Catequese - 13. Jesus, mestre da oração
Estimados irmãos e irmãs, bom dia!
Infelizmente tivemos de voltar a esta audiência na Biblioteca e isto para nos defendermos do contágio de Covid. Isto também nos ensina que devemos estar muito atentos às prescrições das autoridades, quer as autoridades políticas quer as sanitárias, a fim de nos defendermos desta pandemia. Ofereçamos ao Senhor esta distância entre nós, para o bem de todos, e pensemos, pensemos muito nos doentes, em quantos entram nos hospitais já como descartes, pensemos nos médicos, nos enfermeiros, nas enfermeiras, nos voluntários, nas muitas pessoas que trabalham com os doentes neste momento: arriscam a sua vida mas fazem-no por amor ao próximo, como uma vocação. Rezemos por eles.
Durante a sua vida pública, Jesus recorre constantemente ao poder da oração. Os Evangelhos mostram-no quando se retira em lugares isolados para rezar. Trata-se de observações sóbrias e discretas, que deixam apenas imaginar aqueles diálogos orantes. Contudo, elas testemunham claramente que mesmo em momentos de maior dedicação aos pobres e aos doentes, Jesus nunca negligenciava o seu diálogo íntimo com o Pai. Quanto mais estava imerso nas necessidades do povo, tanto mais sentia a necessidade de descansar na Comunhão trinitária, de voltar para o Pai e para o Espírito.
Portanto, na vida de Jesus existe um segredo, escondido aos olhos humanos, que representa o ponto fulcral de tudo. A oração de Jesus é uma realidade misteriosa, da qual só intuímos algo, mas que permite ler toda a sua missão na justa perspetiva. Naquelas horas solitárias – na madrugada ou durante a noite - Jesus mergulha na sua intimidade com o Pai, ou seja, no Amor do qual toda a alma tem sede. É isto que sobressai dos primeiros dias do seu ministério público.
Num sábado, por exemplo, a cidade de Cafarnaum transformou-se num “hospital de campanha”: ao pôr do sol, levam todos os doentes a Jesus e Ele cura-os. Mas antes do amanhecer, Jesus desaparece: retira-se para um lugar solitário e reza. Simão e os outros procuram-no e quando o encontram dizem-lhe: «Todos te procuram!». O que responde Jesus?: «Vamos às aldeias vizinhas, para que Eu pregue também lá, pois foi para isso que vim» (cf. Mc 1, 35-38). Com frequência Jesus vai além, além na oração com o Pai e além noutras aldeias, noutros horizontes para ir anunciar a outros povos.
A oração é o leme que guia a rota de Jesus. Não é o sucesso, não é o consentimento, não é aquela frase sedutora “todos te procuram”, que ditam as etapas da sua missão. É o modo menos confortável que traça o caminho de Jesus, mas que obedece à inspiração do Pai, que Jesus ouve e acolhe na sua prece solitária.
O Catecismo afirma: «Quando ora, Jesus já nos ensina a orar» (n. 2607). Portanto, a partir do exemplo de Jesus, podemos obter algumas caraterísticas da oração cristã.
Antes de mais, possui um primado: é o primeiro desejo do dia, algo que se pratica ao amanhecer, antes que o mundo desperte. Ela restitui uma alma àquilo que de outra forma ficaria sem respiro. Um dia vivido sem oração corre o risco de se transformar numa experiência aborrecida ou tediosa: tudo o que nos acontece poderia transformar-se para nós num destino mal suportado e cego. Jesus, ao contrário, educa na obediência à realidade e, portanto, à escuta. A oração é, antes de mais nada, escuta e encontro com Deus. Por conseguinte, os problemas da vida quotidiana não se tornam obstáculos, mas apelos do próprio Deus a ouvir e encontrar quantos estão à nossa frente. Assim, as provações da vida transformam-se em ocasiões para crescer na fé e na caridade. O caminho diário, incluindo as dificuldades, adquire a perspetiva de uma “vocação”. A oração tem o poder de transformar em bem o que de outra forma seria uma condenação na vida; a oração tem o poder de abrir um grande horizonte para a mente e de alargar o coração.
Em segundo lugar, a oração é uma arte a praticar com insistência. O próprio Jesus diz-nos: batei, batei, batei à porta. Todos somos capazes de orações episódicas, que nascem da emoção de um momento; mas Jesus educa-nos para outro tipo de oração: aquela que conhece uma disciplina, um exercício e é assumida no âmbito de uma regra de vida. A oração perseverante produz uma transformação progressiva, fortalece em tempos de tribulação, concede a graça de ser amparados por Aquele que nos ama e nos protege sempre.
Outra caraterística da oração de Jesus é a solidão. Quem reza não foge do mundo, mas prefere lugares desertos. Ali, no silêncio, podem surgir muitas vozes que escondemos no íntimo: os desejos mais afastados, as verdades que nos obstinamos a sufocar e assim por diante. E, acima de tudo, Deus fala no silêncio. Cada pessoa precisa de um espaço para si, onde cultivar a sua vida interior, onde as ações têm sentido. Sem vida interior tornamo-nos superficiais, agitados, ansiosos - a ansiedade faz-nos muito mal! Por isso devemos rezar; sem vida interior fugimos da realidade e também fugimos de nós mesmos, somos homens e mulheres sempre em fuga.
Por fim, a oração de Jesus é o lugar onde percebemos que tudo vem de Deus e para Ele volta. Por vezes, nós seres humanos acreditamos que somos senhores de tudo ou, caso contrário, perdemos toda a autoestima, vamos de um lado para o outro. A oração ajuda-nos a encontrar a correta dimensão na relação com Deus, nosso Pai, e com toda a criação. Por fim, a oração de Jesus consiste em entregar-se nas mãos do Pai, como Jesus no jardim das oliveiras, naquela angústia: “Pai se for possível... mas seja feita a tua vontade”. O abandono nas mãos do Pai. É bom quando estamos agitados, um pouco preocupados e o Espírito Santo nos transforma a partir de dentro e nos leva a este abandono nas mãos do Pai: “Pai, seja feita a tua vontade”.
Amados irmãos e irmãs, redescubramos no Evangelho Jesus Cristo como mestre de oração, e coloquemo-nos na sua escola. Garanto-vos que encontraremos a alegria e a paz!
Papa Francisco
Catequese na audiência geral 04.11.2020
imagem: site do Vaticano
Catequese - 11. A oração dos Salmos. 2
Prezados irmãos e irmãs, bom dia!
Hoje temos que mudar um pouco o modo de realizar esta audiência devido ao coronavírus. Vós estais distanciados, também protegidos pela máscara e eu estou aqui um pouco afastado e não posso fazer o que faço sempre, aproximar-me de vós, pois cada vez que me aproximo, vós aproximais-vos todos juntos e perde-se a distância e há o perigo de contágio para vós. Lamento fazer isto, mas é para a vossa segurança. Em vez de me aproximar de vós, apertando as mãos e saudando, cumprimentamo-nos de longe, mas sabei que estou perto de vós com o coração. Espero que compreendais por que estou a fazer isto. Depois, enquanto os leitores liam a passagem bíblica, chamou a minha atenção aquele menino ou menina que chorava. E vi a mãe que abraçava e amamentava o bebê e pensei: “É assim que Deus faz conosco, como aquela mãe”. Com quanta ternura segurava o bebê, para o amamentar. Estas são belas imagens. E quando isto acontece na Igreja, quando um bebé chora, sabemos que existe a ternura de uma mãe, como hoje, existe a ternura de uma mãe que é o símbolo da ternura de Deus para conosco. Nunca silenciar uma criança que chora na Igreja, nunca, porque é a voz que atrai a ternura de Deus. Obrigado pelo testemunho.
Hoje completamos a catequese sobre a oração dos Salmos. Antes de mais, notamos que nos Salmos aparece frequentemente uma figura negativa, a do “ímpio”, ou seja, aquele ou aquela que vive como se Deus não existisse. É a pessoa sem qualquer referência ao transcendente, sem freios na sua arrogância, que não teme o julgamento sobre o que pensa e o que faz.
Por esta razão, o Saltério apresenta a oração como a realidade fundamental da vida. A referência ao absoluto e ao transcendente - a que os mestres da ascese denominam “temor sagrado de Deus” - é o que nos torna plenamente humanos, é o limite que nos salva de nós mesmos, impedindo que nos aventuremos nesta vida de modo predatório e voraz. A oração é a salvação do ser humano!
Certamente, existe também uma oração falsa, uma prece feita apenas para sermos admirados pelos outros. Aquele ou aqueles que vão à missa apenas para mostrar que são católicos ou para exibir o último modelo que compraram, ou para fazer uma boa figura social. Esses vão a uma oração falsa. Jesus advertiu fortemente a este respeito (cf. Mt 6, 5-6; Lc 9, 14). Mas quando o verdadeiro espírito de oração é acolhido com sinceridade e entra no coração, então faz-nos contemplar a realidade com o olhar do próprio Deus.
Quando rezamos, tudo adquire “profundidade”. Isto é curioso na oração, talvez comecemos por uma coisa sutil, mas na oração essa coisa adquire espessura, adquire peso, como se Deus a tomasse nas Suas mãos e a transformasse. O pior serviço que pode ser prestado, a Deus e também ao homem, é rezar com tédio, de maneira habitudinária. Rezar como papagaios. Não, reza-se com o coração. A oração é o centro da vida. Se houver oração, o irmão, a irmã, até o inimigo, torna-se importante. Um antigo ditado dos primeiros monges cristãos reza: «Abençoado é o monge que, depois de Deus, considera todos os homens como Deus» (Evágrio Pôntico, Tratado sobre a Oração, n. 123). Quem adora Deus, ama os seus filhos. Quem respeita Deus, respeita os seres humanos.
Por esta razão, a oração não é um calmante para aliviar as ansiedades da vida; ou, contudo, uma prece deste tipo certamente não é cristã. Ao contrário, a oração responsabiliza cada um de nós. Vemos isto claramente no “Pai-Nosso”, que Jesus ensinou aos seus discípulos.
Para aprender este modo de rezar, o Saltério é uma grande escola. Vimos que os Salmos nem sempre usam palavras requintadas e gentis, e muitas vezes têm as cicatrizes da existência. No entanto, todas estas orações foram utilizadas primeiro no Templo de Jerusalém e depois nas sinagogas; até as mais íntimas e pessoais. Assim se expressa o Catecismo da Igreja Católica: «As expressões multiformes da oração dos salmos tomam forma, ao mesmo tempo, na liturgia do templo e no coração do homem» (n. 2588). E deste modo a oração pessoal haure e alimenta-se primeiro daquela do povo de Israel e depois daquela do povo da Igreja.
Inclusive os salmos na primeira pessoa do singular, que confidenciam os pensamentos e os problemas mais íntimos de um indivíduo, são património coletivo, a ponto de serem recitados por todos e para todos. A oração dos cristãos tem este “respiro”, esta “tensão” espiritual que mantém unidos o templo e o mundo. A prece pode começar na penumbra de uma nave, mas depois acaba a sua corrida pelas ruas da cidade. E vice-versa, pode germinar durante os afazeres diários e encontrar o seu cumprimento na liturgia. As portas das igrejas não são barreiras, mas “membranas” permeáveis, disponíveis para acolher o clamor de todos.
O mundo está sempre presente na oração do Saltério. Os Salmos, por exemplo, dão voz à promessa divina de salvação dos mais frágeis: «Por causa da aflição dos humildes e dos gemidos dos pobres, levantar-me-ei - diz o Senhor - para lhes dar a salvação que desejam» (12 [11], 6). Ou alertam para o perigo das riquezas mundanas, porque «o homem que vive na opulência e não reflete é semelhante ao gado que se abate» (48, 21). Ou, ainda, abrem o horizonte ao olhar de Deus sobre a história: «O Senhor desfaz os planos das nações pagãs, reduz a nada os projetos dos povos. Só os desígnios do Senhor permanecem eternamente, os pensamentos do seu coração por todas as gerações» (33, 10-11).
Em síntese, onde está Deus, deve estar também o homem. A Sagrada Escritura é categórica: «Mas amamos, porque Deus nos amou primeiro - Ele está sempre à nossa frente. Ele espera sempre por nós porque nos ama primeiro, ele olha para nós primeiro, ele compreende-nos primeiro. Ele espera sempre por nós - Se alguém disser: “Amo a Deus”, mas odeia o seu irmão, é mentiroso. Porque aquele que não ama o seu irmão, a quem vê, é incapaz de amar a Deus, a quem não vê. - Se rezas muitos terços por dia mas depois falas mal de outros, e depois sentes rancor interior, ódio contra o próximo, isto é puro artifício, não é verdadeiro. - De Deus recebemos este mandamento: aquele que amar a Deus, ame também ao seu irmão» (1 Jo 4, 19-21). A Escritura admite o caso de uma pessoa que, mesmo procurando sinceramente a Deus, nunca consegue encontrá-lo; mas afirma também que nunca se pode negar as lágrimas dos pobres, sob pena de não encontrar a Deus. Deus não suporta o “ateísmo” daqueles que negam a imagem divina impressa em cada ser humano. Aquele ateísmo quotidiano: acredito em Deus, mas com os outros mantenho a minha distância e permito-me odiar os outros. Isto é ateísmo prático. Deixar de reconhecer a pessoa humana como imagem de Deus é um sacrilégio, uma abominação, é a pior ofensa que se pode levar ao templo e ao altar.
Estimados irmãos e irmãs, que a oração dos Salmos nos ajude a não cair na tentação da “impiedade”, ou seja, de viver, e talvez até de rezar como se Deus não existisse, como se os pobres não existissem.
Papa Francisco
Catequese na audiência geral 21.10.2020
Catequese - 12. Jesus, homem de oração
Estimados irmãos e irmãs, bom dia!
Hoje, nesta audiência, como já fizemos em audiências anteriores, vou ficar aqui. Gostaria muito de descer, para saudar cada um, mas devemos manter a distância, porque se eu descer agora, haverá aglomeração para cumprimentar, e isto é contra os cuidados, as precauções que devemos ter diante desta “senhora” que se chama Covid e que tanto nos prejudica. Por esta razão, perdoai-me se não desço para vos saudar: saudar-vos-ei daqui, mas levo-vos todos no coração. E vós, levai-me no vosso coração e rezai por mim. À distância, podem rezar uns pelos outros; obrigado pela compreensão.
No nosso itinerário de catequeses sobre a oração, depois de termos percorrido o Antigo Testamento, chegamos agora a Jesus. E Jesus rezava. O início da sua missão pública tem lugar com o batismo no rio Jordão. Os Evangelistas concordam em atribuir uma importância fundamental a este episódio. Narram o modo como todo o povo se reuniu em oração, e especificam que esta reunião teve um claro caráter penitencial (cf. Mc 1, 5; Mt 3, 8). O povo procurava João para se fazer batizado para o perdão dos pecados: há um caráter penitencial, de conversão.
Portanto, o primeiro ato público de Jesus é a participação numa oração comum do povo, uma prece do povo que se faz batizar, uma oração penitencial, na qual todos se reconhecem pecadores. Por isso, o Batista gostaria de se lhe opor, dizendo: «Eu é que devo ser batizado por ti. E Tu vens a mim?» (Mt 3, 14). O Batista compreende quem é Jesus. Mas Jesus insiste: o seu é um ato que obedece à vontade do Pai (v. 15), um ato de solidariedade para com a nossa condição humana. Ele reza com os pecadores do povo de Deus. Ponhamos isto na nossa cabeça: Jesus é o Justo, não é um pecador. Mas Ele queria vir até nós, pecadores, e Ele reza conosco, e quando rezamos Ele está conosco a rezar; Ele está conosco porque está no céu a rezar por nós. Jesus reza sempre com o seu povo, reza sempre conosco: sempre. Nunca rezamos sozinhos, rezamos sempre com Jesus. Ele não permanece na margem oposta do rio - “Eu sou justo, vós pecadores” – para marcar a sua diversidade e distância do povo desobediente, mas mergulha os seus pés nas mesmas águas de purificação. Faz-se como um pecador. E esta é a grandeza de Deus que enviou o Seu Filho que se aniquilou a si mesmo e se manifestou como um pecador.
Jesus não é um Deus distante, e não o pode ser. A encarnação revelou-o de forma completa e humanamente impensável. Assim, ao inaugurar a sua missão, Jesus coloca-se à frente de um povo de penitentes, como se estivesse encarregado de abrir uma brecha pela qual todos nós, depois d'Ele, devemos ter a coragem de passar. Mas a via, o caminho, é difícil; mas Ele vai abrindo o caminho. O Catecismo da Igreja Católica explica que esta é a novidade da plenitude dos tempos. Diz: «A oração filial, que o Pai esperava dos seus filhos, vai finalmente ser vivida pelo próprio Filho Único na sua humanidade, com e para os homens» (n. 2599). Jesus reza conosco. Ponhamos isto na cabeça e no coração: Jesus reza conosco.
Portanto, naquele dia, nas margens do rio Jordão, encontra-se toda a humanidade, com os seus anseios de oração não expressos. Há sobretudo o povo dos pecadores: aqueles que pensavam que não podiam ser amados por Deus, quantos não se atreviam a ir além do limiar do templo, aqueles que não rezavam porque não se sentiam dignos. Jesus veio para todos, até para eles e começa precisamente por se unir a eles, à frente deles.
