, e o testemunho deve ser leal. Não é certamente leal a ideologia que limita a história aos próprios esquemas; não é leal a propaganda que adapta a história à promoção do próprio grupo; não é leal fazer da história um tribunal no qual se condena todo o passado, desencorajando-se qualquer futuro. Ser leal significa contar a história tal como ela é, e só quem a viveu a pode narrar bem. Por isso, é muito importante ouvir os idosos, ouvir os avós, é importante que as crianças conversem com eles.
Os próprios Evangelhos narram honestamente a história abençoada de Jesus, sem esconder os erros, os desentendimentos e até as traições dos discípulos. Esta é a história, a verdade, o testemunho. Este é o dom da memória que os “anciãos” da Igreja transmitem, desde o início, passando-o “de mão em mão” à geração seguinte. Far-nos-á bem perguntar-nos: como valorizamos este modo de transmitir a fé, na passagem do testemunho entre os idosos da comunidade e os jovens que se abrem ao futuro? E aqui vem-me à mente algo que já disse muitas vezes, mas que gostaria de repetir. Como se transmite a fé? “Ah, eis um livro, estuda-o”: não! Assim não se pode transmitir a fé. A fé transmite-se em dialeto, ou seja, na conversa familiar, entre avós e netos, entre pais e netos. A fé transmite-se sempre em dialeto, no dialeto familiar e experiencial que se aprende ao longo dos anos. Por isso é tão importante o diálogo na família, o diálogo das crianças com os avós, que têm a sabedoria da fé.
Às vezes reflito sobre esta estranha anomalia. Hoje, o catecismo da iniciação cristã inspira-se generosamente na Palavra de Deus e transmite informações exatas sobre os dogmas, a moral da fé e os sacramentos. No entanto, muitas vezes falta um conhecimento da Igreja que derive da escuta e do testemunho da história real da fé e da vida da comunidade eclesial, desde o princípio até aos dias de hoje. Na infância, aprendemos a Palavra de Deus nas aulas de catecismo; mas quando se é jovem “aprende-se” a Igreja nas salas de aula e nos meios de comunicação da informação global.
A narração da história da fé deveria ser como o Cântico de Moisés, como o testemunho dos Evangelhos e dos Atos dos Apóstolos. Ou seja, uma história capaz de evocar com emoção as bênçãos de Deus e com lealdade as nossas falhas. Seria bom se, desde o início, nos itinerários de catequese houvesse também o hábito de ouvir, da experiência vivida pelos idosos, a lúcida confissão das bênçãos recebidas de Deus, que devemos preservar, e o testemunho leal das nossas faltas de fidelidade, que devemos reparar e corrigir. Os idosos entram na terra prometida, que Deus deseja para cada geração, quando oferecem aos jovens a bonita iniciação do seu testemunho e transmitem a história da fé, a fé em dialeto, em dialeto familiar, naquele dialeto que passa dos idosos para os jovens. Assim, guiados pelo Senhor Jesus, idosos e jovens entram juntos no seu Reino de vida e de amor. Mas todos juntos. Todos em família, com este grande tesouro que é a fé transmitida em dialeto.
Papa Francisco
Catequese na audiência geral 23/03/22
Catequese sobre a Velhice 3. A ancianidade, recurso para a juventude despreocupada
Estimados irmãos e irmãs, bom dia!
A narração bíblica – com a linguagem simbólica da época em que foi escrita – diz-nos algo surpreendente: Deus estava tão amargurado por causa da maldade generalizada dos homens, a qual se tinha tornado um estilo normal de vida, que pensou que tivesse cometido um erro ao criá-los e decidiu eliminá-los. Uma solução radical. Poderia até ter uma paradoxal aparência de misericórdia. Mais nenhum humano, mais nenhuma história, nem julgamento, nem condenação. E muitas vítimas predestinadas da corrupção, da violência e da injustiça seriam poupadas para sempre.
Não acontece por vezes também a nós – esmagados por um sentimento de impotência contra o mal ou desmoralizados pelos “profetas de desventura” – pensar que era melhor não ter nascido? Devemos dar crédito a certas teorias recentes que denunciam a espécie humana como um dano evolutivo para a vida no nosso planeta? Tudo negativo? Não.
De fato, estamos sob pressão, expostos a tensões opostas que nos deixam confusos. Por um lado, temos o otimismo de uma juventude eterna, aceso pelo extraordinário progresso da tecnologia, que pinta um futuro cheio de máquinas mais eficientes e inteligentes do que nós, que curarão os nossos males e pensarão nas melhores soluções para não morrermos: o mundo do robô. Por outro, a nossa imaginação parece cada vez mais centrada na representação de uma catástrofe final que nos extinguirá. O que acontece com uma eventual guerra atómica. No “dia seguinte” disto – se ainda existirmos, se houver dias e seres humanos – teremos de começar de zero. Destruir tudo para recomeçar de zero. Naturalmente, não quero banalizar o tema do progresso. Mas parece que o símbolo do dilúvio está a ganhar terreno no nosso inconsciente. De resto, a atual pandemia coloca uma não insignificante hipoteca sobre a nossa representação despreocupada das coisas que importam, para a vida e o seu destino.
Na narração bíblica, quando se trata de salvar a vida na terra da corrupção e do dilúvio, Deus confia a tarefa à fidelidade do mais velho de todos, o “justo” Noé. Irá a velhice salvar o mundo?, pergunto-me. Em que sentido? E como salvará a velhice o mundo? E qual é o horizonte? Vida para além da morte ou apenas sobrevivência até ao dilúvio?
Uma palavra de Jesus, evocando “os dias de Noé”, ajuda-nos a aprofundar o significado da página bíblica que acabámos de ouvir. Jesus, falando dos últimos tempos, diz: «Como ocorreu nos dias de Noé, acontecerá do mesmo modo nos dias do Filho do Homem. Comiam e bebiam, os homens casavam-se e as mulheres davam-se em casamento, até ao dia em que Noé entrou na arca. Veio o dilúvio e matou todos» (Lc 17, 26-27). De facto, comer e beber, casar, são coisas muito normais e não parecem ser exemplos de corrupção. Onde está a corrupção? Onde havia corrupção lá? Com efeito, Jesus sublinha o facto de que os seres humanos, quando se limitam a desfrutar da vida, perdem até a percepção da corrupção, que mata a sua dignidade e envenena o seu significado. Quando se perde a percepção da corrupção, e a corrupção torna-se algo normal: tudo tem o seu preço, tudo! Compra-se, vende-se, opiniões, gestos de justiça… Isto, no mundo dos negócios, no mundo de tantos ofícios, é comum. E também vivem a corrupção despreocupadamente, como se fizesse parte da normalidade do bem-estar humano. Quando deves fazer alguma coisa e é lento, aquele processo de fazer um pouco lento, quantas vezes ouvimos dizer: “Mas, se me ofereces uma gorjeta eu acelero isto”. Muitas vezes. “Dá-me alguma coisa e vou em frente”. Sabemo-lo bem, todos nós. O mundo da corrupção parece parte da normalidade do ser humano; e isto é negativo. Esta manhã falei com um senhor que me contava sobre este problema na sua terra. Os bens da vida são consumidos e apreciados sem preocupação pela qualidade espiritual da vida, sem cuidados com o habitat da casa comum. Explora-se tudo, sem preocupação com a mortificação e o desânimo de que muitos sofrem, nem com o mal que envenena a comunidade. Desde que a vida normal possa ser preenchida com “bem-estar”, não queremos pensar no que a torna vazia de justiça e amor. “Mas, eu estou bem! Por que devo pensar nos problemas, nas guerras, na miséria humana, na pobreza e na malvadez? Não, eu estou bem. Não me importo com os outros”. Este é o pensamento inconsciente que nos leva em frente a viver um estado de corrupção.
Pode a corrupção tornar-se normalidade?, pergunto-me. Irmãos e irmãs, infelizmente, sim. Pode-se respirar o ar da corrupção como se respira o oxigénio. “Mas é normal; se quiser que eu faça isto depressa, quanto me dá?”. É normal! É normal, mas é negativo, não é bom! O que lhe abre a estrada? Uma coisa: a despreocupação que considera só a si mesmo: este é o corredor que abre a porta para a corrupção que envolve a vida de todos. A corrupção tira grande vantagem desta despreocupação ímpia. Quando a uma pessoa tudo corre bem e não lhe importa dos outros: esta despreocupação suaviza as nossas defesas, entorpece a nossa consciência e torna-nos – até involuntariamente – cúmplices. Pois a corrupção não caminha sozinha: uma pessoa sempre tem cúmplices. E a corrupção alarga-se, alarga-se sempre.
A velhice está na posição adequada para compreender o engano desta normalização de uma vida obcecada pelo prazer e vazia de interioridade: vida sem pensamento, sem sacrifício, sem interioridade, sem beleza, sem verdade, sem justiça, sem amor: isto tudo é corrupção. A sensibilidade especial de nós idosos, da idade anciã às atenções, pensamentos e afetos que nos tornam humanos deve voltar a ser uma vocação para muitos. E será uma escolha de amor dos idosos para com as novas gerações. Seremos nós a dar o alarme, o alerta: “Está atento, que esta é a corrupção, não te traz nada”. Hoje é tão necessária a sabedoria dos idosos, para ir contra a corrupção. As novas gerações esperam de nós, idosos, de nós anciãos uma palavra que seja profecia, que abra as portas a novas perspectivas fora deste mundo despreocupado da corrupção, do hábito às coisas corruptas. A bênção de Deus escolhe a velhice para este carisma tão humano e humanizador. Que sentido tem a minha velhice? Cada um de nós idosos podemos perguntar. O sentido é este: ser profeta da corrupção e dizer aos outros: “Parai, eu percorri aquela estrada e não vos leva a nada! Agora digo-vos a minha experiência”. Nós idosos devemos ser profetas contra a corrupção, como Noé foi o profeta contra a corrupção do seu tempo, pois foi o único em quem Deus confiou. Pergunto a todos vós – e também a mim: o meu coração está aberto a ser profeta contra a corrupção de hoje? Há um aspecto negativo, quando os idosos não amadurecem e ficam velhos com os mesmos hábitos corruptos dos jovens. Pensemos na narração bíblica dos juízes de Susana: são o exemplo de uma velhice corrupta. E nós, com uma velhice assim não seremos capazes de ser profetas para as jovens gerações.
E Noé é o exemplo desta velhice generativa: não é corrupta, é generativa. Noé não prega, não se queixa, não recrimina, mas cuida do futuro da geração que está em perigo. Nós idosos devemos cuidar dos jovens, das crianças que estão em perigo. Ele constrói a arca de acolhimento e faz entrar homens e animais. Ao cuidar da vida, em todas as suas formas, Noé cumpre a ordem de Deus ao repetir o gesto terno e generoso da criação, que na realidade é o próprio pensamento que inspira a ordem de Deus: uma nova bênção, uma nova criação (cf. Gn 8, 15-9, 17). A vocação de Noé permanece sempre atual. O santo patriarca ainda deve interceder por nós. E nós, mulheres e homens de uma certa idade – para não dizer velhos, pois alguns se ofendem – não esqueçamos que temos a possibilidade da sabedoria, de dizer aos outros: “Olha, esta estrada de corrupção não leva a nada”. Nós devemos ser como o bom vinho que no final quando fica velho pode oferecer uma mensagem positiva e não negativa.
Lanço um apelo, hoje, a todas as pessoas que têm uma certa idade, para não dizer velhos. Estai atentos: tendes a responsabilidade de denunciar a corrupção humana na qual se vive e na qual vai em frente este modo de viver de relativismo, totalmente relativo, como se tudo fosse lícito. Vamos em frente. O mundo precisa, tem necessidade de jovens fortes, que vão em frente, e de idosos sábios. Peçamos ao Senhor a graça da sabedoria.
Papa Francisco
Catequese na audiência geral 16.03.2022
Catequese sobre a Velhice 2. A longevidade: símbolo e oportunidade
Na narração bíblica das genealogias dos progenitores, impressiona-nos imediatamente a sua enorme longevidade: fala-se de séculos! Quando começa nela a velhice? Perguntamo-nos. E o que significa o fato que estes pais antigos vivem tanto tempo depois de terem gerado os filhos? Pais e filhos vivem juntos, durante séculos! Esta cadência secular do tempo, narrada em estilo ritual, confere à relação entre longevidade e genealogia um profundo significado simbólico forte, muito forte.
É como se a transmissão da vida humana, tão nova no universo criado, exigisse uma iniciação lenta e prolongada. Tudo é novo, no início da história de uma criatura que é espírito e vida, consciência e liberdade, sensibilidade e responsabilidade. A nova vida – a vida humana – imersa na tensão entre a sua origem “à imagem e semelhança” de Deus e a fragilidade da sua condição mortal, representa uma novidade a ser descoberta. Requer um longo período de iniciação, no qual o apoio recíproco entre gerações é indispensável, para decifrar experiências e enfrentar os enigmas da vida. Durante este longo período de tempo, a qualidade espiritual do homem é também lentamente cultivada.
Num certo sentido, cada passagem de época na história humana reapresenta-nos esta sensação: é como se tivéssemos de retomar calmamente as nossas perguntas sobre o sentido da vida, quando o cenário da condição humana aparece repleto de experiências novas e questões inéditas. Certamente, a acumulação de memória cultural aumenta a familiaridade necessária para lidar com novas passagens. Os tempos de transmissão são mais curtos, mas os tempos de assimilação requerem sempre paciência. O excesso de velocidade, que agora obceca todas as fases da nossa vida, torna cada experiência mais superficial e menos “nutriente”. Os jovens são vítimas inconscientes desta divisão entre o tempo do relógio, que quer ser queimado, e os tempos da vida, que requer um “fermento” adequado. Uma vida longa permite experimentar estes longos tempos, e os danos da pressa.
A velhice certamente impõe ritmos mais lentos: mas não são apenas tempos de inércia. De fato, a medida destes ritmos abre, para todos, espaços de significado na vida desconhecidos a obsessão da velocidade. A perda de contato com os ritmos lentos da velhice fecha estes espaços a todos. Foi neste contexto que quis instituir a festa dos avós no último domingo de julho. A aliança entre as duas gerações extremas da vida – crianças e idosos – também ajuda as outras duas – jovens e adultos – a criar laços entre si para tornar a existência de todos mais rica em humanidade.
Precisamos de diálogo entre as gerações: se não houver diálogo entre jovens e idosos, entre adultos, se não houver diálogo, cada geração permanece isolada e não pode transmitir a mensagem. Um jovem que não está ligado às suas raízes, que são os seus avós, não recebe força – como a árvore vai buscar a força às suas raízes – e cresce mal, fica doente, cresce sem referências. Por isso é necessário procurar o diálogo entre gerações, como uma necessidade humana. E este diálogo é importante precisamente entre avós e netos, que são os dois extremos.
Imaginemos uma cidade em que a convivência de idades diferentes seja parte integrante do projeto global do seu habitat. Pensemos na formação de relações afetuosas entre a velhice e a juventude que irradiam sobre o estilo geral das relações. A sobreposição de gerações tornar-se-ia uma fonte de energia para um humanismo verdadeiramente visível e vivível. A cidade moderna tende a ser hostil com os idosos (e não por acaso também com as crianças). Esta sociedade, que tem o espírito do descarte e descarta muitas crianças não desejadas, descarta os idosos: descarta-os, não servem, pondo-os em casas para idosos, internados… O excesso de velocidade coloca-nos numa centrifugadora que nos varre como confetes. Perdemos completamente de vista o panorama geral. Todos se agarram ao seu pedacinho, flutuando sobre os fluxos da cidade-mercado, para a qual ritmos lentos são perdas e velocidade é dinheiro. A velocidade excessiva pulveriza a vida, não a torna mais intensa. E a sabedoria requer “perda de tempo”. Quando voltas para casa e entreténs com o teu filho, com a tua filha e “perdes tempo”, este diálogo é fundamental para a sociedade. E quando voltas para casa e está lá o avô ou a avó que talvez já não raciocine bem ou, não sei, tenha perdido um pouco a capacidade de falar, e tu ficas com ele ou com ela, “perdes tempo”, mas este “perder tempo” fortalece a família humana. É necessário dedicar tempo – um tempo que não é rentável – com as crianças e com os idosos, pois eles dão-nos outra capacidade de ver a vida.
A pandemia em que ainda somos forçados a viver impôs – com bastante sofrimento, infelizmente – um bloqueio ao culto obtuso da velocidade. E neste período, os avós funcionaram como uma barreira à “desidratação” afetiva dos mais jovens. A aliança visível de gerações, que harmoniza os tempos e ritmos, restitui-nos a esperança de não vivermos a vida em vão. E restitui a cada um de nós o amor pela nossa vida vulnerável, impedindo o caminho para a obsessão da velocidade, que simplesmente a consome. A palavra-chave aqui é “perder tempo”. A cada um de vós pergunto: sabeis perder tempo, ou estais sempre pressionados pela velocidade? “Não, estou com pressa, não posso...”? Sabeis perder tempo com os avós, com os idosos? Sabeis perder tempo a brincar com os vossos filhos, com as crianças? Este é o termo de comparação. Pensai nisto. E isto restitui a cada um o amor pela nossa vida vulnerável – como disse - impedindo o caminho para a obsessão da velocidade, que simplesmente a consome. Os ritmos da velhice são um recurso indispensável para apreender o significado da vida marcada pelo tempo. Os idosos têm os seus ritmos, mas são ritmos que nos ajudam. Graças a esta mediação, o destino da vida ao encontro com Deus torna-se mais credível: um desígnio que se esconde na criação do ser humano “à sua imagem e semelhança” e que é selado no Filho de Deus que se fez homem.
