Catequese - “Curar o Mundo”: 4. O destino universal dos bens e a virtude da esperança
Amados irmãos e irmãs, bom dia!
Perante a pandemia e as suas consequências sociais, muitos correm o risco de perder a esperança. Neste tempo de incerteza e angústia, convido todos a aceitarem o dom da esperança que vem de Cristo. É Ele que nos ajuda a navegar nas águas tumultuosas da doença, da morte e da injustiça, que não têm a última palavra sobre o nosso destino final.
A pandemia pôs em evidência e agravou os problemas sociais, especialmente a desigualdade. Alguns podem trabalhar de casa, enquanto para muitos outros isto é impossível. Algumas crianças, apesar das dificuldades, podem continuar a receber uma educação escolar, enquanto para muitas outras houve uma brusca interrupção. Algumas nações poderosas podem emitir moeda para enfrentar a emergência, enquanto que para outras isso significaria hipotecar o futuro.
Estes sintomas de desigualdade revelam uma doença social; é um vírus que provém de uma economia doente. Devemos simplesmente dizê-lo: a economia está doente. Adoeceu. É o resultado de um crescimento económico iníqua - esta é a doença: o fruto de um crescimento económico iníquo - que prescinde dos valores humanos fundamentais. No mundo de hoje, muito poucas pessoas ricas possuem mais do que o resto da humanidade. Repito isto porque nos fará refletir: poucos riquíssimos, um pequeno grupo, possui mais que o resto da humanidade. Esta é mera estatística. É uma injustiça que clama aos céus! Ao mesmo tempo, este modelo económico é indiferente aos danos infligidos à casa comum. Não cuida da casa comum. Estamos quase a superar muitos dos limites do nosso maravilhoso planeta, com consequências graves e irreversíveis: desde a perda de biodiversidade e alterações climáticas ao aumento do nível dos mares e à destruição das florestas tropicais. A desigualdade social e a degradação ambiental andam de mãos dadas e têm a mesma raiz (cf. Enc. Laudato si', 101): a do pecado de querer possuir, de querer dominar os irmãos e irmãs, de pretender possuir e dominar a natureza e o próprio Deus. Mas este não é o desígnio da criação.
«No princípio, Deus confiou a terra e os seus recursos à gestão comum da humanidade, para que dela cuidasse» (Catecismo da Igreja Católica, 2402). Deus pediu-nos que dominássemos a terra em Seu nome (cf. Gn 1, 28), cultivando-a e cuidando dela como se fosse um jardim, o jardim de todos (cf. Gn 2, 15). «Enquanto “cultivar” quer dizer lavrar ou trabalhar [...] “guardar” significa proteger..., preservar» (LS, 67). Mas atenção a não interpretar isto como uma carta branca para fazer da terra aquilo que se quer. Não. Existe «uma relação responsável de reciprocidade» (ibid.) entre nós e a natureza. Uma relação de reciprocidade responsável entre nós e a natureza. Recebemos da criação e damos por nossa vez. «Cada comunidade pode tomar da bondade da terra aquilo de que necessita para a sua sobrevivência, mas tem também o dever de a proteger» (ibidem). Ambas as partes.
De fato, a terra «precede-nos e foi-nos dada» (ibid.), foi dada por Deus «a toda a humanidade» (CIC, 2402). E por isso é nosso dever assegurar que os seus frutos cheguem a todos, e não apenas a alguns. Este é um elemento-chave da nossa relação com os bens terrenos. Como recordaram os padres do Concílio Vaticano II, «quem usa desses bens, não deve considerar as coisas exteriores que legitimamente possui só como próprias, mas também como comuns, no sentido de que possam beneficiar não só a si mas também aos outros» (Const. past. Gaudium et spes, 69). De facto, «a propriedade dum bem faz do seu detentor um administrador da providência de Deus, com a obrigação de o fazer frutificar e de comunicar os seus benefícios aos outros» (CIC, 2404). Nós somos administradores dos bens, não donos. Administradores. “Sim, mas o bem é meu”. É verdade, é teu, mas para o administrares, não para o possuíres egoisticamente.
Para assegurar que o que possuímos seja um valor para a comunidade, «a autoridade política tem o direito e o dever de regular, em função do bem comum» (ibid., 2406; [cf. GS 71; São João Paulo II, Carta enc. Sollicitudo rei socialis, 42; Carta enc. Centesimus annus, 40.48]).
A «subordinação da propriedade privada ao destino universal dos bens [...] é uma “regra de ouro” do comportamento social, e o primeiro princípio de toda a ordem ético-social» (LS, 93; [cf. São João Paulo II, Carta enc. Laborem exercens, 19]).
As propriedades, o dinheiro são instrumentos que podem servir para a missão. Mas transformamo-los facilmente em fins individuais ou coletivos. E quando isto acontece, são minados os valores humanos essenciais. O homo sapiens deforma-se e torna-se uma espécie de homo oeconomicus - num sentido menor - individualista, calculista e dominador. Esquecemos que, sendo criados à imagem e semelhança de Deus, somos seres sociais, criativos e solidários, com uma imensa capacidade de amar. Com frequência esquecemo-nos disto. De facto, somos os seres mais cooperadores entre todas as espécies, e florescemos em comunidade, como se pode ver na experiência dos santos. Há um ditado espanhol que me inspirou esta frase, que reza assim: Florescemos en racimo, como los santos. Florescemos em comunidade como se vê na experiência dos santos.
Quando a obsessão de possuir e dominar exclui milhões de pessoas dos bens primários; quando a desigualdade econômica e tecnológica é tal que dilacera o tecido social; e quando a dependência do progresso material ilimitado ameaça a casa comum, então não podemos ficar a olhar de braços cruzados. Não, isso é desolador. Não podemos ficar a olhar! Com os olhos fixos em Jesus (cf. Hb 12, 2) e com a certeza de que o seu amor opera através da comunidade dos seus discípulos, devemos agir em conjunto na esperança de gerar algo diferente e melhor. A esperança cristã, enraizada em Deus, é a nossa âncora. Sustenta a vontade de partilhar, fortalecendo a nossa missão como discípulos de Cristo, que partilhou tudo connosco.
Isto foi compreendido pelas primeiras comunidades cristãs, que, como nós, viveram tempos difíceis. Conscientes de formar um só coração e uma só alma, punham todos os seus bens em comum, dando testemunho da abundante graça de Cristo sobre eles (cf. At 4, 32-35). Nós estamos a viver uma crise. A pandemia pôs-nos todos em crise. Mas recordai-vos: de uma crise não se pode sair iguais, ou saímos melhores ou saímos piores. Eis a nossa opção. Depois da crise, continuaremos com este sistema econômico de injustiça social e de desprezo pelo cuidado do meio ambiente, da criação, da casa comum? Pensemos nisto. Que as comunidades cristãs do século XXI recuperem esta realidade – o cuidado da criação e a justiça social: caminham juntas - dando assim testemunho da Ressurreição do Senhor. Se cuidarmos dos bens que o Criador nos concede, se partilharmos o que possuímos para que não falte nada a ninguém, então de facto podemos inspirar esperança para regenerar um mundo mais saudável e mais justo.
E para terminar, pensemos nas crianças. Lede as estatísticas: quantas crianças, hoje, morrem de fome devido à má distribuição das riquezas, a um sistema econômico como disse acima; e quantas crianças, hoje, não têm direito à escolarização, pelo mesmo motivo. Que esta imagem, das crianças necessitadas, com fome e com falta de escolarização, nos ajude a compreender que desta crise devemos sair melhores. Obrigado.
Papa Francisco
Catequese na audiência geral 29.08.2020
Catequese - “Curar o Mundo”: 6: O Bem-comum
Amados irmãos e irmãs, bom dia!
A crise que estamos a viver devido à pandemia atinge todos; podemos sair dela melhores se todos juntos procurarmos o bem comum; caso contrário sairemos piores. Infelizmente, estamos a assistir ao surgimento de interesses de parte. Por exemplo, há quem deseje apropriar-se de possíveis soluções, como no caso das vacinas e depois vendê-las aos outros. Algumas pessoas aproveitam-se da situação para fomentar divisões: para procurar vantagens econômicas ou políticas, gerando ou aumentando os conflitos. Outros simplesmente não se importam com o sofrimento dos outros, passam adiante e seguem o seu caminho (cf. Lc 10, 30-32). São os devotos de Pôncio Pilatos, lavam as mãos.
A resposta cristã à pandemia e às consequentes crises socioeconômicas baseia-se no amor, antes de tudo, no amor de Deus que sempre nos precede (cf. 1 Jo 4, 19). Ele ama-nos primeiro, Ele precede-nos sempre no amor e nas soluções. Ele ama-nos incondicionalmente, e quando aceitamos este amor divino, então podemos responder de forma semelhante. Amo não só aqueles que me amam: a minha família, os meus amigos, o meu grupo, mas também aqueles que não me amam, amo inclusive os que não me conhecem, amo também os que são estrangeiros, e até aqueles que me fazem sofrer ou que considero inimigos (cf. Mt 5, 44). Esta é a sabedoria cristã, esta é a atitude de Jesus. E o ponto mais elevado da santidade, digamos assim, é amar os inimigos, e não é fácil. Claro, amar todos, inclusive os inimigos, é difícil - diria que é uma arte! Mas é uma arte que pode ser aprendida e melhorada. O verdadeiro amor, que nos torna fecundos e livres, é sempre expansivo e inclusivo. Este amor cuida, cura e faz bem. Muitas vezes faz melhor uma carícia do que muitas argumentações, uma carícia de perdão e não muitas palavras de defesa. É o amor inclusivo que cura.
Portanto, o amor não se limita às relações entre duas ou três pessoas, amigos, ou família, vai além. Inclui as relações cívicas e políticas (cf. Catecismo da Igreja Católica [CIC], 1907-1912), incluindo a relação com a natureza (Enc. Laudato si' [LS], 231). Dado que somos seres sociais e políticos, uma das mais altas expressões de amor é precisamente o amor social e político, que é decisivo para o desenvolvimento humano e para enfrentar qualquer tipo de crise (ibid., 231). Sabemos que o amor fecunda famílias e amizades; mas é bom lembrar que também fecunda relações sociais, culturais, econômicas e políticas, permitindo-nos construir uma “civilização do amor”, como gostava de dizer São Paulo VI (Mensagem para o Décimo Dia Mundial da Paz,1 de Janeiro de 1977: AAS 68 [1976], 709) e, na esteira, São João Paulo II. Sem esta inspiração, a cultura do egoísmo, da indiferença, do descarte, prevalece, ou seja, descartar aquilo de que eu não gosto, o que eu não posso amar ou aqueles que na minha opinião são inúteis na sociedade. Hoje, à entrada, um casal disse-me: “reze por nós porque temos um filho deficiente”. Perguntei: “quantos anos tem? - muitos – e o que fazeis? - nós acompanhamo-lo, ajudamo-lo”. Uma vida inteira dos pais para aquele filho deficiente. Isto é amor. E os inimigos, os adversários políticos, segundo a nossa opinião, parecem ser deficientes políticos e sociais, mas parecem. Só Deus sabe se o são ou não. Mas nós devemos amá-los, devemos dialogar, devemos construir esta civilização do amor, esta civilização política, social, da unidade de toda a humanidade. Tudo isto é o oposto de guerras, divisões, invejas, até das guerras em família. O amor inclusivo é social, é familiar, é político: o amor permeia tudo!
O coronavírus mostra-nos que o verdadeiro bem para cada um é um bem comum, não só individual e, vice-versa, o bem comum é um verdadeiro bem para a pessoa (cf. CIC, 1905-1906). Se alguém procura apenas o próprio bem é um egoísta. Ao contrário, a pessoa é mais pessoa quando abre o próprio bem a todos, o partilha. A saúde não é apenas individual, mas também um bem público. Uma sociedade saudável é aquela que cuida da saúde de todos.
Um vírus que não conhece barreiras, fronteiras, distinções culturais nem políticas deve ser enfrentado com um amor sem barreiras, fronteiras nem distinções. Este amor pode gerar estruturas sociais que nos encorajam a partilhar em vez de competir, que nos permitem incluir os mais vulneráveis em vez de os descartar, e que nos ajudam a expressar o melhor da nossa natureza humana e não o pior. O verdadeiro amor não conhece a cultura do descarte, não sabe o que isso é. De fato, quando amamos e geramos criatividade, quando geramos confiança e solidariedade, então emergem iniciativas concretas para o bem comum (Cf. S. João Paulo II, Enc. Sollicitudo rei socialis, 38) .E isto é verdade tanto a nível de pequenas e grandes comunidades como a nível internacional. Aquilo que se faz em família, no bairro, na aldeia, na grande cidade e internacionalmente é o mesmo: é a mesma semente que cresce e dá fruto. Se tu, em família, no bairro, começares com a inveja, com a luta, no final haverá a “guerra”. Ao contrário, se começares com o amor, a partilhar o amor, o perdão, então haverá o amor e o perdão para todos.
Pelo contrário, se as soluções para a pandemia tiverem a marca do egoísmo, quer de pessoas, empresas ou nações, talvez consigamos sair do coronavírus, mas certamente não da crise humana e social que o vírus evidenciou e acentuou. Portanto, prestai atenção a não construir sobre a areia (cf. Mt 7, 21-27)! Para construir uma sociedade saudável, inclusiva, justa e pacífica, temos que o fazer sobre a rocha do bem comum (ibid., 10).O bem comum é uma rocha. E esta é a tarefa de todos nós, e não apenas de alguns especialistas. São Tomás de Aquino disse que a promoção do bem comum é um dever de justiça que recai sobre todos os cidadãos. Cada cidadão é responsável pelo bem comum. E, para os cristãos, é também uma missão. Como ensina Santo Inácio de Loyola, orientar os nossos esforços diários para o bem comum é uma forma de receber e difundir a glória de Deus.
Infelizmente, a política muitas vezes não goza de boa reputação, e nós sabemos porquê. Isto não significa que todos os políticos são maus, não, não pretendo dizer isto. Digo apenas que infelizmente a política, com frequência, não goza de boa fama. Contudo, não nos devemos resignar a esta visão negativa, mas reagir demonstrando com factos que uma boa política é possível, aliás, indispensável(cf. Mensagem para o Dia Mundial da Paz 1 de Janeiro de 2019 [8 de Dezembro de 2018]), aquela que coloca no centro a pessoa humana e o bem comum. Se lerdes a história da humanidade, encontrareis muitos políticos, santo, que percorreram este caminho. É possível na medida em que cada cidadão e, em particular, aqueles que assumem compromissos e encargos sociais e políticos, enraízam as suas ações em princípios éticos e as animam com amor social e político. Os cristãos, especialmente os fiéis leigos, são chamados a dar bom testemunho disto e podem fazê-lo através da virtude da caridade, cultivando a sua intrínseca dimensão social.