O Evangelho de Lucas destaca sobretudo a atmosfera de oração em que o batismo de Jesus teve lugar: «Tendo sido batizado todo o povo, e no momento em que Jesus se encontrava em oração, depois de ter sido batizado, o céu abriu-se» (3, 21). Orando, Jesus abre a porta do céu, e daquela brecha desce o Espírito Santo. E do alto uma voz proclama a maravilhosa verdade: «Tu és o meu Filho muito amado; em ti pus todo o meu enlevo» (v. 22). Esta simples frase contém um tesouro imenso: faz-nos intuir algo do mistério de Jesus e do seu coração, sempre voltado para o Pai. No turbilhão da vida e do mundo que chegará a condená-lo, até nas experiências mais duras e tristes que deverá suportar, inclusive quando experimenta que não tem onde reclinar a cabeça (cf. Mt 8, 20), até quando o ódio e a perseguição se desencadeiam à sua volta, Jesus nunca está sem o amparo de uma morada: habita eternamente no Pai.
Eis a grandeza única da oração de Jesus: o Espírito Santo apodera-se da sua pessoa e a voz do Pai atesta que Ele é o amado, o Filho em quem se reflete plenamente.
Esta prece de Jesus, que nas margens do rio Jordão é totalmente pessoal - e assim será ao longo da sua vida terrena - no Pentecostes tornar-se-á, pela graça, a oração de todos os batizados em Cristo. Ele próprio obteve este dom para nós e convida-nos a rezar como Ele rezou.
Por esta razão, se numa noite de oração nos sentirmos fracos e vazios, se nos parecer que a vida tem sido completamente inútil, nesse momento devemos implorar que a prece de Jesus se torne também a nossa. “Hoje não posso rezar, não sei o que fazer: não me apetece, sou indigno, indigna”. Neste momento, devemos confiar n'Ele para que reze por nós. Neste momento, Ele está diante do Pai a rezar por nós, é o intercessor; mostra ao Pai as feridas por nós. Tenhamos confiança nisto! Se tivermos confiança, então ouviremos uma voz do céu, mais alta do que a voz que se eleva da nossa ignomínia, e ouviremos esta voz sussurrar palavras de ternura: “Tu és o amado de Deus, tu és filho, tu és a alegria do Pai que está nos céus”. Precisamente para nós, para cada um de nós, ressoa a palavra do Pai: mesmo que fôssemos rejeitados por todos, pecadores da pior espécie. Jesus não desceu às águas do Jordão para si mesmo, mas por todos nós. Foi todo o povo de Deus que se aproximou do Jordão para rezar, para pedir perdão, para fazer o batismo de penitência. E como diz aquele teólogo, aproximaram-se do Jordão “com a alma e os pés nus”. Isso é humildade. Rezar requer humildade. Abriu os céus, como Moisés abriu as águas do mar Vermelho, para que todos nós pudéssemos passar atrás dele. Jesus ofereceu-nos a sua própria oração, que é o seu diálogo de amor com o Pai. Concedeu-no-la como uma semente da Trindade, que quer criar raízes no nosso coração. Acolhamo-la! Acolhamos este dom, o dom da oração. Sempre com Ele. E não nos enganaremos. Obrigado!
Papa Francisco.
Catequese na audiência geral em 28.10.2020
Catequese - 10. A oração dos Salmos. 1
Prezados irmãos e irmãs, bom dia!
À medida que lemos a Bíblia, deparamo-nos continuamente com orações de vários tipos. Mas também encontramos um livro composto apenas de preces, um livro que se tornou pátria, ginásio e casa de incontáveis orantes. Trata-se do Livro dos Salmos. São 150 Salmos para recitar.
Faz parte dos livros sapienciais, porque comunica o “saber rezar” através da experiência do diálogo com Deus. Nos salmos encontramos todos os sentimentos humanos: alegrias, tristezas, dúvidas, esperanças e amarguras que coloram a nossa vida. O Catecismo afirma que cada salmo «é de tal sobriedade que pode, com verdade, ser rezado pelos homens de qualquer condição e de todos os tempos» (CIC, n. 2588). Ao ler e reler os salmos, aprendemos a linguagem da oração. Efetivamente, com o seu Espírito, Deus Pai inspirou-os no coração do rei David e de outros orantes, para ensinar cada homem e cada mulher a louvá-lo, a dar-lhe graças, a suplicá-lo, a invocá-lo na alegria e na tristeza, a narrar as maravilhas das suas obras e da sua Lei. Em síntese, os salmos são a palavra de Deus que nós, humanos, usamos para falar com Ele.
Neste livro não encontramos pessoas etéreas nem abstratas, pessoas que confundem a oração com uma experiência estética ou alienante. Os salmos não são textos compostos de forma teórica, são invocações, muitas vezes dramáticas, que nascem da experiência viva da existência. Para os recitar basta ser quem somos. Não nos devemos esquecer que para rezar bem devemos orar assim como somos, sem nos maquilharmos. Não é preciso maquilhar a alma para rezar. “Senhor, sou assim”, ir diante do Senhor como somos, com as coisas boas e também com as más que ninguém conhece, mas nós, dentro, conhecemos. Nos salmos ouvimos as vozes de orantes de carne e osso, cuja vida, como a de todos, está repleta de problemas, dificuldades e incertezas. O salmista não contesta radicalmente este sofrimento: ele sabe que pertence à vida. Contudo, nos salmos o sofrimento transforma-se em interrogação. Do sofrer ao perguntar.
E entre as muitas perguntas, há uma que permanece suspensa, como um brado incessante que percorre todo o livro de um lado ao outro. Uma pergunta, que repetimos muitas vezes: “Até quando, Senhor? Até quando?”. Cada dor pede libertação, cada lágrima invoca consolação, cada ferida aguarda a cura, cada calúnia, uma sentença de absolvição. “Até quando Senhor tenho que sofrer isto? Ouve-me Senhor!”: quantas vezes rezamos assim com este “até quando?”, Senhor, chega!
Ao fazer constantemente tais perguntas, os salmos ensinam-nos a não nos habituarmos à dor e lembram-nos que a vida não se salva, se não for curada. A existência do homem é um sopro, a sua história é fugaz, mas o orante sabe que é precioso aos olhos de Deus, e por isso tem sentido bradar. Isto é importante. Quando rezamos, fazemo-lo porque sabemos que somos preciosos aos olhos de Deus. É a graça do Espírito Santo que de dentro suscita em nós esta consciência: de ser preciosos aos olhos de Deus. E por isso somos induzidos a rezar.
A oração dos salmos é o testemunho deste grito: um brado múltiplo, porque na vida a dor assume mil formas, e tem o nome de doença, ódio, guerra, perseguição, desconfiança... Até ao supremo “escândalo”, o da morte. A morte aparece no Saltério como o inimigo mais irracional do homem: que crime merece um castigo tão cruel, que envolve a aniquilação e o fim? O orante dos salmos pede a Deus que intervenha onde todos os esforços humanos são vãos. É por isso que a oração, já em si mesma, é o caminho da salvação, o início da salvação.
Neste mundo todos sofrem: quer acreditemos em Deus quer o rejeitemos. Mas no Saltério, a dor torna-se relação, relação: um grito de ajuda à espera de encontrar um ouvido que ouça. Não pode permanecer sem sentido, sem propósito. Até as dores que sofremos não podem ser apenas casos específicos de uma lei universal: são sempre as “minhas” lágrimas. Pensai nisto: as lágrimas não são universais, são as “minhas” lágrimas. Cada um tem as próprias. As “minhas” lágrimas e a “minha” dor impelem-me a continuar com a oração. Sou as “minhas” lágrimas que jamais ninguém derramou antes de mim. Sim, muitos choraram, muitos. Mas as “minhas” lágrimas são as minhas, o “meu” sofrimento é meu, a minha dor é minha.
Antes de entrar na Sala, encontrei-me com os pais daquele sacerdote da diocese de Como que foi assassinado; ele foi morto no seu serviço para ajudar. As lágrimas daqueles pais são “deles” e cada um deles sabe quanto sofreu ao ver este filho que deu a sua vida ao serviço dos pobres. Quando queremos consolar alguém, não encontramos as palavras. Porquê? Porque não podemos chegar à sua dor, porque a “sua” dor é sua, as “suas” lágrimas são suas. O mesmo acontece conosco: as lágrimas, “a minha” dor é minha, as lágrimas são “minhas” e com estas lágrimas, com este sofrimento, dirijo-me ao Senhor.
Para Deus, todas as dores dos homens são sagradas. Assim reza o orante do salmo 56-55: «Vós conheceis os caminhos do meu exílio, vós recolhestes as minhas lágrimas no vosso cantil; não está tudo escrito no vosso livro?» (v. 9). Diante de Deus não somos desconhecidos, nem números. Somos rostos e corações, conhecidos um por um, pelo nome.
Nos salmos, o crente encontra uma resposta. Ele sabe que mesmo se todas as portas humanas estiverem trancadas, a porta de Deus está aberta. Mesmo se o mundo inteiro emitisse um veredito de condenação, em Deus há salvação.
“O Senhor ouve”: às vezes na oração é suficiente saber isto. Os problemas nem sempre se resolvem. Quem reza não é um iludido: sabe que muitas questões da vida terrena permanecem sem solução, sem saída; o sofrimento acompanhar-nos-á e, após uma batalha, haverá outras que nos esperam. Mas se formos ouvidos, tudo se torna mais suportável.
A pior coisa que pode acontecer é sofrer no abandono, sem ser recordado. É disto que a oração nos salva. Pois pode acontecer, e até frequentemente, que não compreendamos os desígnios de Deus. Mas os nossos gritos não estagnam aqui na terra: elevam-se até Ele, que tem o coração de Pai e chora por cada filho e filha que sofre e morre. Digo-vos uma coisa: faz-me bem, nos maus momentos, pensar no pranto de Jesus, quando chorou olhando para Jerusalém, quando chorou diante do túmulo de Lázaro. Deus chorou por mim, Deus chora, chora pelas nossas dores. Porque Deus quis fazer-se homem, dizia um escritor espiritual, para poder chorar. Pensar que Jesus chora comigo na dor é uma consolação: ajuda-nos a seguir em frente. Se nos mantivermos numa relação com Ele, a vida não nos poupa os sofrimentos, mas abre-se a um grande horizonte de bem e encaminha-se para a sua realização. Coragem, em frente com a oração. Jesus está sempre ao nosso lado.
Papa Francisco
Catequese na audiência geral 14.10.2020
Catequese - 9. A oração de Elias
Estimados irmãos e irmãs, bom dia!
Retomamos hoje as catequeses sobre a oração, que interrompemos para fazer a catequese sobre o cuidado da criação, e agora recomeçamos; e encontramos um dos personagens mais fascinantes de toda a Sagrada Escritura: o profeta Elias. Ele supera os limites do seu tempo e podemos ver a sua presença também nalguns episódios do Evangelho. Ele aparece ao lado de Jesus, juntamente com Moisés, no momento da Transfiguração (cf. Mt 17, 3). O próprio Jesus refere-se à sua figura para dar crédito ao testemunho de João Batista (cf. Mt 17, 10-13).
Na Bíblia, Elias aparece repentinamente, de uma forma misteriosa, proveniente de uma pequena aldeia que é completamente marginal (cf. 1 Rs 17, 1); e no final deixará a cena, sob o olhar do seu discípulo Eliseu, numa carruagem de fogo que o levará para o céu (cf. 2 Rs 2, 11-12). Portanto, é um homem sem uma origem exata, e sobretudo sem um fim, raptado para o céu: por este motivo, o seu regresso era esperado antes da vinda do Messias, como um precursor. Era assim que se esperava o regresso de Elias.
A Escritura apresenta Elias como um homem de fé cristalina: no seu próprio nome, que poderia significar “Javé é Deus”, está contido o segredo da sua missão. Ele será assim para o resto da sua vida: um homem integérrimo, incapaz de compromissos mesquinhos. O seu símbolo é o fogo, a imagem do poder purificador de Deus. Será o primeiro a ser posto à prova e permanecerá fiel. Ele é o exemplo de todas as pessoas de fé que conhecem tentações e sofrimentos, mas não deixam de viver à altura do ideal para o qual nasceram.
A oração é a seiva que alimenta constantemente a sua existência. Por esta razão, é um dos personagens mais queridos à tradição monástica, a ponto que alguns o elegeram pai espiritual da vida consagrada a Deus. Elias é o homem de Deus, que se levanta como defensor da primazia do Altíssimo. No entanto, também ele é obrigado a enfrentar as próprias fragilidades. É difícil dizer quais experiências lhe foram mais úteis: se a derrota dos falsos profetas no Monte Carmelo (cf. 1 Rs 18, 20-40), ou a desorientação na qual constata que «não é melhor do que os seus pais» (cf. 1 Rs 19, 4). Na alma de quem reza, o sentido da própria debilidade é mais precioso do que momentos de exaltação, quando parece que a vida é uma cavalgada de vitórias e sucessos. Na oração acontece sempre isto: momentos de oração que sentimos que nos animam, até de entusiasmo, e momentos de prece de dor, de aridez, de provações. A oração é assim: deixar-se levar por Deus e deixar-se inclusive flagelar por situações negativas e por tentações. Esta é uma realidade que se encontra em muitas outras vocações bíblicas, também no Novo Testamento; pensemos, por exemplo, em São Pedro e São Paulo. Também a vida deles era assim: momentos de exultação e momentos de desânimo, de sofrimento.
Elias é o homem de vida contemplativa e, ao mesmo tempo, de vida ativa, preocupado com os acontecimentos do seu tempo, capaz de se lançar contra o rei e a rainha, quando eles mandaram matar Nabot para se apoderarem da sua vinha (cf. 1 Rs 21, 1-24). Quanta necessidade temos de crentes, de cristãos zelosos, que ajam diante de pessoas que desempenham responsabilidades de dirigentes, com a coragem de Elias, para dizer: “isto não se deve fazer! Isto é um assassínio!”. Precisamos do espírito de Elias. Deste modo, ele mostra-nos que não deve haver dicotomia na vida de quantos rezam: está-se perante o Senhor e vai-se ao encontro dos irmãos aos quais Ele envia. A prece não é um fechar-se com o Senhor para mascarar a alma: não, isto não é oração, uma oração assim é fingida. A oração é um confronto com Deus e um deixar-se enviar para servir os irmãos. A prova da oração é o amor concreto ao próximo. E vice-versa: os crentes agem no mundo depois de terem, primeiro, silenciado e rezado; caso contrário, a sua ação é impulsiva, desprovida de discernimento, é um correr ofegante sem meta. Os crentes comportam-se assim, cometem tantas injustiças, porque não foram primeiro rezar diante do Senhor, discernir o que devem fazer.
As páginas da Bíblia sugerem que também a fé de Elias progrediu: ele cresceu na oração, aperfeiçoou-a pouco a pouco. Para ele, o rosto de Deus tornou-se mais nítido ao longo do caminho. Até atingir o seu ápice naquela experiência extraordinária, quando Deus se manifestou a Elias no monte (cf. 1 Rs 19, 9-13). Ele manifesta-se não na tempestade impetuosa, não no tremor de terra nem no fogo devorador, mas no «murmúrio de uma leve brisa» (v. 12). Ou melhor, uma tradução que reflete bem aquela experiência: um fio de silêncio sonoro. É assim que Deus se manifesta a Elias. É com este sinal humilde que Deus comunica com Elias, que naquele momento é um profeta fugitivo que perdeu a paz. Deus vai ao encontro de um homem cansado, de um homem que pensava ter falhado em todas as frentes, e com aquela brisa leve, com aquele fio de silêncio sonoro faz voltar ao seu coração a calma e a paz.
Esta é a vicissitude de Elias, mas parece escrita para todos nós. Em certas noites podemos sentir-nos inúteis e solitários. É então que a oração virá e baterá à porta do nosso coração. Todos nós podemos aceitar uma parte do manto de Elias, como o seu discípulo Eliseu aceitou metade do manto. E mesmo que tivéssemos feito algo de errado, ou se nos sentíssemos ameaçados e apavorados, regressando a Deus com a oração, voltarão também como que por milagre a serenidade e a paz. Eis quanto nos ensina o exemplo de Elias.
Papa Francisco
Catequese na audiência geral 07.10.2020
Nas últimas semanas, refletimos juntos, à luz do Evangelho, sobre como curar o mundo que sofre de um mal-estar que a pandemia realçou e acentuou. Já havia o mal-estar: a pandemia realçou-o mais, acentuou-o. Percorremos os caminhos da dignidade, da solidariedade e da subsidiariedade, caminhos indispensáveis para promover a dignidade humana e o bem comum. E, como discípulos de Jesus, começamos a seguir os seus passos, optando pelos pobres, reconsiderando o uso dos bens e cuidando da casa comum. No meio da pandemia que nos aflige, ancorámo-nos nos princípios da doutrina social da Igreja, deixando-nos guiar pela fé, pela esperança e pela caridade. Aqui encontramos uma ajuda sólida para sermos agentes de transformação que fazem sonhos grandiosos, que não se detêm nas mesquinharias que dividem e magoam, mas encorajam a gerar um mundo novo e melhor.