Hoje verifica-se uma maior longevidade da vida humana. Isto dá-nos a oportunidade de incrementar a aliança entre todos os tempos da vida. Tanta longevidade, mas devemos fazer mais aliança. E também nos ajuda a crescer a aliança com o sentido da vida na sua totalidade. O sentido da vida não está apenas na idade adulta, dos 25 aos 60 anos. O sentido da vida é tudo, desde o nascimento até à morte, e deverás ser capaz de interagir com todos, inclusive ter relações afetivas com todos, para que a tua maturidade seja mais rica, mais forte. E também nos oferece este significado da vida, que é total. Que o Espírito nos conceda inteligência e força para esta reforma: é preciso uma reforma. A prepotência do tempo do relógio deve ser convertida à beleza dos ritmos da vida. Esta é a reforma que precisamos fazer nos nossos corações, na família e na sociedade. Repito: reformar, o quê? Que a prepotência do tempo do relógio se converta à beleza dos ritmos da vida. Converter a prepotência do tempo, que nos apressa sempre, aos ritmos próprios da vida. A aliança das gerações é indispensável. Numa sociedade onde os idosos não falam com os jovens, os jovens não falam com os idosos, os adultos não falam com os idosos nem com os jovens, é uma sociedade estéril, sem futuro, uma sociedade que não olha para o horizonte, mas para si mesma. E torna-se sozinha. Deus nos ajude a encontrar a música adequada para esta harmonização das diversas idades: os pequeninos, os idosos, os adultos, todos juntos: uma linda sinfonia de diálogo.
Papa Francisco
Catequese na audiência geral 02.03.22
Catequese sobre a Velhice 1. A graça do tempo e a aliança das idades da vida
Estimados irmãos e irmãs, bom dia!
Concluímos as catequeses sobre São José. Hoje iniciamos um percurso de catequeses que procura inspiração na Palavra de Deus sobre o sentido e o valor da velhice. Reflitamos sobre a velhice. Há já algumas décadas que esta idade da vida diz respeito a um verdadeiro “novo povo” que são os idosos. Nunca antes fomos tão numerosos na história da humanidade. O risco de ser descartados é ainda mais frequente: nunca fomos tão numerosos como agora, nunca houve um risco tão grande como agora de sermos descartados. Os idosos são frequentemente vistos como “um peso”. Na dramática primeira fase da pandemia, foram eles que pagaram o preço mais elevado. Já eram a parte mais débil e negligenciada: não olhávamos muito para eles quando eram vivos, nem sequer os vimos morrer. Encontrei também esta Carta para os direitos dos idosos e os deveres da comunidade: foi editada pelos governos, não foi editada pela Igreja, é uma coisa laica: é boa, é interessante, para saber que os idosos têm direitos. Fará bem lê-la.
Juntamente com a migração, a velhice é uma das questões mais urgentes que a família humana é chamada a enfrentar atualmente. Não se trata apenas de uma mudança quantitativa; o que está em jogo é a unidade das idades da vida: ou seja, o verdadeiro ponto de referência para a compreensão e a apreciação da vida humana na sua totalidade. Perguntemo-nos: existe amizade, existe aliança entre as diferentes idades da vida, ou prevalece a separação e o descarte?
Todos vivemos num presente em que coexistem crianças, jovens, adultos e idosos. Mas a proporção mudou: a longevidade tornou-se massa e, em grandes partes do mundo, a infância é distribuída em pequenas doses. Falámos também sobre o inverno demográfico. Um desequilíbrio que tem muitas consequências. A cultura dominante tem como único modelo o jovem-adulto, isto é, um indivíduo que se faz por si mesmo e que permanece sempre jovem. Mas será verdade que a juventude contém o sentido pleno da vida, enquanto a velhice representa simplesmente o seu esvaziamento e perda? Será verdade? Será que só a juventude contém o sentido pleno da vida, e a velhice é o esvaziamento da vida, a perda da vida? A exaltação da juventude como única idade digna de encarnar o ideal humano, unida ao desprezo pela velhice vista como fragilidade, degradação ou deficiência, foi o ícone dominante dos totalitarismos do século XX. Já nos esquecemos disto?
O prolongamento da vida incide de maneira estrutural sobre a história dos indivíduos, das famílias e das sociedades. Mas devemos perguntar-nos: a sua qualidade espiritual e o seu sentido comunitário são objeto de pensamento e de amor coerentes com este facto? Talvez os idosos devam pedir desculpa pela sua obstinação em sobreviver à custa dos outros? Ou podem ser honrados pelos dons que trazem ao sentido da vida de todos? De facto, na representação do sentido da vida – e precisamente nas chamadas culturas “desenvolvidas” – a velhice tem pouca incidência. Porquê? Porque é considerada uma idade que não tem qualquer conteúdo específico para oferecer, nem significado próprio para viver. Além disso, há uma falta de incentivo para que as pessoas os procurem, e uma falta de educação para que a comunidade os reconheça. Em suma, para uma idade que é agora uma parte determinante do espaço comunitário e se estende a um terço de toda a vida, existem – por vezes – planos de assistência, mas não projetos de existência. Planos de assistência, sim, mas não projetos para os fazer viver em plenitude. E isto é um vazio de pensamento, de imaginação, de criatividade. Por detrás deste pensamento, o que faz o vazio é que o idoso, a idosa, são material de descarte: nesta cultura do descarte, os idosos entram como material de descarte.
A juventude é bela, mas a eterna juventude é uma alucinação muito perigosa. Ser ancião é tão importante – e belo – exatamente importante como ser jovem. Lembremo-nos disto. A aliança entre as gerações, que restitui ao humano todas as idades da vida, é a nossa dádiva perdida e devemos recuperá-la. Deve ser encontrada novamente, nesta cultura do descarte e nesta cultura da produtividade.
A Palavra de Deus tem muito a dizer sobre esta aliança. Há pouco ouvimos a profecia de Joel: «Os vossos anciãos terão sonhos, os vossos jovens terão visões» (3, 1). Pode ser interpretado da seguinte forma: quando os idosos resistem ao Espírito, enterrando os seus sonhos no passado, os jovens já não conseguem ver as coisas que devem ser feitas para abrir o futuro. Quando, pelo contrário, os idosos comunicam os seus sonhos, os jovens veem claramente o que devem fazer. Os jovens que já não questionam os sonhos dos idosos, focalizando de cabeça baixa visões que não vão além dos seus narizes, terão dificuldade em carregar o seu presente e suportar o seu futuro. Se os avós voltarem a cair nas suas melancolias, os jovens fechar-se-ão ainda mais com os seus smartphones. O ecrã pode permanecer ligado, mas a vida apagar-se-á antes do tempo. Não consiste precisamente a mais grave repercussão da pandemia no desorientamento dos jovens? Os idosos têm recursos de vida já vivida aos quais podem recorrer a qualquer momento. Ficarão parados a ver os jovens perderem a visão, ou acompanhá-los-ão aquecendo os seus sonhos? Perante os sonhos dos idosos, o que farão os jovens?
A sabedoria do longo caminho que acompanha a velhice à sua despedida deve ser vivida como uma oferta de sentido para a vida, não consumida como a inércia da sua sobrevivência. Se a velhice não for restituída à dignidade de uma vida humanamente digna, está destinada a fechar-se num desânimo que rouba a todos o amor. Este desafio de humanidade e de civilização requer o nosso empenho e a ajuda de Deus. Peçamo-lo ao Espírito Santo. Com estas catequeses sobre a velhice, gostaria de encorajar todos a investirem os seus pensamentos e afetos nos dons que ela tem em si e proporciona às outras idades da vida. A velhice é um presente para todas as idades da vida. É um dom de maturidade, de sabedoria. A Palavra de Deus ajudar-nos-á a discernir o sentido e o valor da velhice; que o Espírito Santo nos conceda também os sonhos e as visões de que necessitamos. E gostaria de salientar, como ouvimos na profecia de Joel no início, que o importante não é apenas que o idoso ocupe o lugar da sabedoria que tem, de história vivida na sociedade, mas também que haja um diálogo, que fale com os jovens. Os jovens devem dialogar com os idosos, e os idosos com os jovens. E esta ponte será a transmissão de sabedoria à humanidade. Espero que estas reflexões sejam úteis para todos nós, para levar por diante esta realidade que o profeta Joel dizia, que no diálogo entre jovens e idosos, os anciãos possam oferecer sonhos e os jovens possam recebê-los e levá-los por diante. Não esqueçamos que tanto na cultura familiar como na social os idosos são as raízes da árvore: têm toda a história ali, e os jovens são como as flores e os frutos. Se o sumo não vier, se não tiver este “soro” – digamos – das raízes, nunca poderão florescer. Não esqueçamos aquele poeta que já citei muitas vezes: “Tudo o que a árvore tem de florescido vem do que está enterrado” (Francisco Luis Bernárdez). Tudo o que uma sociedade tem de bom está relacionado com as raízes dos idosos. Por esta razão, nestas catequeses, gostaria que a figura do idoso fosse posta em evidência, que se compreendesse bem que o ancião não é um material de descarte: é uma bênção para a sociedade.
Papa Francisco
Catequese na audiência geral 23.02.22
Catequese sobre São José 11. São José, padroeiro da boa morte
Na última catequese, estimulados ainda pela figura de São José, refletimos sobre o significado da comunhão dos santos. E precisamente a partir disto, hoje gostaria de aprofundar a devoção especial que o povo cristão sempre teve por São José como padroeiro da boa morte. Uma devoção nascida do pensamento de que José morreu com a ajuda da Virgem Maria e de Jesus, antes que ele deixasse a casa de Nazaré. Não há dados históricos, mas visto que já não se vê José na vida pública, pensa-se que tenha morrido ali em Nazaré, com a família. E a acompanharam-no à morte Jesus e Maria.
O Papa Bento XV, há um século, escreveu que «através de José vamos diretamente a Maria, e através de Maria à origem de toda a santidade, que é Jesus». Quer José quer Maria ajudam-nos a ir a Jesus. E encorajando práticas piedosas em honra de São José, recomendou uma em particular, que dizia assim: «Dado que Ele é merecidamente considerado como o mais eficaz protetor dos moribundos, tendo expirado com a ajuda de Jesus e Maria, será preocupação dos Pastores sagrados inculcar e encorajar [...] aquelas piedosas confrarias que foram instituídas para implorar José em nome dos moribundos, como as “da Boa Morte”, do “Trânsito de São José” e “pelos Agonizantes”» (Motu proprio Bonum sane, 25 de julho de 1920): eram as associações da época.
Amados irmãos e irmãs, talvez algumas pessoas pensem que esta linguagem e este tema sejam apenas uma herança do passado, mas na realidade a nossa relação com a morte nunca diz respeito ao passado, é sempre presente. O Papa Bento dizia, há alguns dias, falando sobre si mesmo que “está diante da porta obscura da morte”. É bom agradecer ao Papa Bento que com 95 anos tem a lucidez de nos dizer isto: “Estou diante da obscuridade da morte, à porta obscura da morte”. Um bom conselho que nos deu! A chamada cultura do “bem-estar” procura remover a realidade da morte, mas de uma forma dramática a pandemia do coronavírus voltou a colocá-la em evidência. Foi terrível: a morte estava em toda a parte, e muitos irmãos e irmãs perderam entes queridos sem poderem estar ao lado deles, e isto tornou a morte ainda mais difícil de aceitar e de elaborar. Uma enfermeira contou-me que uma avó com Covid estava a morrer e disse-lhe: “gostaria de me despedir dos meus entes queridos antes de ir embora”. E a enfermeira, corajosa, pegou no telemóvel e fez a ligação. A ternura daquela despedida...
Não obstante isto, procuramos de todas as maneiras banir o pensamento da nossa finitude, iludindo-nos assim a pensar que podemos retirar o poder da morte e afastar o temor. Mas a fé cristã não é uma forma de exorcizar o medo da morte, pelo contrário, ajuda-nos a enfrentá-la. Mais cedo ou mais tarde, todos nós iremos àquela porta.
A verdadeira luz que ilumina o mistério da morte provém da ressurreição de Cristo. Eis a luz. E São Paulo escreve: «Ora, se se prega que Jesus ressuscitou dentre os mortos, como dizem alguns de vós que não há ressurreição de mortos? Se não há ressurreição de mortos, nem Cristo ressuscitou. Se Cristo não ressuscitou, é vã a nossa pregação, e também é vã a vossa fé (1 Cor 15, 12-14). Há uma certeza: Cristo ressuscitou, Cristo ressurgiu, Cristo está vivo no meio de nós. E esta é a luz que nos espera por detrás da porta obscura da morte.
Prezados irmãos e irmãs, é apenas através da fé na ressurreição que podemos olhar para o abismo da morte sem nos deixarmos dominar pelo medo. Não só: mas também podemos atribuir à morte um papel positivo. De facto, pensar na morte, iluminada pelo mistério de Cristo, ajuda-nos a olhar para toda a vida com olhos novos. Nunca vi atrás de um carro fúnebre uma carrinha de mudanças! Atrás de um carro fúnebre: nunca vi. Iremos sozinhos, sem nada nos bolsos da mortalha: nada. Pois a mortalha não tem bolsos. Esta solidão da morte: é verdade, nunca vi atrás de um carro fúnebre uma carrinha de mudanças. Não tem sentido acumular se um dia morreremos. O que precisamos de acumular é caridade, a capacidade de partilhar, a capacidade de não ficar indiferentes às necessidades dos demais. Ou, de que serve discutir com um irmão, uma irmã, um amigo, um membro da família, ou um irmão ou irmã na fé, se um dia morreremos? De que serve enraivecer-se, zangar-se com os outros? Perante a morte, tantas questões são redimensionadas. É bom morrer reconciliado, sem deixar ressentimentos e sem arrependimentos! Gostaria de dizer uma verdade: todos nós estamos a caminho rumo àquela porta, todos.
O Evangelho diz-nos que a morte vem como um ladrão, assim diz Jesus: chega como um ladrão, e por muito que procuremos manter a sua chegada sob controlo, talvez mesmo planeando a própria morte, ela continua a ser um acontecimento com o qual temos de nos confrontar e perante o qual também temos de fazer escolhas.
Para nós cristãos permanecem firmes duas considerações. A primeira é que não podemos evitar a morte, e é precisamente por esta razão que, depois de ter feito tudo o que era humanamente possível para curar a pessoa doente, é imoral envolver-se numa obstinação terapêutica (cf. Catecismo da Igreja Católica, n. 2278). Aquela frase do povo fiel de Deus, das pessoas simples: “Deixai-o morrer em paz”, “ajudai-o a morrer em paz”: quanta sabedoria! A segunda consideração diz respeito à qualidade da própria morte, a qualidade da dor, do sofrimento. De facto, devemos estar gratos por toda a ajuda que a medicina procura dar, para que através das chamadas “curas paliativas”, cada pessoa que se está a preparar para viver a última parte da sua vida o possa fazer da forma mais humana possível. Contudo, devemos ter o cuidado de não confundir esta ajuda com desvios inaceitáveis que levam a matar. Devemos acompanhar as pessoas até à morte, mas não provocar a morte nem ajudar qualquer forma de suicídio. Saliento que o direito a cuidados e tratamentos para todos deve ser sempre uma prioridade, de modo a que os mais débeis, particularmente os idosos e os doentes, nunca sejam descartados. A vida é um direito, não a morte, que deve ser acolhida, não administrada. E este princípio ético diz respeito a todos, e não apenas aos cristãos ou crentes. Mas eu gostaria de sublinhar aqui um problema social, mas real. Aquele “planificar” – não sei se esta é a palavra certa – mas acelerar a morte dos idosos. Muitas vezes vemos numa certa classe social que os idosos, por não terem os meios, recebem menos medicamentos do que necessitariam, e isto é desumano: isto não os está a ajudar, está a empurrá-los mais depressa para a morte. Isto não é humano nem cristão. Os idosos devem ser tratados como um tesouro da humanidade: eles são a nossa sabedoria. Mesmo que não falem, e se não tem um sentido, todavia são o símbolo da sabedoria humana. São aqueles que nos precederam e nos deixaram tantas coisas boas, tantas recordações, tanta sabedoria. Por favor, não isoleis os idosos, não apresseis a morte dos idosos. Acariciar um idoso tem a mesma esperança que acariciar uma criança, pois o início e o fim da vida é sempre um mistério, um mistério que deve ser respeitado, acompanhado, cuidado, amado.
Que São José nos ajude a viver o mistério da morte da melhor maneira possível. Para um cristão, a boa morte é uma experiência da misericórdia de Deus, que se aproxima de nós, até naquele último momento da nossa vida. Também na oração da Ave-Maria, pedimos a Nossa Senhora para estar perto de nós “na hora da nossa morte”. Precisamente por esta razão, gostaria de concluir esta catequese rezando juntos a Nossa Senhora pelos moribundos, por quantos estão a viver este momento de passagem por aquela porta obscura, e pelos familiares que estão a viver o luto. Rezemos juntos:
Ave Maria...