Por conseguinte, chegou o momento de incrementar o nosso amor social – desejo frisar isto: o nosso amor social – contribuindo todos, a começar pela nossa pequenez. O bem comum requer a participação de todos. Se cada um contribuir com a sua parte, e se ninguém for excluído, podemos regenerar boas relações a nível comunitário, nacional e internacional e também em harmonia com o meio ambiente (cf. LS, 236). Assim, nos nossos gestos, mesmo nos mais humildes, tornar-se-á visível algo da imagem de Deus que temos dentro de nós, porque Deus é Trindade, Deus é Amor. Esta é a definição mais bonita de Deus na Bíblia. É-nos oferecida pelo apóstolo João, que amava tanto Jesus: Deus é amor. Com a sua ajuda, podemos curar o mundo trabalhando juntos para o bem comum, não só para o próprio bem, mas para o bem comum, de todos.
Papa Francisco
Catequese na audiência geral 09.09.2020
Amados irmãos e irmãs, bom dia!
A pandemia acentuou a difícil situação dos pobres e o grande desequilíbrio que reina no mundo. E o vírus, sem excluir ninguém, encontrou grandes desigualdades e discriminações no seu caminho devastador. E aumentou-as!
Portanto, a resposta à pandemia é dupla. Por um lado, é essencial encontrar uma cura para um pequeno mas terrível vírus que põe o mundo inteiro de joelhos. Por outro, devemos curar um grande vírus, o da injustiça social, da desigualdade de oportunidades, da marginalização e da falta de proteção dos mais débeis. Nesta dupla resposta de cura há uma escolha que, segundo o Evangelho, não pode faltar: é a opção preferencial pelos pobres (cf. Exort. ap. Evangelii gaudium [EG], 195). E esta não é uma opção política; nem sequer uma opção ideológica, uma opção de partidos. A opção preferencial pelos pobres está no centro do Evangelho. E quem a fez primeiro foi Jesus; ouvimos isto no trecho da Carta aos Coríntios, lido no início. Ele, sendo rico, fez-se pobre para nos enriquecer. Fez-se um de nós e por isso, no centro do Evangelho, no centro do anúncio de Jesus, há esta opção.
O próprio Cristo, que é Deus, despojou-se, fazendo-se semelhante aos homens; e não escolheu uma vida de privilégio, mas escolheu a condição de servo (cf. Fl 2, 6-7). Aniquilou-se a si mesmo fazendo-se servo. Nasceu numa família humilde e trabalhou como artesão. No início da sua pregação, anunciou que no Reino de Deus os pobres são bem-aventurados (cf. Mt 5, 3; Lc 6, 20; EG, 197). Estava no meio dos doentes, dos pobres e dos excluídos, mostrando-lhes o amor misericordioso de Deus (cf. Catecismo da Igreja Católica, 2444). E muitas vezes foi julgado como homem impuro, porque cuidava dos doentes, dos leprosos, que segundo a lei da época, eram impuros. E Ele correu riscos por estar próximo dos pobres.
Por esta razão, os seguidores de Jesus reconhecem-se pela sua proximidade aos pobres, aos pequeninos, aos doentes, aos presos, aos excluídos, aos esquecidos, a quantos não têm comida nem roupa (cf. Mt 25, 31-36; CIC, 2443). Podemos ler aquele famoso parâmetro sobre o qual todos seremos julgados, todos seremos julgados. É Mateus, capítulo 25. Este é um critério-chave de autenticidade cristã (cf. Gl 2, 10; EG, 195). Alguns pensam erradamente que este amor preferencial pelos pobres é uma tarefa para poucos, mas na realidade é a missão de toda a Igreja, dizia São João Paulo II (cf. Enc. Sollicitudo rei socialis, 42). «Cada cristão e cada comunidade são chamados a ser instrumentos de Deus para a libertação e promoção dos pobres» (EG, 187).
A fé, a esperança e o amor impulsionam-nos necessariamente para esta preferência pelos mais necessitados (cf. Congregação para a Doutrina da Fé, Instrução sobre alguns aspetos da “Teologia da Libertação”, [1984], cap. V), que vai além da assistência necessária (cf. EG, 198). Trata-se de caminhar juntos, deixando-se evangelizar por eles, que conhecem bem Cristo sofredor, deixando-nos “contagiar” pela sua experiência de salvação, sabedoria e criatividade (cf. ibid.). Partilhar com os pobres significa enriquecer-se uns aos outros. E se existem estruturas sociais doentes que lhes impedem de sonhar com o futuro, devemos trabalhar em conjunto para as curar, para as mudar (cf. ibid., 195). A isto conduz o amor de Cristo, que nos amou até ao extremo (cf. Jo 13, 1) e chega inclusive aos confins, às margens, às fronteiras existenciais. Trazer as periferias para o centro significa centrar as nossas vidas em Cristo, que «se fez pobre» por nós, a fim de nos enriquecer «através da sua pobreza» (2 Cor 8, 9; cf. Bento XVI, Discurso inaugural da V Conferencia Geral do Episcopado Latino-americano e do Caribe [13 de maio de 2007], n. 3).
Estamos todos preocupados com as consequências sociais da pandemia. Todos. Muitos querem regressar à normalidade e retomar as atividades econômicas. É claro, mas esta “normalidade” não deve incluir injustiça social e degradação ambiental. A pandemia é uma crise e não se sai iguais de uma crise: ou saímos melhores ou saímos piores. Nós deveríamos sair melhores, para resolver as injustiças sociais e a degradação ambiental. Hoje temos uma oportunidade de construir algo diferente. Por exemplo, podemos fazer crescer uma economia de desenvolvimento integral dos pobres e não de assistencialismo. Com isto não pretendo condenar a assistência, as obras de assistência são importantes. Pensemos no voluntariado, que é uma das estruturas mais bonitas que a Igreja italiana possui. Mas devemos ir além e resolver os problemas que nos estimulam a fazer assistência. Uma economia que não recorra a remédios que na realidade envenenam a sociedade, tais como rendimentos dissociados da criação de empregos dignos (cf. EG, 204). Este tipo de lucro é dissociado da economia real, aquela que deveria beneficiar as pessoas comuns (cf. Enc. Laudato si' [LS], 109), e é também por vezes indiferente aos danos infligidos à casa comum. A opção preferencial pelos pobres, esta necessidade ética e social que vem do amor de Deus (cf. LS, 158), dá-nos o estímulo para pensar e conceber uma economia onde as pessoas, especialmente as mais pobres, estejam no centro. E também nos encoraja a projetar o tratamento do vírus, privilegiando quem tem mais necessidade. Seria triste se na vacina contra a Covid-19 fosse dada a prioridade aos mais ricos! Seria triste se esta vacina se tornasse propriedade desta ou daquela nação e não fosse universal e para todos. E que escândalo seria se toda a assistência econômica que estamos a observar - a maior parte dela com dinheiro público - se concentrasse no resgate das indústrias que não contribuem para a inclusão dos excluídos, para a promoção dos últimos, para o bem comum ou para o cuidado da criação (ibid.). Há critérios para escolher quais serão as indústrias que devem ser ajudadas: as que contribuem para a inclusão dos excluídos, para a promoção dos últimos, para o bem comum e para o cuidado da criação. Quatro critérios.
Se o vírus se voltar a intensificar num mundo injusto em relação aos pobres e aos vulneráveis, devemos mudar este mundo. Com o exemplo de Jesus, o médico do amor divino integral, isto é, da cura física, social e espiritual (cf. Jo 5, 6-9), - como era a cura que Jesus fazia - devemos agir agora, para curar as epidemias causadas por pequenos vírus invisíveis, e para curar as que são provocadas pelas grandes e visíveis injustiças sociais. Proponho que isto seja feito a partir do amor de Deus, colocando as periferias no centro e os últimos em primeiro lugar. Não esquecer aquele parâmetro sobre o qual seremos julgados, Mateus, capítulo 25. Ponhamo-lo em prática nesta retomada da epidemia. E a partir deste amor concreto, ancorado na esperança e fundado na fé, será possível um mundo mais saudável. Caso contrário, sairemos piores da crise. Que o Senhor nos ajude, nos conceda a força para sair melhores, respondendo às necessidades do mundo de hoje.
Papa Francisco
Catequese na audiência geral 19.08.2020
Amados irmãos e irmãs, bom dia!
A pandemia pôs em evidência quão vulneráveis e interligados estamos todos nós. Se não nos preocuparmos uns com os outros, a começar pelos últimos, por aqueles que são mais atingidos, incluindo a criação, não podemos curar o mundo.
É de louvar o empenho de tantas pessoas que nestes meses estão a demonstrar amor humano e cristão pelo próximo, dedicando-se aos doentes até arriscando a própria saúde. São heróis! No entanto, o coronavírus não é a única doença a combater, mas a pandemia trouxe à luz patologias sociais mais vastas. Uma delas é a visão distorcida da pessoa, um olhar que ignora a sua dignidade e a sua índole relacional. Por vezes consideramos os outros como objetos, a serem usados e descartados. Na realidade, este tipo de olhar cega e fomenta uma cultura de descarte individualista e agressiva, que transforma o ser humano num bem de consumo (cf. Exort. ap. Evangelii gaudium, 53; Enc. Laudato si' [LS], 22).
Contudo, à luz da fé, sabemos que Deus olha para o homem e para a mulher de outro modo. Ele criou-nos não como objetos, mas como pessoas amadas e capazes de amar; criou-nos à sua imagem e semelhança (cf. Gn 1, 27). Desta forma, deu-nos uma dignidade única, convidando-nos a viver em comunhão com Ele, em comunhão com as nossas irmãs e irmãos, no respeito de toda a criação. Podemos dizer, em comunhão, em harmonia. A criação é uma harmonia na qual somos chamados a viver. E nesta comunhão, nesta harmonia que é comunhão, Deus dá-nos a capacidade de procriar e de preservar a vida (cf. Gn 1, 28-29), de trabalhar e cuidar da terra (cf. Gn 2, 15; LS 67). Compreende-se que não podemos procriar nem preservar a vida sem harmonia; seria destruída.
Temos um exemplo desse olhar individualista, daquilo que não é harmonia, nos Evangelhos, no pedido feito a Jesus pela mãe dos discípulos Tiago e João (cf. Mt 20, 20-28). Ela gostaria que os seus filhos pudessem sentar-se à direita e à esquerda do novo rei. Mas Jesus propõe outro tipo de visão: a de servir e dar a vida pelos outros, e confirma-a restituindo a vista a dois cegos e fazendo-os seus discípulos (cf. Mt 20, 29-34). Procurar subir na vida, ser superior aos outros, destrói a harmonia. É a lógica do domínio, de dominar os demais. A harmonia é outra coisa: é o serviço.
Peçamos portanto ao Senhor que nos conceda um olhar atento aos irmãos e irmãs, especialmente aos que sofrem. Como discípulos de Jesus, não queremos ser indiferentes ou individualistas. São estas as duas atitudes negativas contra a harmonia. Indiferente: olho para o outro lado. Individualista: considerar apenas o próprio interesse. A harmonia criada por Deus pede que olhemos para os outros, para as necessidades dos demais, para os problemas do próximo, estar em comunhão. Queremos reconhecer em cada pessoa a dignidade humana, qualquer que seja a sua raça, língua ou condição. A harmonia faz reconhecer a dignidade humana, aquela harmonia criada por Deus, com o homem no centro.
O Concílio Vaticano II evidencia que esta dignidade é inalienável, porque «foi criada à imagem de Deus» (Const. past. Gaudium et spes, 12). Ela é a base de toda a vida social e determina os seus princípios operacionais. Na cultura moderna, a referência mais próxima ao princípio da dignidade inalienável da pessoa é a Declaração Universal dos Direitos do Homem, que São João Paulo II definiu «uma pedra miliária, posta na longa e difícil caminhada do gênero humano» (Discurso à Assembleia geral das Nações Unidas, 2 de outubro de 1979, n. 7) e como «uma das mais altas expressões da consciência humana» (Discurso à Assembleia geral das Nações Unidas, 5 de outubro de 1995, n. 2). Os direitos não são apenas individuais, mas também sociais; são dos povos, das nações (cf. Compêndio da Doutrina Social da Igreja, 157). Com efeito, o ser humano, na sua dignidade pessoal, é um ser social, criado à imagem do Deus Uno e Trino. Nós somos seres sociais, precisamos de viver nesta harmonia social, mas quando há egoísmo, o nosso olhar não se dirige para os outros, para a comunidade, mas volta-se para nós mesmos e isto torna-nos irracionais, maus, egoístas, destruindo a harmonia.
Esta consciência renovada pela dignidade de cada ser humano tem sérias implicações sociais, econômicas e políticas. Olhar para o irmão e para toda a criação como uma dádiva recebida do amor do Pai suscita um comportamento de atenção, cuidado e admiração. Assim o crente, contemplando o próximo como um irmão e não como um estranho, olha para ele com compaixão e empatia, não com desprezo ou inimizade. E contemplando o mundo à luz da fé, esforça-se por desenvolver, com a ajuda da graça, a sua criatividade e entusiasmo para resolver os dramas da história. Ele concebe e desenvolve as suas capacidades como responsabilidades que fluem da fé (ibidem), como dons de Deus a serem postos ao serviço da humanidade e da criação.
Ao trabalharmos todos para curar um vírus que atinge indistintamente todos, a fé exorta-nos a comprometer-nos séria e ativamente a contrastar a indiferença face às violações da dignidade humana. Esta cultura da indiferença que acompanha a cultura do descarte: as coisas que não me dizem respeito não me interessam. A fé exige sempre que nos deixemos curar e converter do nosso individualismo, tanto pessoal como coletivo: por exemplo, um individualismo de partido.
Que o Senhor nos “restitua a vista” para redescobrir o que significa sermos membros da família humana. E que este olhar se traduza em ações concretas de compaixão e respeito por cada pessoa e de cuidado e tutela pela nossa casa comum.
Papa Francisco
Catequese na audiência geral 12.08.2020
Prezados irmãos e irmãs, bom dia!
A pandemia continua a causar feridas profundas, desmascarando as nossas vulnerabilidades. Há muitos mortos, muitos doentes, em todos os continentes. Muitas pessoas e tantas famílias vivem um tempo de incerteza, devido a problemas socioeconômicos, que atingem especialmente os mais pobres.
Por este motivo devemos manter o nosso olhar fixo firmemente em Jesus (cf. Hb 12, 2) e com esta fé abraçar a esperança do Reino de Deus que o próprio Jesus nos traz (cf. Mc 1, 5; Mt 4, 17; CIC, n. 2.816). Um Reino de cura e salvação que já está presente entre nós (cf. Lc 10, 11). Um Reino de justiça e paz que se manifesta através de obras de caridade, que por sua vez aumentam a esperança e fortalecem a fé (cf. 1 Cor 13, 13). Na tradição cristã, fé, esperança e caridade são muito mais do que sentimentos ou atitudes. São virtudes infundidas em nós pela graça do Espírito Santo (cf. CIC, nn. 1.812-1.813): dons que nos curam e nos fazem curar, dons que nos abrem novos horizontes, até quando navegamos nas difíceis águas do nosso tempo.