Gostaria que este percurso não termine com estas minhas catequeses, mas que possamos continuar a caminhar juntos, «mantendo os olhos fixos em Jesus» (Hb 12, 2), como ouvimos no início; o nosso olhar em Jesus que salva e cura o mundo. Como o Evangelho nos mostra, Jesus curou os doentes de todos os tipos (cf. Mt 9, 35), restituiu a vista aos cegos, a palavra aos mudos e audição aos surdos. E quando curava doenças e enfermidades físicas, também curava o espírito perdoando pecados, porque Jesus perdoa sempre, bem como as «dores sociais» incluindo os marginalizados (cf. Catecismo da Igreja Católica, 1421). Jesus, que renova e reconcilia cada criatura (cf. 2 Cor 5, 17; Cl 1, 19-20), concede-nos os dons necessários para amar e curar como ele sabia fazer (cf. Lc 10, 1-9; Jo 15, 9-17), para cuidar de todos sem distinção de raça, língua ou nação.
Para que isto aconteça realmente, precisamos de contemplar e apreciar a beleza de cada ser humano e de cada criatura. Fomos concebidos no coração de Deus (cf. Ef 1, 3-5). «Cada um de nós é o fruto de um pensamento de Deus. Cada um de nós é querido, cada um de nós é amado, cada um é necessário»[1]. Além disso, cada criatura tem algo a dizer-nos sobre Deus Criador (cf. Enc. Laudato si', 69.239). Reconhecer esta verdade e dar graças pelos vínculos íntimos da nossa comunhão universal com todas as pessoas e todas as criaturas ativa «um cuidado generoso e cheio de ternura» (ibid., 220). Ajuda-nos também a reconhecer Cristo presente nos nossos irmãos e irmãs pobres e sofredores, a encontrá-los e a ouvir o seu clamor e o clamor da terra que lhes faz eco (cf. ibid., 49).
Mobilizados interiormente por estes clamores que reclamam de nós outra linha de ação (cf. ibid., 53), reclamam uma mudança, poderemos contribuir para a cura das relações com os nossos dons e capacidades (cf. ibid., 19). Poderemos regenerar a sociedade e não voltar à chamada “normalidade”, que é uma normalidade doentia, aliás, estava doente já antes da pandemia: a pandemia realçou-a! “Agora voltemos à normalidade”: não, assim não pode ser, porque esta normalidade estava doente de injustiças, desigualdades e degradação ambiental. A normalidade a que somos chamados é a do Reino de Deus, onde «os cegos veem e os coxos andam, os leprosos ficam limpos e os surdos ouvem, os mortos ressuscitam e a Boa Nova é anunciada aos pobres» (Mt 11, 5). E ninguém faz de contas olhando para o outro lado. É isto que temos de fazer para mudar. Na normalidade do Reino de Deus o pão chega a todos e sobra, a organização social baseia-se em contribuir, partilhar e distribuir, não em possuir, excluir e acumular (cf. Mt 14, 13-21). O gesto que faz progredir uma sociedade, uma família, um bairro, uma cidade, todos, é doar-se, dar, que não é dar esmola, mas uma dádiva que vem do coração. Um gesto que afasta o egoísmo e a ansiedade de possuir. Mas o modo cristão de o fazer não é um modo mecânico: é um modo humano. Nunca conseguiremos sair da crise que emergiu da pandemia, mecanicamente, com novos instrumentos - que são muito importantes, que nos fazem ir em frente e dos quais não devemos ter medo - mas sabendo que os meios mais sofisticados poderão fazer muitas coisas, mas uma coisa eles nunca poderão fazer: a ternura. E a ternura é o próprio sinal da presença de Jesus. Aproximar-se do outro para caminhar, para curar, para ajudar, para se sacrificar pelo outro.
Assim, a normalidade do Reino de Deus é importante: que o pão chegue a todos, a organização social se baseie em contribuir, partilhar e distribuir, com ternura, e não em possuir, excluir e acumular. Pois no final da existência nada levaremos para a outra vida!
Um pequeno vírus continua a causar feridas profundas e a expor as nossas vulnerabilidades físicas, sociais e espirituais. Pôs a nu a grande desigualdade que reina no mundo: desigualdade de oportunidades, de bens, de acesso aos cuidados médicos, à tecnologia, à educação: milhões de crianças não podem ir à escola, e assim por diante. Estas injustiças não são naturais nem inevitáveis. São obra do homem, vêm de um modelo de crescimento separado dos valores mais profundos. O desperdício das sobras de refeições: com esse desperdício podemos dar de comer a toda a gente. E isto fez com que muitas pessoas perdessem a esperança e aumentou a incerteza e a angústia. É por isso que, para sair da pandemia, temos de encontrar a cura não só para o coronavírus - que é importante! - mas também para os grandes vírus humanos e socioeconómicos. Não devemos escondê-los, dando uma pincelada para que não possam ser vistos. E certamente não podemos esperar que o modelo económico subjacente ao desenvolvimento injusto e insustentável resolva os nossos problemas. Não o fez nem o fará, pois não o pode fazer, apesar de alguns falsos profetas continuarem a prometer “o efeito dominó” que nunca chega[2]. Ouvistes o teorema do copo: o importante é que o copo se encha e assim depois cai sobre os pobres e sobre os demais, e recebem riquezas. Mas há um fenómeno: o copo começa a encher-se e quando está quase cheio, cresce, cresce e cresce mas nunca acontece o efeito dominó. Deve-se ter cuidado.
Precisamos de trabalhar urgentemente para gerar boas políticas, para conceber sistemas de organização social que recompensem a participação, o cuidado e a generosidade, e não a indiferença, a exploração e os interesses particulares. Devemos ir em frente com ternura. Uma sociedade solidária e equitativa é uma sociedade mais saudável. Uma sociedade participativa - onde os “últimos” são considerados os “primeiros” - fortalece a comunhão. Uma sociedade onde a diversidade é respeitada é muito mais resistente a qualquer tipo de vírus.
Coloquemos este caminho de cura sob a proteção da Virgem Maria, Nossa Senhora da Saúde. Ela, que carregou Jesus no seu ventre, nos ajude a ter confiança. Animados pelo Espírito Santo, poderemos trabalhar juntos para o Reino de Deus que Cristo inaugurou, vindo até nós, neste mundo. É um Reino de luz no meio da escuridão, de justiça no meio de tantos ultrajes, de alegria no meio de tanta dor, de cura e salvação no meio da doença e da morte, de ternura no meio do ódio. Que Deus nos conceda “viralizar” o amor e globalizar a esperança à luz da fé.
Papa Francisco
Catequese na audiência geral 30.09.2020
[1] Bento XVI, Homilia para o Início do Ministério Petrino (24 de abril de 2005); cf. Laudato si', 65.
[2] "Trickle-down effect" em inglês, "derrame" em espanhol (cf. Evangelii gaudium, 54).
Amados irmãos e irmãs, bom dia!
Para sair de uma pandemia, é preciso cuidar-se e cuidar uns dos outros. E devemos apoiar aqueles que cuidam dos mais débeis, dos doentes e dos idosos. Há o hábito de deixar os idosos de lado, de os abandonar: isso é mau. Estas pessoas - bem definidas pelo termo espanhol “cuidadores”, aqueles que cuidam dos doentes - desempenham um papel essencial na sociedade atual, mesmo que muitas vezes não recebam o reconhecimento nem a remuneração que merecem. Cuidar é uma regra de ouro da nossa condição humana, e traz consigo saúde e esperança (cf. Enc. Laudato si' [LS], 70). Cuidar dos doentes, dos necessitados, dos abandonados: esta é uma riqueza humana e também cristã.
Devemos de igual modo dirigir este cuidado à nossa casa comum: à terra e a cada criatura. Todas as formas de vida estão interligadas (cf. ibid., 137-138), e a nossa saúde depende da saúde dos ecossistemas que Deus criou e dos quais Ele nos encarregou de cuidar (cf. Gn 2, 15). Por outro lado, abusar deles, é um pecado grave que prejudica, que é prejudicial e que nos deixa doentes (cf. LS 8; 66). O melhor antídoto contra este mau uso da nossa casa comum é a contemplação (cf. ibid., 85; 214). Mas porquê? Não há vacina para isto, para o cuidado da casa comum, para não a pôr de lado? Qual é o antídoto contra a doença de não tomar conta da casa comum? É a contemplação. «Quando não se aprende a parar a fim de admirar e apreciar o que é belo, não surpreende que tudo se transforme em objeto de uso e abuso sem escrúpulos» (ibid., 215). Também no respeitante ao “descartável”. No entanto, a nossa casa comum, a criação, não é um mero “recurso”. As criaturas têm um valor em si mesmas e «refletem, cada uma à sua maneira, um raio da infinita sabedoria e bondade de Deus» (Catecismo da Igreja Católica, 339). Este valor e este raio de luz divina devem ser descobertos e, para os descobrirmos, precisamos de estar em silêncio, precisamos de ouvir, e precisamos de contemplar. Também a contemplação cura a alma.
Sem contemplação, é fácil cair num antropocentrismo desequilibrado e soberbo, o “Eu” no centro de tudo, que sobredimensiona o nosso papel como seres humanos, posicionando-nos como dominadores absolutos de todas as outras criaturas. Uma interpretação distorcida dos textos bíblicos sobre a criação contribuiu para esta má interpretação, que leva à exploração da terra ao ponto de a sufocar. Exploração da criação: este é o pecado. Julgamos que estamos no centro, pretendendo ocupar o lugar de Deus e assim arruinamos a harmonia da criação, a harmonia do desígnio de Deus. Tornamo-nos predadores, esquecendo a nossa vocação como guardiões da vida. Certamente, podemos e devemos trabalhar a terra para viver e nos desenvolver. Mas trabalho não é sinónimo de exploração, e está sempre acompanhado de cuidado: lavrar e proteger, trabalhar e cuidar... Esta é a nossa missão (cf. Gn 2, 15). Não podemos pretender continuar a crescer a nível material, sem cuidarmos da casa comum que nos acolhe. Os nossos irmãos e irmãs mais pobres e a nossa mãe terra gemem pelos danos e injustiças que causámos e reclamam outro rumo. Reclamam de nós uma conversão, uma mudança de rumo: cuidar também da terra, da criação.
É, pois, importante recuperar a dimensão contemplativa, ou seja, olhar para a terra, para criação como um dom, e não como algo a ser explorado para fins lucrativos. Quando contemplamos, descobrimos nos outros e na natureza algo muito maior do que a sua utilidade. Eis o cerne do problema: contemplar é ir além da utilidade de uma coisa. Contemplar a beleza não significa explorá-la: contemplar é gratuidade. Descobrimos o valor intrínseco das coisas que lhes foi dado por Deus. Como muitos mestres espirituais nos ensinaram, o céu, a terra, o mar, cada criatura possui esta capacidade icónica, esta capacidade mística de nos reconduzir ao Criador e à comunhão com a criação. Por exemplo, Santo Inácio de Loyola, no final dos seus Exercícios espirituais, convida-nos a “Contemplar para chegar ao amor”, ou seja, a considerar como Deus olha para as suas criaturas e alegrar-se com elas; a descobrir a presença de Deus nas suas criaturas e, com liberdade e graça, amá-las e cuidar delas.
A contemplação, que nos leva a uma atitude de cuidado, não significa olhar para a natureza de fora, como se não estivéssemos imersos nela. Mas estamos dentro da natureza, somos parte da natureza. Pelo contrário, partimos do interior, reconhecendo-nos como parte da criação, tornando-nos protagonistas e não meros espetadores de uma realidade amorfa apenas para ser explorada. Aqueles que contemplam desta forma sentem-se maravilhados não só pelo que veem, mas também porque se sentem parte integrante desta beleza; e inclusive se sentem chamados a preservá-la, a protegê-la. E há uma coisa que não devemos esquecer: quem não sabe contemplar a natureza e a criação, não sabe contemplar as pessoas na sua riqueza. E quem vive para explorar a natureza, acaba por explorar as pessoas e tratá-las como escravas. Esta é uma lei universal: se não se sabe contemplar a natureza, será muito difícil saber contemplar as pessoas, a beleza das pessoas, o irmão, a irmã.
Quem sabe contemplar, mais facilmente se porá em ação para mudar o que produz degradação e danos à saúde. Comprometer-se-á a educar e promover novos hábitos de produção e consumo, a contribuir para um novo modelo de crescimento económico que garanta o respeito pela casa comum e o respeito pelas pessoas. O contemplativo em ação tende a tornar-se o guardião do ambiente: isto é muito bom! Cada um de nós deve ser guardião do ambiente, da pureza do ambiente, procurando conjugar saberes ancestrais de culturas milenares com novos conhecimentos técnicos, de modo a que o nosso estilo de vida seja sempre sustentável.
Por fim, contemplar e cuidar: estas são duas atitudes que mostram o caminho para corrigir e reequilibrar a nossa relação como seres humanos com a criação. Muitas vezes, a nossa relação com a criação parece ser uma relação entre inimigos: destruir a criação em meu benefício; explorar a criação em meu proveito. Não esqueçamos que isto se paga caro; não esqueçamos aquele ditado espanhol: “Deus perdoa sempre; nós perdoamos de vez em quando; a natureza nunca perdoa”. Hoje estava a ler no jornal sobre aqueles dois grandes glaciares na Antártida, perto do Mar de Amundsen: eles estão prestes a desabar. Será terrível, porque o nível do mar subirá e isto causará muitas, muitas dificuldades e muito mal. E porquê? Por causa do sobreaquecimento, por não se cuidar do ambiente, por não se cuidar da casa comum. Por outro lado, quando tivermos esta relação - deixem-me dizer a palavra - “fraterna” no sentido figurativo com a criação, tornar-nos-emos guardiões da casa comum, guardiões da vida e guardiões da esperança, preservaremos o património que Deus nos confiou para que as gerações futuras o possam desfrutar. E alguns podem dizer: “Mas, eu safo-me desta maneira”. Mas o problema não é como te safas hoje - isto foi dito por um teólogo alemão, protestante, competente: Bonhoeffer - o problema não é como te desenrascas hoje; o problema é: qual será a herança, a vida da geração futura? Pensemos nos filhos, nos netos: que lhes deixaremos se explorarmos a criação? Protejamos este caminho para nos tornarmos “guardiões” da casa comum, guardiões da vida e da esperança. Preservemos o património que Deus nos confiou, para que as gerações futuras possam usufruir dele. Penso de modo especial nos povos indígenas, com os quais todos nós temos uma dívida de gratidão - até de penitência, para reparar o mal que lhes fizemos. Mas estou também a pensar nos movimentos, associações, grupos populares, que estão comprometidos a tutelar o próprio território com os seus valores naturais e culturais. Estas realidades sociais nem sempre são apreciadas, por vezes são até impedidas, porque não produzem dinheiro; mas na realidade contribuem para uma revolução pacífica, poderíamos chamar-lhe a “revolução do cuidado”. Contemplar para cuidar, contemplar para salvaguardar, preservar a nós, a criação, os nossos filhos, os nossos netos, e tutelar o futuro. Contemplar para cuidar e para preservar e deixar uma herança à futura geração.
Mas não se deve contudo delegar a alguns: aquilo que é tarefa de cada ser humano. Cada um de nós pode e deve tornar-se um “guardião da casa comum”, capaz de louvar a Deus pelas suas criaturas, de contemplar as criaturas e de as proteger.
Papa Francisco
Catequese na audiência geral 16.08.2020
Catequese - “Curar o Mundo”: 5. A solidariedade e a virtude da fé
Estimados irmãos e irmãs, bom dia!
Depois de tantos meses retomamos o nosso encontro direto e já não através da tela. Direto. Isto é bom! A atual pandemia pôs em evidência a nossa interdependência: estamos todos ligados uns aos outros, tanto no mal como no bem. Por conseguinte, para sairmos melhores desta crise, devemos fazê-lo juntos, não sozinhos, juntos. Não sozinhos porque não se pode! Ou juntos ou não é possível. Temos que o fazer em conjunto, todos nós, em solidariedade. Gostaria de sublinhar hoje esta palavra: solidariedade.
Como família humana, temos uma origem comum em Deus; vivemos numa casa comum, o planeta-jardim, a terra em que Deus nos colocou; e temos um destino comum em Cristo. Mas quando esquecemos tudo isto, a nossa interdependência torna-se a dependência de uns em relação aos outros – perdemos esta harmonia da interdependência na solidariedade – aumentando a desigualdade e a marginalização; o tecido social debilita-se e o meio ambiente deteriora-se. É sempre o mesmo modo de agir.
Portanto, hoje o princípio de solidariedade é mais necessário do que nunca, como ensinou São João Paulo II (cf. Enc. Sollicitudo rei socialis, 38-40). Num mundo interligado, experimentamos o que significa viver na mesma “aldeia global”. Esta expressão é bonita: o grande mundo mais não é do que uma aldeia global porque tudo está interligado. Mas nem sempre transformamos esta interdependência em solidariedade. Há um longo caminho entre a interdependência e a solidariedade. Ao contrário, o egoísmo - individual, nacional e de grupos de poder - e a rigidez ideológica alimentam «estruturas de pecado» (ibid., 36).