Papa Francisco
Catequese na audiência geral 09.02.22
Catequese sobre São José 9. São José, homem que "sonha"
Estimados irmãos e irmãs, bom dia!
Hoje gostaria de me concentrar na figura de São José como homem que sonha. Na Bíblia, como nas culturas dos povos antigos, os sonhos eram considerados um meio pelo qual Deus se revelava (Cf. Gn 20, 3; 28, 12; 31, 11.24; 40, 8; 41, 1-32; Nm 12, 6; 1 Sm 3, 3-10; Dn 2; 4; Job 33, 15.). O sonho simboliza a vida espiritual de cada um de nós, o espaço interior, que cada um é chamado a cultivar e preservar, onde Deus se manifesta e muitas vezes nos fala. Mas devemos também dizer que dentro de cada um não existe apenas a voz de Deus: existem muitas outras vozes. Por exemplo, as vozes dos nossos receios, as vozes das experiências passadas, as vozes das esperanças; e há também a voz do maligno que nos quer enganar e confundir. Por conseguinte, é importante ser capaz de reconhecer a voz de Deus no meio de outras vozes. José demonstra que sabe cultivar o silêncio necessário e, sobretudo, tomar as decisões corretas perante a Palavra que o Senhor lhe dirige interiormente. Hoje, será bom para nós retomarmos os quatro sonhos do Evangelho que o têm como protagonista, para compreender como nos colocarmos perante a revelação de Deus. O Evangelho narra-nos quatro sonhos de José.
No primeiro sonho (cf. Mt 1, 18-25), o anjo ajuda José a resolver o drama que o assola quando soube da gravidez de Maria: «Não temas receber Maria por esposa, pois o que nela foi concebido vem do Espírito Santo. Ela dará à luz um filho, a quem porás o nome de Jesus, porque ele salvará o seu povo dos seus pecados» (vv. 20-21). E a sua resposta foi imediata: «Despertando, José fez como o anjo do Senhor lhe havia mandado» (v. 24). Muitas vezes a vida coloca-nos diante de situações que não compreendemos e que parecem não ter solução. Rezar nesses momentos significa deixar que o Senhor nos indique o que é justo fazer. Na verdade, muitas vezes é a oração que nos dá a intuição da saída, como resolver aquela situação. Caros irmãos e irmãs, o Senhor nunca permite que um problema surja sem nos conceder também a ajuda necessária para o enfrentar. Não nos lança sozinhos na fornalha. Não nos lança no meio das feras. Não. O Senhor quando nos mostra um problema ou revela um problema, dá-nos sempre a intuição, a ajuda, a sua presença, para sairmos dele, para o resolver.
O segundo sonho revelador de José chega quando a vida do menino Jesus está em perigo. A mensagem é clara: «Levanta-te, toma o menino e sua mãe e vai para o Egito; fica lá até que eu te avise, porque Herodes vai procurar o menino para o matar» (Mt 2, 13). José obedeceu sem hesitação: «Levantou-se durante a noite, tomou o menino e a sua mãe e partiu para o Egito. Ali permaneceu até à morte de Herodes» (vv. 14-15). Na vida, todos nós experimentamos perigos que ameaçam a nossa existência ou a daqueles que amamos. Nestas situações, rezar significa ouvir a voz que nos pode dar a mesma coragem de José, para enfrentar as dificuldades sem sucumbir.
No Egito, José espera um sinal de Deus para poder regressar a casa, e este é o conteúdo do terceiro sonho. O anjo revela-lhe que aqueles que queriam matar o menino morreram e ordena-lhe que parta com Maria e Jesus e regresse à pátria (cf. Mt 2, 19-20). José «levantou-se, tomou o menino e a sua mãe e foi para a terra de Israel» (v. 21). Mas precisamente na viagem de regresso, «ao ouvir que Arquelau reinava na Judeia, no lugar de seu pai Herodes, não ousou ir para lá» (v. 22). Eis então a quarta revelação: «Advertido em sonhos, retirou-se para a região da Galileia e foi morar numa cidade chamada Nazaré» (vv. 22-23). O medo também faz parte da vida e precisa da nossa oração. Deus não nos promete que nunca teremos medo, mas que, com a sua ajuda, este não será o critério para as nossas decisões. José experimenta o medo, mas Deus guia-o através dele. O poder da oração ilumina as situações de escuridão.
Penso neste momento em tantas pessoas que estão esmagadas pelo peso da vida e já não conseguem ter esperança nem rezar. Que São José as ajude a abrir-se ao diálogo com Deus, para encontrar luz, força e paz. E penso também nos pais diante dos problemas dos filhos. Filhos com muitas doenças, filhos doentes, inclusive com enfermidades permanentes: quanto sofrimento nisto. Pais que veem orientações sexuais diferentes nos filhos; como gerir isto e acompanhar os filhos e não se esconder numa atitude condenatória. Pais que veem os filhos que vão embora, morrem, por causa de uma doença e também – é mais triste, lemos todos os dias nos jornais – jovens que fazem leviandades e acabam num acidente de carro. Os pais que veem os filhos que não rendem na escola e não sabem o que fazer… Muitos problemas dos pais. Pensemos em como os ajudar. E a estes pais, digo: não vos assusteis. Sim, há o sofrimento. Muito. Mas pensai como José resolveu os problemas e pedi a José que vos ajude. Nunca condeneis um filho. Sinto tanta ternura – também em Buenos Aires – quando ia de autocarro e passava diante da prisão: havia uma fila de pessoas que esperavam para entrar e visitar os encarcerados. E estavam ali as mães, faziam-me sentir tanta ternura: face ao problema de um filho que errou, foi preso, não o deixavam sozinho, encaravam o problema e acompanhavam-no. Esta coragem; coragem de pai e de mãe que acompanham os filhos sempre, sempre. Peçamos ao Senhor que conceda a todos os pais e a todas as mães esta coragem que deu a José. E depois rezar a fim de que o Senhor nos ajude nestes momentos.
A oração, no entanto, nunca é um gesto abstrato nem intimista, como querem fazer aqueles movimentos espirituais mais gnósticos do que cristãos. Não, não é isto. A oração está sempre indissociavelmente ligada à caridade. Só quando unimos a oração com o amor, o amor pelos filhos, como o caso que acabei de mencionar, ou o amor ao próximo, somos capazes de compreender as mensagens do Senhor. José rezava, trabalhava e amava – três ações boas para os pais: rezar, trabalhar e amar – e por isso recebeu sempre o necessário para enfrentar as provações da vida. Confiemo-nos a ele e à sua intercessão.
São José, vós sois o homem que sonha,
ensinai-nos a recuperar a vida espiritual
como o lugar interior onde Deus se manifesta e nos salva.
Retirai de nós o pensamento de que rezar é inútil;
ajudai cada um de nós a corresponder ao que o Senhor nos indica.
Que o nosso raciocínio seja irradiado pela luz do Espírito,
o nosso coração encorajado pela Sua força
e os nossos receios salvos pela Sua misericórdia. Amém.
Papa Francisco
Catequese na audiência geral 26.01.22
Catequese sobre São José 8. São José pai na ternura
Hoje gostaria de aprofundar a figura de São José como pai na ternura.
Na Carta Apostólica Patris corde (8 de dezembro de 2020) tive a oportunidade de refletir sobre este aspecto da ternura, um aspecto da personalidade de São José. De fato, embora os Evangelhos não nos deem quaisquer detalhes sobre como ele exerceu a sua paternidade, podemos estar certos de que o seu ser um homem “justo” também se verificou na educação que deu a Jesus. «José via Jesus crescer “em sabedoria, em estatura e em graça, diante de Deus e dos homens” (Lc 2, 52): assim diz o Evangelho. Como o Senhor fez com Israel, assim ele ensinou Jesus a andar segurando-O pela mão: era para Ele como o pai que levanta o filho contra o seu rosto, inclinava-se para Ele a fim de Lhe dar de comer (cf. Os 11, 3-4)» (Patris corde, 2). É bonita esta definição da Bíblia que mostra a relação de Deus com o povo de Israel. E pensamos que tenha sido a mesma relação de São José com Jesus.
Os Evangelhos atestam que Jesus sempre usou a palavra “pai” para falar de Deus e do seu amor. Muitas parábolas têm como protagonista a figura de um pai (cf. Mt 15, 13; 21, 28-30; 22, 2; Lc 15, 11-32; Jo 5, 19-23; 6, 32-40; 14, 2; 15, 1.8). Uma das mais famosas é certamente a do Pai misericordioso, narrada pelo evangelista Lucas (cf. 15, 11-32). Esta parábola sublinha não só a experiência do pecado e do perdão, mas também a forma como o perdão chega à pessoa que errou. O texto diz: «Estava ainda longe, quando o seu pai o viu e, movido de compaixão, foi ao encontro dele, abraçou-o e beijou-o» (v. 20). O filho esperava um castigo, uma justiça que no máximo lhe poderia ter dado o lugar de um dos servos, mas encontra-se envolto no abraço do seu pai. A ternura é algo maior do que a lógica do mundo. É uma forma inesperada de fazer justiça. É por isso que nunca devemos esquecer que Deus não se assusta com os nossos pecados: convençamo-nos bem disto. Deus não se assusta com os nossos pecados, é maior do que os nossos pecados: é pai, é amor, é terno. Não se assusta com os nossos pecados, com os nossos erros, as nossas quedas, mas assusta-se com o fechamento do nosso coração – isto sim, fá-lo sofrer – assusta-se com a nossa falta de fé no seu amor. Há uma grande ternura na experiência do amor de Deus. E é bom pensar que a primeira pessoa que transmitiu esta realidade a Jesus foi precisamente José. Pois as coisas de Deus vêm sempre até nós através da mediação de experiências humanas. Há algum tempo – não sei se já contei isto – um grupo de jovens que fazem teatro, um grupo de jovens pop, “modernos”, ficaram impressionados com esta parábola do pai misericordioso e decidiram fazer uma peça de teatro pop com este tema, com esta história. E fizeram-na bem. E, no final, o tema principal é que um amigo ouve o filho que se afastou do pai, que queria voltar para casa, mas tinha medo que o pai o expulsasse e castigasse. E o amigo diz-lhe, naquela ópera pop: “Manda um mensageiro e diz que queres voltar para casa, e se o pai aceitar receber-te que ponha um lenço na janela, naquela que verás quando chegares à reta final”. Assim foi feito. E a ópera, com cantos e danças, continua até ao momento em que o filho inicia o caminho final e vê a casa. E quando olha para cima, vê a casa cheia de lenços brancos: cheia. Não um, mas três ou quatro para cada janela. Esta é a misericórdia de Deus. Ele não se assusta com o nosso passado, com os nossos aspetos negativos: assusta-se apenas com o fechamento. Todos temos contas a acertar; mas acertar as contas com Deus é belíssimo, porque começamos a falar e Ele abraça-nos. A ternura!
Assim, podemos perguntar-nos se experimentámos esta ternura, e se, por nossa vez, nos tornámos suas testemunhas. Pois a ternura não é sobretudo uma questão emocional ou sentimental: é a experiência de nos sentirmos amados e acolhidos precisamente na nossa pobreza e miséria, e, por conseguinte, transformados pelo amor de Deus.
Deus não conta apenas com os nossos talentos, mas também com a nossa fraqueza redimida. Isto, por exemplo, faz São Paulo dizer que há um desígnio sobre a sua fragilidade. De facto, escreveu à comunidade de Corinto: «Para que não me enchesse de orgulho, foi-me dado um espinho na carne, um anjo de Satanás, para me ferir, a fim de que não me orgulhasse. A esse respeito, três vezes pedi ao Senhor que o afastasse de mim. Mas Ele respondeu-me: “Basta-te a minha graça, porque a força manifesta-se na fraqueza”» (2 Cor 12, 7-9). O Senhor não nos tira todas as fragilidades, mas ajuda-nos a caminhar com as fragilidades, pegando-nos pela mão. Pega pela mão as nossas fragilidades e põe-se perto de nós. Isto é ternura. A experiência da ternura consiste em ver o poder de Deus passar precisamente por aquilo que nos torna mais frágeis; mas sob condição de nos convertermos do olhar do Maligno que nos faz «olhar para a nossa fragilidade com um juízo negativo, ao passo que o Espírito trá-la à luz com ternura» (Patris corde, 2). «A ternura é a melhor forma para tocar o que há de frágil em nós. [...] Observai como as enfermeiras, os enfermeiros, tocam as feridas dos doentes: com ternura, para não os ferir mais. E assim o Senhor toca as nossas feridas, com a mesma ternura. Por isso, é importante encontrar a Misericórdia de Deus, especialmente no sacramento da Reconciliação, - na oração pessoal com Deus, fazendo uma experiência de verdade e ternura. Paradoxalmente, também o Maligno pode dizer-nos a verdade: ele é mentiroso, mas arranja-se para nos dizer a verdade a fim de nos levar à mentira; mas, se o faz, é para nos condenar. Ao contrário, o Senhor diz-nos a verdade e estende-nos a mão para nos salvar. Entretanto nós sabemos que a Verdade vinda de Deus não nos condena, mas acolhe-nos, abraça-nos, ampara-nos, perdoa-nos» (cf. Patris corde, 2). Deus perdoa sempre: ponde isto na cabeça e no coração. Deus perdoa sempre. Somos nós que nos cansamos de pedir perdão. Mas ele perdoa sempre, inclusive as coisas mais terríveis.
Faz-nos bem, então, espelharmo-nos na paternidade de José que é um espelho da paternidade de Deus, e perguntarmo-nos se permitimos que o Senhor nos ame com a sua ternura, transformando cada um de nós em homens e mulheres capazes de amar desta forma. Sem esta “revolução da ternura” – é necessária uma revolução da ternura! – corremos o risco de permanecer presos numa justiça que não nos permite erguer-nos facilmente e que confunde redenção com castigo. Por esta razão, hoje desejo recordar de um modo especial os nossos irmãos e irmãs que estão na prisão. É justo que quem erra pague pelo próprio erro, mas é também justo que aqueles que erraram possam redimir-se do seu erro. Não podem haver condenações sem janelas de esperança. Qualquer condenação tem sempre uma janela de esperança. Pensemos nos nossos irmãos e irmãs encarcerados, e pensemos na ternura de Deus por eles e rezemos por eles, para que encontrem naquela janela de esperança um caminho de saída rumo a uma vida melhor.
E concluamos com esta oração:
São José, pai na ternura,
ensinai-nos a aceitar que somos amados precisamente naquilo que é mais débil em nós.
Concedei que não coloquemos qualquer obstáculo
entre a nossa pobreza e a grandeza do amor de Deus.
Suscitai em nós o desejo de nos aproximarmos do Sacramento da Reconciliação,
para que possamos ser perdoados e também que nos tornemos capazes de amar com ternura os nossos irmãos e irmãs na sua pobreza.
Estai próximo daqueles que erraram e que pagam o preço por isso;
ajudai-os a encontrar, juntamente com a justiça, a ternura para recomeçar.
E ensinai-lhes que a primeira maneira de recomeçar
é pedir sinceramente perdão, para sentir a carícia do Pai.
Papa Francisco
Catequese na audiência geral 19.01.22
Catequese sobre São José 7. São José o carpinteiro
Os evangelistas Mateus e Marcos, definem José como “carpinteiro” ou “marceneiro”. Escutámos anteriormente que o povo de Nazaré, ao ouvir Jesus falar, perguntava-se: «Não é este o filho do carpinteiro?» (13, 55; cf. Mc 6, 3). Jesus praticou o ofício do pai.
O termo grego tekton, utilizado para indicar o trabalho de José, foi traduzido de várias maneiras. Os Padres latinos da Igreja traduziram-no como “carpinteiro”. Mas tenhamos presente que na Palestina do tempo de Jesus, a madeira era utilizada não só para fazer arados e móveis vários, mas também para construir casas, que tinham armações de madeira e telhados em terraços feitos de vigas ligadas entre si com ramos e terra.
Portanto, “carpinteiro” ou “marceneiro” era uma qualificação genérica, indicando tanto os artesãos da madeira como os trabalhadores que se ocupavam de atividades relacionadas com a construção. Um ofício bastante duro, tendo que trabalhar com materiais pesados como a madeira, a pedra e o ferro. Sob o ponto de vista económico, não garantia grandes ganhos, como se pode deduzir do facto de Maria e José, quando apresentaram Jesus no Templo, terem oferecido apenas um casal de rolas ou de pombas (cf. Lc 2, 24), como a Lei prescrevia para os pobres (cf. Lv 12, 8).
Assim, o adolescente Jesus aprendeu esta profissão com o pai. Portanto, quando, adulto, começou a pregar, os seus concidadãos, surpreendidos, perguntavam-se: «De onde Lhe vem esta sabedoria e o poder de fazer milagres?» (Mt 13, 54), e escandalizavam-se com Ele (cf. v. 57), pois era o filho do carpinteiro, mas falava como um doutor da lei, e escandalizavam-se com isto.