Um novo encontro com o Evangelho da fé, da esperança e do amor convida-nos a assumir um espírito criativo e renovado. Desta forma, poderemos transformar as raízes das nossas enfermidades físicas, espirituais e sociais. Poderemos curar profundamente as estruturas injustas e as práticas destrutivas que nos separam uns dos outros, ameaçando a família humana e o nosso planeta.
O ministério de Jesus oferece muitos exemplos de cura. Quando cura quantos sofrem de febre (cf. Mc 1, 29-34), de lepra (cf. Mc 1, 40-45), de paralisia (cf. Mc 2, 1-12); quando restitui a vista (cf. Mc 8, 22-26; Jo 9, 1-7), a palavra ou a audição (cf. Mc 7, 31-37), na realidade cura não só um mal físico mas a pessoa inteira. Deste modo, também a restitui curada à comunidade; libertando-a do seu isolamento porque a curou.
Pensemos na bonita narração da cura do paralítico em Cafarnaum (cf. Mc 2, 1-12), que ouvimos no inicio da audiência. Enquanto Jesus prega na entrada da casa, quatro homens levam um amigo paralítico a ter com Jesus; e impossibilitados de entrar, porque havia muita gente, descobrem o telhado e descem o leito à frente dele, que está a pregar. «Jesus, vendo a sua fé, disse ao paralítico: “Filho, os teus pecados são-te perdoados!”» (v. 5). E depois, como sinal visível, acrescentou: «Levanta-te, pega no teu leito e vai para casa!» (v. 11).
Que maravilhoso exemplo de cura! A ação de Cristo é uma resposta direta à fé daquelas pessoas, à esperança que n'Ele depositam, ao amor que manifestam uns aos outros. E assim Jesus cura, mas não cura simplesmente a paralisia, cura tudo, perdoa os pecados, renova a vida do paralítico e dos seus amigos. Faz nascer de novo, digamos assim. Uma cura física e ao mesmo tempo espiritual, fruto de um encontro pessoal e social. Imaginemos como esta amizade e a fé de todos os presentes naquela casa cresceram graças ao gesto de Jesus. O encontro de cura com Jesus!
E assim perguntemo-nos: como podemos ajudar a curar o nosso mundo hoje? Como discípulos do Senhor Jesus, que é médico das almas e dos corpos, somos chamados a continuar «a sua obra de cura e salvação» (CIC, n. 1.421) em sentido físico, social e espiritual.
Não obstante a Igreja administre a graça curativa de Cristo através dos Sacramentos, e embora preste serviços de saúde nos mais remotos cantos do planeta, ela não é especialista em prevenção nem em tratamento da pandemia. Também não dá indicações sociopolíticas específicas (cf. S. Paulo VI, Carta apost. Octogesima adveniens,14 de maio de 1971, 4). Esta é a tarefa dos líderes políticos e sociais. No entanto, ao longo dos séculos, e à luz do Evangelho, a Igreja desenvolveu alguns princípios sociais que são fundamentais (cf. Compêndio da Doutrina Social da Igreja, 160-208), princípios que nos podem ajudar a ir em frente, a preparar o futuro de que necessitamos. Cito os principais, que estão intimamente ligados entre si: o princípio da dignidade da pessoa, o princípio do bem comum, o princípio da opção preferencial pelos pobres, o princípio do destino universal dos bens, o princípio da solidariedade, da subsidiariedade e o princípio do cuidado pela nossa casa comum. Estes princípios ajudam os dirigentes, os responsáveis pela sociedade, a levar promover o crescimento e inclusive, como neste caso de pandemia, a cura do tecido pessoal e social. Todos estes princípios expressam, de diferentes maneiras, as virtudes da fé, da esperança e do amor.
Nas próximas semanas, convido-vos a abordar juntos as questões prementes que a pandemia relevou, especialmente as doenças sociais. E fá-lo-emos à luz do Evangelho, das virtudes teologais e dos princípios da doutrina social da Igreja. Exploraremos juntos o modo como a nossa tradição social católica pode ajudar a família humana a curar este mundo que sofre de doenças graves. Desejo refletir e trabalhar em conjunto, como seguidores de Jesus que cura, para construir um mundo melhor, cheio de esperança para as gerações futuras (cf. Exort. apost. Evangelii gaudium, 24 de novembro de 2013, 183).
Papa Francisco
Catequese na audiência Geral 05.08.2020
Estimados irmãos e irmãs, bom dia!
No nosso itinerário de catequeses sobre a oração, hoje encontramos o rei David. Predileto de Deus desde menino, foi escolhido para uma missão única, que assumirá um papel central na história do povo de Deus e da nossa fé. Nos Evangelhos, Jesus é chamado várias vezes “filho de David”; com efeito, como ele, nasce em Belém. Da descendência de David, segundo as promessas, vem o Messias: um Rei totalmente segundo o coração de Deus, em perfeita obediência ao Pai, cuja ação cumpre fielmente o seu plano de salvação (cf. Catecismo da Igreja Católica, 2579).
A vicissitude de David começa nas colinas ao redor de Belém, onde apascenta o rebanho do pai, Jessé. É ainda um rapaz, o último de muitos irmãos. A ponto que quando o profeta Samuel, por ordem de Deus, vai em busca do novo rei, até parece que o seu pai se tinha esquecido daquele filho mais novo (cf. 1 Sm 16, 1-13). Trabalhava ao ar livre: pensamos nele como amigo do vento, dos sons da natureza, dos raios do sol. Só tem uma companhia para confortar a sua alma: a cítara; e nos longos dias de solidão gosta de tocar e cantar ao seu Deus. Também brincava com a funda.
Portanto, em primeiro lugar David é um pastor: um homem que cuida dos animais, que os defende quando surge o perigo, que lhes dá o sustento. Quando David, por vontade de Deus, tiver que se preocupar pelo povo, não realizará ações muito diferentes destas. É por isso que na Bíblia a imagem do pastor é muito recorrente. Também Jesus se define “o bom pastor”, o seu comportamento é diferente daquele do mercenário; oferece a sua vida pelas ovelhas, guia-as, sabe o nome de cada uma delas (cf. Jo 10, 11-18).
Da sua primeira profissão, David aprendeu muito. Assim, quando o profeta Natã o repreenderá pelo seu gravíssimo pecado (cf. 2 Sm 12, 1-15), David compreenderá imediatamente que tinha sido um mau pastor, que roubara de outro homem a única ovelha que ele amava, que já não era um servo humilde, mas um homem doente de poder, um caçador furtivo que mata e saqueia.
Um segundo traço característico presente na vocação de David é o seu espírito de poeta. Desta pequena observação deduzimos que David não era um homem vulgar, como muitas vezes pode acontecer com indivíduos obrigados a viver prolongadamente isolados da sociedade. Ao contrário, é uma pessoa sensível, que gosta da música e do canto. A cítara acompanhá-lo-á sempre: para elevar um hino de alegria a Deus (cf. 2 Sm 6, 16), para expressar um lamento, ou para confessar o próprio pecado (cf. Sl 51, 3).
O mundo que se apresenta aos seus olhos não é uma cena silenciosa: o seu olhar capta, por detrás do desenrolar dos acontecimentos, um mistério maior. A oração nasce precisamente dali: da convicção de que a vida não é algo que passa por nós, mas um mistério surpreendente, que em nós suscita a poesia, a música, a gratidão, o louvor, ou a lamentação e a súplica. Quando a uma pessoa falta essa dimensão poética, digamos, quando lhe falta a poesia, a sua alma coxeia. Portanto, segundo a tradição David é o grande artífice da composição dos salmos. No início fazem frequentemente referência explícita ao rei de Israel e a alguns dos acontecimentos mais ou menos nobres da sua vida.
Portanto, David tem um sonho: ser um bom pastor. Às vezes conseguirá estar à altura desta tarefa, outras vezes, não; mas o que importa, no contexto da história da salvação, é que ele representa a profecia de outro Rei, do qual é apenas anúncio e prefiguração.
Fitemos David, pensemos em David. Santo e pecador, perseguido e perseguidor, vítima e carnífice, o que é uma contradição. David era tudo isto, ao mesmo tempo. E também nós, na nossa vida, temos traços frequentemente opostos; na trama da vida, todos os homens pecam muitas vezes de incoerência. Na vida de David existe apenas um fio condutor que confere unidade a tudo o que acontece: a sua oração. Esta é a voz que nunca se apaga. David santo reza; David pecador reza; David perseguido reza; David perseguidor reza; David vítima reza. Até David carnífice reza. Este é o fio condutor da sua vida. Um homem de oração. Esta é a voz que nunca se apaga: quer assuma os tons do júbilo, quer os da lamentação, é sempre a mesma oração, só muda a melodia. Agindo assim, David ensina-nos a deixar que tudo faça parte do diálogo com Deus: tanto a alegria como a culpa, o amor como o sofrimento, a amizade como a doença. Tudo pode tornar-se palavra dirigida ao “Tu” que nos ouve sempre.
David, que conheceu a solidão, na verdade, nunca esteve sozinho! E no fundo este é o poder da oração, em todos aqueles que lhe dão espaço na própria vida. A oração dá-nos nobreza e David é nobre porque reza. Mas é um carnífice que reza, que se arrepende, e readquire a nobreza graças à oração. A oração confere-nos nobreza: ela é capaz de assegurar a relação com Deus, que é o verdadeiro Companheiro de caminho do homem, no meio das numerosas provações da vida, boas ou más: mas sempre com a oração. Obrigado Senhor. Tenho medo Senhor. Ajudai-me Senhor. Perdoai-me Senhor. David tinha tanta confiança, que quando foi perseguido e teve que fugir não permitiu que o defendessem: “se o meu Deus me humilha deste modo, ele sabe”, porque a nobreza da oração nos deixa nas mãos de Deus. Aquelas mãos chagadas de amor: as únicas mãos seguras que nós temos.]
Papa Francisco
Catequese na audiência geral 24.06.2020
Estimados irmãos e irmãs, bom dia!
No nosso itinerário sobre o tema da oração, damo-nos conta de que Deus nunca gostou de lidar com orantes “fáceis”. Nem sequer Moisés será um interlocutor “fraco”, desde o primeiro dia da sua vocação.
Quando Deus o chama, Moisés é humanamente “um fracasso”. O livro do Êxodo representa-o na terra de Madian como um fugitivo. Quando era jovem sentiu piedade pelo seu povo, pondo-se também da parte dos oprimidos. Mas depressa descobre que, apesar das boas intenções, das suas mãos não brota justiça mas, pelo contrário, violência. Eis que se desintegram os sonhos de glória: Moisés já não é um funcionário promissor, destinado a uma carreira rápida, mas alguém que perdeu oportunidades, e que agora apascenta um rebanho que nem sequer é seu. E é precisamente no silêncio do deserto de Madian que Deus convoca Moisés para a revelação da sarça ardente: «“Eu sou o Deus do teu pai, o Deus de Abraão, de Isaac e de Jacob”. Moisés escondeu o rosto, pois não se atrevia a olhar para Deus» (Êx 3, 6).
A Deus que fala, que o convida a cuidar novamente do povo de Israel, Moisés opõe os seus receios e as suas objeções: não é digno daquela missão, não conhece o nome de Deus, os israelitas não acreditarão nele, tem uma língua que gagueja... E assim muitas objeções. A palavra que floresce mais frequentemente nos lábios de Moisés, em cada oração que dirige a Deus, é a pergunta: “Porquê?”. Por que me enviastes? Por que quereis libertar este povo? No Pentateuco há até um trecho dramático, onde Deus repreende Moisés pela sua falta de confiança, falta que o impedirá de entrar na terra prometida (cf. Nm 20, 12).
Com estes temores, com este coração que muitas vezes vacila, como pode Moisés rezar? Na verdade, Moisés parece um homem como nós. E isto também acontece a nós: quando temos dúvidas, mas como podemos rezar? Nós conseguimos rezar. E é com a sua fraqueza, e também com a sua força, que ficamos impressionados. Apesar de ser encarregado por Deus de transmitir a Lei ao seu povo, de ser fundador do culto divino, de ser mediador dos mistérios mais altos, contudo não deixa de manter estreitos vínculos de solidariedade com o seu povo, especialmente na hora da tentação e do pecado. Sempre ligado ao seu povo. Moisés nunca perdeu a memória do seu povo. E esta é uma grandeza dos pastores: não esquecer o povo, não esquecer as raízes. É isto que Paulo diz ao seu amado jovem bispo Timóteo: “Recorda a tua mãe e a tua avó, as tuas raízes, o teu povo”. Moisés é tão amigo de Deus que pode falar com Ele face a face (cf. Êx 33, 11); e permanecerá tão amigo dos homens que sentirá misericórdia pelos seus pecados, pelas suas tentações, pela inesperada nostalgia que os exilados têm em relação ao passado, lembrando-se de quando estavam no Egito.
Moisés não nega a Deus, mas também não nega o seu povo. É coerente com o seu sangue, é coerente com a voz de Deus. Portanto, Moisés não é um líder autoritário nem despótico; pelo contrário, o Livro dos Números define-o «mais humilde e paciente do que qualquer homem sobre a terra» (cf. 12, 3). Apesar da sua condição privilegiada, Moisés não deixa de pertencer àquele grupo de pobres em espírito que vivem fazendo da confiança em Deus o viático do próprio caminho. Ele é um homem do povo.
Assim, a forma mais adequada de Moisés rezar será a intercessão (cf. Catecismo da Igreja Católica, 2574). A sua fé em Deus é uma só com o sentido de paternidade que nutre pelo seu povo. Habitualmente, a Escritura representa-o com as mãos erguidas para o alto, para Deus, como se servisse de ponte com a sua pessoa entre o céu e a terra. Até nos momentos mais difíceis, até no dia em que o povo rejeita a Deus e a ele mesmo como guia, fazendo um bezerro de ouro, Moisés não quer pôr de lado o seu povo. É o meu povo. É o seu povo. É o meu povo. Não nega a Deus ou ao povo. E diz a Deus: «Este povo cometeu um grande pecado: fez para si mesmo um deus de ouro. Rogo-vos que lhe perdoeis este pecado! Caso contrário, apagai-me do livro que escrevestes!» (Êx 32, 31-32). Moisés não permuta o povo. Ele é a ponte, ele é o intercessor. Ambos, o povo e Deus, e ele está no meio. Ele não vende o seu povo para fazer carreira. Não é um carreirista, é um intercessor: pelo seu povo, pela sua carne, pela sua história, pela sua gente e por Deus que o chamou. É a ponte. Que bom exemplo para todos os pastores que devem ser “ponte”. É por isso que se chamam pontifex, pontes. Os pastores são pontes entre o povo a que pertencem e Deus, a quem pertencem por vocação. Assim é Moisés: “Perdoai, Senhor, o seu pecado, pois se não perdoares, apagai-me do livro que escrevestes. Não quero fazer carreira com o meu povo”.