«Embora um pouco desgastada e, por vezes, até mal interpretada, a palavra “solidariedade” significa muito mais do que algumas ações esporádicas de generosidade. É mais! Supõe a criação de uma nova mentalidade que pense em termos de comunidade, de prioridade da vida de todos sobre a apropriação dos bens por parte de alguns» (cf. Exort. ap. Evangelii gaudium, 188). Isto significa solidariedade. Não é apenas questão de ajudar os outros – é bom fazer isto, mas é mais do que isto – trata-se de justiça (cf. Catecismo da Igreja Católica, 1938-1940). Para ser solidária e dar frutos, a interdependência precisa de raízes fortes no humano e na natureza criada por Deus, precisa de respeito pelos rostos e pela Terra.
A Bíblia admoesta-nos desde o início. Pensemos na narração da Torre de Babel (cf. Gn 11, 1-9) que descreve o que acontece quando procuramos alcançar o céu - a nossa meta - ignorando a ligação com o humano, com a criação e com o Criador. É um modo de dizer: isto acontece todas as vezes que alguém quer subir, subir sem ter os outros em consideração. Só eu! Pensemos na torre. Construímos torres e arranha-céus, mas destruímos a comunidade. Unificamos edifícios e línguas, mas mortificamos a riqueza cultural. Queremos ser senhores da Terra, mas arruinamos a biodiversidade e o equilíbrio ecológico. Falei-vos noutra audiência sobre aqueles pescadores de San Benedetto del Tronto que este ano vieram e me disseram: “Tiramos 24 toneladas de lixo do mar, metade do qual era plástico”. Refleti! Eles têm o espírito para pescar, mas também para tirar o lixo e para limpar o mar. Mas isto [a poluição] arruína a terra, não ser solidário com a terra, que é um dom, e para com o equilíbrio ecológico.
Lembro-me de um conto medieval que descreve esta “síndrome de Babel”, que é quando não existe solidariedade. Esta narração medieval conta que durante a construção da torre, quando um homem caía – eram escravos – e morria, ninguém dizia nada, no máximo: diziam “pobre homem, errou e caiu”. Ao contrário, se caísse um tijolo, todos se queixavam. E se alguém fosse culpado era punido. Porquê? Porque um tijolo era difícil de fazer, de preparar, de cozer. Eram necessários tempo e trabalho para fabricar um tijolo. Um tijolo valia mais do que a vida humana. Cada um de nós penso no que acontece hoje. Infelizmente, ainda hoje pode acontecer algo semelhante. Algumas quotas do mercado financeiro – vimos nos jornais estes dias – caem e as notícias aparecem em todas as agências. Milhares de pessoas morrem de fome, de miséria, e ninguém fala sobre isto.
O Pentecostes está diametralmente oposto a Babel, ouvimos no início da audiência (cf. At 2, 1-3). Descendo do alto como vento e fogo, o Espírito Santo investe a comunidade fechada no cenáculo, infunde-lhe o poder de Deus, impele-a a sair e a proclamar o Senhor Jesus a todos. O Espírito cria unidade na diversidade, cria harmonia. Na narração da Torre de Babel não havia harmonia; havia aquele ir em frente para ganhar. Ali o homem era um mero instrumento, uma simples “força de trabalho”, mas aqui, no Pentecostes, cada um de nós é um instrumento, mas um instrumento comunitário que participa inteiramente na construção da comunidade. São Francisco de Assis conhecia bem isto e, animado pelo Espírito, dava a todas as pessoas, aliás, a todas as criaturas, o nome de irmão ou irmã (cf. LS, 11; cf. São Boaventura, Legenda maior, VIII, 6: FF 1.145). Recordemos também o irmão lobo.
No Pentecostes, Deus faz-se presente e inspira a fé da comunidade unida na diversidade e na solidariedade. Diversidade e solidariedade unidas em harmonia, este é o caminho. Uma diversidade solidária possui os “anticorpos” para que a singularidade de cada um - que é um dom, único e irrepetível - não adoeça de individualismo, de egoísmo. A diversidade solidária também possui os anticorpos para curar estruturas e processos sociais que degeneraram em sistemas de injustiça, em sistemas de opressão (cf. Compêndio da Doutrina Social da Igreja, 192). Portanto, hoje a solidariedade é o caminho a percorrer rumo a um mundo pós-pandemia, para a cura das nossas doenças interpessoais e sociais. Não há outro. Ou seguimos o caminho da solidariedade ou a situação vai piorar. Quero repetir: não se sai de uma crise da mesma forma que antes. A pandemia é uma crise. De uma crise só se sai melhores ou piores. Temos que escolher. E a solidariedade é precisamente um caminho para sairmos melhores da crise, não com mudanças superficiais, com uma pincelada, e tudo está bem. Não, melhores!
No meio da crise, uma solidariedade guiada pela fé permite-nos traduzir o amor de Deus na nossa cultura globalizada, não construindo torres nem muros – e quantos muros estão a ser construídos hoje – que dividem mas depois desmoronam, mas tecendo comunidades e apoiando processos de crescimento verdadeiramente humano e sólido. E nisto ajuda a solidariedade. Faço uma pergunta: penso nas necessidades dos outros? Cada qual responda no seu coração.
No meio de crises e tempestades, o Senhor interpela-nos e convida-nos a despertar e a ativar esta solidariedade capaz de conferir solidez, apoio e um sentido a estas horas em que tudo parece naufragar. A criatividade do Espírito Santo nos encoraje a gerar novas formas de hospitalidade familiar, fraternidade fecunda e solidariedade universal. Obrigado.
Papa Francisco
Catequese na audiência geral 02.09.2020
Catequese - “Curar o Mundo”: 4. O destino universal dos bens e a virtude da esperança
Amados irmãos e irmãs, bom dia!
Perante a pandemia e as suas consequências sociais, muitos correm o risco de perder a esperança. Neste tempo de incerteza e angústia, convido todos a aceitarem o dom da esperança que vem de Cristo. É Ele que nos ajuda a navegar nas águas tumultuosas da doença, da morte e da injustiça, que não têm a última palavra sobre o nosso destino final.
A pandemia pôs em evidência e agravou os problemas sociais, especialmente a desigualdade. Alguns podem trabalhar de casa, enquanto para muitos outros isto é impossível. Algumas crianças, apesar das dificuldades, podem continuar a receber uma educação escolar, enquanto para muitas outras houve uma brusca interrupção. Algumas nações poderosas podem emitir moeda para enfrentar a emergência, enquanto que para outras isso significaria hipotecar o futuro.
Estes sintomas de desigualdade revelam uma doença social; é um vírus que provém de uma economia doente. Devemos simplesmente dizê-lo: a economia está doente. Adoeceu. É o resultado de um crescimento económico iníqua - esta é a doença: o fruto de um crescimento económico iníquo - que prescinde dos valores humanos fundamentais. No mundo de hoje, muito poucas pessoas ricas possuem mais do que o resto da humanidade. Repito isto porque nos fará refletir: poucos riquíssimos, um pequeno grupo, possui mais que o resto da humanidade. Esta é mera estatística. É uma injustiça que clama aos céus! Ao mesmo tempo, este modelo económico é indiferente aos danos infligidos à casa comum. Não cuida da casa comum. Estamos quase a superar muitos dos limites do nosso maravilhoso planeta, com consequências graves e irreversíveis: desde a perda de biodiversidade e alterações climáticas ao aumento do nível dos mares e à destruição das florestas tropicais. A desigualdade social e a degradação ambiental andam de mãos dadas e têm a mesma raiz (cf. Enc. Laudato si', 101): a do pecado de querer possuir, de querer dominar os irmãos e irmãs, de pretender possuir e dominar a natureza e o próprio Deus. Mas este não é o desígnio da criação.
«No princípio, Deus confiou a terra e os seus recursos à gestão comum da humanidade, para que dela cuidasse» (Catecismo da Igreja Católica, 2402). Deus pediu-nos que dominássemos a terra em Seu nome (cf. Gn 1, 28), cultivando-a e cuidando dela como se fosse um jardim, o jardim de todos (cf. Gn 2, 15). «Enquanto “cultivar” quer dizer lavrar ou trabalhar [...] “guardar” significa proteger..., preservar» (LS, 67). Mas atenção a não interpretar isto como uma carta branca para fazer da terra aquilo que se quer. Não. Existe «uma relação responsável de reciprocidade» (ibid.) entre nós e a natureza. Uma relação de reciprocidade responsável entre nós e a natureza. Recebemos da criação e damos por nossa vez. «Cada comunidade pode tomar da bondade da terra aquilo de que necessita para a sua sobrevivência, mas tem também o dever de a proteger» (ibidem). Ambas as partes.
De fato, a terra «precede-nos e foi-nos dada» (ibid.), foi dada por Deus «a toda a humanidade» (CIC, 2402). E por isso é nosso dever assegurar que os seus frutos cheguem a todos, e não apenas a alguns. Este é um elemento-chave da nossa relação com os bens terrenos. Como recordaram os padres do Concílio Vaticano II, «quem usa desses bens, não deve considerar as coisas exteriores que legitimamente possui só como próprias, mas também como comuns, no sentido de que possam beneficiar não só a si mas também aos outros» (Const. past. Gaudium et spes, 69). De facto, «a propriedade dum bem faz do seu detentor um administrador da providência de Deus, com a obrigação de o fazer frutificar e de comunicar os seus benefícios aos outros» (CIC, 2404). Nós somos administradores dos bens, não donos. Administradores. “Sim, mas o bem é meu”. É verdade, é teu, mas para o administrares, não para o possuíres egoisticamente.
Para assegurar que o que possuímos seja um valor para a comunidade, «a autoridade política tem o direito e o dever de regular, em função do bem comum» (ibid., 2406; [cf. GS 71; São João Paulo II, Carta enc. Sollicitudo rei socialis, 42; Carta enc. Centesimus annus, 40.48]).
A «subordinação da propriedade privada ao destino universal dos bens [...] é uma “regra de ouro” do comportamento social, e o primeiro princípio de toda a ordem ético-social» (LS, 93; [cf. São João Paulo II, Carta enc. Laborem exercens, 19]).
As propriedades, o dinheiro são instrumentos que podem servir para a missão. Mas transformamo-los facilmente em fins individuais ou coletivos. E quando isto acontece, são minados os valores humanos essenciais. O homo sapiens deforma-se e torna-se uma espécie de homo oeconomicus - num sentido menor - individualista, calculista e dominador. Esquecemos que, sendo criados à imagem e semelhança de Deus, somos seres sociais, criativos e solidários, com uma imensa capacidade de amar. Com frequência esquecemo-nos disto. De facto, somos os seres mais cooperadores entre todas as espécies, e florescemos em comunidade, como se pode ver na experiência dos santos. Há um ditado espanhol que me inspirou esta frase, que reza assim: Florescemos en racimo, como los santos. Florescemos em comunidade como se vê na experiência dos santos.
Quando a obsessão de possuir e dominar exclui milhões de pessoas dos bens primários; quando a desigualdade econômica e tecnológica é tal que dilacera o tecido social; e quando a dependência do progresso material ilimitado ameaça a casa comum, então não podemos ficar a olhar de braços cruzados. Não, isso é desolador. Não podemos ficar a olhar! Com os olhos fixos em Jesus (cf. Hb 12, 2) e com a certeza de que o seu amor opera através da comunidade dos seus discípulos, devemos agir em conjunto na esperança de gerar algo diferente e melhor. A esperança cristã, enraizada em Deus, é a nossa âncora. Sustenta a vontade de partilhar, fortalecendo a nossa missão como discípulos de Cristo, que partilhou tudo connosco.
Isto foi compreendido pelas primeiras comunidades cristãs, que, como nós, viveram tempos difíceis. Conscientes de formar um só coração e uma só alma, punham todos os seus bens em comum, dando testemunho da abundante graça de Cristo sobre eles (cf. At 4, 32-35). Nós estamos a viver uma crise. A pandemia pôs-nos todos em crise. Mas recordai-vos: de uma crise não se pode sair iguais, ou saímos melhores ou saímos piores. Eis a nossa opção. Depois da crise, continuaremos com este sistema econômico de injustiça social e de desprezo pelo cuidado do meio ambiente, da criação, da casa comum? Pensemos nisto. Que as comunidades cristãs do século XXI recuperem esta realidade – o cuidado da criação e a justiça social: caminham juntas - dando assim testemunho da Ressurreição do Senhor. Se cuidarmos dos bens que o Criador nos concede, se partilharmos o que possuímos para que não falte nada a ninguém, então de facto podemos inspirar esperança para regenerar um mundo mais saudável e mais justo.
E para terminar, pensemos nas crianças. Lede as estatísticas: quantas crianças, hoje, morrem de fome devido à má distribuição das riquezas, a um sistema econômico como disse acima; e quantas crianças, hoje, não têm direito à escolarização, pelo mesmo motivo. Que esta imagem, das crianças necessitadas, com fome e com falta de escolarização, nos ajude a compreender que desta crise devemos sair melhores. Obrigado.
Papa Francisco
Catequese na audiência geral 29.08.2020
Catequese - “Curar o Mundo”: 6: O Bem-comum
Amados irmãos e irmãs, bom dia!
A crise que estamos a viver devido à pandemia atinge todos; podemos sair dela melhores se todos juntos procurarmos o bem comum; caso contrário sairemos piores. Infelizmente, estamos a assistir ao surgimento de interesses de parte. Por exemplo, há quem deseje apropriar-se de possíveis soluções, como no caso das vacinas e depois vendê-las aos outros. Algumas pessoas aproveitam-se da situação para fomentar divisões: para procurar vantagens econômicas ou políticas, gerando ou aumentando os conflitos. Outros simplesmente não se importam com o sofrimento dos outros, passam adiante e seguem o seu caminho (cf. Lc 10, 30-32). São os devotos de Pôncio Pilatos, lavam as mãos.
A resposta cristã à pandemia e às consequentes crises socioeconômicas baseia-se no amor, antes de tudo, no amor de Deus que sempre nos precede (cf. 1 Jo 4, 19). Ele ama-nos primeiro, Ele precede-nos sempre no amor e nas soluções. Ele ama-nos incondicionalmente, e quando aceitamos este amor divino, então podemos responder de forma semelhante. Amo não só aqueles que me amam: a minha família, os meus amigos, o meu grupo, mas também aqueles que não me amam, amo inclusive os que não me conhecem, amo também os que são estrangeiros, e até aqueles que me fazem sofrer ou que considero inimigos (cf. Mt 5, 44). Esta é a sabedoria cristã, esta é a atitude de Jesus. E o ponto mais elevado da santidade, digamos assim, é amar os inimigos, e não é fácil. Claro, amar todos, inclusive os inimigos, é difícil - diria que é uma arte! Mas é uma arte que pode ser aprendida e melhorada. O verdadeiro amor, que nos torna fecundos e livres, é sempre expansivo e inclusivo. Este amor cuida, cura e faz bem. Muitas vezes faz melhor uma carícia do que muitas argumentações, uma carícia de perdão e não muitas palavras de defesa. É o amor inclusivo que cura.
Portanto, o amor não se limita às relações entre duas ou três pessoas, amigos, ou família, vai além. Inclui as relações cívicas e políticas (cf. Catecismo da Igreja Católica [CIC], 1907-1912), incluindo a relação com a natureza (Enc. Laudato si' [LS], 231). Dado que somos seres sociais e políticos, uma das mais altas expressões de amor é precisamente o amor social e político, que é decisivo para o desenvolvimento humano e para enfrentar qualquer tipo de crise (ibid., 231). Sabemos que o amor fecunda famílias e amizades; mas é bom lembrar que também fecunda relações sociais, culturais, econômicas e políticas, permitindo-nos construir uma “civilização do amor”, como gostava de dizer São Paulo VI (Mensagem para o Décimo Dia Mundial da Paz,1 de Janeiro de 1977: AAS 68 [1976], 709) e, na esteira, São João Paulo II. Sem esta inspiração, a cultura do egoísmo, da indiferença, do descarte, prevalece, ou seja, descartar aquilo de que eu não gosto, o que eu não posso amar ou aqueles que na minha opinião são inúteis na sociedade. Hoje, à entrada, um casal disse-me: “reze por nós porque temos um filho deficiente”. Perguntei: “quantos anos tem? - muitos – e o que fazeis? - nós acompanhamo-lo, ajudamo-lo”. Uma vida inteira dos pais para aquele filho deficiente. Isto é amor. E os inimigos, os adversários políticos, segundo a nossa opinião, parecem ser deficientes políticos e sociais, mas parecem. Só Deus sabe se o são ou não. Mas nós devemos amá-los, devemos dialogar, devemos construir esta civilização do amor, esta civilização política, social, da unidade de toda a humanidade. Tudo isto é o oposto de guerras, divisões, invejas, até das guerras em família. O amor inclusivo é social, é familiar, é político: o amor permeia tudo!
O coronavírus mostra-nos que o verdadeiro bem para cada um é um bem comum, não só individual e, vice-versa, o bem comum é um verdadeiro bem para a pessoa (cf. CIC, 1905-1906). Se alguém procura apenas o próprio bem é um egoísta. Ao contrário, a pessoa é mais pessoa quando abre o próprio bem a todos, o partilha. A saúde não é apenas individual, mas também um bem público. Uma sociedade saudável é aquela que cuida da saúde de todos.