Este dado biográfico sobre José e Jesus faz-me pensar em todos os trabalhadores do mundo, especialmente naqueles que trabalham arduamente em minas e em certas fábricas; naqueles que são explorados através do trabalho não declarado; nas vítimas do trabalho – vimos que ultimamente na Itália houve muitas – nas crianças que são obrigadas a trabalhar e naquelas que vasculham as lixeiras em busca de algo útil para baratear... Permito-me repetir o que disse: os trabalhadores escondidos, os trabalhadores que fazem trabalho pesado nas minas e em certas fábricas: pensemos neles. Naqueles que são explorados pelo trabalho clandestino, naqueles que contrabandeiam salários, às escondidas, sem reforma, sem nada. E se não trabalhas, tu, não tens segurança alguma. Há muito trabalho não declarado hoje em dia. Pensemos nas vítimas do trabalho, dos acidentes de trabalho; nas crianças que são obrigadas a trabalhar: isto é terrível! As crianças na idade de brincar devem brincar, mas em vez disso são forçadas a trabalhar como os adultos. Pensemos nas pobres crianças que vasculham as lixeiras à procura de algo que se possa baratear. Todos estes são nossos irmãos e irmãs, que ganham a vida desta forma, com trabalhos que não reconhecem a sua dignidade! Pensemos nisto. E isto está a acontecer hoje, no mundo, isto está a acontecer hoje! Mas também penso naqueles que estão desempregados: quantas pessoas vão bater às portas das fábricas, das empresas: “Mas, há alguma coisa a fazer?” – “Não, não há, não há...”. A falta de trabalho! E penso também naqueles que se sentem feridos na própria dignidade porque não conseguem encontrar um emprego. Voltam para casa: “Encontraste alguma coisa?” – “Não, nada... Passei na Cáritas e trouxe o pão”. O que dá dignidade não é levar o pão para casa. Podes recebê-lo na Cáritas: não, isto não dá dignidade. O que dá dignidade é ganhar o pão, e se não dermos ao nosso povo, aos nossos homens e mulheres, a capacidade de ganhar o pão, é uma injustiça social naquele lugar, naquela nação, naquele continente. Os governantes devem dar a todos a possibilidade de ganhar o pão, porque este ganho lhes dá dignidade. O trabalho é uma unção de dignidade, e isto é importante. Muitos jovens, muitos pais e mães vivem o drama de não ter um emprego que lhes permita viver serenamente, vivem um dia de cada vez. E muitas vezes a procura de uma ocupação torna-se tão dramática que são levados ao ponto de perderem toda a esperança e desejo de viver. Nestes tempos de pandemia, muitas pessoas perderam os empregos – sabemos isto – e algumas, esmagadas por um fardo insuportável, chegaram ao ponto de cometer suicídio. Gostaria hoje de lembrar cada um deles e as suas famílias. Façamos um momento de silêncio para recordar aqueles homens e mulheres desesperados porque não conseguem encontrar trabalho.
Não se tem suficientemente em conta o facto de o trabalho ser uma componente essencial da vida humana, e também do caminho da santificação. O trabalho não é apenas um meio de ganhar a vida: é também um lugar onde nos expressamos, nos sentimos úteis e aprendemos a grande lição da realidade, o que ajuda a vida espiritual a não se tornar espiritualismo. Infelizmente, porém, o trabalho com frequência é refém da injustiça social e, em vez de ser um meio de humanização, torna-se uma periferia existencial. Muitas vezes pergunto-me: com que espírito fazemos o nosso trabalho diário? Como lidamos com a fadiga? Vemos a nossa atividade ligada apenas ao nosso destino ou também ao destino dos outros? Com efeito, o trabalho é um modo de expressar a nossa personalidade, que é relacional por natureza. O trabalho é inclusive um modo para exprimir a nossa criatividade: cada um desempenha o trabalho à sua maneira, com o próprio estilo; o mesmo trabalho mas com estilo diverso.
É bom pensar que o próprio Jesus trabalhou e aprendeu esta arte com São José. Hoje devemos perguntar-nos o que podemos fazer para recuperar o valor do trabalho; e que contribuição podemos, como Igreja, oferecer para que ele possa ser resgatado da lógica do mero lucro e possa ser experimentado como direito e dever fundamental da pessoa, que exprime e incrementa a sua dignidade.
Estimados irmãos e irmãs, por tudo isto gostaria hoje de recitar convosco a oração que São Paulo VI elevou a São José a 1 de maio de 1969:
Ó São José,
Padroeiro da Igreja
vós que, ao lado do Verbo encarnado
trabalhastes todos os dias para ganhar o pão
tirando d’Ele a força para viver e labutar;
vós que experimentastes a ansiedade do amanhã,
a amargura da pobreza, a precariedade do trabalho:
vós que irradiais hoje, o exemplo da vossa figura,
humilde perante os homens
mas grandíssima diante de Deus,
protegei os trabalhadores na sua dura existência quotidiana,
defendendo-os do desânimo
da revolta negadora,
bem como das tentações do hedonismo;
e preservai a paz no mundo,
aquela paz que, por si só, pode garantir o desenvolvimento dos povos. Amém.
Papa Francisco
Catequese na audiência geral 12.01.22
Catequese sobre São José 6. São José, o pai adotivo de Jesus
Estimados irmãos e irmãs, bom dia!
Hoje meditaremos sobre São José como pai de Jesus. Os Evangelistas Mateus e Lucas, apresentam-no como o pai adotivo de Jesus e não como pai biológico. Mateus especifica-o, evitando a fórmula “gerou”, utilizada na genealogia para todos os antepassados de Jesus; mas define-o como «esposo de Maria, da qual nasceu Jesus, chamado o Cristo» (1, 16). Enquanto Lucas afirma isto, dizendo que era pai de Jesus «como se supunha» (3, 23), isto é, aparecia como pai.
A fim de compreender a paternidade putativa ou legal de José, é necessário ter em mente que em tempos antigos no Oriente a instituição da adoção era muito comum, mais do que é hoje. Pensemos no caso comum em Israel do “levirato”, formulado da seguinte maneira no Deuteronômio: «Se os irmãos residirem juntos, e um deles morrer sem deixar filhos, a viúva não poderá casar com um estranho; o seu cunhado é que se juntará a ela e a tomará como mulher, observando o costume do levirato. E o primeiro filho que ela tiver usará o nome do irmão morto, a fim de que esse nome não se extinga em Israel» (25, 5-6). Por outras palavras, o pai desta criança é o cunhado, mas o pai legal continua a ser o falecido, que dá ao recém-nascido todos os direitos hereditários. O objetivo desta lei era duplo: assegurar a descendência do falecido e a preservação do património.
Como pai oficial de Jesus, José exerce o direito de impor o nome ao filho, reconhecendo-o juridicamente. Juridicamente é o pai, mas não generativamente, não o gerou.
Antigamente o nome era o compêndio da identidade de uma pessoa. Mudar o nome significava mudar a si mesmo, como no caso de Abrão, cujo nome Deus mudou para “Abraão”, que significa “pai de muitos”, pois, diz o Livro do Génesis, «farei de ti o pai de inúmeros povos» (17, 5). O mesmo vale para Jacob, que é chamado “Israel”, que significa “aquele que luta com Deus”, porque lutou com Deus para o forçar a conceder-lhe a bênção (cf. Gn 32, 29; 35, 10).
Mas, sobretudo, dar o nome a alguém ou a algo significava afirmar a própria autoridade sobre o que era denominado, como fez Adão quando conferiu um nome a todos os animais (cf. Gn 2, 19-20).
José já sabe que para o filho de Maria havia um nome estabelecido por Deus – o nome de Jesus é dado pelo seu verdadeiro pai, Deus – o nome “Jesus”, que significa “O Senhor salva”, como o Anjo lhe explicou: «Porque ele salvará o povo dos seus pecados» (Mt 1, 21). Este aspecto particular da figura de José permite-nos hoje refletir sobre a paternidade e a maternidade. E acho que isto é muito importante: pensar na paternidade, hoje. Pois vivemos numa época de notável orfandade. É curioso: a nossa civilização é um pouco órfã, e sente-se esta orfandade. Ajude-nos a figura de São José a entender como se resolve o sentido de orfandade que hoje nos faz tanto mal.
Não é suficiente pôr um filho no mundo para dizer que também somos pais ou mães. «Não se nasce pai, torna-se tal... E não se torna pai, apenas porque se colocou no mundo um filho, mas porque se cuida responsavelmente dele. Sempre que alguém assume a responsabilidade pela vida de outrem, em certo sentido exerce a paternidade a seu respeito» (Carta ap. Patris corde). Penso, em particular, em todos aqueles que se abrem a acolher a vida através da adoção, que é uma atitude tão generosa e positiva. José mostra-nos que este tipo de vínculo não é secundário, não é uma alternativa. Este tipo de escolha está entre as formas mais elevadas de amor e de paternidade e maternidade. Quantas crianças no mundo estão à espera de alguém que cuide delas! E quantos cônjuges desejam ser pais e mães, mas não o conseguem por razões biológicas; ou, embora já tenham filhos, querem partilhar o afeto familiar com quantos não o têm. Não devemos ter medo de escolher o caminho da adoção, de assumir o “risco” do acolhimento. E hoje, também, com a orfandade, existe um determinado egoísmo. Há dias, falei sobre o inverno demográfico que há atualmente: as pessoas não querem ter filhos, ou apenas um e nada mais. E muitos casais não têm filhos porque não querem, ou têm só um porque não querem outros, mas têm dois cães, dois gatos… Pois é, cães e gatos ocupam o lugar dos filhos. Sim, faz rir, entendo, mas é a realidade. E esta negação da paternidade e da maternidade diminui-nos, cancela a nossa humanidade. E assim a civilização torna-se mais velha e sem humanidade, porque se perde a riqueza da paternidade e da maternidade. E a Pátria que não tem filhos sofre e – como dizia alguém um pouco humoristicamente – “e agora quem pagará os impostos para a minha reforma, que não há filhos? Quem se ocupará de mim?”: ria, mas é a verdade. Peço a São José a graça de despertar as consciências e pensar nisto: em ter filhos. A paternidade e a maternidade são a plenitude da vida de uma pessoa. Pensai nisto. É verdade, existe a paternidade espiritual e a maternidade espiritual para quem se consagra a Deus; mas quem vive no mundo e se casa, deve pensar em ter filhos, em dar a vida, pois serão eles que lhes fecharão os olhos, que pensarão no seu futuro. E também, se não podeis ter filhos, pensai na adoção. É um risco, sim: ter um filho é sempre um risco, quer natural quer adotivo. Mas pior é não os ter, é negar a paternidade, negar a maternidade, tanto a real como a espiritual. A um homem e a uma mulher que voluntariamente não desenvolvem o sentido da paternidade e da maternidade, falta algo principal, importante. Pensai nisto, por favor. Espero que as instituições estejam sempre prontas a ajudar neste sentido da adoção, controlando seriamente, mas também simplificando o procedimento necessário para que se realize o sonho de tantos pequeninos que precisam de uma família, e de tantos cônjuges que desejam entregar-se com amor. Há tempos ouvi um testemunho de uma pessoa, um médico – importante a sua profissão – não tinha filhos e com a esposa decidiram adotar uma criança. E quando chegou o momento, ofereceram-lhes uma e disseram: “Mas não sabemos como será a saúde dela. Talvez possa ter alguma doença”. E ele – tinha-o visto – respondeu: “Se o senhor me tivesse perguntado isto antes de entrar, talvez teria dito não. Mas vi-o: aceito-a”. Esta é a vontade de ser pai, de ser mãe também na adoção. Não tenhais medo disto.
Rezo para que ninguém se sinta sem um vínculo de amor paterno. E quantos estão doentes de orfandade continuem em frente sem este sentimento tão negativo. Possa São José exercer a sua proteção e a sua ajuda sobre os órfãos; e que interceda pelos casais que desejam ter um filho. Por isto, rezemos juntos:
São José,
vós que amastes Jesus com amor de pai,
estai próximo das muitas crianças que não têm família
e que desejam um pai e uma mãe.
Apoiai os cônjuges que não podem ter filhos,
Ajudai-os a descobrir, através deste sofrimento, um projeto maior.
Fazei com que a ninguém falte uma casa, um relacionamento,
uma pessoa que se ocupe dele ou dela;
e curai o egoísmo daqueles que se fecham à vida,
para que possam abrir o coração ao amor. Amém.
Papa Francisco,
Catequese na audiência geral 05.01.22
SANTA MISSA DA SOLENIDADE DA EPIFANIA DO SENHOR
HOMILIA DO PAPA FRANCISCO
Basílica de São Pedro
Quinta-feira, 6 de janeiro de 2022
Os Magos estão de viagem para Belém. E a sua peregrinação interpela-nos também a nós, chamados a caminhar para Jesus, porque é Ele a estrela polar que ilumina os céus da vida e orienta os passos para a verdadeira alegria. Mas, qual foi o ponto de partida da peregrinação dos Magos ao encontro de Jesus? O que é que levou estes homens do Oriente a porem-se em viagem?
Tinham ótimas desculpas para não partir: eram sábios e astrólogos, tinham fama e riqueza; de posse duma tal segurança cultural, social e económica, podiam acomodar-se no que tinham e sabiam, deixando-se estar tranquilos. Mas não; deixam-se inquietar por uma pergunta e um sinal: «Onde está Aquele que nasceu? Vimos despontar a sua estrela» (Mt 2, 2). O seu coração não se deixa amortecer na choça da apatia, mas está sedento de luz; não se arrasta pesadamente na preguiça, mas está abrasado pela nostalgia de novos horizontes. Os seus olhos não estão voltados para a terra, mas são janelas abertas para o céu. Como afirmou Bento XVI, eram «pessoas de coração inquieto (...); homens à espera, que não se contentavam com seus rendimentos assegurados e com uma posição social (...); eram indagadores de Deus» (Homilia, 06/I/2013).
Mas esta saudável inquietação, que os levou a peregrinar, donde nasce? Nasce do desejo. Eis o seu segredo interior: saber desejar. Meditemos nisto. Desejar significa manter vivo o fogo que arde dentro de nós e nos impele a buscar mais além do imediato, mais além das coisas visíveis. Desejar é acolher a vida como um mistério que nos ultrapassa, como uma friesta sempre aberta que nos convida a olhar mais além, porque a vida não é «toda aqui», é também «noutro lugar». É como uma tela em branco que precisa de ser colorida. Um grande pintor, Van Gogh, escreveu que a necessidade de Deus o impelia a sair de noite para pintar as estrelas (cf. Carta a Theo, 09/V/1889). Isto deve-se ao facto de Deus nos ter feito assim: empapados de desejo; orientados, como os Magos, para as estrelas. Podemos dizer, sem exagerar, que nós somos aquilo que desejamos. Porque são os desejos que ampliam o nosso olhar e impelem a vida mais além: além das barreiras do hábito, além duma vida limitada ao consumo, além duma fé repetitiva e cansada, além do medo de arriscar, de nos empenharmos pelos outros e pelo bem. «A nossa vida – dizia Santo Agostinho – é uma ginástica do desejo» (Tratados sobre a primeira Carta de João, IV, 6).
Irmãos e irmãs, como no caso dos Magos, também a nossa viagem da vida e o nosso caminho da fé têm necessidade de desejo, de impulso interior. Às vezes vivemos um espírito de «parque de estacionamento», vivemos estacionados, sem este ímpeto do desejo que nos impele para diante. Será bom perguntar-nos: a que ponto estamos nós na viagem da fé? Não estaremos já há bastante tempo bloqueados, estacionados numa religião convencional, exterior, formal, que deixou de aquecer o coração e já não muda a vida? As nossas palavras e ritos despertam no coração das pessoas o desejo de caminhar ao encontro de Deus ou são «língua morta», que fala apenas de si mesma e a si mesma? É triste quando uma comunidade de crentes já não tem desejos, arrastando-se, cansada, na gestão das coisas, em vez de se deixar levar por Jesus, pela alegria explosiva e desinquietadora do Evangelho. É triste quando um sacerdote fechou a porta do desejo; é triste cair no funcionarismo clerical! É muito triste...
Na nossa vida e nas nossas sociedades, a crise da fé tem a ver também com o desaparecimento do desejo de Deus. Tem a ver com a sonolência do espírito, com o hábito de nos contentarmos em viver o dia a dia, sem nos interrogarmos acerca daquilo que Deus quer de nós. Debruçamo-nos demasiado sobre os mapas da terra, e esquecemo-nos de erguer o olhar para o céu; estamos empanturrados com muitas coisas, mas desprovidos da nostalgia do que nos falta. Nostalgia de Deus. Fixamo-nos nas necessidades, no que havemos de comer e vestir (cf. Mt 6, 25), deixando dissipar-se o anseio por aquilo que o ultrapassa. E deparamo-nos com a bulimia de comunidades que têm tudo e muitas vezes já nada sentem no coração. Pessoas fechadas, comunidades fechadas, bispos fechados, padres fechados, consagrados fechados. Porque a falta de desejo leva à tristeza, à indiferença. Comunidades tristes, padres tristes, bispos tristes.