E esta é a oração que os verdadeiros fiéis cultivam na sua vida espiritual. Embora experimentem as falhas das pessoas e a sua distância de Deus, estes orantes não as condenam, nem as rejeitam. A atitude de intercessão é própria dos Santos que, à imitação de Jesus, são “pontes” entre Deus e o seu povo. Neste sentido, Moisés foi o maior profeta de Jesus, nosso defensor e intercessor (cf. Catecismo da Igreja Católica, 2577). E também hoje, Jesus é o pontifex, ele é a ponte entre nós e o Pai. E Jesus intercede por nós, mostra ao Pai as feridas que são o preço da nossa salvação e intercede. E Moisés é a figura de Jesus que reza por nós hoje, ele intercede por nós.
Moisés exorta-nos a rezar com o mesmo fervor de Jesus, a interceder pelo mundo, a recordar que ele, apesar de todas as suas fragilidades, pertence sempre a Deus. Todos pertencem a Deus. Os piores pecadores, as pessoas mais perversas, os líderes mais corruptos, são filhos de Deus e Jesus sente isso e intercede por todos. E o mundo vive e prospera graças à bênção dos justos, à oração de piedade, esta oração de piedade que o santo, o justo, o intercessor, o sacerdote, o Bispo, o Papa, o leigo, qualquer batizado, eleva incessantemente pelos homens, em todos os lugares e épocas da história. Pensemos em Moisés, o intercessor. E quando temos vontade de condenar alguém e nos irritamos interiormente - irritar-se faz bem, mas condenar não - intercedemos por ele: isto ajuda-nos muito.
Papa Francisco
Catequese na audiência geral 17.06.2020
Amados irmãos e irmãs, bom dia!
Continuemos a nossa catequese sobre o tema da oração. O livro do Gênesis, através das vicissitudes de homens e mulheres de tempos distantes, conta-nos histórias nas quais podemos refletir as nossas vidas. No ciclo dos patriarcas, encontramos também o de um homem que tinha feito da astúcia o seu melhor talento: Jacó. A narração bíblica conta-nos a difícil relação que Jacó teve com o seu irmão Esaú. Desde crianças, houve rivalidades entre eles, que nunca foram resolvidas. Jacó é o segundo filho, mas, com o engano, consegue obter de seu pai Isaac a bênção e o dom da primogenitura (cf. Gn 25, 19-34). É apenas a primeira de uma longa série de astúcias das quais este homem sem escrúpulos é capaz. Até o nome “Jacó” significa alguém que se move com astúcia.
Forçado a fugir para longe do seu irmão, ele parece ter sucesso em todos os empreendimentos da sua vida. É hábil nos negócios: enriquece muito, tornando-se o dono de um enorme rebanho. Com tenacidade e paciência consegue casar com a mais bela das filhas de Labão, pela qual estava verdadeiramente apaixonado. Jacó - diríamos com linguagem moderna - é um homem que “se fez sozinho”, com a sua perspicácia, com a astúcia, conseguiu conquistar tudo o que quis. Mas faltava-lhe alguma coisa. Faltava-lhe a relação viva com as próprias raízes.
E um dia sente saudades de casa, da sua antiga pátria, onde ainda vivia Esaú, o irmão com o qual sempre tivera péssimas relações. Jacó partiu e fez uma longa viagem com uma numerosa caravana de pessoas e animais, até chegar à última etapa, o rio Jaboq. Aqui o Livro do Gênesis oferece-nos uma página memorável (cf. 32, 23-33). Diz-nos que o patriarca, depois de ter feito todo o seu povo e gado - que era tanto - atravessar o baixio, permanece sozinho na margem estrangeira. E pensa: o que o espera no dia seguinte? Qual será a atitude do seu irmão Esaú, ao qual roubara a primogenitura? A mente de Jacó é um turbilhão de pensamentos... E quando anoitece, de repente um desconhecido apodera-se dele e começa a lutar contra ele. O Catecismo explica: «A tradição espiritual da Igreja divisou nesta narrativa o símbolo da oração como combate da fé e vitória da perseverança» (CIC, 2573).
Jacó lutou até ao romper da aurora, sem nunca se libertar das garras do seu adversário. No final, foi derrotado, atingido pelo seu rival no nervo ciático, ficando aleijado para o resto da vida. Esse misterioso lutador pergunta ao patriarca o seu nome, dizendo-lhe: «O teu nome não será mais Jacó, mas Israel; porque combateste contra Deus e contra os homens e conseguiste resistir!» (v. 29). Como se quisesse dizer: nunca serás o homem que caminha assim, mas direito. Muda-lhe o nome, muda-lhe a vida, muda-lhe a atitude: chamar-te-ás Israel. Então também Jacó pergunta: «Peço-te que me digas o teu nome». Ele não lhe revela, mas em troca abençoa-o. E Jacó percebe que encontrou Deus “face a face” (cf. vv. 30-31).
Lutar com Deus: uma metáfora da oração. Outras vezes, Jacó tinha-se mostrado capaz de dialogar com Deus, de O sentir como uma presença amiga e próxima. Mas dessa noite, através de uma luta que durou muito tempo e que o viu quase sucumbir, o patriarca saiu transformado. Mudança do nome, mudança do modo de viver e mudança da personalidade: ele saiu transformado. Desta vez já não é dono da situação – a sua astúcia não serve - já não é o estrategista nem o homem calculista; Deus o reconduz à sua verdade de mortal que treme e tem medo, porque na luta Jacó sentiu medo. Pela primeira vez Jacó nada mais tem para apresentar a Deus a não ser a sua fragilidade e impotência, também os seus pecados. E é este Jacó que recebe a bênção de Deus, com a qual entra coxo na terra prometida: vulnerável, e vulnerado, mas com um coração novo. Certa vez ouvi um idoso dizer - um bom homem, um bom cristão, mas um pecador que tinha tanta fé em Deus -: “Deus me ajudará; Ele não me deixará sozinho. Entrarei no paraíso a coxear, mas entrarei”. Anteriormente Jacó era um homem seguro de si; ele confiava na sua própria astúcia. Era um homem impermeável à graça, refratário à misericórdia; não sabia o que era a misericórdia. “Aqui sou eu que mando!”, pensava que não precisava de misericórdia. Mas Deus salvou o que estava perdido. Ele o fez entender que era limitado, que era um pecador que precisava de misericórdia e salvou-o.
Todos nós temos um encontro marcado com Deus de noite, na noite da nossa vida, nas muitas noites da nossa vida: momentos escuros, momentos de pecado, momentos de desorientação. Há ali um encontro com Deus, sempre. Ele nos surpreenderá quando menos esperamos, quando nos encontramos verdadeiramente sozinhos. Nessa mesma noite, lutando contra o desconhecido, tomaremos consciência de que somos apenas pobres homens - ouso dizer “infelizes” - mas, precisamente nessa altura, quando nos sentirmos “pobres homens”, não deveremos recear: porque, nesse preciso momento, Deus nos dará um novo nome, que contém o sentido de toda a nossa vida; Ele mudará os nossos corações e nos dará a bênção reservada para aqueles que se deixam transformar por Ele. Este é um bom convite para nos deixarmos transformar por Deus. Ele sabe como fazer, porque conhece cada um de nós. “Senhor, tu conheces-me”, todos nós o podemos dizer. “Senhor, tu conheces-me. Transforma-me”.
Papa Francisco
Catequese na audiência geral 10.06.2020
Prezados irmãos e irmãs, bom dia!
Há uma voz que ressoa repentinamente na vida de Abraão. Uma voz que o convida a enveredar por um caminho que parece absurdo: uma voz que o impele a desarraigar-se da sua pátria, das raízes da sua família, para partir rumo a um novo futuro, um futuro diferente. E tudo com base numa promessa, na qual é necessário apenas confiar. E confiar numa promessa não é fácil, é preciso ter coragem. E Abraão confiou.
A Bíblia nada diz sobre o passado do primeiro patriarca. A lógica da situação sugere que ele adorava outros deuses; talvez fosse um homem sábio, acostumado a perscrutar o céu e as estrelas. Com efeito, o Senhor promete-lhe que os seus descendentes serão tão numerosos como as estrelas que pontilham o céu.
E Abraão parte. Ouve a voz de Deus e confia na sua palavra. Isto é importante: confia na palavra de Deus. E com esta sua partida nasce um novo modo de conceber a relação com Deus; é por este motivo que o patriarca Abraão está presente nas grandes tradições espirituais judaica, cristã e islâmica como homem de Deus perfeito, capaz de se submeter a Ele, até quando a sua vontade se revela árdua, ou incompreensível.
Portanto, Abraão é o homem da Palavra. Quando Deus fala, o homem torna-se receptor daquela Palavra e a sua vida transforma-se no lugar onde ela pede para se encarnar. Esta é uma grande novidade no percurso religioso do homem: a vida do crente começa a conceber-se como vocação, ou seja, como chamada, como lugar onde se cumpre uma promessa; e ele move-se no mundo não tanto sob o peso de um enigma, mas com a força daquela promessa, que um dia se há de cumprir. E Abraão acreditou na promessa de Deus. Acreditou e partiu, sem saber para onde ia — assim diz a Carta aos Hebreus (cf. 11, 8). Mas confiou!
Lendo o livro do Gênesis, descobrimos que Abraão viveu a oração em fidelidade incessante àquela Palavra, que periodicamente se manifestava ao longo do seu caminho. Em síntese, podemos dizer que na vida de Abraão a fé se faz história. A fé faz-se história! Aliás, com a sua vida, com o seu exemplo, Abraão ensina-nos este caminho, este itinerário em que a fé se faz história. Deus já não é visto unicamente nos fenômenos cósmicos, como um Deus distante que pode incutir terror. O Deus de Abraão torna-se o “meu Deus”, o Deus da minha história pessoal, que orienta os meus passos, que não me abandona; o Deus dos meus dias, o companheiro das minhas aventuras; o Deus da Providência. Pergunto-me e pergunto-vos: temos esta experiência de Deus? O “meu Deus”, o Deus que me acompanha, o Deus da minha história pessoal, o Deus que guia os meus passos, que não me abandona, o Deus dos meus dias? Temos esta experiência? Pensemos nisto!
Esta experiência de Abraão é também testemunhada por um dos textos mais originais da história da espiritualidade: o Memorial, de Blaise Pascal. Começa assim: «Deus de Abraão, Deus de Isaac, Deus de Jacob, não dos filósofos nem dos sábios. Certeza, certeza. Sentimento. Alegria. Paz. Deus de Jesus Cristo». Este Memorial, escrito num pequeno pergaminho, e encontrado após a sua morte cosido dentro de uma veste do filósofo, exprime não uma reflexão intelectual que um homem sábio como ele pode conceber acerca de Deus, mas o sentido vivo, experimentado, da sua presença. Pascal anota até o momento exato em que sentiu aquela realidade, tendo-a finalmente encontrado: a noite de 23 de novembro de 1654. Não se trata do Deus abstrato, nem do Deus cósmico, não! É o Deus de uma pessoa, de uma chamada, o Deus de Abraão, de Isaac, de Jacob, o Deus que é certeza, que é sentimento, que é alegria!
«A oração de Abraão exprime-se, antes de mais, em atos: homem de silêncio, constrói em cada etapa um altar ao Senhor» (Catecismo da Igreja Católica, n. 2.570). Abraão não edifica um templo, mas espalha pelo caminho pedras que recordam a passagem de Deus. Um Deus surpreendente, como quando o visita na figura de três hóspedes, que ele e Sara recebem com gentileza, e que lhes anunciam o nascimento do filho Isaac (cf. Gn 18, 1-15). Abraão tinha cem anos e a sua esposa, mais ou menos noventa. E acreditaram, confiaram em Deus. E Sara, sua esposa, concebeu. Com aquela idade! Este é o Deus de Abraão, o nosso Deus, que nos acompanha.
Assim, Abraão familiariza com Deus, é capaz até de discutir com Ele, mas sempre fiel. Fala com Deus e debate. Até à suprema provação, quando Deus lhe pede que sacrifique precisamente o filho Isaac, o filho da velhice, o único herdeiro. Aqui Abraão vive a sua fé como um drama, como se caminhasse às apalpadelas na noite, sob um firmamento desta vez sem estrelas. E com frequência também nós caminhamos na escuridão, mas com fé. O próprio Deus deterá a mão de Abraão, já pronta para ferir, porque viu a sua disponibilidade verdadeiramente total (cf. Gn 22, 1-19).
Irmãos e irmãs, aprendamos de Abraão, aprendamos a rezar com fé: ouvir o Senhor, caminhar, dialogar até debater. Não tenhamos medo de discutir com Deus! Direi também algo que parece heresia. Muitas vezes ouvi dizer: “Sabes, isto aconteceu comigo e zanguei-me com Deus” — “Tiveste a coragem de ficar zangado com Deus?” — “Sim, zanguei-me!” — “Mas esta é uma forma de oração”. Pois só um filho é capaz de se zangar com o pai e depois voltar a encontrá-lo. Aprendamos de Abraão a rezar com fé, a dialogar, a discutir, mas sempre dispostos a aceitar a palavra de Deus e a pô-la em prática. Com Deus, aprendamos a falar como um filho com o seu pai: ouvi-lo, responder, debater. Mas de forma transparente, como um filho com o pai. É assim que Abraão nos ensina a rezar. Obrigado!
Papa Francisco
catequese na audiência geral 03.06.2020
Bom dia, queridos irmãos e irmãs!
Dedicamos a catequese de hoje à oração dos justos.
O desígnio de Deus para a humanidade é bom, mas na nossa vida quotidiana experimentamos a presença do mal: é uma experiência de todos os dias. Os primeiros capítulos do livro do Gênesis descrevem a dilatação progressiva do pecado nas vicissitudes humanas. Adão e Eva (cf. Gn 3, 1-7) duvidam das intenções benévolas de Deus, pois pensam que têm a ver com uma divindade invejosa que impede a sua felicidade. Por isso, a rebelião: já não acreditam num Criador generoso que deseja a felicidade deles. Cedendo à tentação do maligno, o seu coração é arrebatado por delírios de omnipotência: «Se comermos o fruto da árvore, tornar-nos-emos como Deus» (cf. v. 5). E esta é a tentação: esta é a ambição que entra no coração. Mas a experiência vai na direção oposta: os seus olhos abrem-se e descobrem que estão nus (cf. v. 7), sem nada. Não vos esqueçais disto: o tentador é um mau pagador, ele paga mal.
O mal torna-se ainda mais agressivo com a segunda geração humana, é mais forte: é a história de Caim e Abel (cf. Gn 4, 1-16). Caim tem inveja do irmão: há o verme da inveja; embora ele seja o primogênito, vê Abel como um rival, alguém que ameaça a sua primazia. O mal insinua-se no seu coração e Caim não consegue dominá-lo. O mal começa a entrar no coração: os pensamentos são sempre de julgar mal o outro, com suspeita. E isto acontece também com o pensamento: “Ele é malvado, irá ferir-me”. E este pensamento começa a entrar no coração... E assim a história da primeira fraternidade acaba com um homicídio. Hoje penso na fraternidade humana... guerras em toda a parte.