Um vírus que não conhece barreiras, fronteiras, distinções culturais nem políticas deve ser enfrentado com um amor sem barreiras, fronteiras nem distinções. Este amor pode gerar estruturas sociais que nos encorajam a partilhar em vez de competir, que nos permitem incluir os mais vulneráveis em vez de os descartar, e que nos ajudam a expressar o melhor da nossa natureza humana e não o pior. O verdadeiro amor não conhece a cultura do descarte, não sabe o que isso é. De fato, quando amamos e geramos criatividade, quando geramos confiança e solidariedade, então emergem iniciativas concretas para o bem comum (Cf. S. João Paulo II, Enc. Sollicitudo rei socialis, 38) .E isto é verdade tanto a nível de pequenas e grandes comunidades como a nível internacional. Aquilo que se faz em família, no bairro, na aldeia, na grande cidade e internacionalmente é o mesmo: é a mesma semente que cresce e dá fruto. Se tu, em família, no bairro, começares com a inveja, com a luta, no final haverá a “guerra”. Ao contrário, se começares com o amor, a partilhar o amor, o perdão, então haverá o amor e o perdão para todos.
Pelo contrário, se as soluções para a pandemia tiverem a marca do egoísmo, quer de pessoas, empresas ou nações, talvez consigamos sair do coronavírus, mas certamente não da crise humana e social que o vírus evidenciou e acentuou. Portanto, prestai atenção a não construir sobre a areia (cf. Mt 7, 21-27)! Para construir uma sociedade saudável, inclusiva, justa e pacífica, temos que o fazer sobre a rocha do bem comum (ibid., 10).O bem comum é uma rocha. E esta é a tarefa de todos nós, e não apenas de alguns especialistas. São Tomás de Aquino disse que a promoção do bem comum é um dever de justiça que recai sobre todos os cidadãos. Cada cidadão é responsável pelo bem comum. E, para os cristãos, é também uma missão. Como ensina Santo Inácio de Loyola, orientar os nossos esforços diários para o bem comum é uma forma de receber e difundir a glória de Deus.
Infelizmente, a política muitas vezes não goza de boa reputação, e nós sabemos porquê. Isto não significa que todos os políticos são maus, não, não pretendo dizer isto. Digo apenas que infelizmente a política, com frequência, não goza de boa fama. Contudo, não nos devemos resignar a esta visão negativa, mas reagir demonstrando com factos que uma boa política é possível, aliás, indispensável(cf. Mensagem para o Dia Mundial da Paz 1 de Janeiro de 2019 [8 de Dezembro de 2018]), aquela que coloca no centro a pessoa humana e o bem comum. Se lerdes a história da humanidade, encontrareis muitos políticos, santo, que percorreram este caminho. É possível na medida em que cada cidadão e, em particular, aqueles que assumem compromissos e encargos sociais e políticos, enraízam as suas ações em princípios éticos e as animam com amor social e político. Os cristãos, especialmente os fiéis leigos, são chamados a dar bom testemunho disto e podem fazê-lo através da virtude da caridade, cultivando a sua intrínseca dimensão social.
Por conseguinte, chegou o momento de incrementar o nosso amor social – desejo frisar isto: o nosso amor social – contribuindo todos, a começar pela nossa pequenez. O bem comum requer a participação de todos. Se cada um contribuir com a sua parte, e se ninguém for excluído, podemos regenerar boas relações a nível comunitário, nacional e internacional e também em harmonia com o meio ambiente (cf. LS, 236). Assim, nos nossos gestos, mesmo nos mais humildes, tornar-se-á visível algo da imagem de Deus que temos dentro de nós, porque Deus é Trindade, Deus é Amor. Esta é a definição mais bonita de Deus na Bíblia. É-nos oferecida pelo apóstolo João, que amava tanto Jesus: Deus é amor. Com a sua ajuda, podemos curar o mundo trabalhando juntos para o bem comum, não só para o próprio bem, mas para o bem comum, de todos.
Papa Francisco
Catequese na audiência geral 09.09.2020
Amados irmãos e irmãs, bom dia!
A pandemia acentuou a difícil situação dos pobres e o grande desequilíbrio que reina no mundo. E o vírus, sem excluir ninguém, encontrou grandes desigualdades e discriminações no seu caminho devastador. E aumentou-as!
Portanto, a resposta à pandemia é dupla. Por um lado, é essencial encontrar uma cura para um pequeno mas terrível vírus que põe o mundo inteiro de joelhos. Por outro, devemos curar um grande vírus, o da injustiça social, da desigualdade de oportunidades, da marginalização e da falta de proteção dos mais débeis. Nesta dupla resposta de cura há uma escolha que, segundo o Evangelho, não pode faltar: é a opção preferencial pelos pobres (cf. Exort. ap. Evangelii gaudium [EG], 195). E esta não é uma opção política; nem sequer uma opção ideológica, uma opção de partidos. A opção preferencial pelos pobres está no centro do Evangelho. E quem a fez primeiro foi Jesus; ouvimos isto no trecho da Carta aos Coríntios, lido no início. Ele, sendo rico, fez-se pobre para nos enriquecer. Fez-se um de nós e por isso, no centro do Evangelho, no centro do anúncio de Jesus, há esta opção.
O próprio Cristo, que é Deus, despojou-se, fazendo-se semelhante aos homens; e não escolheu uma vida de privilégio, mas escolheu a condição de servo (cf. Fl 2, 6-7). Aniquilou-se a si mesmo fazendo-se servo. Nasceu numa família humilde e trabalhou como artesão. No início da sua pregação, anunciou que no Reino de Deus os pobres são bem-aventurados (cf. Mt 5, 3; Lc 6, 20; EG, 197). Estava no meio dos doentes, dos pobres e dos excluídos, mostrando-lhes o amor misericordioso de Deus (cf. Catecismo da Igreja Católica, 2444). E muitas vezes foi julgado como homem impuro, porque cuidava dos doentes, dos leprosos, que segundo a lei da época, eram impuros. E Ele correu riscos por estar próximo dos pobres.
Por esta razão, os seguidores de Jesus reconhecem-se pela sua proximidade aos pobres, aos pequeninos, aos doentes, aos presos, aos excluídos, aos esquecidos, a quantos não têm comida nem roupa (cf. Mt 25, 31-36; CIC, 2443). Podemos ler aquele famoso parâmetro sobre o qual todos seremos julgados, todos seremos julgados. É Mateus, capítulo 25. Este é um critério-chave de autenticidade cristã (cf. Gl 2, 10; EG, 195). Alguns pensam erradamente que este amor preferencial pelos pobres é uma tarefa para poucos, mas na realidade é a missão de toda a Igreja, dizia São João Paulo II (cf. Enc. Sollicitudo rei socialis, 42). «Cada cristão e cada comunidade são chamados a ser instrumentos de Deus para a libertação e promoção dos pobres» (EG, 187).
A fé, a esperança e o amor impulsionam-nos necessariamente para esta preferência pelos mais necessitados (cf. Congregação para a Doutrina da Fé, Instrução sobre alguns aspetos da “Teologia da Libertação”, [1984], cap. V), que vai além da assistência necessária (cf. EG, 198). Trata-se de caminhar juntos, deixando-se evangelizar por eles, que conhecem bem Cristo sofredor, deixando-nos “contagiar” pela sua experiência de salvação, sabedoria e criatividade (cf. ibid.). Partilhar com os pobres significa enriquecer-se uns aos outros. E se existem estruturas sociais doentes que lhes impedem de sonhar com o futuro, devemos trabalhar em conjunto para as curar, para as mudar (cf. ibid., 195). A isto conduz o amor de Cristo, que nos amou até ao extremo (cf. Jo 13, 1) e chega inclusive aos confins, às margens, às fronteiras existenciais. Trazer as periferias para o centro significa centrar as nossas vidas em Cristo, que «se fez pobre» por nós, a fim de nos enriquecer «através da sua pobreza» (2 Cor 8, 9; cf. Bento XVI, Discurso inaugural da V Conferencia Geral do Episcopado Latino-americano e do Caribe [13 de maio de 2007], n. 3).
Estamos todos preocupados com as consequências sociais da pandemia. Todos. Muitos querem regressar à normalidade e retomar as atividades econômicas. É claro, mas esta “normalidade” não deve incluir injustiça social e degradação ambiental. A pandemia é uma crise e não se sai iguais de uma crise: ou saímos melhores ou saímos piores. Nós deveríamos sair melhores, para resolver as injustiças sociais e a degradação ambiental. Hoje temos uma oportunidade de construir algo diferente. Por exemplo, podemos fazer crescer uma economia de desenvolvimento integral dos pobres e não de assistencialismo. Com isto não pretendo condenar a assistência, as obras de assistência são importantes. Pensemos no voluntariado, que é uma das estruturas mais bonitas que a Igreja italiana possui. Mas devemos ir além e resolver os problemas que nos estimulam a fazer assistência. Uma economia que não recorra a remédios que na realidade envenenam a sociedade, tais como rendimentos dissociados da criação de empregos dignos (cf. EG, 204). Este tipo de lucro é dissociado da economia real, aquela que deveria beneficiar as pessoas comuns (cf. Enc. Laudato si' [LS], 109), e é também por vezes indiferente aos danos infligidos à casa comum. A opção preferencial pelos pobres, esta necessidade ética e social que vem do amor de Deus (cf. LS, 158), dá-nos o estímulo para pensar e conceber uma economia onde as pessoas, especialmente as mais pobres, estejam no centro. E também nos encoraja a projetar o tratamento do vírus, privilegiando quem tem mais necessidade. Seria triste se na vacina contra a Covid-19 fosse dada a prioridade aos mais ricos! Seria triste se esta vacina se tornasse propriedade desta ou daquela nação e não fosse universal e para todos. E que escândalo seria se toda a assistência econômica que estamos a observar - a maior parte dela com dinheiro público - se concentrasse no resgate das indústrias que não contribuem para a inclusão dos excluídos, para a promoção dos últimos, para o bem comum ou para o cuidado da criação (ibid.). Há critérios para escolher quais serão as indústrias que devem ser ajudadas: as que contribuem para a inclusão dos excluídos, para a promoção dos últimos, para o bem comum e para o cuidado da criação. Quatro critérios.
Se o vírus se voltar a intensificar num mundo injusto em relação aos pobres e aos vulneráveis, devemos mudar este mundo. Com o exemplo de Jesus, o médico do amor divino integral, isto é, da cura física, social e espiritual (cf. Jo 5, 6-9), - como era a cura que Jesus fazia - devemos agir agora, para curar as epidemias causadas por pequenos vírus invisíveis, e para curar as que são provocadas pelas grandes e visíveis injustiças sociais. Proponho que isto seja feito a partir do amor de Deus, colocando as periferias no centro e os últimos em primeiro lugar. Não esquecer aquele parâmetro sobre o qual seremos julgados, Mateus, capítulo 25. Ponhamo-lo em prática nesta retomada da epidemia. E a partir deste amor concreto, ancorado na esperança e fundado na fé, será possível um mundo mais saudável. Caso contrário, sairemos piores da crise. Que o Senhor nos ajude, nos conceda a força para sair melhores, respondendo às necessidades do mundo de hoje.
Papa Francisco
Catequese na audiência geral 19.08.2020
Amados irmãos e irmãs, bom dia!
A pandemia pôs em evidência quão vulneráveis e interligados estamos todos nós. Se não nos preocuparmos uns com os outros, a começar pelos últimos, por aqueles que são mais atingidos, incluindo a criação, não podemos curar o mundo.
É de louvar o empenho de tantas pessoas que nestes meses estão a demonstrar amor humano e cristão pelo próximo, dedicando-se aos doentes até arriscando a própria saúde. São heróis! No entanto, o coronavírus não é a única doença a combater, mas a pandemia trouxe à luz patologias sociais mais vastas. Uma delas é a visão distorcida da pessoa, um olhar que ignora a sua dignidade e a sua índole relacional. Por vezes consideramos os outros como objetos, a serem usados e descartados. Na realidade, este tipo de olhar cega e fomenta uma cultura de descarte individualista e agressiva, que transforma o ser humano num bem de consumo (cf. Exort. ap. Evangelii gaudium, 53; Enc. Laudato si' [LS], 22).
Contudo, à luz da fé, sabemos que Deus olha para o homem e para a mulher de outro modo. Ele criou-nos não como objetos, mas como pessoas amadas e capazes de amar; criou-nos à sua imagem e semelhança (cf. Gn 1, 27). Desta forma, deu-nos uma dignidade única, convidando-nos a viver em comunhão com Ele, em comunhão com as nossas irmãs e irmãos, no respeito de toda a criação. Podemos dizer, em comunhão, em harmonia. A criação é uma harmonia na qual somos chamados a viver. E nesta comunhão, nesta harmonia que é comunhão, Deus dá-nos a capacidade de procriar e de preservar a vida (cf. Gn 1, 28-29), de trabalhar e cuidar da terra (cf. Gn 2, 15; LS 67). Compreende-se que não podemos procriar nem preservar a vida sem harmonia; seria destruída.
Temos um exemplo desse olhar individualista, daquilo que não é harmonia, nos Evangelhos, no pedido feito a Jesus pela mãe dos discípulos Tiago e João (cf. Mt 20, 20-28). Ela gostaria que os seus filhos pudessem sentar-se à direita e à esquerda do novo rei. Mas Jesus propõe outro tipo de visão: a de servir e dar a vida pelos outros, e confirma-a restituindo a vista a dois cegos e fazendo-os seus discípulos (cf. Mt 20, 29-34). Procurar subir na vida, ser superior aos outros, destrói a harmonia. É a lógica do domínio, de dominar os demais. A harmonia é outra coisa: é o serviço.
Peçamos portanto ao Senhor que nos conceda um olhar atento aos irmãos e irmãs, especialmente aos que sofrem. Como discípulos de Jesus, não queremos ser indiferentes ou individualistas. São estas as duas atitudes negativas contra a harmonia. Indiferente: olho para o outro lado. Individualista: considerar apenas o próprio interesse. A harmonia criada por Deus pede que olhemos para os outros, para as necessidades dos demais, para os problemas do próximo, estar em comunhão. Queremos reconhecer em cada pessoa a dignidade humana, qualquer que seja a sua raça, língua ou condição. A harmonia faz reconhecer a dignidade humana, aquela harmonia criada por Deus, com o homem no centro.
O Concílio Vaticano II evidencia que esta dignidade é inalienável, porque «foi criada à imagem de Deus» (Const. past. Gaudium et spes, 12). Ela é a base de toda a vida social e determina os seus princípios operacionais. Na cultura moderna, a referência mais próxima ao princípio da dignidade inalienável da pessoa é a Declaração Universal dos Direitos do Homem, que São João Paulo II definiu «uma pedra miliária, posta na longa e difícil caminhada do gênero humano» (Discurso à Assembleia geral das Nações Unidas, 2 de outubro de 1979, n. 7) e como «uma das mais altas expressões da consciência humana» (Discurso à Assembleia geral das Nações Unidas, 5 de outubro de 1995, n. 2). Os direitos não são apenas individuais, mas também sociais; são dos povos, das nações (cf. Compêndio da Doutrina Social da Igreja, 157). Com efeito, o ser humano, na sua dignidade pessoal, é um ser social, criado à imagem do Deus Uno e Trino. Nós somos seres sociais, precisamos de viver nesta harmonia social, mas quando há egoísmo, o nosso olhar não se dirige para os outros, para a comunidade, mas volta-se para nós mesmos e isto torna-nos irracionais, maus, egoístas, destruindo a harmonia.
Esta consciência renovada pela dignidade de cada ser humano tem sérias implicações sociais, econômicas e políticas. Olhar para o irmão e para toda a criação como uma dádiva recebida do amor do Pai suscita um comportamento de atenção, cuidado e admiração. Assim o crente, contemplando o próximo como um irmão e não como um estranho, olha para ele com compaixão e empatia, não com desprezo ou inimizade. E contemplando o mundo à luz da fé, esforça-se por desenvolver, com a ajuda da graça, a sua criatividade e entusiasmo para resolver os dramas da história. Ele concebe e desenvolve as suas capacidades como responsabilidades que fluem da fé (ibidem), como dons de Deus a serem postos ao serviço da humanidade e da criação.
Ao trabalharmos todos para curar um vírus que atinge indistintamente todos, a fé exorta-nos a comprometer-nos séria e ativamente a contrastar a indiferença face às violações da dignidade humana. Esta cultura da indiferença que acompanha a cultura do descarte: as coisas que não me dizem respeito não me interessam. A fé exige sempre que nos deixemos curar e converter do nosso individualismo, tanto pessoal como coletivo: por exemplo, um individualismo de partido.
Que o Senhor nos “restitua a vista” para redescobrir o que significa sermos membros da família humana. E que este olhar se traduza em ações concretas de compaixão e respeito por cada pessoa e de cuidado e tutela pela nossa casa comum.
Papa Francisco
Catequese na audiência geral 12.08.2020
Prezados irmãos e irmãs, bom dia!
A pandemia continua a causar feridas profundas, desmascarando as nossas vulnerabilidades. Há muitos mortos, muitos doentes, em todos os continentes. Muitas pessoas e tantas famílias vivem um tempo de incerteza, devido a problemas socioeconômicos, que atingem especialmente os mais pobres.