Com os olhos pousados sobretudo em nós mesmos, perguntemo-nos: como está a viagem da minha fé? É uma pergunta que hoje nos podemos colocar, cada um de nós. Como está a viagem da minha fé? Está estacionada ou está em caminho? A fé, para partir uma vez e outra, precisa de ser deflagrada pelo detonador do desejo, de colocar-se em jogo na aventura duma relação sentida e vivaz com Deus. Mas o meu coração vive ainda animado pelo desejo de Deus? Ou deixo que o hábito e as deceções o apaguem? Hoje, irmãos e irmãs, é o dia bom para nos colocarmos estas perguntas. Hoje é o dia bom para voltar a alimentar o desejo. E como fazer? Vamos à «escola de desejo», vamos ter com os Magos. Ensinar-nos-ão, na sua escola do desejo. Fixemos os passos que dão e tiremos algumas lições.
Em primeiro lugar, partem quando aparece a estrela: ensinam-nos que é preciso voltar a partir sempre cada dia, tanto na vida como na fé, porque a fé não é uma armadura que imobiliza, mas uma viagem fascinante, um movimento contínuo e desinquietador, sempre à procura de Deus, sempre com o discernimento, naquele caminho.
Depois, os Magos em Jerusalém perguntam: perguntam onde está o Menino. Ensinam-nos que precisamos de interrogativos, de ouvir com atenção as perguntas do coração, da consciência; porque frequentemente é assim que fala Deus, que Se nos dirige mais com perguntas do que com respostas. Devemos aprender bem isto: Deus dirige-Se a nós mais com perguntas do que com respostas. Mas deixemo-nos desinquietar pelos interrogativos das crianças, pelas dúvidas, as esperanças e os desejos das pessoas do nosso tempo. A estrada é deixar-se questionar.
Além disso os Magos desafiam Herodes. Ensinam-nos que temos necessidade duma fé corajosa, que não tenha medo de desafiar as lógicas obscuras do poder, tornando-se semente de justiça e fraternidade numa sociedade onde, ainda hoje, muitos “herodes” semeiam morte e massacram pobres e inocentes, na indiferença da multidão.
Por fim, os Magos regressam «por outro caminho» (Mt 2, 12): provocam-nos a percorrer estradas novas. É a criatividade do Espírito, que faz sempre coisas novas. É também, neste momento, uma das tarefas do Sínodo que nós estamos a realizar: caminhar numa escuta conjunta, para que o Espírito nos sugira caminhos novos, estradas para levar o Evangelho ao coração de quem é indiferente, vive alheado, de quem perdeu a esperança mas procura aquilo que sentiram os Magos: uma «imensa alegria» (Mt 2, 10). Sair para mais além, caminhar para a frente.
No ponto culminante da viagem dos Magos, porém, há um momento crucial: tendo chegado ao destino, viram o Menino e «prostrando-se adoraram-No» (2, 11). Adoram. Lembremo-nos disto: a viagem da fé só encontra ímpeto e cumprimento na presença de Deus. Só se recuperarmos o gosto da adoração é que se renova o desejo. O desejo leva-te à adoração e a adoração renova em ti o desejo. Porque o desejo de Deus cresce apenas permanecendo diante de Deus. Porque só Jesus cura os desejos. De quê? Cura-os da ditadura das necessidades. Com efeito, o coração adoece quando os desejos coincidem apenas com as necessidades; ao passo que Deus eleva os desejos e purifica-os; cura-os, sanando-os do egoísmo e abrindo-nos ao amor por Ele e pelos irmãos. Por isso, não esqueçamos a Adoração, a oração de adoração que é pouco comum entre nós: adorar, em silêncio. Por isso não esqueçamos a adoração, por favor.
E procedendo assim, cada dia, como os Magos, teremos a certeza de que, mesmo nas noites mais escuras, brilha uma estrela. É a estrela do Senhor, que vem cuidar da nossa frágil humanidade. Ponhamo-nos a caminho rumo a Ele. Não demos à apatia e à resignação a força de nos cravar na tristeza duma vida medíocre. Abramo-nos à inquietude do Espírito, corações inquietos. O mundo espera dos crentes um renovado ímpeto para o Céu. Como os Magos, levantemos a cabeça, ouçamos o desejo do coração, sigamos a estrela que Deus faz brilhar sobre nós. E como indagadores inquietos, permaneçamos abertos às surpresas de Deus. Irmãos e irmãs, sonhemos, procuremos, adoremos.
foto: site do Vaticano 06.01.22
Catequese sobre São José 5. São José, migrante perseguido e corajoso
Hoje gostaria de vos apresentar São José como um migrante perseguido e corajoso. Assim o descreve o Evangelista Mateus. Esta particular vicissitude da vida de Jesus, que vê como protagonistas também José e Maria, é tradicionalmente conhecida como “a fuga para o Egito” (cf. Mt 2, 13-23). A família de Nazaré sofreu tal humilhação e experimentou em primeira pessoa a precariedade, o medo e a dor de ter que deixar a sua terra. Ainda hoje muitos dos nossos irmãos e irmãs são obrigados a viver a mesma injustiça e sofrimento. A causa é quase sempre a prepotência e a violência dos poderosos. Isto aconteceu também com Jesus.
Através dos Magos, o rei Herodes toma conhecimento do nascimento do “rei dos Judeus”, e a notícia perturba-o. Sente-se inseguro, sente-se ameaçado no seu poder. Assim reúne todas as autoridades de Jerusalém para se informar sobre o lugar do nascimento, e pede aos Magos para lho comunicarem com exatidão, a fim de que - diz falsamente - também ele possa ir adorá-lo. No entanto, compreendendo que os Magos tinham partido por outro caminho, concebeu um propósito nefasto: matar todas as crianças de Belém até aos dois anos, pois de acordo com o cálculo dos Magos, tal era a época em que Jesus tinha nascido.
Entretanto, um anjo ordena a José: « Levanta-te, toma o Menino e Sua Mãe, foge para o Egito e fica lá até que eu te avise, pois Herodes procurará o Menino para O matar» (Mt 2, 13). Pensemos em tantas pessoas que hoje sentem esta inspiração dentro: “Fujamos, escapemos, porque aqui é perigoso”. O plano de Herodes evoca o do Faraó, de lançar ao Nilo todos os meninos do povo de Israel (cf. Êx 1, 22). E a fuga para o Egito recorda toda a história de Israel, a partir de Abraão, que também viveu ali (cf. Gn 12, 10), até José, filho de Jacob, vendido pelos irmãos (cf. Gn 37, 36), tornando-se depois “chefe do país” (cf. Gn 41, 37-57); e a Moisés, que libertou o seu povo da escravidão dos egípcios (cf. Êx 1, 18).
A fuga da Sagrada Família para o Egito salva Jesus, mas infelizmente não impede que Herodes leve a cabo o seu massacre. Assim, encontramo-nos diante de duas personalidades opostas: por um lado, Herodes com a sua ferocidade e, por outro, José com o seu esmero e a sua coragem. Herodes quer defender o seu poder, a sua “pele” com uma crueldade impiedosa, como atestam também as execuções de uma das suas esposas, de alguns dos seus filhos e de centenas de adversários. Era um homem cruel, para resolver os problemas só tinha uma receita: “eliminar”. Ele é o símbolo de muitos tiranos de ontem e de hoje. E para eles, para estes tiranos, as pessoas não contam: conta o poder, e quando precisam de espaço de poder, eliminam as pessoas. E isto acontece ainda hoje: não temos que ir à história antiga, acontece hoje. É o homem que se torna “lobo” para os outros homens. A história está cheia de personalidades que, vivendo à mercê dos seus temores, procuram vencê-los, exercendo o poder de forma despótica e praticando gestos de violência desumanos. Mas não devemos pensar que só viveremos na perspectiva de Herodes se nos tornarmos tiranos, não! Na realidade, é uma atitude em que todos nós podemos cair, sempre que procuramos afugentar os nossos medos com a prepotência, ainda que seja apenas verbal ou feita de pequenos abusos cometidos para mortificar quem está ao nosso lado. Também nós temos no coração a possibilidade de ser pequenos Herodes.
José é o oposto de Herodes: em primeiro lugar, é «um homem justo» (Mt 1, 19), enquanto Herodes é um ditador; além disso, demonstra-se corajoso ao cumprir a ordem do Anjo. Podemos imaginar as peripécias que teve de enfrentar durante a longa e perigosa viagem, e as dificuldades que enfrentou durante a permanência num país estrangeiro, com outra língua: inúmeras dificuldades! A sua coragem sobressai também na hora do regresso quando, tranquilizado pelo Anjo, supera os seus compreensíveis receios, estabelecendo-se com Maria e Jesus em Nazaré (cf. Mt 2, 19-23). Herodes e José são dois personagens opostos, que refletem as duas faces da humanidade de sempre. É um lugar-comum errado considerar a coragem como virtude exclusiva do herói. Na realidade, a vida quotidiana de cada pessoa – a tua, a minha, de todos nós – exige coragem: não é possível viver sem a coragem! A coragem para enfrentar as dificuldades de cada dia. Em todos os tempos e culturas encontramos homens e mulheres corajosos que, para ser coerentes com a sua crença, superaram toda a espécie de dificuldades, suportando injustiças, condenações e até a morte. Coragem é sinónimo de fortaleza que, com a justiça, a prudência e a temperança, faz parte do grupo de virtudes humanas chamadas “cardeais”.
A lição que José nos deixa hoje é a seguinte: é verdade, a vida apresenta-nos sempre adversidades, perante as quais podemos sentir-nos também ameaçados, amedrontados, mas não é mostrando o pior de nós, como faz Herodes, que podemos superar certos momentos, mas agindo como José, que reage ao medo com a coragem da confiança na Providência de Deus. Hoje acho que é necessária uma oração por todos os migrantes, por todos os perseguidos, por todos aqueles que são vítimas de circunstâncias adversas: quer sejam circunstâncias políticas, históricas ou pessoais. Mas, pensemos em tantas pessoas vítimas das guerras que querem fugir da sua pátria e não conseguem; pensemos nos migrantes que empreendem este caminho para ser livres e muitos morrem ao longo da estrada ou no mar; pensemos em Jesus nos braços de José e Maria, em fuga, e vejamos n’Ele cada um dos migrantes de hoje. A migração de hoje é uma realidade diante da qual não podemos fechar os olhos. É um escândalo social da humanidade!
São José,
vós que experimentastes o sofrimento de quem deve fugir
vós que fostes obrigado a fugir
para salvar a vida dos entes mais queridos,
amparai todos aqueles que fogem por causa da guerra,
do ódio e da fome.
Ajudai-os nas suas dificuldades,
fortalecei-os na esperança e fazei com que encontrem acolhimento e solidariedade.
Guiai os seus passos e abri o coração de quantos os podem ajudar. Amém!
Papa Francisco
Catequese na audiência geral 29.12.21
Imagem: B. Murillo
Na noite, acende-se uma luz. Aparece um anjo, a glória do Senhor envolve os pastores e finalmente chega o anúncio há séculos esperado: «Hoje (…) nasceu-vos um Salvador, que é o Messias Senhor» (Lc 2, 11). Mas surpreende aquilo que o anjo acrescenta para indicar aos pastores como encontrar Deus que veio à terra. «Isto vos servirá de sinal: encontrareis um menino envolto em panos e deitado numa manjedoura» (2, 12). Eis o sinal: um menino. E é tudo: um menino na tosca pobreza duma manjedoura. Cessam luzes, fulgor, coros de anjos. Só um menino. Nada mais! Como predissera Isaías: «Um menino nasceu para nós» (Is 9, 5).
O Evangelho insiste neste contraste. Narra o nascimento de Jesus, começando por César Augusto, que ordena o recenseamento de toda a terra: mostra o primeiro imperador na sua grandeza. Mas, logo a seguir, leva-nos a Belém, onde, de grande, não há nada: apenas um menino pobre envolto em panos, rodeado por pastores. E ali está Deus, na pequenez. Eis a mensagem: Deus não cavalga a grandeza, mas desce na pequenez. A pequenez é a estrada que escolheu para chegar até nós, tocar-nos o coração, salvar-nos e levar-nos de volta para aquilo que conta.
Irmãos e irmãs, ao parar diante do presépio, fixemo-nos no centro: deixemos para trás luzes e decorações – que são belas – e contemplemos o Menino. Na sua pequenez, está Deus inteiro. Reconheçamo-Lo: «Menino, vós sois Deus, Deus-Menino». Deixemo-nos invadir por este espanto alvoroçado. Aquele que abraça o universo, precisa de ser tomado nos braços. Ele, que fez o sol, tem de ser aquecido. A ternura em pessoa precisa de ser mimada. O amor infinito tem um coração minúsculo, que emite batimentos leves. A Palavra eterna é infante, isto é, incapaz de falar. O Pão da vida tem de ser nutrido. O criador do mundo não tem onde morar. Hoje inverte-se tudo: Deus vem, pequenino, ao mundo. A sua grandeza oferece-se na pequenez.
E nós – perguntemo-nos – sabemos acolher esta estrada de Deus? É o desafio de Natal: Deus revela-Se, mas os homens não O compreendem. Faz-Se pequeno aos olhos do mundo… e nós continuamos a procurar a grandeza segundo o mundo, talvez até em nome d’Ele. Deus abaixa-Se… e nós queremos subir para o pedestal. O Altíssimo indica a humildade… e nós pretendemos sobressair. Deus vai à procura dos pastores, dos invisíveis… nós buscamos visibilidade, fazermo-nos ver. Jesus nasce para servir… e nós passamos os anos atrás do sucesso. Deus não busca força nem poder; pede ternura e pequenez interior.
Eis o que devemos pedir a Jesus no Natal: a graça da pequenez. «Senhor, ensinai-nos a amar a pequenez. Ajudai-nos a compreender que é a estrada para a verdadeira grandeza». Mas que significa, concretamente, acolher a pequenez? Em primeiro lugar, significa acreditar que Deus quer vir às pequenas coisas da nossa vida, quer habitar nas realidades quotidianas, nos gestos simples que realizamos em casa, na família, na escola, no trabalho. É na nossa existência ordinária que Ele quer realizar coisas extraordinárias. Trata-se duma mensagem de grande esperança: Jesus convida-nos a valorizar e redescobrir as pequenas coisas da vida. Se Ele está lá connosco, que nos falta? Então deixemos para trás o lamento por causa da grandeza que não temos. Renunciemos às lamúrias e rostos amuados, à avidez que nos deixa insatisfeitos. A pequenez, a maravilha daquela Criança pequenina: esta é a mensagem.
Mais ainda! Jesus não quer vir só às pequenas coisas da nossa vida, mas também à nossa pequenez: ao nosso sentir-nos fracos, frágeis, inadequados, talvez até errados. Irmã e irmão, se, como em Belém, te circunda a escuridão da noite, se em redor notas uma indiferença fria, se as feridas que trazes dentro te gritam «contas pouco, não vales nada, nunca serás amado como queres», nesta noite – se tu sentes isto – tens a resposta de Deus, que te diz: «Amo-te assim como és. A tua pequenez não Me assusta, as tuas fragilidades não Me preocupam. Fiz-Me pequeno por ti. Para ser o teu Deus, tornei-Me teu irmão. Amado irmão, amada irmã, não tenhas medo de Mim, mas reencontra em Mim a tua grandeza. Estou perto de ti e a única coisa que te peço é isto: confia em Mim e dá-Me guarida no teu coração».
Acolher a pequenez significa mais uma coisa: abraçar Jesus nos pequenos de hoje. Ou seja, amá-Lo nos últimos, servi-Lo nos pobres. São eles os mais parecidos com Jesus, nascido pobre. E é nos pobres que Ele quer ser honrado. Nesta noite de amor, um único medo nos assalte: ferir o amor de Deus, feri-lo desprezando os pobres com a nossa indiferença. São os prediletos de Jesus, que nos hão de acolher um dia no Céu. Uma poetisa escreveu: «Quem não encontrou o Céu cá em baixo, falhá-lo-á lá em cima» (E. Dickinson, Poems, XVII). Não percamos de vista o Céu, cuidemos de Jesus agora, acarinhando-O nos necessitados, porque Se identificou com eles.
Fixando de novo o presépio, vemos que, no seu nascimento, Jesus está rodeado precisamente pelos pequenos, pelos pobres. São os pastores. Eram os mais simples; e foram os que estiveram mais perto do Senhor. Encontraram-No, porque «pernoitavam nos campos, guardando os seus rebanhos durante a noite» (Lc 2, 8). Estavam lá para trabalhar, porque eram pobres e a sua vida não tinha horário, dependia do rebanho. Não podiam viver como e onde queriam, mas regulavam-se de acordo com as exigências das ovelhas que cuidavam. E Jesus nasceu lá próximo deles, perto dos esquecidos das periferias. Vem onde a dignidade do homem é posta à prova. Vem nobilitar os excluídos, revelando-Se primeiramente a eles: não a personalidades cultas e importantes, mas a gente pobre que trabalhava. Nesta noite, Deus vem encher de dignidade a dureza do trabalho. Recorda-nos como é importante dar dignidade ao homem com o trabalho, mas também dar dignidade ao trabalho do homem, porque o homem é senhor e não escravo do trabalho. No dia da Vida, repitamos: chega de mortes no trabalho! Empenhemo-nos para que cessem.