Na descendência de Caim desenvolvem-se as profissões e a arte, mas também a violência, expressa pelo cântico sinistro de Lamec, que ressoa como um hino de vingança: «Por uma ferida matei um homem, e por uma contusão um menino [...] Se Caim será vingado sete vezes, Lamec sê-lo-á setenta vezes sete» (Gn 4, 23-24). Vingança: “Vais pagar pelo que fizeste!”. Mas quem o diz não é o juiz, sou eu. E arvoro-me em juiz da situação. E assim o mal alastra-se como mancha de óleo, até ocupar todo o quadro: «O Senhor viu que a maldade dos homens era grande na terra, e que todos os pensamentos do seu coração estavam continuamente voltados para o mal» (Gn 6, 5). Os grandes afrescos do dilúvio universal (caps. 6-7) e da torre de Babel (cap. 11) revelam que há necessidade de um novo começo, como que de uma nova criação, que terá o seu cumprimento em Jesus Cristo.
E no entanto, nestas primeiras páginas da Bíblia está escrita também outra história, menos vistosa, muito mais humilde e devota, que representa o resgate da esperança. Não obstante quase todos se comportem de forma cruel, fazendo do ódio e da conquista o grande motor da existência humana, há pessoas capazes de orar a Deus com sinceridade, capazes de escrever o destino da humanidade de uma maneira diferente. Abel oferece a Deus um sacrifício de primícias. Após a sua morte, Adão e Eva tiveram um terceiro filho, Set, de quem nasceu Enós (que significa “mortal”), e diz-se: «E a partir de então, o nome do Senhor começou a ser invocado» (4, 26). Em seguida surge Enoc, personagem que “caminha com Deus” e que é arrebatado ao céu (cf. 5, 22.24). E, por fim, há a história de Noé, um homem justo que «andava com Deus» (6, 9), diante do qual Deus suspende o seu propósito de eliminar a humanidade (cf. 6, 7-8).
Lendo estas narrações, tem-se a impressão de que a oração é a barragem, o refúgio do homem perante a inundação do mal que cresce no mundo. Considerando bem, oramos também para nos salvarmos de nós próprios. É importante rezar: “Senhor, por favor, salva-me de mim mesmo, das minhas ambições, das minhas paixões”. Os orantes das primeiras páginas da Bíblia são homens artífices de paz: com efeito, quando é autêntica, a oração é livre dos instintos de violência e é um olhar dirigido a Deus, a fim de que Ele volte a cuidar do coração do homem. No Catecismo lê-se: «Esta qualidade da oração é vivida por uma multidão de justos em todas as religiões» (CIC, n. 2.569). A oração cultiva jardins de renascimento em lugares onde o ódio do homem só foi capaz de alastrar o deserto. E a oração é poderosa, porque atrai o poder de Deus, e o poder de Deus dá sempre vida: sempre! É o Deus da vida, e faz renascer!
É por isso que o senhorio de Deus passa através da cadeia destes homens e mulheres, muitas vezes mal compreendidos ou até marginalizados no mundo. Mas o mundo vive e cresce graças à força de Deus, que estes seus servos atraem mediante as suas preces. Não são uma cadeia barulhenta, raramente são notícia, mas contudo são muito importantes para restituir confiança ao mundo! Lembro-me da história de um homem: um importante chefe de governo, não desta época, do passado. Um ateu sem sentido religioso no coração, mas quando era criança ouvia a sua avó rezar, e isto permaneceu no seu coração. E num momento difícil da sua vida, aquela recordação voltou ao seu coração e ele disse: “Mas a avó rezava...”. Assim, começou a orar com as fórmulas da avó e ali encontrou Jesus. A oração é uma corrente de vida, sempre: muitos homens e mulheres que rezam, semeiam vida. A oração, a pequena oração, semeia vida: por isso é tão importante ensinar as crianças a rezar. Dói encontrar crianças que não sabem fazer o sinal da cruz. É preciso ensiná-las a fazer bem o sinal da cruz, porque esta é a primeira oração. É importante que as crianças aprendam a orar. Depois, talvez possam esquecer, seguir outro caminho; mas as primeiras preces aprendidas quando são crianças permanecem no coração, porque constituem uma semente de vida, a semente do diálogo com Deus.
O caminho de Deus na história de Deus passou através deles: passou por um “resto” da humanidade que não se conformou com a lei do mais forte, mas pediu a Deus que realizasse os seus milagres e, sobretudo, que transformasse o nosso coração de pedra em coração de carne (cf. Ez 36, 26). E isto ajuda a oração: pois a oração abre a porta a Deus, transformando o nosso coração muitas vezes de pedra num coração humano. E é necessária tanta humanidade, pois ora-se bem com a humanidade.
Papa Francisco
Catequese na audiência geral 27.05.2020
Estimados irmãos e irmãs, bom dia!
Continuemos a catequese sobre a oração, meditando acerca do mistério da Criação. A vida, o simples fato de existirmos, abre o coração do homem à oração.
A primeira página da Bíblia assemelha-se a um grandioso hino de ação de graças. A narração da Criação é cadenciada por refrões, nos quais são constantemente reiteradas a bondade e a beleza de tudo o que existe. Com a sua palavra, Deus chama à vida, e todas as coisas passam a existir. Com a palavra, separa a luz das trevas, alterna o dia e a noite, intercala as estações, abre uma paleta de cores com a variedade das plantas e dos animais. Nesta floresta transbordante que rapidamente derrota o caos, o homem aparece em último lugar. E esta aparição provoca um excesso de exultação, que amplifica a satisfação e a alegria: «Deus contemplou a sua obra, e viu que tudo era muito bom» (Gn 1, 31). Bom, mas também belo: vê-se a beleza de toda a Criação!
A beleza e o mistério da Criação geram no coração do homem o primeiro movimento que suscita a oração (cf. Catecismo da Igreja Católica, n. 2.566). Assim reza o oitavo Salmo, que ouvimos no início: «Quando contemplo o firmamento, obra dos vossos dedos, a lua e as estrelas que lá fixastes: “Que é o homem, para pensardes nele, que são os filhos de Adão, para que vos preocupeis com eles?”» (vv. 4-5). Quem reza contempla o mistério da existência ao seu redor, vê o céu estrelado acima dele — e que a astrofísica nos mostra hoje em toda a sua imensidão — e interroga-se acerca de qual desígnio de amor deve existir por detrás de uma obra tão poderosa!... E que é o homem, nesta vastidão sem confins? «Quase nada», diz outro Salmo (cf. 89, 48): um ser que nasce, um ser que morre, uma criatura extremamente frágil. E no entanto, em todo o universo, o ser humano é a única criatura consciente de tal profusão de beleza. Um pequeno ser que nasce, morre, hoje existe e amanhã não, é o único consciente desta beleza. Nós estamos cientes desta beleza!
A oração do homem está intimamente ligada ao sentimento de admiração. A grandeza do homem é infinitesimal, se for comparada com as dimensões do universo. As suas maiores conquistas parecem ser muito pouco... Mas o homem não é nada. Na oração afirma-se vigorosamente um sentimento de misericórdia. Nada existe por acaso: o segredo do universo consiste no olhar benévolo de alguém que se cruza com o nosso. O Salmo afirma que somos feitos pouco menos que um Deus, que somos coroados de glória e honra (cf. 8, 6). A relação com Deus é a grandeza do homem: a sua entronização. Por natureza não somos quase nada, somos pequenos; mas por vocação, por chamada somos os filhos do grande Rei!
É uma experiência que muitos de nós já fizemos. Se a vicissitude da vida, com todas as suas amarguras, às vezes corre o risco de sufocar em nós o dom da oração, é suficiente a contemplação de um céu estrelado, de um pôr do sol, de uma flor..., para reacender a centelha da gratidão. Talvez esta experiência esteja na base da primeira página da Bíblia.
Quando foi redigida a grandiosa narração bíblica da Criação, o povo de Israel não vivia dias felizes. Uma potência inimiga tinha ocupado a terra; muitos foram deportados e agora viviam como escravos na Mesopotâmia. Já não havia pátria, nem templo, nem sequer vida social e religiosa, nada!
E no entanto, partindo precisamente da grande narração da Criação, alguém começa a encontrar motivos de ação de graças, a louvar a Deus pela existência. A oração é a primeira força da esperança. Reza-se e a esperança cresce, aumenta. Diria que a oração abre a porta à esperança. Há esperança, mas com a minha prece abro a porta. Porque os homens de oração preservam as verdades básicas; são eles que repetem, antes de tudo a si mesmos e depois aos demais, que esta vida, não obstante todas as suas fadigas e provações, apesar dos seus dias difíceis, está cheia de uma graça da qual se admirar. E, como tal, deve ser sempre defendida e salvaguardada.
Os homens e as mulheres que oram sabem que a esperança é mais forte do que o desânimo. Acreditam que o amor é mais poderoso do que a morte, e que certamente um dia há de triunfar, nem que seja em tempos e modalidades que não conhecemos. Os homens e as mulheres de oração trazem clarões de luz refletidos no rosto, pois até nos dias mais escuros o sol não deixa de os iluminar. A oração ilumina-te: ilumina a tua alma, ilumina o teu coração e ilumina o teu rosto. Até nos momentos mais sombrios, mesmo nos momentos de maior dor.
Todos nós somos portadores de alegria. Já pensastes nisto? Que és um portador de alegria? Ou preferes levar más notícias, que entristecem? Todos nós somos capazes de transmitir alegria. Esta vida é o dom que Deus nos concedeu: e é demasiado breve para ser vivida na tristeza, na amargura. Louvemos a Deus, felizes simplesmente por existir. Olhemos para o universo, contemplemos as belezas e também as nossas cruzes, e digamos: “Mas tu existes e fizeste-nos assim, para ti”. É necessário sentir esta inquietação do coração, que leva a dar graças e a louvar a Deus. Somos os filhos do grande Rei, do Criador, capazes de ler a sua assinatura em toda a Criação; a Criação que hoje não preservamos, mas na Criação está a assinatura de Deus, que a fez por amor. Que o Senhor nos faça compreender isto cada vez mais profundamente, levando-nos a dizer “obrigado”, e este “obrigado” é uma bonita oração!
Papa Francisco
catequese na audiência geral - 20.05.2020
Hoje damos o segundo passo no caminho de catequeses sobre a oração, iniciado na semana passada.
A oração pertence a todos: aos homens de todas as religiões, e provavelmente também àqueles que não professam religião alguma. A oração nasce no segredo de nós mesmos, naquele lugar interior a que muitas vezes os autores espirituais chamam “coração” (cf. Catecismo da Igreja Católica, nn. 2.562-2.563). Portanto, o que reza em nós não é algo periférico, nem uma nossa faculdade secundária e marginal, mas é o mistério mais íntimo de nós mesmos. É este mistério que reza. As emoções rezam, mas não se pode dizer que a oração é unicamente emoção. A inteligência reza, mas rezar não é apenas um ato intelectual. O corpo reza, mas pode-se falar com Deus até na invalidez mais grave. Por conseguinte, é o homem todo que ora, se o seu “coração” reza.
A oração é um impulso, uma invocação que vai além de nós próprios: algo que nasce no íntimo da nossa pessoa e que se estende, pois sente a nostalgia de um encontro. Aquela nostalgia que é mais do que uma carência, mais do que uma necessidade: é um caminho. A oração é a voz de um “eu” que tropeça, que procede às cegas, em busca de um “Tu”. O encontro entre o “eu” e o “Tu” não pode ser calculado: é um encontro humano e, muitas vezes, procede-se às cegas para encontrar o “Tu” que o meu “eu” procura.
Ao contrário, a oração do cristão nasce de uma revelação: o “Tu” não permaneceu envolvido no mistério, mas entrou em relação connosco. O cristianismo é a religião que celebra continuamente a “manifestação” de Deus, ou seja, a sua epifania. As primeiras festas do ano litúrgico são a celebração deste Deus que não permanece escondido, mas que oferece a sua amizade aos homens. Deus revela a sua glória na pobreza de Belém, na contemplação dos Magos, no batismo no Jordão, no prodígio das bodas de Caná. O Evangelho de João conclui o grande hino do Prólogo com esta afirmação sintética: «Ninguém jamais viu a Deus: o Filho único, que está no seio do Pai, foi quem o revelou» (1, 18). Foi Jesus quem nos revelou Deus.
A oração do cristão entra em relação com o Deus de rosto profundamente terno, que não quer incutir medo algum aos homens. Esta é a primeira caraterística da prece cristã. Se os homens desde sempre estavam habituados a aproximar-se de Deus com um pouco de timidez, um pouco apavorados diante deste mistério fascinante e terrível, se se tinham habituado a adorá-lo com uma atitude servil, semelhante à de um servo que não quer desrespeitar o seu senhor, ao contrário os cristãos dirigem-se a Ele ousando chamá-lo de modo confidente, com o nome de “Pai”. Na verdade, Jesus usa outra palavra: “paizinho”.
O cristianismo eliminou do vínculo com Deus todas as relações “feudais”. No patrimônio da nossa fé não existem expressões como “subjugação”, “escravatura” ou “vassalagem”; mas sim palavras como “aliança”, “amizade”, “promessa”, “comunhão”, “proximidade”. No seu longo discurso de despedida dos discípulos, Jesus diz assim: «Já não vos chamo servos, porque o servo não sabe o que faz o seu senhor; mas chamei-vos amigos, porque vos dei a conhecer tudo o que ouvi de meu Pai. Não fostes vós que me escolhestes, mas foi Eu que vos escolhi e vos constituí, para irdes e dardes fruto, e para que o vosso fruto permaneça; a fim de que tudo quanto pedirdes ao Pai em meu nome, Ele vo-lo conceda» (Jo 15, 15-16). Mas trata-se de um cheque em branco: “Tudo o que pedirdes ao meu Pai em meu nome, Eu vo-lo concederei”!
Deus é o amigo, o aliado, o esposo. Na oração pode-se estabelecer uma relação de confiança com Ele, a ponto que no “Pai-Nosso” Jesus nos ensinou a dirigir-lhe uma série de pedidos. A Deus podemos pedir tudo, tudo; explicar tudo, contar tudo. Não importa se no nosso relacionamento com Deus nos sentimos em falta: não somos bons amigos, não somos filhos agradecidos, não somos esposos fiéis. Ele continua a amar-nos. É o que Jesus demonstra definitivamente na Última Ceia, quando diz: «Este cálice é a nova aliança no meu sangue, que é derramado por vós» (Lc 22, 20). Naquele gesto, Jesus antecipa no Cenáculo o mistério da Cruz. Deus é um aliado fiel: até quando os homens deixam de amar, Ele continua a amar, mesmo que o amor o leve ao Calvário. Deus está sempre perto da porta do nosso coração e espera que lhe abramos. E às vezes bate à porta do coração, mas não é indiscreto: espera. A paciência de Deus connosco é a paciência de um pai, de alguém que nos ama muito. Diria que é a paciência de um pai e ao mesmo tempo de uma mãe. Sempre perto do nosso coração, e quando bate à porta, fá-lo com ternura e com muito amor.