Por este motivo devemos manter o nosso olhar fixo firmemente em Jesus (cf. Hb 12, 2) e com esta fé abraçar a esperança do Reino de Deus que o próprio Jesus nos traz (cf. Mc 1, 5; Mt 4, 17; CIC, n. 2.816). Um Reino de cura e salvação que já está presente entre nós (cf. Lc 10, 11). Um Reino de justiça e paz que se manifesta através de obras de caridade, que por sua vez aumentam a esperança e fortalecem a fé (cf. 1 Cor 13, 13). Na tradição cristã, fé, esperança e caridade são muito mais do que sentimentos ou atitudes. São virtudes infundidas em nós pela graça do Espírito Santo (cf. CIC, nn. 1.812-1.813): dons que nos curam e nos fazem curar, dons que nos abrem novos horizontes, até quando navegamos nas difíceis águas do nosso tempo.
Um novo encontro com o Evangelho da fé, da esperança e do amor convida-nos a assumir um espírito criativo e renovado. Desta forma, poderemos transformar as raízes das nossas enfermidades físicas, espirituais e sociais. Poderemos curar profundamente as estruturas injustas e as práticas destrutivas que nos separam uns dos outros, ameaçando a família humana e o nosso planeta.
O ministério de Jesus oferece muitos exemplos de cura. Quando cura quantos sofrem de febre (cf. Mc 1, 29-34), de lepra (cf. Mc 1, 40-45), de paralisia (cf. Mc 2, 1-12); quando restitui a vista (cf. Mc 8, 22-26; Jo 9, 1-7), a palavra ou a audição (cf. Mc 7, 31-37), na realidade cura não só um mal físico mas a pessoa inteira. Deste modo, também a restitui curada à comunidade; libertando-a do seu isolamento porque a curou.
Pensemos na bonita narração da cura do paralítico em Cafarnaum (cf. Mc 2, 1-12), que ouvimos no inicio da audiência. Enquanto Jesus prega na entrada da casa, quatro homens levam um amigo paralítico a ter com Jesus; e impossibilitados de entrar, porque havia muita gente, descobrem o telhado e descem o leito à frente dele, que está a pregar. «Jesus, vendo a sua fé, disse ao paralítico: “Filho, os teus pecados são-te perdoados!”» (v. 5). E depois, como sinal visível, acrescentou: «Levanta-te, pega no teu leito e vai para casa!» (v. 11).
Que maravilhoso exemplo de cura! A ação de Cristo é uma resposta direta à fé daquelas pessoas, à esperança que n'Ele depositam, ao amor que manifestam uns aos outros. E assim Jesus cura, mas não cura simplesmente a paralisia, cura tudo, perdoa os pecados, renova a vida do paralítico e dos seus amigos. Faz nascer de novo, digamos assim. Uma cura física e ao mesmo tempo espiritual, fruto de um encontro pessoal e social. Imaginemos como esta amizade e a fé de todos os presentes naquela casa cresceram graças ao gesto de Jesus. O encontro de cura com Jesus!
E assim perguntemo-nos: como podemos ajudar a curar o nosso mundo hoje? Como discípulos do Senhor Jesus, que é médico das almas e dos corpos, somos chamados a continuar «a sua obra de cura e salvação» (CIC, n. 1.421) em sentido físico, social e espiritual.
Não obstante a Igreja administre a graça curativa de Cristo através dos Sacramentos, e embora preste serviços de saúde nos mais remotos cantos do planeta, ela não é especialista em prevenção nem em tratamento da pandemia. Também não dá indicações sociopolíticas específicas (cf. S. Paulo VI, Carta apost. Octogesima adveniens,14 de maio de 1971, 4). Esta é a tarefa dos líderes políticos e sociais. No entanto, ao longo dos séculos, e à luz do Evangelho, a Igreja desenvolveu alguns princípios sociais que são fundamentais (cf. Compêndio da Doutrina Social da Igreja, 160-208), princípios que nos podem ajudar a ir em frente, a preparar o futuro de que necessitamos. Cito os principais, que estão intimamente ligados entre si: o princípio da dignidade da pessoa, o princípio do bem comum, o princípio da opção preferencial pelos pobres, o princípio do destino universal dos bens, o princípio da solidariedade, da subsidiariedade e o princípio do cuidado pela nossa casa comum. Estes princípios ajudam os dirigentes, os responsáveis pela sociedade, a levar promover o crescimento e inclusive, como neste caso de pandemia, a cura do tecido pessoal e social. Todos estes princípios expressam, de diferentes maneiras, as virtudes da fé, da esperança e do amor.
Nas próximas semanas, convido-vos a abordar juntos as questões prementes que a pandemia relevou, especialmente as doenças sociais. E fá-lo-emos à luz do Evangelho, das virtudes teologais e dos princípios da doutrina social da Igreja. Exploraremos juntos o modo como a nossa tradição social católica pode ajudar a família humana a curar este mundo que sofre de doenças graves. Desejo refletir e trabalhar em conjunto, como seguidores de Jesus que cura, para construir um mundo melhor, cheio de esperança para as gerações futuras (cf. Exort. apost. Evangelii gaudium, 24 de novembro de 2013, 183).
Papa Francisco
Catequese na audiência Geral 05.08.2020
Estimados irmãos e irmãs, bom dia!
No nosso itinerário de catequeses sobre a oração, hoje encontramos o rei David. Predileto de Deus desde menino, foi escolhido para uma missão única, que assumirá um papel central na história do povo de Deus e da nossa fé. Nos Evangelhos, Jesus é chamado várias vezes “filho de David”; com efeito, como ele, nasce em Belém. Da descendência de David, segundo as promessas, vem o Messias: um Rei totalmente segundo o coração de Deus, em perfeita obediência ao Pai, cuja ação cumpre fielmente o seu plano de salvação (cf. Catecismo da Igreja Católica, 2579).
A vicissitude de David começa nas colinas ao redor de Belém, onde apascenta o rebanho do pai, Jessé. É ainda um rapaz, o último de muitos irmãos. A ponto que quando o profeta Samuel, por ordem de Deus, vai em busca do novo rei, até parece que o seu pai se tinha esquecido daquele filho mais novo (cf. 1 Sm 16, 1-13). Trabalhava ao ar livre: pensamos nele como amigo do vento, dos sons da natureza, dos raios do sol. Só tem uma companhia para confortar a sua alma: a cítara; e nos longos dias de solidão gosta de tocar e cantar ao seu Deus. Também brincava com a funda.
Portanto, em primeiro lugar David é um pastor: um homem que cuida dos animais, que os defende quando surge o perigo, que lhes dá o sustento. Quando David, por vontade de Deus, tiver que se preocupar pelo povo, não realizará ações muito diferentes destas. É por isso que na Bíblia a imagem do pastor é muito recorrente. Também Jesus se define “o bom pastor”, o seu comportamento é diferente daquele do mercenário; oferece a sua vida pelas ovelhas, guia-as, sabe o nome de cada uma delas (cf. Jo 10, 11-18).
Da sua primeira profissão, David aprendeu muito. Assim, quando o profeta Natã o repreenderá pelo seu gravíssimo pecado (cf. 2 Sm 12, 1-15), David compreenderá imediatamente que tinha sido um mau pastor, que roubara de outro homem a única ovelha que ele amava, que já não era um servo humilde, mas um homem doente de poder, um caçador furtivo que mata e saqueia.
Um segundo traço característico presente na vocação de David é o seu espírito de poeta. Desta pequena observação deduzimos que David não era um homem vulgar, como muitas vezes pode acontecer com indivíduos obrigados a viver prolongadamente isolados da sociedade. Ao contrário, é uma pessoa sensível, que gosta da música e do canto. A cítara acompanhá-lo-á sempre: para elevar um hino de alegria a Deus (cf. 2 Sm 6, 16), para expressar um lamento, ou para confessar o próprio pecado (cf. Sl 51, 3).
O mundo que se apresenta aos seus olhos não é uma cena silenciosa: o seu olhar capta, por detrás do desenrolar dos acontecimentos, um mistério maior. A oração nasce precisamente dali: da convicção de que a vida não é algo que passa por nós, mas um mistério surpreendente, que em nós suscita a poesia, a música, a gratidão, o louvor, ou a lamentação e a súplica. Quando a uma pessoa falta essa dimensão poética, digamos, quando lhe falta a poesia, a sua alma coxeia. Portanto, segundo a tradição David é o grande artífice da composição dos salmos. No início fazem frequentemente referência explícita ao rei de Israel e a alguns dos acontecimentos mais ou menos nobres da sua vida.
Portanto, David tem um sonho: ser um bom pastor. Às vezes conseguirá estar à altura desta tarefa, outras vezes, não; mas o que importa, no contexto da história da salvação, é que ele representa a profecia de outro Rei, do qual é apenas anúncio e prefiguração.
Fitemos David, pensemos em David. Santo e pecador, perseguido e perseguidor, vítima e carnífice, o que é uma contradição. David era tudo isto, ao mesmo tempo. E também nós, na nossa vida, temos traços frequentemente opostos; na trama da vida, todos os homens pecam muitas vezes de incoerência. Na vida de David existe apenas um fio condutor que confere unidade a tudo o que acontece: a sua oração. Esta é a voz que nunca se apaga. David santo reza; David pecador reza; David perseguido reza; David perseguidor reza; David vítima reza. Até David carnífice reza. Este é o fio condutor da sua vida. Um homem de oração. Esta é a voz que nunca se apaga: quer assuma os tons do júbilo, quer os da lamentação, é sempre a mesma oração, só muda a melodia. Agindo assim, David ensina-nos a deixar que tudo faça parte do diálogo com Deus: tanto a alegria como a culpa, o amor como o sofrimento, a amizade como a doença. Tudo pode tornar-se palavra dirigida ao “Tu” que nos ouve sempre.
David, que conheceu a solidão, na verdade, nunca esteve sozinho! E no fundo este é o poder da oração, em todos aqueles que lhe dão espaço na própria vida. A oração dá-nos nobreza e David é nobre porque reza. Mas é um carnífice que reza, que se arrepende, e readquire a nobreza graças à oração. A oração confere-nos nobreza: ela é capaz de assegurar a relação com Deus, que é o verdadeiro Companheiro de caminho do homem, no meio das numerosas provações da vida, boas ou más: mas sempre com a oração. Obrigado Senhor. Tenho medo Senhor. Ajudai-me Senhor. Perdoai-me Senhor. David tinha tanta confiança, que quando foi perseguido e teve que fugir não permitiu que o defendessem: “se o meu Deus me humilha deste modo, ele sabe”, porque a nobreza da oração nos deixa nas mãos de Deus. Aquelas mãos chagadas de amor: as únicas mãos seguras que nós temos.]
Papa Francisco
Catequese na audiência geral 24.06.2020
Estimados irmãos e irmãs, bom dia!
No nosso itinerário sobre o tema da oração, damo-nos conta de que Deus nunca gostou de lidar com orantes “fáceis”. Nem sequer Moisés será um interlocutor “fraco”, desde o primeiro dia da sua vocação.
Quando Deus o chama, Moisés é humanamente “um fracasso”. O livro do Êxodo representa-o na terra de Madian como um fugitivo. Quando era jovem sentiu piedade pelo seu povo, pondo-se também da parte dos oprimidos. Mas depressa descobre que, apesar das boas intenções, das suas mãos não brota justiça mas, pelo contrário, violência. Eis que se desintegram os sonhos de glória: Moisés já não é um funcionário promissor, destinado a uma carreira rápida, mas alguém que perdeu oportunidades, e que agora apascenta um rebanho que nem sequer é seu. E é precisamente no silêncio do deserto de Madian que Deus convoca Moisés para a revelação da sarça ardente: «“Eu sou o Deus do teu pai, o Deus de Abraão, de Isaac e de Jacob”. Moisés escondeu o rosto, pois não se atrevia a olhar para Deus» (Êx 3, 6).
A Deus que fala, que o convida a cuidar novamente do povo de Israel, Moisés opõe os seus receios e as suas objeções: não é digno daquela missão, não conhece o nome de Deus, os israelitas não acreditarão nele, tem uma língua que gagueja... E assim muitas objeções. A palavra que floresce mais frequentemente nos lábios de Moisés, em cada oração que dirige a Deus, é a pergunta: “Porquê?”. Por que me enviastes? Por que quereis libertar este povo? No Pentateuco há até um trecho dramático, onde Deus repreende Moisés pela sua falta de confiança, falta que o impedirá de entrar na terra prometida (cf. Nm 20, 12).
Com estes temores, com este coração que muitas vezes vacila, como pode Moisés rezar? Na verdade, Moisés parece um homem como nós. E isto também acontece a nós: quando temos dúvidas, mas como podemos rezar? Nós conseguimos rezar. E é com a sua fraqueza, e também com a sua força, que ficamos impressionados. Apesar de ser encarregado por Deus de transmitir a Lei ao seu povo, de ser fundador do culto divino, de ser mediador dos mistérios mais altos, contudo não deixa de manter estreitos vínculos de solidariedade com o seu povo, especialmente na hora da tentação e do pecado. Sempre ligado ao seu povo. Moisés nunca perdeu a memória do seu povo. E esta é uma grandeza dos pastores: não esquecer o povo, não esquecer as raízes. É isto que Paulo diz ao seu amado jovem bispo Timóteo: “Recorda a tua mãe e a tua avó, as tuas raízes, o teu povo”. Moisés é tão amigo de Deus que pode falar com Ele face a face (cf. Êx 33, 11); e permanecerá tão amigo dos homens que sentirá misericórdia pelos seus pecados, pelas suas tentações, pela inesperada nostalgia que os exilados têm em relação ao passado, lembrando-se de quando estavam no Egito.
Moisés não nega a Deus, mas também não nega o seu povo. É coerente com o seu sangue, é coerente com a voz de Deus. Portanto, Moisés não é um líder autoritário nem despótico; pelo contrário, o Livro dos Números define-o «mais humilde e paciente do que qualquer homem sobre a terra» (cf. 12, 3). Apesar da sua condição privilegiada, Moisés não deixa de pertencer àquele grupo de pobres em espírito que vivem fazendo da confiança em Deus o viático do próprio caminho. Ele é um homem do povo.
Assim, a forma mais adequada de Moisés rezar será a intercessão (cf. Catecismo da Igreja Católica, 2574). A sua fé em Deus é uma só com o sentido de paternidade que nutre pelo seu povo. Habitualmente, a Escritura representa-o com as mãos erguidas para o alto, para Deus, como se servisse de ponte com a sua pessoa entre o céu e a terra. Até nos momentos mais difíceis, até no dia em que o povo rejeita a Deus e a ele mesmo como guia, fazendo um bezerro de ouro, Moisés não quer pôr de lado o seu povo. É o meu povo. É o seu povo. É o meu povo. Não nega a Deus ou ao povo. E diz a Deus: «Este povo cometeu um grande pecado: fez para si mesmo um deus de ouro. Rogo-vos que lhe perdoeis este pecado! Caso contrário, apagai-me do livro que escrevestes!» (Êx 32, 31-32). Moisés não permuta o povo. Ele é a ponte, ele é o intercessor. Ambos, o povo e Deus, e ele está no meio. Ele não vende o seu povo para fazer carreira. Não é um carreirista, é um intercessor: pelo seu povo, pela sua carne, pela sua história, pela sua gente e por Deus que o chamou. É a ponte. Que bom exemplo para todos os pastores que devem ser “ponte”. É por isso que se chamam pontifex, pontes. Os pastores são pontes entre o povo a que pertencem e Deus, a quem pertencem por vocação. Assim é Moisés: “Perdoai, Senhor, o seu pecado, pois se não perdoares, apagai-me do livro que escrevestes. Não quero fazer carreira com o meu povo”.
E esta é a oração que os verdadeiros fiéis cultivam na sua vida espiritual. Embora experimentem as falhas das pessoas e a sua distância de Deus, estes orantes não as condenam, nem as rejeitam. A atitude de intercessão é própria dos Santos que, à imitação de Jesus, são “pontes” entre Deus e o seu povo. Neste sentido, Moisés foi o maior profeta de Jesus, nosso defensor e intercessor (cf. Catecismo da Igreja Católica, 2577). E também hoje, Jesus é o pontifex, ele é a ponte entre nós e o Pai. E Jesus intercede por nós, mostra ao Pai as feridas que são o preço da nossa salvação e intercede. E Moisés é a figura de Jesus que reza por nós hoje, ele intercede por nós.
Moisés exorta-nos a rezar com o mesmo fervor de Jesus, a interceder pelo mundo, a recordar que ele, apesar de todas as suas fragilidades, pertence sempre a Deus. Todos pertencem a Deus. Os piores pecadores, as pessoas mais perversas, os líderes mais corruptos, são filhos de Deus e Jesus sente isso e intercede por todos. E o mundo vive e prospera graças à bênção dos justos, à oração de piedade, esta oração de piedade que o santo, o justo, o intercessor, o sacerdote, o Bispo, o Papa, o leigo, qualquer batizado, eleva incessantemente pelos homens, em todos os lugares e épocas da história. Pensemos em Moisés, o intercessor. E quando temos vontade de condenar alguém e nos irritamos interiormente - irritar-se faz bem, mas condenar não - intercedemos por ele: isto ajuda-nos muito.
Papa Francisco
Catequese na audiência geral 17.06.2020
Amados irmãos e irmãs, bom dia!