Olhemos uma última vez para o presépio, alongando a vista até às suas extremidades, onde já se vislumbram os Magos que vêm, peregrinos, para adorar o Senhor. Olhemos e compreendamos que, à volta de Jesus, tudo se compõe numa unidade: não estão só os últimos, os pastores, mas também os eruditos e os ricos, os Magos. Em Belém, estão juntos pobres e ricos, quem adora como os Magos e quem trabalha como os pastores. Tudo se harmoniza quando, no centro, está Jesus: não as nossas ideias sobre Jesus, mas Ele mesmo, o Vivente. Então, queridos irmãos e irmãs, voltemos a Belém, voltemos às origens: à essencialidade da fé, ao primeiro amor, à adoração e à caridade. Olhemos os Magos que vêm em peregrinação e, como Igreja sinodal, a caminho, vamos a Belém, onde está Deus no homem e o homem em Deus; onde o Senhor ocupa o primeiro lugar e é adorado; onde os últimos ocupam o lugar mais próximo d’Ele; onde pastores e Magos estão juntos numa fraternidade mais forte do que qualquer distinção. Que Deus nos conceda ser uma Igreja adoradora, pobre, fraterna. Isto é o essencial. Voltemos a Belém.
Faz-nos bem ir lá, dóceis ao Evangelho de Natal, que apresenta a Sagrada Família, os pastores e os Magos: são, todos, pessoas a caminho. Irmãos e irmãs, ponhamo-nos a caminho, porque a vida é uma peregrinação. Ergamo-nos, despertemos porque, nesta noite, acendeu-se uma luz. É uma luz suave e lembra-nos que, na nossa pequenez, somos filhos amados, filhos da luz (cf. 1 Tes 5, 5). Irmãos e irmãs, alegremo-nos juntos, porque ninguém apagará jamais esta luz, a luz de Jesus, que, desde esta noite, brilha no mundo.
SOLENIDADE DO NATAL DO SENHOR
HOMILIA DO PAPA FRANCISCO
24.12.21
O nascimento de Jesus
Hoje, poucos dias antes do Natal, gostaria de recordar convosco o acontecimento do qual a história não pode prescindir: o nascimento de Jesus.
A fim de cumprir o decreto do Imperador César Augusto que ordenava que todos se recenseassem na própria cidade de origem, José e Maria foram de Nazaré a Belém. Assim que chegaram, procuraram imediatamente uma hospedaria, porque o parto era iminente; mas infelizmente não a encontraram, e assim Maria foi obrigada a dar à luz numa manjedoura (cf. Lc 2, 1-7).
Pensemos: ao Criador do universo… a Ele não foi concedido um lugar para nascer! Talvez fosse uma antecipação do que o evangelista João diz: «Veio entre os seus, e os seus não o receberam» (1, 11); e do que o próprio Jesus dirá: «As raposas têm os seus covis e as aves do ar os seus ninhos, mas o Filho do Homem não tem onde reclinar a cabeça» (Lc 9, 58).
Um anjo anunciou a simples pastores o nascimento de Jesus. E foi uma estrela que indicou aos Magos o caminho para Belém (cf. Mt 2, 1, 9-10). O anjo é um mensageiro de Deus. A estrela recorda-nos que Deus criou a luz (Gn 1, 3) e que aquele Menino será “a luz do mundo”, como Ele mesmo se autodefinirá (cf. Jo 8, 12.46), a «verdadeira luz [...] que ilumina todo o homem» (Jo 1, 9), que «resplandece nas trevas, mas as trevas não a admitiram» (v. 5).
Os pastores personificam os pobres de Israel, pessoas humildes que interiormente vivem com a consciência da própria falta, e precisamente por isto confiam mais do que os outros em Deus. Eles foram os primeiros a ver o Filho de Deus feito homem, e este encontro muda-os profundamente. O Evangelho observa que voltaram «glorificando e louvando a Deus por tudo o que tinham ouvido e visto» (Lc 2, 20).
Os Magos estão também em volta de Jesus que acabou de nascer (cf. Mt 2, 1-12). Os Evangelhos não nos dizem que eles eram reis, nem o número, nem os nomes. Com certeza, sabe-se apenas que de um país distante do Oriente (pode-se pensar na Babilónia, na Arábia do Sul ou na Pérsia daquele tempo) partiram em busca do Rei dos Judeus, que nos seus corações identificaram com Deus, pois disseram que o queriam adorar. Os Magos representam os povos pagãos, em particular todos aqueles que ao longo dos séculos procuraram Deus e se propuseram encontrá-lo. Representam também os ricos e os poderosos, mas só aqueles que não são escravos da posse, que não estão “possuídos” pelas coisas que pensam possuir.
A mensagem dos Evangelhos é clara: o nascimento de Jesus é um acontecimento universal que diz respeito a todos os homens.
Amados irmãos e amadas irmãs, só a humildade é o caminho que nos conduz a Deus e, ao mesmo tempo, precisamente porque nos conduz a Ele, leva-nos também ao essencial da vida, ao seu verdadeiro significado, à razão mais fiável pela qual vale a pena viver a vida.
Só a humildade nos abre à experiência da verdade, da alegria genuína, do conhecimento que conta. Sem humildade, estamos “desligados”, somos excluídos da compreensão de Deus, da compreensão de nós mesmos. É preciso ser humilde para nos compreendermos a nós mesmos, e mais ainda para compreender Deus. Os Magos podiam ter sido grandes de acordo com a lógica do mundo, mas tornam-se pequenos, humildes, e por esta mesma razão conseguem encontrar Jesus e reconhecê-lo. Aceitam a humildade de procurar, de se pôr a caminho, de perguntar, de arriscar, de cometer erros...
Cada homem, no íntimo do seu coração, é chamado a procurar Deus: todos nós, temos aquela inquietação e o nosso trabalho consiste em não apagar aquela inquietação, mas deixá-la crescer, pois é a inquietação de procurar Deus; e, com a sua própria graça, pode encontrá-lo. Façamos nossa a oração de Santo Anselmo (1033-1109): «Senhor, ensinai-me a procurar-vos. Mostrai-vos, quando vos procuro. Não posso procurar-vos se não me ensinardes; nem encontrar-vos se não vos mostrardes. Que eu vos procure, desejando-vos e vos deseje procurando-vos! Que eu vos encontre, procurando-vos e vos ame, encontrando-vos! (Proslogion, 1).
Queridos irmãos e irmãs, gostaria de convidar todos os homens e mulheres a ir à gruta de Belém para adorar o Filho de Deus feito homem. Cada um de nós se aproxime do presépio que tem em casa ou na igreja, ou noutro lugar, e procure fazer um ato de adoração, intimamente: “Creio que tu és Deus, que este menino é Deus. Por favor, concede-me a graça da humildade para poder compreender isto”.
Em primeiro lugar, aproximando-nos do presépio e rezando, gostaria de colocar os pobres, que – como exortava São Paulo VI – «devemos amar, porque de certa forma eles são sacramento de Cristo; neles – nos famintos, nos sedentos, nos exilados, nos nus, nos doentes, nos encarcerados – Ele quis identificar-se misticamente. Devemos ajudá-los, devemos sofrer com eles, e também devemos segui-los, porque a pobreza é o caminho mais seguro para a plena posse do Reino de Deus» (Homilia, 1 de maio de 1969). Por isso devemos pedir a humildade como uma graça: “Senhor, que eu não seja soberbo, que não seja autossuficiente, que não me considere o centro do universo. Faz-me humilde. Dá-me a graça da humildade. E com esta humildade que eu possa encontrar-te. É o único caminho, sem humildade nunca encontraremos Deus: encontraremos nós mesmos. Pois uma pessoa sem humildade não tem horizontes diante de si, tem apenas um espelho: olha para si mesmo. Peçamos ao Senhor que quebre o espelho para que possamos olhar além, para o horizonte, onde Ele está. Mas isto deve ser feito por Ele: conceder-nos a graça e a alegria da humildade para percorrer este caminho.
Depois, irmãos e irmãs, gostaria de acompanhar a Belém, como fez a estrela com os Magos, todos aqueles que não têm uma inquietação religiosa, que não se colocam o problema de Deus, ou até lutam contra a religião, todos aqueles que são inadequadamente denominados ateus. Gostaria de lhes repetir a mensagem do Concílio Vaticano II: «A Igreja defende que o reconhecimento de Deus de modo algum se opõe à dignidade do homem, uma vez que esta dignidade se funda e se realiza no próprio Deus [...] a Igreja sabe perfeitamente que a sua mensagem está de acordo com os desejos mais profundos do coração humano» (Gaudium et spes, 21).
Voltemos para casa com o desejo dos anjos: «Paz na terra aos homens por Ele amados». Lembremo-nos sempre: «Não fomos nós que amámos Deus, mas foi ele que nos amou [...]. Ele amou-nos primeiro» (1 Jo 4, 10.19), procurou-nos. Não nos esqueçamos disto.
Esta é a razão da nossa alegria: fomos amados, fomos procurados, o Senhor procura-nos para nos encontrar, para nos amar ainda mais. Este é o motivo da alegria: saber que fomos amados sem qualquer mérito, somos sempre precedidos por Deus no amor, um amor tão concreto que se tornou carne e veio habitar entre nós, naquele Menino que vemos no presépio. Este amor tem um nome e um rosto: Jesus é o nome e o rosto do amor que é o fundamento da nossa alegria. Irmãos e irmãs, desejo-vos um feliz Natal, um bom e santo Natal. E gostaria que – sim, haverá os bons votos, as reuniões de família, isto é muito bonito, sempre – mas que haja também a consciência de que Deus vem “para mim”. Cada um diga: Deus vem para mim. A consciência de que para procurar Deus, para encontrar Deus, para aceitar Deus é necessária a humildade: olhar com humildade para a graça de quebrar o espelho da vaidade, da soberba, de olhar para nós mesmos. Olhar para Jesus, olhar para o horizonte, olhar para Deus que vem até nós e que toca o coração com aquela inquietação que nos conduz à esperança. Feliz e santo Natal!
Papa Francisco
Audiência geral 22.12.21
Catequese sobre São José 4. São José, homem do silêncio
Estimados irmãos e irmãs, bom dia!
Continuemos o nosso caminho de reflexão sobre São José. Depois de ter ilustrado o ambiente em que ele viveu, o seu papel na história da salvação e o seu ser justo e esposo de Maria, hoje gostaria de examinar outro aspecto importante da sua figura: o silêncio. Hoje, muitas vezes precisamos de silêncio. O silêncio é importante. Estou impressionado com um verso do Livro da Sabedoria que foi lido a pensar no Natal, que diz: “Quando a noite estava no silêncio mais profundo, a tua palavra desceu à terra”. No momento de maior silêncio Deus manifestou-se. É importante pensar no silêncio nesta época na qual ele parece ter tão pouco valor.
Os Evangelhos não registam quaisquer palavras de José de Nazaré, nada, nunca falou. Isto não significa que ele fosse taciturno, não, há uma razão mais profunda. Com este silêncio, José confirma o que Santo Agostinho escreveu: «Na medida em que cresce em nós a Palavra – o Verbo que se fez homem – diminuem as palavras» (Sermão 288, 5: PL 38, 1307). Na medida em que Jesus – a vida espiritual – cresce, as palavras diminuem. Isto que podemos definir o “papagalismo” – falar como papagaios continuamente – diminui um pouco. João Batista, que é «a voz que clama no deserto: “Preparai o caminho do Senhor”» (Mt 3, 1), diz em relação ao Verbo: «Ele deve crescer e eu diminuir» (Jo 3, 30). Significa que Ele deve falar e eu devo ficar calado e José com o seu silêncio convida-nos a deixar espaço à Presença da Palavra feita carne, a Jesus.
O silêncio de José não é mutismo; é um silêncio cheio de escuta, um silêncio laborioso, um silêncio que faz emergir a sua grande interioridade. «O Pai pronunciou uma palavra, e foi o Filho – comentou São João da Cruz – e ela fala sempre em eterno silêncio, e no silêncio deve ser ouvida pela alma» (Dichos de luz y amor, BAC, Madrid, 417, n. 99).
Jesus cresceu nesta “escola”, na casa de Nazaré, com o exemplo diário de Maria e José. E não surpreende que ele próprio procurará espaços de silêncio nos seus dias (cf. Mt 14, 23) e convidará os seus discípulos a fazerem esta experiência, por exemplo: «Vinde, retiremo-nos a um lugar deserto, e repousai um pouco» (Mc 6, 31).
Como seria bom se cada um de nós, seguindo o exemplo de São José, conseguisse recuperar esta dimensão contemplativa da vida aberta precisamente pelo silêncio. Mas todos sabemos por experiência que não é fácil: o silêncio assusta-nos um pouco, porque nos pede para entrarmos em nós mesmos e encontrarmos a parte mais verdadeira de nós. Muita gente tem receio do silêncio, deve falar, falar, falar ou ouvir rádio, televisão…, mas não pode aceitar o silêncio porque tem medo. O filósofo Pascal observou que «toda a infelicidade dos homens provém de uma só coisa: não saber ficar tranquilo num quarto» (Pensamentos, 139).
Queridos irmãos e irmãs, aprendamos de São José a cultivar espaços de silêncio, nos quais possa surgir outra Palavra, isto é, Jesus, a Palavra: a do Espírito Santo que habita em nós e que traz Jesus. Não é fácil reconhecer esta Voz, que muitas vezes se confunde com os milhares de vozes de preocupações, tentações, desejos e esperanças que nos habitam; mas sem este treino que provém precisamente da prática do silêncio, até a nossa fala pode adoecer. Sem a prática do silêncio o nosso falar adoece. Ele, em vez de fazer resplandecer a verdade, pode tornar-se uma arma perigosa. De facto, as nossas palavras podem tornar-se adulação, jactância, mentira, maledicência, calúnia. É um dado da experiência que, como nos lembra o Eclesiástico, «a língua mata mais do que a espada» (28, 18). Jesus disse-o claramente: quem fala mal do irmão ou da irmã, quem calunia o próximo, é homicida (cf. Mt 5, 21-22). Mata com a língua. Não acreditamos nisto, mas é a verdade. Recordemos as vezes que matamos com a língua, envergonhar-nos-íamos! Contudo, far-nos-á muito bem, tanto bem.
A sabedoria bíblica afirma que «morte e vida estão no poder da língua: quem fizer bom uso dela comerá o seu fruto» (Pr 18, 21). E o apóstolo Tiago, na sua Carta, desenvolve este antigo tema do poder, positivo e negativo, da palavra com exemplos impressionantes, diz assim: «Se alguém não peca pela palavra, esse é um homem perfeito, capaz de dominar o seu corpo [...] a língua é um pequeno membro e gloria-se de grandes coisas [...] Com ela bendizemos a Deus Pai, e com ela amaldiçoamos os homens, feitos à semelhança de Deus. De uma mesma boca procedem a bênção e a maldição» (3, 2-10).
Por este motivo, devemos aprender de José a cultivar o silêncio: aquele espaço de interioridade nos nossos dias nos quais damos ao Espírito a oportunidade de nos regenerar, de nos consolar, de nos corrigir. Não estou a dizer que devemos cair num mutismo, não, mas devemos cultivar o silêncio. Cada um olhe para dentro de si mesmo: muitas vezes estamos a fazer um trabalho e quando terminamos procuramos imediatamente o celular para fazer outra coisa, somos sempre assim. E isto não ajuda, faz-nos escorregar para a superficialidade. A profundidade do coração cresce com o silêncio, um silêncio que não é mutismo, como eu disse, mas que deixa espaço à sabedoria, à reflexão e ao Espírito Santo. Por vezes temos medo dos momentos de silêncio, mas não devemos recear! O silêncio far-nos-á muito bem. E o benefício para os nossos corações curará também a nossa língua, as nossas palavras e, sobretudo, as nossas escolhas. Com efeito, José uniu o silêncio à ação. Ele não falou, mas fez, e assim mostrou-nos o que Jesus disse outrora aos seus discípulos: «Nem todo o que me diz Senhor, Senhor, entrará no reino dos Céus, mas sim aquele que faz a vontade do meu Pai que está nos Céus» (Mt 7, 21). Palavras fecundas quando falamos e temos a recordação daquela canção “Parole, parole, parole…” [“Palavras, palavras, palavras…”] e nenhuma substância. Silêncio, falar o suficiente, às vezes morder a língua um pouquinho, que faz bem, em vez de dizer parvoíces.
Concluamos com uma oração:
São José, homem do silêncio,
vós que no Evangelho não proferistes palavra alguma,
ensinai-nos a jejuar de palavras vãs,
a redescobrir o valor das palavras que edificam, encorajam, consolam e apoiam.
Estai próximo de quantos sofrem por causa das palavras que ferem,
como as calúnias e as maledicências,
e ajudai-nos a unir sempre as ações às palavras. Amém.
Papa Francisco
Catequese na audiência Geral 15.12.21
Imagem: pexels.com
Catequese sobre São José 3. José, homem justo e esposo de Maria
Continuemos o nosso caminho de reflexão sobre a figura de São José. Hoje gostaria de explorar o seu ser “justo” e “noivo de Maria”, e assim dar uma mensagem a todos os noivos, incluindo os recém-casados. Muitos acontecimentos ligados a José são contados nos evangelhos apócrifos, ou seja, evangelhos não canónicos, que também influenciaram a arte e vários lugares de culto. Estes escritos, que não estão na Bíblia – são histórias que a piedade cristã narrava naquele tempo – respondem ao desejo de preencher as lacunas narrativas dos Evangelhos canónicos, aqueles que estão na Bíblia, os quais nos dão tudo o que é essencial para a fé e a vida cristã.