Procuremos todos rezar assim, entrando no mistério da Aliança. Colocar-nos em oração nos braços misericordiosos de Deus, sentir-nos envolvidos por esse mistério de felicidade que é a vida trinitária, sentir-nos como convidados que não mereciam tanta honra. E, no assombro da oração, repetir a Deus: é possível que Tu só conheças amor? Ele não conhece o ódio. Ele é odiado, mas não conhece o ódio. Só conhece o amor. Tal é o Deus a quem rezamos. Eis o núcleo incandescente de toda a oração cristã. O Deus de amor, o nosso Pai que nos espera e nos acompanha.
Papa Francisco
Catequese na audiência geral 13.05.2020
Catequeses sobre as Bem-aventuranças - 9
Prezados irmãos e irmãs, bom dia!
Com a audiência de hoje concluímos o percurso das bem-aventuranças evangélicas. Como ouvimos, na última proclama-se a alegria escatológica de quantos são perseguidos por causa da justiça.
Esta bem-aventurança anuncia a mesma felicidade da primeira: o reino dos Céus pertence aos perseguidos, assim como aos pobres em espírito; portanto, compreendemos que chegamos ao fim de um percurso unitário desvendado nos anúncios precedentes.
A pobreza de espírito, o pranto, a mansidão, a sede de santidade, a misericórdia, a purificação do coração e as obras de paz podem levar à perseguição por causa de Cristo, mas no final esta perseguição é motivo de alegria e de grande recompensa nos Céus. A vereda das bem-aventuranças é um caminho pascal que conduz de uma vida em conformidade com o mundo para a vida segundo Deus, de uma existência guiada pela carne — isto é, pelo egoísmo — para a vida orientada pelo Espírito.
Com os seus ídolos, os seus compromissos e as suas prioridades, o mundo não pode aprovar este tipo de existência. As “estruturas de pecado” (cf. Discurso aos participantes no simpósio “Novas formas de fraternidade solidária, inclusão, integração e inovação”, 5 de fevereiro de 2020: «A idolatria do dinheiro, a ganância e a corrupção são todas “estruturas de pecado” - como João Paulo II as definiu - causadas pela “globalização da indiferença”»), frequentemente produzidas pela mentalidade humana, tão alheias ao Espírito da Verdade que o mundo não pode receber (cf. Jo 14, 17), não podem deixar de rejeitar a pobreza, ou a mansidão, ou a pureza, declarando que a vida segundo o Evangelho é como um erro e um problema, portanto como algo a marginalizar. O mundo pensa assim: “Eles são idealistas ou fanáticos...”. É assim que eles pensam.
Se o mundo vive em função do dinheiro, quem quer que demonstre que a vida pode ser vivida no dom e na renúncia torna-se um incômodo para o sistema de ganância. Esta palavra “incômodo” é fundamental, pois só o testemunho cristão, que é tão bom para tantas pessoas porque o seguem, incomoda aqueles que têm uma mentalidade mundana. Vivem-no como uma repreensão. Quando se manifesta a santidade e sobressai a vida dos filhos de Deus, em tal beleza há algo de incômodo que exige uma tomada de posição: ou deixar-se questionar e abrir-se ao bem, ou rejeitar aquela luz e endurecer o coração, até à oposição e à obstinação (cf. Sb 2, 14-15). É curioso, chama a atenção ver como, nas perseguições dos mártires, a hostilidade cresce até à obstinação. É suficiente considerar as perseguições do século passado, das ditaduras europeias: como se chega à obstinação contra os cristãos, contra o testemunho cristão e contra a heroicidade dos cristãos.
Mas isto demonstra que o drama da perseguição é também o lugar da libertação da submissão ao sucesso, à vanglória e aos compromissos do mundo. Do que se alegra quem é rejeitado pelo mundo por causa de Cristo? Regozija-se por ter encontrado algo que vale mais do que o mundo inteiro. Pois, «de que servirá ao homem ganhar o mundo inteiro, se vier a perder a sua vida?» (Mc 8, 36). Que vantagem há nisto?
É doloroso recordar que, neste momento, há muitos cristãos que padecem perseguição em várias partes do mundo, e devemos esperar e rezar para que a sua tribulação seja impedida o mais rapidamente possível. Há muitos: os mártires de hoje são mais numerosos do que os mártires dos primeiros séculos. Manifestemos a nossa proximidade a estes irmãos e irmãs: somos um só corpo, e estes cristãos são os membros ensanguentados do Corpo de Cristo, que é a Igreja.
Mas devemos ter também o cuidado de não ler esta bem-aventurança numa perspetiva de vitimismo, de autocomiseração. Com efeito, o desprezo pelos homens nem sempre é sinônimo de perseguição: logo depois, Jesus diz que os cristãos são o «sal da terra», e alerta contra o perigo de “perder o sabor”; caso contrário, o sal «para nada mais serve, a não ser para ser lançado fora e pisado pelos homens» (Mt 5, 13). Portanto, existe também um desprezo que é por nossa culpa, quando perdemos o sabor de Cristo e do Evangelho.
É preciso ser fiel à senda humilde das bem-aventuranças, pois é isto que leva a ser de Cristo e não do mundo. Vale a pena recordar o itinerário de São Paulo: quando se julgava justo, na realidade era um perseguidor, mas quando descobriu que era um perseguidor, tornou-se um homem de amor, enfrentando com júbilo os sofrimentos da perseguição que suportava (cf. Cl 1, 24).
A exclusão e a perseguição, se Deus nos concede a graça, tornam-nos semelhantes a Cristo Crucificado e, associando-nos à sua Paixão, são a manifestação da vida nova. Esta vida é a mesma de Cristo, que por nós homens e pela nossa salvação foi «desprezado e rejeitado pelos homens» (cf. Is 53, 3; At 8, 30-35). Aceitar o seu Espírito pode levar-nos a ter tanto amor no nosso coração, a ponto de oferecermos a vida pelo mundo, sem ceder a compromissos com as suas falácias e aceitando a sua rejeição. Os compromissos com o mundo são o perigo: o cristão é sempre tentado a ceder a compromissos com o mundo, com o espírito do mundo. Esta — rejeitar os compromissos e seguir o caminho de Jesus Cristo — é a vida do Reino dos Céus, a maior alegria, a verdadeira felicidade. Além disso, nas perseguições há sempre a presença de Jesus que nos acompanha, a presença de Jesus que nos consola e a força do Espírito que nos ajuda a seguir em frente. Não desanimemos quando uma vida coerente com o Evangelho atrai as perseguições das pessoas: há o Espírito que nos ampara neste caminho.
Papa Francisco
Catequese na audiência geral 29.04.2020
Amados irmãos e irmãs, bom dia!
Hoje iniciamos um novo ciclo de catequeses sobre o tema da oração. A oração é o respiro da fé, é a sua expressão mais adequada. Como um grito que sai do coração de quem crê e se confia a Deus.
Pensemos na história de Bartimeu, um personagem do Evangelho (cf. Mc 10, 46-52 e par.) e, confesso-vos, para mim é o mais simpático de todos. Era cego, estava sentado a mendigar à beira da estrada, na periferia da sua cidade, Jericó. Não se trata de um personagem anónimo, tem um rosto, um nome: Bartimeu, ou seja, “filho de Timeu”. Um dia ouve dizer que Jesus passaria por ali. Com efeito, Jericó era uma encruzilhada de povos, continuamente atravessada por peregrinos e mercadores. Então Bartimeu põe-se à espreita: faria todo o possível para encontrar Jesus. Muitas pessoas faziam o mesmo: recordemos Zaqueu, que subiu à árvore. Muitos queriam ver Jesus, ele também.
Assim este homem entra nos Evangelhos como uma voz que grita a plenos pulmões. Ele não vê; não sabe se Jesus está perto ou longe, mas ouve-o, devido ao barulho da multidão, que num dado momento aumenta e se aproxima... Mas ele está completamente só, e ninguém se importa com isto. E o que faz Bartimeu? Grita. Grita e continua a bradar. Usa a única arma que possui: a voz. Começa a gritar: «Filho de David, Jesus, tem compaixão de mim!» (v. 47). E assim continua a bradar.
Os seus repetidos gritos incomodam, não parecem educados, e muitos repreendem-no, dizendo-lhe para se calar: “Sê educado, não faças assim!”. Mas Bartimeu não se cala, pelo contrário, grita ainda mais alto: «Filho de David, Jesus, tem compaixão de mim!» (v. 47). Aquela teimosia tão boa daqueles que procuram uma graça e batem, batem à porta do coração de Deus. Ele grita, bate à porta. A expressão “Filho de David” é muito importante; significa “Messias” — confessa o Messias — é uma profissão de fé que sai dos lábios daquele homem desprezado por todos.
E Jesus ouve o seu grito. O pedido de Bartimeu toca o seu coração, o coração de Deus, e para ele abrem-se as portas da salvação. Jesus manda chamá-lo. Ele dá um salto e aqueles que antes lhe diziam para se calar, agora conduzem-no ao Mestre. Jesus fala com ele, pede-lhe que manifeste o seu desejo — isto é importante — e então o grito torna-se um pedido: «Que eu volte a ver, Senhor!» (cf. v. 51).
Jesus diz-lhe: «Vai, a tua fé te salvou» (v. 52). Reconhece àquele homem pobre, indefeso e desprezado todo o poder da sua fé, que atrai a misericórdia e o poder de Deus. Fé significa ter duas mãos levantadas, uma voz que grita para implorar o dom da salvação. O Catecismo afirma que «a humildade é o fundamento da oração» (Catecismo da Igreja Católica, n. 2.559). A oração nasce da terra, do húmus — do qual deriva “humilde”, “humildade” — vem da nossa condição de precariedade, da nossa sede constante de Deus (cf. ibid., nn. 2.560-2.561).
A fé, vimo-lo em Bartimeu, é grito; a não-fé é sufocar aquele grito. Aquela atitude que as pessoas tinham, ao silenciá-lo: não eram pessoas de fé, mas ele sim. Sufocar aquele grito é uma espécie de “cumplicidade tácita”. A fé é protesto contra uma condição penosa da qual não compreendemos o motivo; a não-fé é limitar-se a padecer uma situação à qual nos adaptamos. A fé é esperança de ser salvo; a não-fé é acostumar-nos com o mal que nos oprime e continuar assim.
Queridos irmãos e irmãs, comecemos esta série de catequeses com o grito de Bartimeu, porque talvez numa figura como a sua já esteja tudo escrito. Bartimeu é um homem perseverante. Ao seu redor havia pessoas que explicavam que implorar era inútil, que era um vozear sem resposta, que era barulho que incomodava e nada mais, que por favor deixasse de gritar: mas ele não se calou. E, no final, conseguiu o que queria.
Mais forte do que qualquer argumentação contrária, no coração do homem há uma voz que invoca. Todos nós temos esta voz interior. Uma voz que sai espontaneamente, sem que ninguém a governe, uma voz que se interroga sobre o sentido do nosso caminho aqui na terra, especialmente quando nos encontramos na escuridão: “Jesus, tem compaixão de mim! Jesus, tem compaixão de mim!”. É uma bonita oração!
Mas não estão estas palavras esculpidas em toda a criação? Tudo invoca e suplica para que o mistério da misericórdia encontre o seu cumprimento definitivo. Não rezam só os cristãos: eles compartilham o clamor de oração com todos os homens e mulheres. Mas o horizonte ainda pode ser ampliado: Paulo afirma que toda a criação «geme e sofre as dores de parto» (Rm 8, 22). Com frequência, os artistas fazem-se intérpretes deste grito silencioso da criação, que pressiona em cada criatura e emerge sobretudo no coração do homem, pois o homem é um «mendigo de Deus» (cf. cic, n. 2.559). Bonita definição do homem: “mendigo de Deus”. Obrigado!
Papa Francisco
Catequese na audicência geral 06.05.2020
Catequeses sobre as Bem-aventuranças - 8
Bom dia, estimados irmãos e irmãs!
A catequese de hoje é dedicada à sétima bem-aventurança, a dos “pacificadores”, que são proclamados filhos de Deus. Regozijo-me por ela se realizar imediatamente após a Páscoa, porque a paz de Cristo é fruto da sua morte e ressurreição, como ouvimos na Leitura de São Paulo. Para compreender esta bem-aventurança, é preciso explicar o sentido da palavra “paz”, que pode ser mal entendido ou, às vezes, banalizado.
Devemos orientar-nos entre duas ideias de paz: a primeira é a bíblica, onde aparece a maravilhosa palavra shalom, que exprime abundância, prosperidade, bem-estar. Quando em hebraico se deseja shalom, deseja-se uma vida boa, plena, próspera, mas também de acordo com a verdade e a justiça, as quais terão cumprimento no Messias, Príncipe da paz (cf. Is 9, 6; Mq 5, 4-5).
Depois há o outro sentido, mais generalizado, em que a palavra “paz” é entendida como uma espécie de tranquilidade interior: estou tranquilo, estou em paz. Esta é uma ideia moderna, psicológica e mais subjetiva. Pensa-se geralmente que a paz é sossego, harmonia, equilíbrio interior. Este conceito da palavra “paz” é incompleto e não pode ser absolutizado, porque na vida o desassossego pode ser um importante momento de crescimento. Muitas vezes é o próprio Senhor que semeia a inquietação em nós para irmos ao seu encontro, para o encontrarmos. Neste sentido, é um momento importante de crescimento; enquanto pode acontecer que a tranquilidade interior corresponda a uma consciência domesticada, e não a uma verdadeira redenção espiritual. Muitas vezes o Senhor deve ser um “sinal de contradição” (cf. Lc 2, 34-35), abalando as nossas falsas certezas para nos conduzir à salvação. E nesse momento parece que não temos paz, mas é o Senhor que nos coloca neste caminho para alcançarmos a paz que Ele próprio nos concederá.
Neste ponto devemos recordar que o Senhor entende a sua paz como diferente da humana, a do mundo, quando diz: «Deixo-vos a paz, dou-vos a minha paz. Não vo-la dou como o mundo a dá» (Jo 14, 27). A de Jesus é outra paz, diferente da paz mundana.
Perguntemo-nos: como dá o mundo a paz? Se pensarmos nos conflitos bélicos, normalmente as guerras terminam de duas maneiras: ou com a derrota de uma das duas partes, ou com tratados de paz. Só podemos esperar e rezar para que se siga sempre este segundo caminho; mas temos de considerar que a história é uma série interminável de tratados de paz desmentidos por guerras sucessivas, ou pela metamorfose destas mesmas guerras em outras formas ou noutros lugares. Até no nosso tempo, uma guerra “aos pedaços” é travada em vários cenários e de diferentes formas (cf. Homilia no Sacrário Militar de Redipuglia, 13 de setembro de 2014; Homilia em Sarajevo, 6 de junho de 2015; Discurso ao Pontifício Conselho para os Textos Legislativos, 21 de fevereiro de 2020). Devemos pelo menos suspeitar que, no contexto de uma globalização feita sobretudo de interesses econômicos ou financeiros, a “paz” de uns corresponde à “guerra” de outros. E esta não é a paz de Cristo!