Continuemos a nossa catequese sobre o tema da oração. O livro do Gênesis, através das vicissitudes de homens e mulheres de tempos distantes, conta-nos histórias nas quais podemos refletir as nossas vidas. No ciclo dos patriarcas, encontramos também o de um homem que tinha feito da astúcia o seu melhor talento: Jacó. A narração bíblica conta-nos a difícil relação que Jacó teve com o seu irmão Esaú. Desde crianças, houve rivalidades entre eles, que nunca foram resolvidas. Jacó é o segundo filho, mas, com o engano, consegue obter de seu pai Isaac a bênção e o dom da primogenitura (cf. Gn 25, 19-34). É apenas a primeira de uma longa série de astúcias das quais este homem sem escrúpulos é capaz. Até o nome “Jacó” significa alguém que se move com astúcia.
Forçado a fugir para longe do seu irmão, ele parece ter sucesso em todos os empreendimentos da sua vida. É hábil nos negócios: enriquece muito, tornando-se o dono de um enorme rebanho. Com tenacidade e paciência consegue casar com a mais bela das filhas de Labão, pela qual estava verdadeiramente apaixonado. Jacó - diríamos com linguagem moderna - é um homem que “se fez sozinho”, com a sua perspicácia, com a astúcia, conseguiu conquistar tudo o que quis. Mas faltava-lhe alguma coisa. Faltava-lhe a relação viva com as próprias raízes.
E um dia sente saudades de casa, da sua antiga pátria, onde ainda vivia Esaú, o irmão com o qual sempre tivera péssimas relações. Jacó partiu e fez uma longa viagem com uma numerosa caravana de pessoas e animais, até chegar à última etapa, o rio Jaboq. Aqui o Livro do Gênesis oferece-nos uma página memorável (cf. 32, 23-33). Diz-nos que o patriarca, depois de ter feito todo o seu povo e gado - que era tanto - atravessar o baixio, permanece sozinho na margem estrangeira. E pensa: o que o espera no dia seguinte? Qual será a atitude do seu irmão Esaú, ao qual roubara a primogenitura? A mente de Jacó é um turbilhão de pensamentos... E quando anoitece, de repente um desconhecido apodera-se dele e começa a lutar contra ele. O Catecismo explica: «A tradição espiritual da Igreja divisou nesta narrativa o símbolo da oração como combate da fé e vitória da perseverança» (CIC, 2573).
Jacó lutou até ao romper da aurora, sem nunca se libertar das garras do seu adversário. No final, foi derrotado, atingido pelo seu rival no nervo ciático, ficando aleijado para o resto da vida. Esse misterioso lutador pergunta ao patriarca o seu nome, dizendo-lhe: «O teu nome não será mais Jacó, mas Israel; porque combateste contra Deus e contra os homens e conseguiste resistir!» (v. 29). Como se quisesse dizer: nunca serás o homem que caminha assim, mas direito. Muda-lhe o nome, muda-lhe a vida, muda-lhe a atitude: chamar-te-ás Israel. Então também Jacó pergunta: «Peço-te que me digas o teu nome». Ele não lhe revela, mas em troca abençoa-o. E Jacó percebe que encontrou Deus “face a face” (cf. vv. 30-31).
Lutar com Deus: uma metáfora da oração. Outras vezes, Jacó tinha-se mostrado capaz de dialogar com Deus, de O sentir como uma presença amiga e próxima. Mas dessa noite, através de uma luta que durou muito tempo e que o viu quase sucumbir, o patriarca saiu transformado. Mudança do nome, mudança do modo de viver e mudança da personalidade: ele saiu transformado. Desta vez já não é dono da situação – a sua astúcia não serve - já não é o estrategista nem o homem calculista; Deus o reconduz à sua verdade de mortal que treme e tem medo, porque na luta Jacó sentiu medo. Pela primeira vez Jacó nada mais tem para apresentar a Deus a não ser a sua fragilidade e impotência, também os seus pecados. E é este Jacó que recebe a bênção de Deus, com a qual entra coxo na terra prometida: vulnerável, e vulnerado, mas com um coração novo. Certa vez ouvi um idoso dizer - um bom homem, um bom cristão, mas um pecador que tinha tanta fé em Deus -: “Deus me ajudará; Ele não me deixará sozinho. Entrarei no paraíso a coxear, mas entrarei”. Anteriormente Jacó era um homem seguro de si; ele confiava na sua própria astúcia. Era um homem impermeável à graça, refratário à misericórdia; não sabia o que era a misericórdia. “Aqui sou eu que mando!”, pensava que não precisava de misericórdia. Mas Deus salvou o que estava perdido. Ele o fez entender que era limitado, que era um pecador que precisava de misericórdia e salvou-o.
Todos nós temos um encontro marcado com Deus de noite, na noite da nossa vida, nas muitas noites da nossa vida: momentos escuros, momentos de pecado, momentos de desorientação. Há ali um encontro com Deus, sempre. Ele nos surpreenderá quando menos esperamos, quando nos encontramos verdadeiramente sozinhos. Nessa mesma noite, lutando contra o desconhecido, tomaremos consciência de que somos apenas pobres homens - ouso dizer “infelizes” - mas, precisamente nessa altura, quando nos sentirmos “pobres homens”, não deveremos recear: porque, nesse preciso momento, Deus nos dará um novo nome, que contém o sentido de toda a nossa vida; Ele mudará os nossos corações e nos dará a bênção reservada para aqueles que se deixam transformar por Ele. Este é um bom convite para nos deixarmos transformar por Deus. Ele sabe como fazer, porque conhece cada um de nós. “Senhor, tu conheces-me”, todos nós o podemos dizer. “Senhor, tu conheces-me. Transforma-me”.
Papa Francisco
Catequese na audiência geral 10.06.2020
Prezados irmãos e irmãs, bom dia!
Há uma voz que ressoa repentinamente na vida de Abraão. Uma voz que o convida a enveredar por um caminho que parece absurdo: uma voz que o impele a desarraigar-se da sua pátria, das raízes da sua família, para partir rumo a um novo futuro, um futuro diferente. E tudo com base numa promessa, na qual é necessário apenas confiar. E confiar numa promessa não é fácil, é preciso ter coragem. E Abraão confiou.
A Bíblia nada diz sobre o passado do primeiro patriarca. A lógica da situação sugere que ele adorava outros deuses; talvez fosse um homem sábio, acostumado a perscrutar o céu e as estrelas. Com efeito, o Senhor promete-lhe que os seus descendentes serão tão numerosos como as estrelas que pontilham o céu.
E Abraão parte. Ouve a voz de Deus e confia na sua palavra. Isto é importante: confia na palavra de Deus. E com esta sua partida nasce um novo modo de conceber a relação com Deus; é por este motivo que o patriarca Abraão está presente nas grandes tradições espirituais judaica, cristã e islâmica como homem de Deus perfeito, capaz de se submeter a Ele, até quando a sua vontade se revela árdua, ou incompreensível.
Portanto, Abraão é o homem da Palavra. Quando Deus fala, o homem torna-se receptor daquela Palavra e a sua vida transforma-se no lugar onde ela pede para se encarnar. Esta é uma grande novidade no percurso religioso do homem: a vida do crente começa a conceber-se como vocação, ou seja, como chamada, como lugar onde se cumpre uma promessa; e ele move-se no mundo não tanto sob o peso de um enigma, mas com a força daquela promessa, que um dia se há de cumprir. E Abraão acreditou na promessa de Deus. Acreditou e partiu, sem saber para onde ia — assim diz a Carta aos Hebreus (cf. 11, 8). Mas confiou!
Lendo o livro do Gênesis, descobrimos que Abraão viveu a oração em fidelidade incessante àquela Palavra, que periodicamente se manifestava ao longo do seu caminho. Em síntese, podemos dizer que na vida de Abraão a fé se faz história. A fé faz-se história! Aliás, com a sua vida, com o seu exemplo, Abraão ensina-nos este caminho, este itinerário em que a fé se faz história. Deus já não é visto unicamente nos fenômenos cósmicos, como um Deus distante que pode incutir terror. O Deus de Abraão torna-se o “meu Deus”, o Deus da minha história pessoal, que orienta os meus passos, que não me abandona; o Deus dos meus dias, o companheiro das minhas aventuras; o Deus da Providência. Pergunto-me e pergunto-vos: temos esta experiência de Deus? O “meu Deus”, o Deus que me acompanha, o Deus da minha história pessoal, o Deus que guia os meus passos, que não me abandona, o Deus dos meus dias? Temos esta experiência? Pensemos nisto!
Esta experiência de Abraão é também testemunhada por um dos textos mais originais da história da espiritualidade: o Memorial, de Blaise Pascal. Começa assim: «Deus de Abraão, Deus de Isaac, Deus de Jacob, não dos filósofos nem dos sábios. Certeza, certeza. Sentimento. Alegria. Paz. Deus de Jesus Cristo». Este Memorial, escrito num pequeno pergaminho, e encontrado após a sua morte cosido dentro de uma veste do filósofo, exprime não uma reflexão intelectual que um homem sábio como ele pode conceber acerca de Deus, mas o sentido vivo, experimentado, da sua presença. Pascal anota até o momento exato em que sentiu aquela realidade, tendo-a finalmente encontrado: a noite de 23 de novembro de 1654. Não se trata do Deus abstrato, nem do Deus cósmico, não! É o Deus de uma pessoa, de uma chamada, o Deus de Abraão, de Isaac, de Jacob, o Deus que é certeza, que é sentimento, que é alegria!
«A oração de Abraão exprime-se, antes de mais, em atos: homem de silêncio, constrói em cada etapa um altar ao Senhor» (Catecismo da Igreja Católica, n. 2.570). Abraão não edifica um templo, mas espalha pelo caminho pedras que recordam a passagem de Deus. Um Deus surpreendente, como quando o visita na figura de três hóspedes, que ele e Sara recebem com gentileza, e que lhes anunciam o nascimento do filho Isaac (cf. Gn 18, 1-15). Abraão tinha cem anos e a sua esposa, mais ou menos noventa. E acreditaram, confiaram em Deus. E Sara, sua esposa, concebeu. Com aquela idade! Este é o Deus de Abraão, o nosso Deus, que nos acompanha.
Assim, Abraão familiariza com Deus, é capaz até de discutir com Ele, mas sempre fiel. Fala com Deus e debate. Até à suprema provação, quando Deus lhe pede que sacrifique precisamente o filho Isaac, o filho da velhice, o único herdeiro. Aqui Abraão vive a sua fé como um drama, como se caminhasse às apalpadelas na noite, sob um firmamento desta vez sem estrelas. E com frequência também nós caminhamos na escuridão, mas com fé. O próprio Deus deterá a mão de Abraão, já pronta para ferir, porque viu a sua disponibilidade verdadeiramente total (cf. Gn 22, 1-19).
Irmãos e irmãs, aprendamos de Abraão, aprendamos a rezar com fé: ouvir o Senhor, caminhar, dialogar até debater. Não tenhamos medo de discutir com Deus! Direi também algo que parece heresia. Muitas vezes ouvi dizer: “Sabes, isto aconteceu comigo e zanguei-me com Deus” — “Tiveste a coragem de ficar zangado com Deus?” — “Sim, zanguei-me!” — “Mas esta é uma forma de oração”. Pois só um filho é capaz de se zangar com o pai e depois voltar a encontrá-lo. Aprendamos de Abraão a rezar com fé, a dialogar, a discutir, mas sempre dispostos a aceitar a palavra de Deus e a pô-la em prática. Com Deus, aprendamos a falar como um filho com o seu pai: ouvi-lo, responder, debater. Mas de forma transparente, como um filho com o pai. É assim que Abraão nos ensina a rezar. Obrigado!
Papa Francisco
catequese na audiência geral 03.06.2020
Bom dia, queridos irmãos e irmãs!
Dedicamos a catequese de hoje à oração dos justos.
O desígnio de Deus para a humanidade é bom, mas na nossa vida quotidiana experimentamos a presença do mal: é uma experiência de todos os dias. Os primeiros capítulos do livro do Gênesis descrevem a dilatação progressiva do pecado nas vicissitudes humanas. Adão e Eva (cf. Gn 3, 1-7) duvidam das intenções benévolas de Deus, pois pensam que têm a ver com uma divindade invejosa que impede a sua felicidade. Por isso, a rebelião: já não acreditam num Criador generoso que deseja a felicidade deles. Cedendo à tentação do maligno, o seu coração é arrebatado por delírios de omnipotência: «Se comermos o fruto da árvore, tornar-nos-emos como Deus» (cf. v. 5). E esta é a tentação: esta é a ambição que entra no coração. Mas a experiência vai na direção oposta: os seus olhos abrem-se e descobrem que estão nus (cf. v. 7), sem nada. Não vos esqueçais disto: o tentador é um mau pagador, ele paga mal.
O mal torna-se ainda mais agressivo com a segunda geração humana, é mais forte: é a história de Caim e Abel (cf. Gn 4, 1-16). Caim tem inveja do irmão: há o verme da inveja; embora ele seja o primogênito, vê Abel como um rival, alguém que ameaça a sua primazia. O mal insinua-se no seu coração e Caim não consegue dominá-lo. O mal começa a entrar no coração: os pensamentos são sempre de julgar mal o outro, com suspeita. E isto acontece também com o pensamento: “Ele é malvado, irá ferir-me”. E este pensamento começa a entrar no coração... E assim a história da primeira fraternidade acaba com um homicídio. Hoje penso na fraternidade humana... guerras em toda a parte.
Na descendência de Caim desenvolvem-se as profissões e a arte, mas também a violência, expressa pelo cântico sinistro de Lamec, que ressoa como um hino de vingança: «Por uma ferida matei um homem, e por uma contusão um menino [...] Se Caim será vingado sete vezes, Lamec sê-lo-á setenta vezes sete» (Gn 4, 23-24). Vingança: “Vais pagar pelo que fizeste!”. Mas quem o diz não é o juiz, sou eu. E arvoro-me em juiz da situação. E assim o mal alastra-se como mancha de óleo, até ocupar todo o quadro: «O Senhor viu que a maldade dos homens era grande na terra, e que todos os pensamentos do seu coração estavam continuamente voltados para o mal» (Gn 6, 5). Os grandes afrescos do dilúvio universal (caps. 6-7) e da torre de Babel (cap. 11) revelam que há necessidade de um novo começo, como que de uma nova criação, que terá o seu cumprimento em Jesus Cristo.
E no entanto, nestas primeiras páginas da Bíblia está escrita também outra história, menos vistosa, muito mais humilde e devota, que representa o resgate da esperança. Não obstante quase todos se comportem de forma cruel, fazendo do ódio e da conquista o grande motor da existência humana, há pessoas capazes de orar a Deus com sinceridade, capazes de escrever o destino da humanidade de uma maneira diferente. Abel oferece a Deus um sacrifício de primícias. Após a sua morte, Adão e Eva tiveram um terceiro filho, Set, de quem nasceu Enós (que significa “mortal”), e diz-se: «E a partir de então, o nome do Senhor começou a ser invocado» (4, 26). Em seguida surge Enoc, personagem que “caminha com Deus” e que é arrebatado ao céu (cf. 5, 22.24). E, por fim, há a história de Noé, um homem justo que «andava com Deus» (6, 9), diante do qual Deus suspende o seu propósito de eliminar a humanidade (cf. 6, 7-8).
Lendo estas narrações, tem-se a impressão de que a oração é a barragem, o refúgio do homem perante a inundação do mal que cresce no mundo. Considerando bem, oramos também para nos salvarmos de nós próprios. É importante rezar: “Senhor, por favor, salva-me de mim mesmo, das minhas ambições, das minhas paixões”. Os orantes das primeiras páginas da Bíblia são homens artífices de paz: com efeito, quando é autêntica, a oração é livre dos instintos de violência e é um olhar dirigido a Deus, a fim de que Ele volte a cuidar do coração do homem. No Catecismo lê-se: «Esta qualidade da oração é vivida por uma multidão de justos em todas as religiões» (CIC, n. 2.569). A oração cultiva jardins de renascimento em lugares onde o ódio do homem só foi capaz de alastrar o deserto. E a oração é poderosa, porque atrai o poder de Deus, e o poder de Deus dá sempre vida: sempre! É o Deus da vida, e faz renascer!
É por isso que o senhorio de Deus passa através da cadeia destes homens e mulheres, muitas vezes mal compreendidos ou até marginalizados no mundo. Mas o mundo vive e cresce graças à força de Deus, que estes seus servos atraem mediante as suas preces. Não são uma cadeia barulhenta, raramente são notícia, mas contudo são muito importantes para restituir confiança ao mundo! Lembro-me da história de um homem: um importante chefe de governo, não desta época, do passado. Um ateu sem sentido religioso no coração, mas quando era criança ouvia a sua avó rezar, e isto permaneceu no seu coração. E num momento difícil da sua vida, aquela recordação voltou ao seu coração e ele disse: “Mas a avó rezava...”. Assim, começou a orar com as fórmulas da avó e ali encontrou Jesus. A oração é uma corrente de vida, sempre: muitos homens e mulheres que rezam, semeiam vida. A oração, a pequena oração, semeia vida: por isso é tão importante ensinar as crianças a rezar. Dói encontrar crianças que não sabem fazer o sinal da cruz. É preciso ensiná-las a fazer bem o sinal da cruz, porque esta é a primeira oração. É importante que as crianças aprendam a orar. Depois, talvez possam esquecer, seguir outro caminho; mas as primeiras preces aprendidas quando são crianças permanecem no coração, porque constituem uma semente de vida, a semente do diálogo com Deus.