O evangelista Mateus. Isto é importante: o que diz o Evangelho sobre José? Não o que dizem os evangelhos apócrifos, que não são negativos nem maus; são bonitos, mas não são a Palavra de Deus. Ao contrário, os Evangelhos, que estão na Bíblia, são a Palavra de Deus. Entre eles está o evangelista Mateus que define José um homem “justo”. Ouçamos a sua narração: «Eis como nasceu Jesus Cristo: Maria, sua mãe, estava desposada com José. Antes de coabitarem, aconteceu que ela concebeu por virtude do Espírito Santo. José, seu esposo, que era homem de bem, não querendo difamá-la, resolveu rejeitá-la secretamente» (1, 18-19). Pois os noivos, quando a noiva não era fiel ou engravidava, deviam denunciá-la! E as mulheres naquele tempo eram apedrejadas. Mas José era justo. E disse: “Não, eu não farei isto. Ficarei calado”.
Para compreender o comportamento de José em relação a Maria, é útil recordar os costumes matrimoniais do antigo Israel. O matrimónio compreendia duas fases bem definidas. A primeira era como um noivado oficial, que já implicava uma nova situação: em particular, a mulher, embora continuasse a viver na casa do seu pai por mais um ano, era de facto considerada a “esposa” do noivo. Ainda não viviam juntos, mas era como se ela fosse sua esposa. O segundo ato era a transferência da noiva da casa do seu pai para a casa do noivo. Isto acontecia com uma procissão festiva, que completava o matrimónio. E as amigas da noiva acompanhavam-na até lá. De acordo com estes costumes, o facto que «antes que fossem viver juntos, Maria estava grávida», expunha a Virgem à acusação de adultério. E esta culpa, segundo a Lei antiga, devia ser punida com a lapidação (cf. Dt 22, 20-21). No entanto, na prática judaica posterior, uma interpretação mais moderada tinha-se tornado realidade e apenas impunha o ato de repúdio, com consequências civis e criminais para a mulher, mas não o apedrejamento.
O Evangelho diz que José era “homem de bem” precisamente porque estava sujeito à lei como qualquer israelita piedoso. Mas dentro dele, o amor por Maria e a confiança nela sugeriam um modo de salvar a observância da lei e a honra da sua esposa: ele decidiu dar-lhe o ato de repúdio em segredo, sem clamor, sem a sujeitar à humilhação pública. Escolheu o caminho do segredo, sem julgamento nem vingança. Mas quanta santidade em José! Nós, que assim que temos um pouco de notícias folclóricas ou negativas sobre alguém, vamos imediatamente à tagarelice! José, ao contrário, fica calado.
Mas o evangelista Mateus acrescenta: «José, filho de Davi, não temas receber Maria por esposa, pois o que nela foi concebido vem do Espírito Santo. Ela dará à luz um filho, a quem porás o nome de Jesus, porque ele salvará o seu povo de seus pecados» (1, 20-21). A voz de Deus intervém no discernimento de José e, através de um sonho, revela-lhe um significado maior do que a sua própria justiça. E como é importante para cada um de nós cultivar uma vida justa e, ao mesmo tempo, sentir que estamos sempre a precisar da ajuda de Deus! Para poder alargar os nossos horizontes e considerar as circunstâncias da vida sob um ponto de vista diferente e mais amplo. Muitas vezes sentimo-nos prisioneiros pelo que nos aconteceu: “Mas vejam o que me aconteceu!” e continuamos prisioneiros daquela situação má que nos aconteceu; mas precisamente perante algumas circunstâncias da vida, que inicialmente parecem dramáticas, existe uma Providência que com o tempo toma forma e ilumina com significado até a dor que nos atingiu. A tentação é fecharmo-nos nessa dor, nesse pensamento das coisas desagradáveis que nos aconteceram. E isto não é bom. Leva à tristeza e à amargura. O coração amargo é tão triste.
Gostaria que fizéssemos uma pausa e refletíssemos sobre um pormenor desta história narrada no Evangelho que muitas vezes ignoramos. Maria e José são dois noivos que provavelmente tinham sonhos e expetativas sobre as suas vidas e o seu futuro. Deus parece intervir como um acontecimento inesperado na sua vicissitude, embora com alguma dificuldade inicial, ambos abrem o coração para a realidade que lhes é apresentada.
Estimados irmãos e irmãs, muitas vezes as nossas vidas não são como as imaginamos. Especialmente nas relações de amor, de afeto, temos dificuldade em passar da lógica do apaixonamento para a do amor maduro. E temos de passar do apaixonamento para o amor maduro. Vós, recém-casados, pensai bem nisto. A primeira fase é sempre marcada por um certo encantamento, que nos faz viver imersos num mundo imaginário que muitas vezes não corresponde à realidade dos factos. Mas precisamente quando o apaixonamento com as suas expetativas parece chegar ao fim, neste momento o verdadeiro amor pode começar. Com efeito, amar não é pretender que o outro ou a vida corresponda à nossa imaginação; pelo contrário, significa escolher com total liberdade assumir a responsabilidade pela vida que nos é oferecida. É por isso que José nos dá uma lição importante, ele escolheu Maria “com olhos abertos”. E podemos dizer que com todos os riscos. Pensai, no Evangelho de João, uma reprimenda que fazem os doutores da lei a Jesus é esta: “Não somos filhos que provêm de lá”, referindo-se à prostituição. Porque sabiam como Maria tinha engravidado e queriam difamar a mãe de Jesus. Para mim este é o trecho mais sujo e demoníaco do Evangelho. E o risco de José dá-nos esta lição: assumir a vida como vem. Deus interveio nela? Assumo-a. E José comportou-se como o anjo do Senhor lhe ordenara: de facto o Evangelho diz: «Despertando, José fez como o anjo do Senhor lhe havia mandado e recebeu em sua casa a sua esposa. E, sem que ele a tivesse conhecido, ela deu à luz o seu filho, que recebeu o nome de Jesus» (Mt 1, 24-25). Os noivos cristãos são chamados a dar testemunho deste amor, que tem a coragem de passar da lógica do apaixonamento para a do amor maduro. E esta é uma escolha exigente que, em vez de aprisionar a vida, pode fortalecer o amor para que seja duradouro face às provações do tempo. O amor de um casal continua na vida e amadurece todos os dias. O amor do noivado é um pouco – permiti-me que o diga – um pouco romântico. Vós vivestes-o, mas depois começa o amor maduro, quotidiano, o trabalho, as crianças que chegam. E, por vezes, aquele romantismo desaparece um pouco. Mas não há amor? Sim, mas amor maduro. “Mas sabe, padre, por vezes discutimos...”. Isto acontece desde o tempo de Adão e Eva até aos dias de hoje: que os esposos brigam é o pão nosso de cada dia. “Mas não deveríamos discutir?”. Sim, é possível. “E padre, mas por vezes erguemos a voz” – “Acontece”. “E também por vezes os pratos voam” – “Acontece”. Mas como assegurar que não prejudica a vida do matrimónio? Escutai bem: nunca terminai o dia sem fazer a paz. Tivemos uma discussão, disse-te coisas más, meu Deus, disse-te palavras más. Mas agora o dia acaba: tenho de fazer a paz. Sabei por que? Porque a guerra fria do dia seguinte é muito perigosa. Não deixeis que no dia seguinte comece uma guerra. Por isso que se deve fazer as pazes antes de ir para a cama. Lembrai-vos sempre: nunca terminar o dia sem fazer a paz. E isto irá ajudar-vos na vida de casado. Este percurso do apaixonamento para o amor maduro é uma escolha exigente, mas devemos seguir por esse caminho.
E também desta vez concluímos com uma oração a São José.
São José,
vós que amastes Maria com liberdade
e optastes por renunciar da sua imaginação para criar espaço à realidade,
ajudai cada um de nós a deixarmo-nos surpreender por Deus
e acolher a vida não como um acontecimento imprevisto do qual nos devemos defender,
mas como um mistério que esconde o segredo da verdadeira alegria.
Obtende alegria e radicalidade para todos os noivos cristãos,
Mas conservando sempre a consciência
De que só a misericórdia e o perdão tornam o amor possível. Amém.
Papa Francisco
Catequese na audiência geral 01.12.21
imagem: S. José, Mariotto di Nardo
Catequese sobre São José 2. São José na história da salvação
Na quarta-feira passada começamos o ciclo de catequeses sobre a figura de São José – o ano dedicado a ele está a findar. Hoje continuamos este percurso centrando-nos no seu papel na história da salvação.
Jesus é referido nos Evangelhos como «filho de José» (Lc 3, 23; 4, 22; Jo 1, 45; 6, 42) e «filho do carpinteiro» (Mt 13, 55; Mc 6, 3). Os Evangelistas Mateus e Lucas, ao narrarem a infância de Jesus, dão espaço ao papel de José. Ambos compõem uma «genealogia» para realçar a historicidade de Jesus. Mateus, dirigindo-se sobretudo aos judeus-cristãos, parte de Abraão e chega a José, definido como «o esposo de Maria, de quem nasceu Jesus, que se chama Cristo» (1, 16). Lucas, por sua vez, remonta até Adão, começando diretamente por Jesus, que «era filho de José», mas especifica: «como se supunha» (3, 33). Portanto, ambos os Evangelistas apresentam José não como o pai biológico, mas como o pai de Jesus a pleno título. Através dele, Jesus cumpre a história da aliança e da salvação entre Deus e o homem. Para Mateus esta história começa com Abraão, para Lucas com a própria origem da humanidade, isto é, com Adão.
O evangelista Mateus ajuda-nos a compreender que a figura de José, embora aparentemente marginal, discreta, em segunda linha, representa antes de tudo um elemento central na história da salvação. José vive o seu protagonismo sem nunca querer apoderar-se da cena. Se pensarmos nisto, «as nossas vidas são tecidas e sustentadas por pessoas comuns - habitualmente esquecidas - que não aparecem nas manchetes dos jornais e revistas […] Quantos pais, mães, avôs e avós, professores mostram às nossas crianças, com pequenos gestos, e com gestos do dia a dia, como enfrentar e atravessar uma crise, readaptando hábitos, levantando o olhar e estimulando a oração! Quantas pessoas rezam, se imolam e intercedem pelo bem de todos» (Carta ap. Patris corde, 1). Assim, todos podem encontrar em São José, o homem que passa despercebido, o homem da presença diária, da presença discreta e escondida, um intercessor, um apoio e um guia em tempos de dificuldade. Ele lembra-nos que todos aqueles que aparentemente estão escondidos, ou na “segunda linha”, têm um protagonismo inigualável na história da salvação. O mundo precisa destes homens e destas mulheres: homens e mulheres na segunda linha, mas que apoiam o desenvolvimento da nossa vida, de cada um de nós, e que com a oração, com o exemplo, com o ensinamento nos apoiam no caminho da vida.
No Evangelho de Lucas, José aparece como o guardião de Jesus e de Maria. E por esta razão ele é também «o “Guardião da Igreja”: mas, se foi o guardião de Jesus e de Maria, trabalha, agora que está nos céus, e continua a ser o guardião, neste caso da Igreja; porque a Igreja é o prolongamento do Corpo de Cristo na história e ao mesmo tempo, na maternidade da Igreja, espelha-se a maternidade de Maria. José, continuando a proteger a Igreja – por favor, não vos esqueçais disto: hoje, José protege a Igreja – continua a proteger o Menino e sua mãe» (ibid., 5). Este aspeto da guarda de José é a grande resposta ao relato do Génesis. Quando Deus pede a Caim que preste contas da vida de Abel, ele responde: «Sou porventura o guarda do meu irmão?» (4, 9). José, com a sua vida, parece querer dizer-nos que somos sempre chamados a sentirmo-nos guardas dos nossos irmãos, guardas dos que nos são próximos, daqueles que o Senhor nos confia através das muitas circunstâncias da vida.
Uma sociedade como a nossa, que foi definida “líquida”, pois parece que não tem consistência. Eu corrigiria aquele filósofo que cunhou esta definição e diria: mais do que líquida, gasosa, uma sociedade propriamente gasosa. Esta sociedade líquida, gasosa, encontra na história de José uma indicação muito clara da importância dos vínculos humanos. De fato, o Evangelho narra-nos a genealogia de Jesus, não só por uma razão teológica, mas também para recordar a cada um de nós que a nossa vida é constituída por laços que nos precedem e acompanham. O Filho de Deus escolheu o caminho dos vínculos para vir ao mundo, a via da história: não desceu ao mundo magicamente, não. Percorreu o caminho histórico que fazemos todos nós.
Estimados irmãos e irmãs, penso em tantas pessoas que lutam para encontrar relacionamentos significativos na sua vida, e por para isso mesmo lutam, sentem-se sozinhas, falta-lhes força e coragem para ir em frente. Gostaria de concluir com uma oração que ajude a eles e a todos nós a encontrar em São José um aliado, um amigo e um apoio.
São José,
vós que guardastes o vínculo com Maria e Jesus,
ajudai-nos a cuidar das relações na nossa vida.
Que ninguém experimente o sentimento de abandono
que vem da solidão.
Que cada um de nós se reconcilie com a própria história,
com aqueles que nos precederam,
e reconheça inclusive nos erros cometidos
um modo pelo qual a Providência abriu o seu caminho,
e o mal não teve a última palavra.
Mostrai-vos amigo para aqueles que mais lutam,
e como apoiastes Maria e Jesus nos momentos difíceis,
assim apoiai também a nós no nosso caminho. Amém.
Papa Francisco
Catequese na audiência geral 25.11.21
imagem: site do Vaticano
Catequese sobre São José 1. São José e o ambiente em que viveu
A 8 de dezembro de 1870, o Beato Pio IX proclamou São José padroeiro da Igreja universal. Depois de 150 anos daquele evento, estamos a viver um ano especial dedicado a São José, e na Carta Apostólica Patris corde recolhi algumas reflexões sobre a sua figura. Nunca como hoje, neste tempo marcado por uma crise global com diferentes componentes, ele pode ser apoio, conforto e orientação para nós. Por isso decidi dedicar-lhe um ciclo de catequeses, que espero nos possa ajudar ulteriormente a deixar-nos iluminar pelo seu exemplo e pelo seu testemunho. Durante algumas semanas falaremos de São José.
Na Bíblia há mais de dez personagens com o nome de José. O mais importante de todos é o filho de Jacó e Raquel, que, através de várias vicissitudes, de escravo, tornou-se a segunda pessoa mais importante no Egito depois do Faraó (cf. Gn 37-50). O nome José em hebraico significa “Deus aumente, Deus faça crescer”. É um desejo, uma bênção baseada na confiança na providência e refere-se especialmente à fecundidade e ao crescimento dos filhos. De fato, este mesmo nome revela-nos um aspeto essencial da personalidade de José de Nazaré. Ele é um homem cheio de fé na providência: acredita na providência de Deus, tem fé na providência de Deus. Toda a sua ação, narrada no Evangelho, é ditada pela certeza de que Deus “faz crescer”, que Deus “aumenta”, que Deus “acrescenta”, ou seja, que Deus providencia à continuação do seu desígnio de salvação. E nisto, José de Nazaré é muito parecido com José do Egito.
As principais referências geográficas relativas a José – Belém e Nazaré – também desempenham um papel importante na compreensão da sua figura.
No Antigo Testamento, a cidade de Belém é chamada Beth Lechem, “Casa do pão”, ou também Efrata, devido à tribo que se estabeleceu naquele território. No entanto, em árabe, o nome significa “Casa da carne”, provavelmente devido ao grande número de rebanhos de ovinos e caprinos na área. Não foi por acaso, de facto, que quando Jesus nasceu, os pastores foram as primeiras testemunhas do acontecimento (cf. Lc 2, 8-20). À luz da história de Jesus, estas alusões ao pão e à carne referem-se ao mistério da Eucaristia: Jesus é o pão vivo que desce do céu (cf. Jo 6, 51). Ele próprio dirá de si: «Quem comer a minha carne e beber o meu sangue viverá eternamente» (Jo 6, 54).
Belém é mencionada várias vezes na Bíblia, desde o Livro do Génesis. Belém está também ligada à história de Rute e Noémi, narrada no pequeno, mas maravilhoso Livro de Rute. Rute deu à luz um filho chamado Obed, do qual por sua vez nasceu Jessé, o pai do rei David. E José, o pai legal de Jesus, descende preciosamente da linhagem de David. Então o profeta Miqueias predisse grandes coisas sobre Belém: «E tu, Bet-Ephrata, tão pequena entre as famílias de Judá, é de ti que me há de sair aquele que governará Israel» (Mi 5, 1). O evangelista Mateus retomará esta profecia e ligá-la-á à história de Jesus como o seu evidente cumprimento.
De fato, o Filho de Deus não escolheu Jerusalém como o lugar da sua encarnação, mas Belém e Nazaré, duas aldeias periféricas, longe do clamor da crónica e do poder da época. Contudo, Jerusalém era a cidade amada pelo Senhor (cf. Is 62, 1-12), a «cidade santa» (Dn 3, 28), escolhida por Deus para lá habitar (cf. Zc 3, 2; Sl 132, 13). Ali, com efeito, habitavam os doutores da Lei, os escribas e fariseus, os chefes dos sacerdotes e os anciãos do povo (cf. Lc 2, 46; Mt 15, 1; Mc 3, 22; Jo 1, 19; Mt 26, 3).