Ao contrário, como “dá” a sua paz o Senhor Jesus? Ouvimos São Paulo dizer que a paz de Cristo é “fazer de dois, um só” (cf. Ef 2, 14), anular a inimizade e reconciliar. E o caminho para realizar esta obra de paz é o seu corpo. Com efeito, Ele reconcilia todas as coisas e faz as pazes com o sangue da sua cruz, como o mesmo Apóstolo diz noutro lugar (cf. Cl 1, 20).
E aqui interrogo-me: todos podemos perguntar-nos: portanto, quem são os “pacificadores”? A sétima bem-aventurança é a mais ativa, explicitamente operativa; a expressão verbal é análoga àquela utilizada para a criação no primeiro versículo da Bíblia e indica iniciativa e laboriosidade. O amor pela sua natureza é criativo — o amor é sempre criativo — e procura a reconciliação custe o que custar. São chamados filhos de Deus aqueles que aprenderam a arte da paz e que a praticam, sabem que não há reconciliação sem o dom da própria vida, e que a paz deve ser procurada sempre e de todas as formas. Sempre e de todas as formas: não vos esqueçais disto! Deve ser procurada assim. Esta não é uma obra autônoma, fruto das próprias capacidades; é manifestação da graça recebida de Cristo, que é a nossa paz, que nos fez filhos de Deus.
O verdadeiro shalom e o autêntico equilíbrio interior brotam da paz de Cristo, que vem da sua Cruz e gera uma nova humanidade, encarnada numa infinita plêiade de Santos e Santas, inventivos e criativos, que conceberam formas sempre novas de amar. Os Santos e as Santas que edificam a paz. Esta vida de filhos de Deus, que pelo sangue de Cristo procuram e reencontram os seus irmãos, é a verdadeira felicidade. Bem-aventurados aqueles que seguem este caminho.
E de novo Feliz Páscoa a todos, na paz de Cristo!
Papa Francisco
Catequese na audiência geral 15.04.2020
Catequeses sobre as Bem-aventuranças - 7
Hoje lemos juntos a sexta bem-aventurança, que promete a visão de Deus e tem como condição a pureza do coração.
Diz um Salmo: «O meu coração pressente os teus dizeres: “Procurai a minha face!”. É a tua face, Senhor, que eu procuro. Não escondais de mim o Vosso rosto» (27, 8-9).
Esta linguagem manifesta a sede de uma relação pessoal com Deus, não mecânica, nem um pouco nebulosa, não: pessoal, que até o livro de Jó expressa como sinal de um relacionamento sincero. Diz assim o livro de Jó: «Os meus ouvidos tinham ouvido falar de Ti, mas, agora, viram-Te os meus próprios olhos» (Jb 42, 5). E muitas vezes eu penso que este é o caminho da vida, no nosso relacionamento com Deus. Conhecemos a Deus pelo ouvir dizer, mas com a nossa experiência vamos em frente, em frente, em frente e no final conhecê-lo-emos diretamente, se formos fiéis... E esta é a maturidade do Espírito.
Como se chega a esta intimidade, a conhecer Deus com os olhos? Pode-se pensar nos discípulos de Emaús, por exemplo, que têm o Senhor Jesus ao seu lado, «os seus olhos, porém, estavam impedidos de O reconhecerem» (Lc 24, 16). O Senhor abrir-lhes-á os olhos no final de uma viagem que culminará com o partir do pão e começará com uma censura: «Ó homens sem inteligência e lentos de espírito em crer em tudo quanto os profetas anunciaram!» (Lc 24, 25). Esta é a reprovação do início. Eis a origem da sua cegueira: o seu coração sem inteligência e lento. E quando o coração é insensato e lento, não se veem as coisas. Veem-se um pouco enevoadas. Aqui está a sabedoria desta bem-aventurança: para a contemplar é necessário cair em nós mesmos e dar lugar a Deus, porque, como diz Santo Agostinho, «Deus é mais íntimo de mim do que eu mesmo» (“interior intimo meo”: Confissões, III, 6, 11). Para ver Deus não é preciso mudar de óculos ou de ponto de observação, nem mudar os autores teológicos que ensinam o caminho: é preciso libertar o coração dos seus enganos! Só este é o caminho.
Esta é uma maturação decisiva: quando percebemos que o nosso pior inimigo está muitas vezes escondido no nosso coração. A batalha mais nobre é contra os enganos interiores que os nossos pecados geram. Porque os pecados mudam a visão interior, eles mudam a avaliação das coisas, eles fazem-nos ver coisas que não são verdadeiras, ou pelo menos que não são tão verdadeiras.
Por conseguinte, é importante entender o que é “pureza do coração”. Para o fazer, é preciso lembrar que para a Bíblia o coração não consiste apenas em sentimentos, mas é o lugar mais íntimo do ser humano, o espaço interior onde uma pessoa é ela mesma. Isto, de acordo com a mentalidade bíblica.
O próprio Evangelho de Mateus diz: «Se a luz que está em ti for trevas, quão grandes serão essas trevas» (6, 23). Esta «luz» é o olhar do coração, a perspetiva, a síntese, o ponto a partir do qual se lê a realidade (cf. Exort. ap. Evangelii gaudium, 143).
Mas o que significa coração «puro»? O puro de coração vive na presença do Senhor, conservando no coração o que é digno da relação com Ele; só assim possui uma vida “unificada”, linear, não tortuosa, mas simples.
Assim, o coração purificado é o resultado de um processo de libertação e renúncia. O puro de coração não nasce assim, experimentou uma simplificação interior, aprendendo a negar o mal em si mesmo, algo que na Bíblia se chama circuncisão do coração (cf. Dt 10, 16; 30, 6; Ez 44, 9; Jr 4, 4).
Esta purificação interior implica o reconhecimento daquela parte do coração que está sob a influência do mal — «Sabe, Padre, sinto-me assim, penso assim, vejo assim, e isto é mau»: reconhecer a parte má, a parte que está enevoada pelo mal — para aprender a arte de se deixar sempre ensinar e guiar pelo Espírito Santo. O percurso do coração doente, do coração pecador, do coração que não pode ver bem as coisas, porque está em pecado, até à plenitude da luz do coração é obra do Espírito Santo. É Ele quem nos guia por este caminho. Eis que, por este caminho do coração, chegamos a «ver Deus».
Nesta visão beatífica há uma dimensão futura, escatológica, como em todas as bem-aventuranças: é a alegria do Reino dos Céus para onde vamos. Mas há também a outra dimensão: ver Deus significa compreender os desígnios da Providência naquilo que nos acontece, reconhecer a sua presença nos Sacramentos, a sua presença nos nossos irmãos, especialmente nos pobres e nos que sofrem, e reconhecê-lo onde Ele se manifesta (cf. Catecismo da Igreja Católica, 2519).
Esta bem-aventurança é um pouco fruto das anteriores: se ouvimos a sede do bem que habita em nós e temos consciência de que vivemos de misericórdia, começa um caminho de libertação que dura a vida inteira e nos conduz ao Céu. É uma obra séria, uma obra que o Espírito Santo faz se lhe dermos espaço para que o faça, se estivermos abertos à ação do Espírito Santo. Por isso podemos dizer que é uma obra de Deus em nós — nas provas e purificações da vida — e esta obra de Deus e do Espírito Santo conduz a uma grande alegria, a uma paz verdadeira. Não tenhamos medo, abramos as portas do nosso coração ao Espírito Santo para que ele nos purifique e nos conduza por este caminho rumo à alegria plena.
Papa Francisco
Catequese na audiência geral 01.04.2020
Catequeses sobre as Bem-aventuranças - 6
Hoje meditamos sobre a quinta bem-aventurança, que diz: «Bem-aventurados os misericordiosos, porque alcançarão misericórdia» (Mt 5, 7). Nesta bem-aventurança há uma particularidade: é a única em que a causa e o fruto da felicidade coincidem, a misericórdia. Aqueles que exercem a misericórdia encontrarão misericórdia, serão “misericordiados”.
Este tema da reciprocidade do perdão não está presente apenas nesta bem-aventurança, mas é recorrente no Evangelho. E como poderia ser de outra forma? A misericórdia é o próprio coração de Deus! Jesus diz: «Não julgueis e não sereis julgados; não condeneis e não sereis condenados; perdoai e sereis perdoados» (Lc 6, 37). Sempre a mesma reciprocidade. E a Carta de Tiago afirma que «a misericórdia prevalece sempre sobre o julgamento» (2, 13).
Mas é sobretudo no Pai-Nosso que rezamos: «Perdoai-nos as nossas ofensas, assim como nós perdoamos a quem nos tem ofendido» (Mt 6, 12); e este é o único pedido retomado no final: «Porque, se perdoardes aos outros as suas ofensas, também o vosso Pai celeste vos perdoará; mas, se não perdoardes aos outros, tampouco o vosso Pai perdoará as vossas ofensas» (Mt 6, 14-15; cf. Catecismo da Igreja Católica, n. 2.838).
Existem dois elementos que não podem ser separados: o perdão oferecido e o perdão recebido. Mas muitas pessoas sentem-se em dificuldade, não conseguem perdoar. Muitas vezes o mal recebido é tão grande que conseguir perdoar se parece com a escalada de uma montanha muito alta: um esforço enorme; e pensamos: não se pode, isto não se pode! Esta questão da reciprocidade da misericórdia indica que temos necessidade de inverter a perspetiva. Sozinhos não conseguimos, precisamos da graça de Deus, devemos pedi-la. Com efeito, se a quinta bem-aventurança promete encontrar misericórdia, e no Pai-Nosso pedimos a remissão das dívidas, isto significa que somos essencialmente devedores e temos necessidade de encontrar misericórdia!
Todos nós somos devedores, todos! A Deus, que é tão generoso, e aos nossos irmãos. Cada pessoa sabe que não é o pai ou a mãe, o esposo ou a esposa, o irmão ou a irmã que deveria ser. Todos nós estamos “em falta” na vida. E precisamos de misericórdia. Sabemos que também nós praticamos o mal, falta sempre algo para o bem que deveríamos ter feito.
Mas é precisamente esta nossa pobreza que se torna a força para perdoar! Somos devedores e se, como ouvimos no início, formos medidos pela medida com que medimos os outros (cf. Lc 6, 38), então convém-nos alargar a medida e perdoar as ofensas, perdoar. Cada um deve recordar-se que tem necessidade de perdoar, que precisa do perdão, que precisa da paciência; este é o segredo da misericórdia: é perdoando que somos perdoados. Porque Deus nos precede e nos perdoa primeiro (cf. Rm 5, 8). Recebendo o seu perdão nós, por nossa vez, tornamo-nos capazes de perdoar. Assim, a nossa miséria e a nossa falta de justiça tornam-se ocasião para nos abrirmos ao reino dos céus, a uma medida maior, à medida de Deus, que é a misericórdia!
De onde nasce a nossa misericórdia? Jesus disse-nos: «Sede misericordiosos, como o vosso Pai é misericordioso» (Lc 6, 36). Quanto mais aceitarmos o amor do Pai, tanto mais amaremos (cf. Catecismo da Igreja Católica, n. 2.842). A misericórdia não é uma dimensão entre outras, mas constitui o cerne da vida cristã: não há cristianismo sem misericórdia [cf. São João Paulo II, Encíclica Dives in misericordia (30 de novembro de 1980); Bula Misericordae vultus (11 de abril de 2015); Carta Apostólica Misericordia et misera (20 de novembro de 2016)]. Se todo o nosso cristianismo não nos leva à misericórdia, erramos o caminho, pois a misericórdia é a única meta verdadeira de todo o caminho espiritual. Constitui um dos frutos mais bonitos da caridade (cf. Catecismo da Igreja Católica, n. 1.829).
Recordo que este tema foi escolhido desde o primeiro Angelus que recitei como Papa: a misericórdia. E isto ficou muito gravado em mim, como uma mensagem que, como Papa, eu deveria transmitir sempre, uma mensagem que deve ser de todos os dias: a misericórdia. Recordo que naquele dia assumi também uma atitude um pouco “descarada” de fazer publicidade de um livro sobre a misericórdia, que tinha acabado de ser publicado pelo cardeal Kasper. E naquele dia senti muito fortemente que, como Bispo de Roma, esta é a mensagem que devo transmitir: misericórdia, misericórdia, por favor, perdão!
A misericórdia de Deus é a nossa libertação e a nossa felicidade. Vivemos de misericórdia e não nos podemos dar ao luxo de viver sem misericórdia: é o ar que se deve respirar! Somos demasiado pobres para estabelecer as condições, temos necessidade de perdoar, porque precisamos de ser perdoados. Obrigado!
Papa Francisco
Catequese na audiência geral 18.03.2020
Catequeses sobre as Bem-aventuranças - 5
Amados irmãos e irmãs, bom dia!
Na audiência de hoje continuamos a meditar sobre o caminho luminoso da felicidade que o Senhor nos concedeu com as bem-aventuranças, e chegamos à quarta: «Bem-aventurados os que têm fome e sede de justiça, porque serão saciados» (Mt 5, 6).
Já encontramos a pobreza de espírito e o choro; agora somos confrontados com outro tipo de fraqueza, aquela ligada à fome e à sede. Fome e sede são necessidades básicas, referem-se à sobrevivência. Isto deve ser enfatizado: aqui não não se trata de um desejo genérico, mas de uma exigência vital e diária, como a alimentação.
Mas o que significa ter fome e sede de justiça? Certamente não estamos a falar daqueles que querem vingança, pelo contrário, na bem-aventurança precedente falamos de mansidão. Certamente as injustiças ferem a humanidade; a sociedade humana tem uma necessidade urgente de equidade, verdade e justiça social; recordemos que o mal sofrido pelas mulheres e pelos homens do mundo chega ao coração de Deus Pai. Que pai não sofreria pela dor dos seus filhos?
As Escrituras falam da dor dos pobres e oprimidos que Deus conhece e compartilha. Por ter ouvido o grito de opressão levantado pelos filhos de Israel — como narra o Livro do Êxodo (cf. 3, 7-10) — Deus desceu para libertar o seu povo. Mas a fome e a sede de justiça de que o Senhor nos fala é ainda mais profunda do que a legítima necessidade de justiça humana que cada homem carrega no seu coração.
No mesmo “Sermão da Montanha”, um pouco mais adiante, Jesus fala de uma justiça maior do que o direito humano ou a perfeição pessoal, dizendo: «Se a vossa virtude não superar a dos escribas e fariseus, não entrareis no reino dos Céus» (Mt 5, 20). E esta é a justiça que vem de Deus (cf. 1 Cor 1, 30).