O caminho de Deus na história de Deus passou através deles: passou por um “resto” da humanidade que não se conformou com a lei do mais forte, mas pediu a Deus que realizasse os seus milagres e, sobretudo, que transformasse o nosso coração de pedra em coração de carne (cf. Ez 36, 26). E isto ajuda a oração: pois a oração abre a porta a Deus, transformando o nosso coração muitas vezes de pedra num coração humano. E é necessária tanta humanidade, pois ora-se bem com a humanidade.
Papa Francisco
Catequese na audiência geral 27.05.2020
Estimados irmãos e irmãs, bom dia!
Continuemos a catequese sobre a oração, meditando acerca do mistério da Criação. A vida, o simples fato de existirmos, abre o coração do homem à oração.
A primeira página da Bíblia assemelha-se a um grandioso hino de ação de graças. A narração da Criação é cadenciada por refrões, nos quais são constantemente reiteradas a bondade e a beleza de tudo o que existe. Com a sua palavra, Deus chama à vida, e todas as coisas passam a existir. Com a palavra, separa a luz das trevas, alterna o dia e a noite, intercala as estações, abre uma paleta de cores com a variedade das plantas e dos animais. Nesta floresta transbordante que rapidamente derrota o caos, o homem aparece em último lugar. E esta aparição provoca um excesso de exultação, que amplifica a satisfação e a alegria: «Deus contemplou a sua obra, e viu que tudo era muito bom» (Gn 1, 31). Bom, mas também belo: vê-se a beleza de toda a Criação!
A beleza e o mistério da Criação geram no coração do homem o primeiro movimento que suscita a oração (cf. Catecismo da Igreja Católica, n. 2.566). Assim reza o oitavo Salmo, que ouvimos no início: «Quando contemplo o firmamento, obra dos vossos dedos, a lua e as estrelas que lá fixastes: “Que é o homem, para pensardes nele, que são os filhos de Adão, para que vos preocupeis com eles?”» (vv. 4-5). Quem reza contempla o mistério da existência ao seu redor, vê o céu estrelado acima dele — e que a astrofísica nos mostra hoje em toda a sua imensidão — e interroga-se acerca de qual desígnio de amor deve existir por detrás de uma obra tão poderosa!... E que é o homem, nesta vastidão sem confins? «Quase nada», diz outro Salmo (cf. 89, 48): um ser que nasce, um ser que morre, uma criatura extremamente frágil. E no entanto, em todo o universo, o ser humano é a única criatura consciente de tal profusão de beleza. Um pequeno ser que nasce, morre, hoje existe e amanhã não, é o único consciente desta beleza. Nós estamos cientes desta beleza!
A oração do homem está intimamente ligada ao sentimento de admiração. A grandeza do homem é infinitesimal, se for comparada com as dimensões do universo. As suas maiores conquistas parecem ser muito pouco... Mas o homem não é nada. Na oração afirma-se vigorosamente um sentimento de misericórdia. Nada existe por acaso: o segredo do universo consiste no olhar benévolo de alguém que se cruza com o nosso. O Salmo afirma que somos feitos pouco menos que um Deus, que somos coroados de glória e honra (cf. 8, 6). A relação com Deus é a grandeza do homem: a sua entronização. Por natureza não somos quase nada, somos pequenos; mas por vocação, por chamada somos os filhos do grande Rei!
É uma experiência que muitos de nós já fizemos. Se a vicissitude da vida, com todas as suas amarguras, às vezes corre o risco de sufocar em nós o dom da oração, é suficiente a contemplação de um céu estrelado, de um pôr do sol, de uma flor..., para reacender a centelha da gratidão. Talvez esta experiência esteja na base da primeira página da Bíblia.
Quando foi redigida a grandiosa narração bíblica da Criação, o povo de Israel não vivia dias felizes. Uma potência inimiga tinha ocupado a terra; muitos foram deportados e agora viviam como escravos na Mesopotâmia. Já não havia pátria, nem templo, nem sequer vida social e religiosa, nada!
E no entanto, partindo precisamente da grande narração da Criação, alguém começa a encontrar motivos de ação de graças, a louvar a Deus pela existência. A oração é a primeira força da esperança. Reza-se e a esperança cresce, aumenta. Diria que a oração abre a porta à esperança. Há esperança, mas com a minha prece abro a porta. Porque os homens de oração preservam as verdades básicas; são eles que repetem, antes de tudo a si mesmos e depois aos demais, que esta vida, não obstante todas as suas fadigas e provações, apesar dos seus dias difíceis, está cheia de uma graça da qual se admirar. E, como tal, deve ser sempre defendida e salvaguardada.
Os homens e as mulheres que oram sabem que a esperança é mais forte do que o desânimo. Acreditam que o amor é mais poderoso do que a morte, e que certamente um dia há de triunfar, nem que seja em tempos e modalidades que não conhecemos. Os homens e as mulheres de oração trazem clarões de luz refletidos no rosto, pois até nos dias mais escuros o sol não deixa de os iluminar. A oração ilumina-te: ilumina a tua alma, ilumina o teu coração e ilumina o teu rosto. Até nos momentos mais sombrios, mesmo nos momentos de maior dor.
Todos nós somos portadores de alegria. Já pensastes nisto? Que és um portador de alegria? Ou preferes levar más notícias, que entristecem? Todos nós somos capazes de transmitir alegria. Esta vida é o dom que Deus nos concedeu: e é demasiado breve para ser vivida na tristeza, na amargura. Louvemos a Deus, felizes simplesmente por existir. Olhemos para o universo, contemplemos as belezas e também as nossas cruzes, e digamos: “Mas tu existes e fizeste-nos assim, para ti”. É necessário sentir esta inquietação do coração, que leva a dar graças e a louvar a Deus. Somos os filhos do grande Rei, do Criador, capazes de ler a sua assinatura em toda a Criação; a Criação que hoje não preservamos, mas na Criação está a assinatura de Deus, que a fez por amor. Que o Senhor nos faça compreender isto cada vez mais profundamente, levando-nos a dizer “obrigado”, e este “obrigado” é uma bonita oração!
Papa Francisco
catequese na audiência geral - 20.05.2020
Hoje damos o segundo passo no caminho de catequeses sobre a oração, iniciado na semana passada.
A oração pertence a todos: aos homens de todas as religiões, e provavelmente também àqueles que não professam religião alguma. A oração nasce no segredo de nós mesmos, naquele lugar interior a que muitas vezes os autores espirituais chamam “coração” (cf. Catecismo da Igreja Católica, nn. 2.562-2.563). Portanto, o que reza em nós não é algo periférico, nem uma nossa faculdade secundária e marginal, mas é o mistério mais íntimo de nós mesmos. É este mistério que reza. As emoções rezam, mas não se pode dizer que a oração é unicamente emoção. A inteligência reza, mas rezar não é apenas um ato intelectual. O corpo reza, mas pode-se falar com Deus até na invalidez mais grave. Por conseguinte, é o homem todo que ora, se o seu “coração” reza.
A oração é um impulso, uma invocação que vai além de nós próprios: algo que nasce no íntimo da nossa pessoa e que se estende, pois sente a nostalgia de um encontro. Aquela nostalgia que é mais do que uma carência, mais do que uma necessidade: é um caminho. A oração é a voz de um “eu” que tropeça, que procede às cegas, em busca de um “Tu”. O encontro entre o “eu” e o “Tu” não pode ser calculado: é um encontro humano e, muitas vezes, procede-se às cegas para encontrar o “Tu” que o meu “eu” procura.
Ao contrário, a oração do cristão nasce de uma revelação: o “Tu” não permaneceu envolvido no mistério, mas entrou em relação connosco. O cristianismo é a religião que celebra continuamente a “manifestação” de Deus, ou seja, a sua epifania. As primeiras festas do ano litúrgico são a celebração deste Deus que não permanece escondido, mas que oferece a sua amizade aos homens. Deus revela a sua glória na pobreza de Belém, na contemplação dos Magos, no batismo no Jordão, no prodígio das bodas de Caná. O Evangelho de João conclui o grande hino do Prólogo com esta afirmação sintética: «Ninguém jamais viu a Deus: o Filho único, que está no seio do Pai, foi quem o revelou» (1, 18). Foi Jesus quem nos revelou Deus.
A oração do cristão entra em relação com o Deus de rosto profundamente terno, que não quer incutir medo algum aos homens. Esta é a primeira caraterística da prece cristã. Se os homens desde sempre estavam habituados a aproximar-se de Deus com um pouco de timidez, um pouco apavorados diante deste mistério fascinante e terrível, se se tinham habituado a adorá-lo com uma atitude servil, semelhante à de um servo que não quer desrespeitar o seu senhor, ao contrário os cristãos dirigem-se a Ele ousando chamá-lo de modo confidente, com o nome de “Pai”. Na verdade, Jesus usa outra palavra: “paizinho”.
O cristianismo eliminou do vínculo com Deus todas as relações “feudais”. No patrimônio da nossa fé não existem expressões como “subjugação”, “escravatura” ou “vassalagem”; mas sim palavras como “aliança”, “amizade”, “promessa”, “comunhão”, “proximidade”. No seu longo discurso de despedida dos discípulos, Jesus diz assim: «Já não vos chamo servos, porque o servo não sabe o que faz o seu senhor; mas chamei-vos amigos, porque vos dei a conhecer tudo o que ouvi de meu Pai. Não fostes vós que me escolhestes, mas foi Eu que vos escolhi e vos constituí, para irdes e dardes fruto, e para que o vosso fruto permaneça; a fim de que tudo quanto pedirdes ao Pai em meu nome, Ele vo-lo conceda» (Jo 15, 15-16). Mas trata-se de um cheque em branco: “Tudo o que pedirdes ao meu Pai em meu nome, Eu vo-lo concederei”!
Deus é o amigo, o aliado, o esposo. Na oração pode-se estabelecer uma relação de confiança com Ele, a ponto que no “Pai-Nosso” Jesus nos ensinou a dirigir-lhe uma série de pedidos. A Deus podemos pedir tudo, tudo; explicar tudo, contar tudo. Não importa se no nosso relacionamento com Deus nos sentimos em falta: não somos bons amigos, não somos filhos agradecidos, não somos esposos fiéis. Ele continua a amar-nos. É o que Jesus demonstra definitivamente na Última Ceia, quando diz: «Este cálice é a nova aliança no meu sangue, que é derramado por vós» (Lc 22, 20). Naquele gesto, Jesus antecipa no Cenáculo o mistério da Cruz. Deus é um aliado fiel: até quando os homens deixam de amar, Ele continua a amar, mesmo que o amor o leve ao Calvário. Deus está sempre perto da porta do nosso coração e espera que lhe abramos. E às vezes bate à porta do coração, mas não é indiscreto: espera. A paciência de Deus connosco é a paciência de um pai, de alguém que nos ama muito. Diria que é a paciência de um pai e ao mesmo tempo de uma mãe. Sempre perto do nosso coração, e quando bate à porta, fá-lo com ternura e com muito amor.
Procuremos todos rezar assim, entrando no mistério da Aliança. Colocar-nos em oração nos braços misericordiosos de Deus, sentir-nos envolvidos por esse mistério de felicidade que é a vida trinitária, sentir-nos como convidados que não mereciam tanta honra. E, no assombro da oração, repetir a Deus: é possível que Tu só conheças amor? Ele não conhece o ódio. Ele é odiado, mas não conhece o ódio. Só conhece o amor. Tal é o Deus a quem rezamos. Eis o núcleo incandescente de toda a oração cristã. O Deus de amor, o nosso Pai que nos espera e nos acompanha.
Papa Francisco
Catequese na audiência geral 13.05.2020
Catequeses sobre as Bem-aventuranças - 9
Prezados irmãos e irmãs, bom dia!
Com a audiência de hoje concluímos o percurso das bem-aventuranças evangélicas. Como ouvimos, na última proclama-se a alegria escatológica de quantos são perseguidos por causa da justiça.
Esta bem-aventurança anuncia a mesma felicidade da primeira: o reino dos Céus pertence aos perseguidos, assim como aos pobres em espírito; portanto, compreendemos que chegamos ao fim de um percurso unitário desvendado nos anúncios precedentes.
A pobreza de espírito, o pranto, a mansidão, a sede de santidade, a misericórdia, a purificação do coração e as obras de paz podem levar à perseguição por causa de Cristo, mas no final esta perseguição é motivo de alegria e de grande recompensa nos Céus. A vereda das bem-aventuranças é um caminho pascal que conduz de uma vida em conformidade com o mundo para a vida segundo Deus, de uma existência guiada pela carne — isto é, pelo egoísmo — para a vida orientada pelo Espírito.
Com os seus ídolos, os seus compromissos e as suas prioridades, o mundo não pode aprovar este tipo de existência. As “estruturas de pecado” (cf. Discurso aos participantes no simpósio “Novas formas de fraternidade solidária, inclusão, integração e inovação”, 5 de fevereiro de 2020: «A idolatria do dinheiro, a ganância e a corrupção são todas “estruturas de pecado” - como João Paulo II as definiu - causadas pela “globalização da indiferença”»), frequentemente produzidas pela mentalidade humana, tão alheias ao Espírito da Verdade que o mundo não pode receber (cf. Jo 14, 17), não podem deixar de rejeitar a pobreza, ou a mansidão, ou a pureza, declarando que a vida segundo o Evangelho é como um erro e um problema, portanto como algo a marginalizar. O mundo pensa assim: “Eles são idealistas ou fanáticos...”. É assim que eles pensam.
Se o mundo vive em função do dinheiro, quem quer que demonstre que a vida pode ser vivida no dom e na renúncia torna-se um incômodo para o sistema de ganância. Esta palavra “incômodo” é fundamental, pois só o testemunho cristão, que é tão bom para tantas pessoas porque o seguem, incomoda aqueles que têm uma mentalidade mundana. Vivem-no como uma repreensão. Quando se manifesta a santidade e sobressai a vida dos filhos de Deus, em tal beleza há algo de incômodo que exige uma tomada de posição: ou deixar-se questionar e abrir-se ao bem, ou rejeitar aquela luz e endurecer o coração, até à oposição e à obstinação (cf. Sb 2, 14-15). É curioso, chama a atenção ver como, nas perseguições dos mártires, a hostilidade cresce até à obstinação. É suficiente considerar as perseguições do século passado, das ditaduras europeias: como se chega à obstinação contra os cristãos, contra o testemunho cristão e contra a heroicidade dos cristãos.
Mas isto demonstra que o drama da perseguição é também o lugar da libertação da submissão ao sucesso, à vanglória e aos compromissos do mundo. Do que se alegra quem é rejeitado pelo mundo por causa de Cristo? Regozija-se por ter encontrado algo que vale mais do que o mundo inteiro. Pois, «de que servirá ao homem ganhar o mundo inteiro, se vier a perder a sua vida?» (Mc 8, 36). Que vantagem há nisto?
É doloroso recordar que, neste momento, há muitos cristãos que padecem perseguição em várias partes do mundo, e devemos esperar e rezar para que a sua tribulação seja impedida o mais rapidamente possível. Há muitos: os mártires de hoje são mais numerosos do que os mártires dos primeiros séculos. Manifestemos a nossa proximidade a estes irmãos e irmãs: somos um só corpo, e estes cristãos são os membros ensanguentados do Corpo de Cristo, que é a Igreja.
Mas devemos ter também o cuidado de não ler esta bem-aventurança numa perspetiva de vitimismo, de autocomiseração. Com efeito, o desprezo pelos homens nem sempre é sinônimo de perseguição: logo depois, Jesus diz que os cristãos são o «sal da terra», e alerta contra o perigo de “perder o sabor”; caso contrário, o sal «para nada mais serve, a não ser para ser lançado fora e pisado pelos homens» (Mt 5, 13). Portanto, existe também um desprezo que é por nossa culpa, quando perdemos o sabor de Cristo e do Evangelho.
É preciso ser fiel à senda humilde das bem-aventuranças, pois é isto que leva a ser de Cristo e não do mundo. Vale a pena recordar o itinerário de São Paulo: quando se julgava justo, na realidade era um perseguidor, mas quando descobriu que era um perseguidor, tornou-se um homem de amor, enfrentando com júbilo os sofrimentos da perseguição que suportava (cf. Cl 1, 24).
A exclusão e a perseguição, se Deus nos concede a graça, tornam-nos semelhantes a Cristo Crucificado e, associando-nos à sua Paixão, são a manifestação da vida nova. Esta vida é a mesma de Cristo, que por nós homens e pela nossa salvação foi «desprezado e rejeitado pelos homens» (cf. Is 53, 3; At 8, 30-35). Aceitar o seu Espírito pode levar-nos a ter tanto amor no nosso coração, a ponto de oferecermos a vida pelo mundo, sem ceder a compromissos com as suas falácias e aceitando a sua rejeição. Os compromissos com o mundo são o perigo: o cristão é sempre tentado a ceder a compromissos com o mundo, com o espírito do mundo. Esta — rejeitar os compromissos e seguir o caminho de Jesus Cristo — é a vida do Reino dos Céus, a maior alegria, a verdadeira felicidade. Além disso, nas perseguições há sempre a presença de Jesus que nos acompanha, a presença de Jesus que nos consola e a força do Espírito que nos ajuda a seguir em frente. Não desanimemos quando uma vida coerente com o Evangelho atrai as perseguições das pessoas: há o Espírito que nos ampara neste caminho.
Papa Francisco
Catequese na audiência geral 29.04.2020
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