É por isso que a escolha de Belém e Nazaré nos diz que a periferia e a marginalidade são prediletas a Deus. Jesus não nasceu em Jerusalém com toda a corte… não: nasceu numa periferia e transcorreu a sua vida, até aos 30 anos, naquela periferia, trabalhando como carpinteiro, como José. Para Jesus, as periferias e a marginalidade são prediletas. Não levar esta realidade a sério equivale a não levar a sério o Evangelho e a obra de Deus, que continua a manifestar-se nas periferias geográficas e existenciais. O Senhor age sempre de maneira escondida nas periferias, também na nossa alma, nas periferias da alma, dos sentimentos, talvez sentimentos dos quais nos envergonhamos; mas o Senhor está ali para nos ajudar a ir em frente. O Senhor continua a manifestar-se nas periferias, quer geográficas quer existenciais. Em particular, Jesus vai em busca dos pecadores, entra nas suas casas, fala com eles, chama-os à conversão. E foi até repreendido por isto: “Mas, veja, este Mestre – diziam os doutores da lei – veja este Mestre: come junto com os pecadores, suja-se, vai à procura daqueles que não praticam o mal, mas o sofrem: os doentes, os famintos, os pobres, os últimos”. Jesus vai sempre rumo às periferias. E isto deve dar-nos muita confiança, pois o Senhor conhece as periferias do nosso coração, as periferias da nossa alma, as periferias da nossa sociedade, da nossa cidade, da nossa família, isto é, aquela parte um pouco obscura que não mostramos talvez por vergonha.
Sob este aspeto, a sociedade daquela época não é muito diferente da nossa. Hoje também há um centro e uma periferia. E a Igreja sabe que é chamada a anunciar a boa nova a partir das periferias. José, que é um carpinteiro de Nazaré e que confia no plano de Deus para a sua jovem noiva e para si mesmo, recorda à Igreja que fixe o olhar naquilo que o mundo ignora deliberadamente. Hoje José ensina-nos isto: “Não olhemos para as coisas que o mundo louva, olhemos para os ângulos, as sombras, as periferias, para aquilo que o mundo não quer”. Ele lembra a cada um de nós que demos importância ao que os outros descartam. Neste sentido, é verdadeiramente um mestre do essencial: lembra-nos que o que é realmente valioso não atrai a nossa atenção, mas requer um discernimento paciente para ser descoberto e valorizado. Descubramos o que é válido. Peçamos-lhe que interceda para que toda a Igreja possa recuperar este discernimento, esta capacidade de discernir, esta capacidade de avaliar o que é essencial. Comecemos de novo a partir de Belém, comecemos de novo a partir de Nazaré.
Hoje gostaria de transmitir uma mensagem a todos os homens e mulheres que vivem nas periferias geográficas mais esquecidas do mundo ou que experimentam situações de marginalidade existencial. Que encontreis em São José a testemunha e o protetor para quem olhar. A ele podemos recorrer com esta oração, prece “feita em casa”, mas nascida do coração:
São José,
vós que sempre confiastes em Deus,
e fizestes as vossas escolhas
guiado pela sua providência
ensinai-nos a não contar tanto com os nossos projetos
mas com o seu desígnio de amor.
Vós que viestes das periferias
ajudai-nos a converter o nosso olhar
e a preferir o que o mundo descarta e marginaliza.
Confortai quantos se sentem sozinhos
e apoiai quantos se comprometem em silêncio
para defender a vida e a dignidade humana. Amém.
Papa Francisco
Catequese na audiência Geral de 17.11.21
Catequese sobre a Carta aos Gálatas 15. Não nos deixemos tomar pelo cansaço
Chegamos ao fim das catequeses sobre a Carta aos Gálatas. Sobre quantos outros aspetos deste texto de São Paulo poderíamos ter refletido! A palavra de Deus é uma fonte inesgotável. E nesta Carta o Apóstolo falou-nos como evangelizador, como teólogo e como pastor.
O santo bispo Inácio de Antioquia tem uma bela expressão quando escreve: «Há apenas um mestre que falou e o que disse foi feito; mas as coisas que ele fez em silêncio são dignas do Pai. Quem possui a palavra de Jesus também pode ouvir o seu silêncio» (Ad Ephesios, 15, 1-2). Podemos dizer que o Apóstolo Paulo foi capaz de dar voz a este silêncio de Deus. As suas intuições mais originais ajudam-nos a descobrir a novidade perturbadora contida na revelação de Jesus Cristo. Foi um verdadeiro teólogo, que contemplava o mistério de Cristo e o transmitia com a sua inteligência criativa. E foi também capaz de cumprir a sua missão pastoral a uma comunidade desorientada e confusa. Ele fez isto com métodos diferentes: usou ironia, rigor, mansidão... Reivindicou a própria autoridade como apóstolo, mas ao mesmo tempo não escondeu as fraquezas do seu caráter. O poder do Espírito realmente escavou no seu coração: o encontro com Cristo Ressuscitado conquistou e transformou toda a sua vida, e dedicou-a inteiramente ao serviço do Evangelho.
Paulo nunca pensou num cristianismo com traços irénicos, sem vigor nem energia, pelo contrário. Defendeu a liberdade que Cristo trouxe com uma paixão que ainda hoje nos comove, especialmente se pensarmos no sofrimento e na solidão que teve de suportar. Estava convencido de que tinha recebido uma chamada à qual só ele podia responder; e queria explicar aos Gálatas que também eles foram chamados a essa liberdade, que os aliviava de todas as formas de escravidão, porque os tornava herdeiros da antiga promessa e, em Cristo, filhos de Deus. E consciente dos riscos que este conceito de liberdade comportava, nunca minimizou as consequências. Estava ciente dos riscos que comporta a liberdade cristã, mas não minimizou as consequências. Reiterou com parrésia, isto é, com coragem, aos crentes que a liberdade não equivale de modo algum à libertinagem, nem conduz a formas de autossuficiência presunçosas. Pelo contrário, Paulo colocou a liberdade à sombra do amor e estabeleceu o seu exercício coerente ao serviço da caridade. Toda esta visão foi colocada no horizonte da vida de acordo com o Espírito Santo, que leva ao cumprimento da Lei doada por Deus a Israel e impede de cair novamente na escravidão do pecado. A tentação é sempre de voltar atrás. Uma definição dos cristãos, que está na Escritura, diz que nós, cristãos, não somos pessoas que voltam atrás, que vão para trás. Uma bonita definição. E a tentação é de ir para trás para nos sentirmos mais seguros; voltar apenas à Lei, descuidando a vida nova do Espírito. É isto que Paulo nos ensina: a verdadeira Lei tem a sua plenitude nesta vida do Espírito que Jesus nos doou. E esta vida do Espírito só pode ser vivida na liberdade, a liberdade cristã. E esta é uma das coisas mais bonitas!
No final deste itinerário de catequeses, parece-me que pode surgir em nós uma atitude dupla. Por um lado, o ensinamento do Apóstolo gera entusiasmo em nós; sentimo-nos impelidos a seguir imediatamente o caminho da liberdade, a «caminhar segundo o Espírito». Caminhar sempre segundo o Espírito: torna-nos livres. Por outro, estamos conscientes das nossas limitações, pois sentimos todos os dias como é difícil ser dócil ao Espírito, para seguir a sua ação benéfica. Pode então surgir o cansaço que diminui o entusiasmo. Sentimo-nos desanimados, fracos, às vezes marginalizados em relação ao estilo de vida da mentalidade mundana. Santo Agostinho sugere como reagir a esta situação, referindo-se ao episódio evangélico da tempestade no lago. Diz: «A fé de Cristo no teu coração é como Cristo no barco. Ouves insultos, cansas-te, aborreces-te e Cristo dorme. Desperta Cristo, move a tua fé! Até no tumulto, és capaz de fazer algo. Move a tua fé. Cristo acorda e fala contigo... Por isso, desperta Cristo... Acredita no que foi dito e haverá uma grande calma no teu coração» (Sermões 163/B 6). Nos momentos de dificuldade somos como – diz Santo Agostinho aqui – na barca no momento da tempestade. E o que fizeram os Apóstolos? Acordaram Cristo que dormia enquanto havia a tempestade; mas Ele estava presente. A única coisa que podemos fazer nos momentos de dificuldade é “despertar” Cristo que está dentro de nós, mas “dorme” como na barca. É assim mesmo. Devemos despertar Cristo no nosso coração e só então poderemos contemplar as coisas com o seu olhar, porque Ele vê para além da tempestade. Através desse seu olhar sereno, podemos ver um panorama que, por nós mesmos, nem sequer é possível divisar.
Neste caminho desafiador mas fascinante, o Apóstolo lembra-nos que não nos podemos dar ao luxo de nos cansarmos de fazer o bem. Não vos canseis de praticar o bem. Devemos confiar que o Espírito vem sempre em auxílio da nossa fraqueza e concede-nos o apoio de que necessitamos. Aprendamos então a invocar o Espírito Santo com mais frequência! Alguém pode dizer: “E como se invoca o Espírito Santo? Porque sei rezar ao Pai, com o Pai-Nosso; sei rezar a Nossa Senhora com a Ave-Maria; sei rezar a Jesus com a Prece das Chagas, mas ao Espírito? Qual é a oração do Espírito Santo?”. A oração ao Espírito Santo é espontânea: deve brotar do teu coração. Nos momentos de dificuldade, deves dizer: “Vinde, Santo Espírito!”. A palavra-chave é: “Vinde”. Mas deves dizê-lo com a tua linguagem, com as tuas palavras. Vinde, porque estou em dificuldade; vinde, pois estou na escuridão, na obscuridade; vinde, pois não sei o que fazer; vinde, pois estou prestes a cair. Vinde, vinde! É a palavra do Espírito para chamar o Espírito. Aprendamos a invocar com mais frequência o Espírito Santo! Podemos fazê-lo com palavras simples, em vários momentos do dia. E podemos levar conosco, talvez dentro do nosso Evangelho de bolso, a bela oração que a Igreja recita no Pentecostes: «Vinde, Santo Espírito / E mandai do céu um raio da vossa luz / Vinde, Pai dos pobres / Vinde, ó Distribuidor dos bens / Vinde, ó Luz dos corações! / Vinde, Consolador ótimo / doce Hóspede e suave alegria das almas / Vinde aliviar os trabalhos...». Vinde! E continua assim, é uma linda oração. O núcleo da prece é “vinde”, assim Nossa Senhora e os Apóstolos rezavam depois que Jesus ascendeu ao Céu; estavam sozinhos no Cenáculo e invocavam o Espírito. Far-nos-á bem recitá-la frequentemente. Vinde, Espírito Santo! E com a presença do Espírito nós salvaguardamos a liberdade. Seremos livres, cristãos livres, não apegados ao passado no sentido negativo da palavra, não acorrentados a práticas, mas livres com a liberdade cristã, aquela que nos faz amadurecer. Esta prece ajudar-nos-á a caminhar no Espírito, na liberdade e na alegria, pois quando o Espírito Santo vem, vem a alegria, a verdadeira alegria. O Senhor vos abençoe!
Papa Francisco
Catequese na audiência geral 10.11.21
Catequese sobre a Carta aos Gálatas 14. Caminhar segundo o Espírito
Estimados irmãos e irmãs, bom dia!
No excerto da Carta aos Gálatas que acabamos de ouvir, São Paulo exorta os cristãos a caminhar segundo o Espírito Santo (cf. 5, 16.25). Há um estilo: caminhar segundo o Espírito Santo. Com efeito, crer em Jesus significa segui-lo, ir atrás d’Ele no seu caminho, como fizeram os primeiros discípulos. E significa, ao mesmo tempo, evitar o caminho oposto, o do egoísmo, de procurar o próprio interesse, ao qual o Apóstolo chama «desejo da carne» (v. 16). O Espírito é o guia neste caminho pela vereda de Cristo, um caminho maravilhoso, mas também cansativo, que começa no Batismo e dura a vida inteira. Pensemos numa longa excursão nas montanhas: é fascinante, a meta atrai-nos, mas requer muito esforço e tenacidade.
Esta imagem pode ser-nos útil para entrar no mérito das palavras do Apóstolo: “Caminhar segundo o Espírito”, “deixar-se guiar” por Ele. São expressões que indicam uma ação, um movimento, um dinamismo que impede de parar nas primeiras dificuldades, mas provoca a confiar na «força que vem do alto» (O Pastor de Hermas, 43, 21). Percorrendo este caminho, o cristão adquire uma visão positiva da vida. Isto não significa que o mal presente no mundo tenha desaparecido, ou que faltem os impulsos negativos do egoísmo e do orgulho; significa, antes, acreditar que Deus é sempre mais forte do que a nossa resistência e maior do que os nossos pecados. E isto é importante!
Ao exortar os Gálatas a seguir este caminho, o Apóstolo coloca-se ao seu nível. Abandona o verbo no imperativo – «caminhai» (v. 16) – e usa o “nós” no indicativo: «caminhamos segundo o Espírito» (v. 25). Como que para dizer: caminhamos na mesma sintonia e somos guiados pelo Espírito Santo. É uma exortação, um modo exortativo. São Paulo sente que esta exortação é necessária também para si mesmo. Embora sabendo que Cristo vive nele (cf. 2, 20), está convencido também de que ainda não atingiu a meta, o cume da montanha (cf. Fl 3, 12). O Apóstolo não se coloca acima da sua comunidade, não diz: “Sou o líder, vós sois os outros; alcancei o cume da montanha e vós estais a caminho” – não diz isto – mas põe-se no meio, a caminho com todos, para dar exemplo concreto do modo como é necessário obedecer a Deus, correspondendo cada vez mais e melhor à guia do Espírito. E como é bom quando encontramos pastores que caminham com o seu povo e que não se afastam dele. Isto é muito bonito; faz bem à alma!
Este “caminhar segundo o Espírito” não é apenas uma ação individual: diz respeito igualmente à comunidade como um todo. Com efeito, construir a comunidade seguindo o caminho indicado pelo Apóstolo é entusiasmante, mas desafiante. Os “desejos da carne”, as “tentações” – por assim dizer – que todos nós temos, ou seja, inveja, preconceito, hipocrisia, ressentimentos continuam a fazer-se sentir, e o recurso a um preceito rígido pode ser uma tentação fácil, mas ao fazê-lo desviar-nos-íamos do caminho da liberdade e, em vez de subir ao cume, voltaríamos para baixo. Seguir o caminho do Espírito requer, antes de mais, dar lugar à graça e à caridade. Dar espaço à graça de Deus, sem receio. Depois de ter feito ouvir a sua voz de modo severo, Paulo convida os Gálatas a ocupar-se das dificuldades uns dos outros e, se alguém cometer um erro, a usar mansidão (cf. 5, 22). Ouçamos as suas palavras: «Irmãos, se alguém for surpreendido nalguma falta, vós, que sois animados pelo Espírito, admoestai-o com espírito de mansidão; e tu, tem cuidado ti mesmo, para não caíres também tu em tentação. Carregai os fardos uns dos outros» (6, 1-2). Uma atitude muito diferente da tagarelice; não, isto não é segundo o Espírito! Segundo o Espírito, é ter esta doçura com o irmão para o corrigir e vigiar sobre nós mesmos com humildade, para que nós não caiamos naqueles pecados.
Com efeito, quando somos tentados a julgar mal os outros, como é frequentemente acontece, devemos primeiro refletir sobre a nossa fragilidade. Como é fácil criticar os outros! Mas há pessoas que parecem ter uma licenciatura em tagarelice. Todos os dias criticam os outros. Mas olha para ti mesmo! É bom perguntar-nos o que nos motiva a corrigir um irmão ou uma irmã, e se não somos, de alguma forma, corresponsáveis pelo seu erro. O Espírito Santo, além de nos doar a mansidão, convida-nos à solidariedade, a carregar os fardos dos outros. Quantos fardos há na vida de uma pessoa: a doença, a falta de trabalho, a solidão, a dor... E quantas outras provas que exigem a proximidade e o amor dos irmãos! Podem-nos ajudar as palavras de Santo Agostinho, quando comenta este mesmo excerto: «Portanto, irmãos, se alguém for apanhado nalguma falha [...] corrigi-o desta maneira, com mansidão. E se tu levantares a voz, ama interiormente. Se encorajares, se te mostrares paterno, se repreenderes, se fores severo, ama!» (Sermões 163/B 3). Amai sempre! A regra suprema da correção fraterna é o amor: querer o bem dos nossos irmãos e irmãs. Trata-se de tolerar os problemas dos outros, os defeitos dos outros em silêncio na oração, e depois encontrar o modo correta de os ajudar a corrigir-se. E isto não é fácil! A maneira mais fácil é a tagarelice. Esfolar a outra pessoa como se eu fosse perfeito. E isto não deve ser feito. Mansidão. Paciência. Oração. Proximidade!
Percorramos com alegria e paciência este caminho, deixando-nos guiar pelo Espírito Santo!
Papa Francisco
Catequese na audiência geral 03.11.21
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