Nas Escrituras encontramos uma sede expressa mais profundamente do que a sede física, que é um desejo colocado na raiz do nosso ser. Um salmo diz: «Vós, Senhor, sois o meu Deus, anseio por Vós. A minha alma está sedenta de Vós, o meu corpo anela por Vós, numa terra árida, exausta, sem água» (Sl 63, 2). Os Padres da Igreja falam desta inquietação que habita no coração do homem. Santo Agostinho diz: «Tu nos fizeste para ti, Senhor, e o nosso coração não encontrará a paz enquanto não repousar em ti» (Confissões, 1, 1.5). Há uma sede interior, uma fome interior, uma inquietação...
Em cada coração, até na pessoa mais corrupta e afastada do bem, está escondido um anseio de luz, mesmo que esteja sob escombros de engano e erro, mas há sempre uma sede de verdade e bondade, que é a sede de Deus. É o Espírito Santo que desperta esta sede: Ele é a água viva que moldou o nosso pó, Ele é o sopro criativo que lhe deu vida.
Por esta razão, a Igreja é enviada a proclamar a todos a Palavra de Deus, imbuída de Espírito Santo. Pois o Evangelho de Jesus Cristo é a maior justiça que pode ser oferecida ao coração da humanidade, que tem uma necessidade vital dele, mesmo sem se aperceber (cf. Catecismo da Igreja Católica, 2017: «A graça do Espírito Santo confere-nos a justiça de Deus. Unindo-nos, pela fé e pelo Batismo, à paixão e ressurreição de Cristo, o Espírito Santo faz-nos participar da sua vida»).
Por exemplo, quando um homem e uma mulher se casam têm a intenção de fazer algo grande e belo, e se mantiverem viva essa sede encontrarão sempre o caminho a seguir, no meio dos problemas, com a ajuda da Graça. Até os jovens têm esta fome, e não devem perdê-la! É necessário proteger e alimentar no coração das crianças este desejo de amor, de ternura, de acolhimento que expressam nos seus impulsos sinceros e luminosos.
Cada pessoa é chamada a redescobrir o que realmente importa, o que realmente precisa, o que a faz viver bem e, ao mesmo tempo, o que é secundário, e aquilo a que pode tranquilamente renunciar.
Jesus proclama nesta bem-aventurança — fome e sede de justiça — que há uma sede que não será desiludida; uma sede que, se for satisfeita, será saciada e será sempre bem sucedida, porque corresponde ao próprio coração de Deus, ao seu Espírito Santo que é amor, e também à semente que o Espírito Santo semeou nos nossos corações. Que o Senhor nos conceda esta graça: ter esta sede de justiça que é precisamente o desejo de o encontrar, de ver Deus e de fazer o bem aos outros.
Papa Francisco
Catequese na audiência geral 11.03.2020
Catequeses sobre as Bem-aventuranças - 4
Amados irmãos e irmãs, bom dia!
Na catequese de hoje, analisamos a terceira das oito bem-aventuranças do Evangelho de Mateus: «Bem-aventurados os mansos, porque possuirão a terra» (Mt 5, 5).
O termo “mansos” usado aqui significa literalmente meigo, dócil, gentil, sem violência. A mansidão manifesta-se em momentos de conflito, vê-se pela forma como se reage a uma situação hostil. Qualquer um pode parecer manso quando tudo está calmo, mas como reage “sob pressão” se for atacado, ofendido, agredido?
Numa passagem, São Paulo recorda a «mansidão e bondade de Cristo» (2 Cor 10, 1). E São Pedro, por sua vez, recorda a atitude de Jesus na Paixão: ele não respondia nem ameaçava, «mas entregava-se àquele que julga com justiça» (1 Pd 2, 23). E a mansidão de Jesus é vista fortemente na sua Paixão.
Na Escritura a palavra “manso” também indica aquele que não possui terras; e por isso nos impressiona que a terceira bem-aventurança diga precisamente que os mansos «possuirão a terra».
Na verdade, esta bem-aventurança menciona o Salmo 37, que ouvimos no início da catequese. Também nele, é estabelecida uma relação entre a mansidão e a posse da terra. Estas duas coisas, pensando bem, parecem incompatíveis. Na verdade, a posse da terra é a área típica de conflito: luta-se muitas vezes por um território, para se obter hegemonia sobre uma determinada área. Nas guerras prevalece o mais forte e conquista outras terras.
Mas vejamos bem o verbo usado para indicar a posse dos mansos: eles não conquistam a terra; não se diz «bem-aventurados os mansos porque eles conquistarão a terra». Eles “possuem-na”. Bem-aventurados os mansos porque “possuirão” a terra. Nas Escrituras, o verbo “possuir” tem um significado maior. O Povo de Deus chama “posse” precisamente à terra de Israel que é a Terra Prometida.
Esta terra é uma promessa e uma oferenda para o povo de Deus, e torna-se sinal de algo muito maior do que apenas território. Há uma “terra” — permiti o trocadilho — que é o Céu, isto é, a terra para onde caminhamos: os novos céus e a nova terra rumo à qual caminhamos (cf. Is 65, 17; 66, 22; 2 Pd 3, 13; Ap 21, 1).
Então o manso é aquele que “possui” o mais sublime dos territórios. Ele não é um cobarde, um “débil” que encontra uma moralidade alternativa para se manter fora dos problemas. De modo algum! Trata-se de uma pessoa que recebeu uma herança e não a quer perder. O manso não é um indulgente, mas o discípulo de Cristo que aprendeu a defender uma terra diferente. Ele defende a sua paz, defende a sua relação com Deus, defende os seus dons, os dons de Deus, preservando a misericórdia, a fraternidade, a confiança, a esperança. Porque as pessoas mansas são pessoas misericordiosas, fraternas, confiantes e esperançosas.
Aqui devemos mencionar o pecado da ira, um movimento violento cujo impulso todos nós conhecemos. Quem nunca se zangou? Todos. Devemos inverter a bem-aventurança e questionar-nos: quantas coisas destruímos com a ira? O que perdemos? Um momento de cólera pode destruir muitas coisas; perde-se o controlo e não se avalia o que é realmente importante, e pode-se arruinar o relacionamento com um irmão, às vezes sem remédio. Devido à ira, tantos irmãos já não se falam, afastam-se uns dos outros. É o oposto de mansidão. A mansidão reúne, a ira separa.
A mansidão significa conquistar muitas coisas. A mansidão é capaz de conquistar o coração, salvar amizades e muitas outras coisas, porque as pessoas ficam zangadas mas depois acalmam-se, refletem e corrigem os seus passos, e assim pode-se reconstruir com a mansidão.
A “terra” a ser conquistada com mansidão é a salvação daquele irmão do qual fala o próprio Evangelho de Mateus: «Se te der ouvidos, terás ganho o teu irmão» (Mt 18, 15). Não há terra mais bela do que o coração do próximo, não há território mais belo para ganhar do que a paz reencontrada com um irmão. E esta é a terra que se deve possuir com mansidão!
Papa Francisco
Catequese nas quartas-feiras - 19.02.2020
Catequeses sobre as Bem-aventuranças - 1
Amados irmãos e irmãs, bom dia!
Hoje iniciamos uma série de catequeses sobre as Bem-aventuranças no Evangelho de Mateus (5, 1-11). Este texto abre o “Sermão da Montanha” e iluminou a vida dos crentes, e também de muitos não-crentes. É difícil não se comover com estas palavras de Jesus, e é justo o desejo de as compreender e acolher cada vez mais plenamente. As Bem-aventuranças contêm o “bilhete de identidade” do cristão — este é o nosso bilhete de identidade — porque delineiam o rosto do próprio Jesus, o seu estilo de vida.
Agora enquadremos estas palavras de Jesus globalmente; nas próximas catequeses comentaremos cada uma das bem-aventuranças, uma de cada vez.
Antes de tudo, é importante como surgiu o anúncio desta mensagem: Jesus, vendo a multidão que o seguia, sobe à suave encosta que rodeia o lago da Galileia, senta-se e, dirigindo-se aos discípulos, anuncia as bem-aventuranças. Portanto, a mensagem é dirigida aos discípulos, mas no horizonte está a multidão, ou seja, toda a humanidade. É uma mensagem para toda a humanidade.
Além disso, a “montanha” faz recordar o Sinai, onde Deus entregou os Mandamentos a Moisés. Jesus começa a ensinar uma nova lei: ser pobre, ser manso, ser misericordioso... Estes “novos mandamentos” são muito mais que normas. De facto, Jesus nada impõe, mas revela o caminho da felicidade — o seu caminho — repetindo a palavra “felizes” oito vezes.
Cada Bem-aventurança compõe-se de três partes. Inicia sempre com a palavra “felizes”; depois vem a situação na qual os felizes se encontram: pobreza de espírito, aflição, fome e sede de justiça, e assim por diante; por fim há o motivo da bem-aventurança, introduzido pela conjunção “porque”: “Felizes estes porque, felizes aqueles porque...” Assim as Bem-aventuranças são oito e seria bom aprendê-las de cor para as repetir, a fim de ter na mente e no coração esta lei que Jesus nos deu.
Prestemos atenção a este facto: o motivo da bem-aventurança não é a situação atual, mas a nova condição que os bem-aventurados recebem como dom de Deus: “porque deles é o reino do céu”, “porque serão consolados”, “porque possuirão a terra”, e assim por diante.
No terceiro elemento, que é precisamente o motivo da felicidade, Jesus usa muitas vezes um futuro passivo: “serão consolados”, “possuirão a terra”, “serão saciados”, “alcançarão a misericórdia”, “serão chamados filhos de Deus”.
Mas o que significa a palavra “feliz”? Por que começa cada uma das oito Bem-aventuranças com a palavra “feliz”? O termo original não indica alguém que tem a barriga cheia ou está bem na vida, mas é uma pessoa que está em condição de graça, que progride na graça de Deus e no caminho de Deus: a paciência, a pobreza, o serviço aos outros, a consolação... Quantos progridem nestes aspetos são felizes e serão bem-aventurados.
Deus, para se doar a nós, escolhe muitas vezes caminhos impensáveis, talvez os dos nossos limites, das nossas lágrimas, das nossas derrotas. É a alegria pascal da qual falam os nossos irmãos orientais, aquela que tem os estigmas, mas está viva, atravessou a morte e experimentou o poder de Deus. As Bem-aventuranças conduzem-nos à alegria, sempre; são o caminho para alcançar a alegria. Far-nos-á bem hoje abrir o Evangelho de Mateus, capítulo cinco, versículos de um a onze e ler as Bem-aventuranças — talvez várias vezes durante a semana — para compreender este caminho tão bonito, tão seguro da felicidade que o Senhor nos propõe.
Papa Francisco
Catequese na audiência geral 29.01.2020
Catequeses sobre as Bem-aventuranças - 2
Amados irmãos e irmãs, bom dia!
Hoje confrontamo-nos com a primeira das oito bem-aventuranças do Evangelho de Mateus. Jesus começa a proclamar o seu caminho para a felicidade com um anúncio paradoxal: «Felizes os pobres em espírito, porque deles é o Reino do Céu» (5, 3). Um caminho surpreendente, e um estranho objeto de bem-aventurança, a pobreza.
Devemos perguntar-nos: o que se entende aqui por “pobres”? Se Mateus usasse apenas esta palavra, então o significado seria simplesmente econômico, ou seja, indicaria pessoas que têm pouco ou nenhum meio de subsistência e precisam da ajuda dos outros.
Mas o Evangelho de Mateus, ao contrário de Lucas, fala de “pobres em espírito”. O que significa isto? O espírito, segundo a Bíblia, é o sopro de vida que Deus comunicou a Adão; é a nossa dimensão mais íntima, digamos, a dimensão espiritual, a mais íntima, a que nos torna humanos, o núcleo mais profundo do nosso ser. Então os “pobres em espírito” são aqueles que são e se sentem pobres, mendigos, nas profundezas do seu ser. Jesus proclama-os bem-aventurados, porque o Reino do Céu lhes pertence.
Quantas vezes nos foi dito o contrário! É preciso ser algo na vida, ser alguém... É necessário ser famoso... É disto surgem a solidão e a infelicidade: se eu tenho que ser “alguém”, estou em competição com os outros e vivo numa preocupação obsessiva pelo meu ego. Se não aceito ser pobre, odeio tudo o que me lembra a minha fragilidade. Porque essa fragilidade me impede de ser uma pessoa importante, uma pessoa rica não só de dinheiro, mas de fama, de tudo.
Todos, diante de si, sabem que, por mais que se esforcem, permanecem sempre radicalmente incompletos e vulneráveis. Não há pintura alguma que cubra esta vulnerabilidade. Todos são vulneráveis dentro. É preciso ver onde. Mas como vivemos mal se rejeitamos os próprios limites! Vive-se mal. Não se digere o limite. Está ali. Pessoas orgulhosas não pedem ajuda, não podem pedir ajuda porque têm de ser autossuficientes. E quantas delas precisam de ajuda, mas o orgulho impede que peçam ajuda. E como é difícil admitir um erro e pedir perdão! Quando dou conselhos aos recém-casados, que me perguntam como levar por diante o seu matrimônio, respondo-lhes: “Há três palavras mágicas: com licença, obrigado, desculpa”. São palavras que vêm da pobreza de espírito. Não se deve ser intrometido, mas pedir licença: “Que te parece se fizermos isto?”, para que haja diálogo em família, esposo e esposa dialogam. “Fizeste isto por mim, obrigado, eu precisava”. Depois cometem-se sempre erros, vacila-se: “Desculpa”. E geralmente, casais, os recém-casados, aqueles que estão aqui e muitos, dizem-me: “A terceira é a mais difícil”, pedir desculpa, pedir perdão. Porque o homem orgulhoso não consegue. Ele não pode pedir desculpa: ele tem sempre razão. Não é pobre de espírito. Ao contrário, o Senhor nunca se cansa de perdoar; somos nós que infelizmente nos cansamos de pedir perdão (cf. Angelus, 17 de março de 2013). O cansaço de pedir perdão: esta é uma doença horrível!
Por que é difícil pedir perdão? Porque isso humilha a nossa imagem hipócrita. No entanto, viver procurando esconder as nossas falhas é cansativo e angustiante. Jesus Cristo diz-nos: ser pobre é uma ocasião de graça; e mostra-nos o caminho para sair desta fadiga. É-nos dado o direito de sermos pobres em espírito, porque este é o caminho do Reino de Deus.
Mas há uma coisa fundamental que deve ser reiterada: não nos devemos transformar para nos tornarmos pobres em espírito, não devemos fazer transformação alguma porque já somos pobres! Nós somos pobres... ou mais claramente: somos “muito pobres” em espírito! Nós precisamos de tudo. Somos todos pobres em espírito, somos mendigos. É a condição humana.
O Reino de Deus é dos pobres em espírito. Há aqueles que têm os reinos deste mundo: possuem bens e conforto. Mas são reinos que acabam. O poder dos homens, mesmo os maiores impérios, passam e desaparecem. Muitas vezes vemos nas notícias ou nos jornais que aquele governante forte e poderoso ou aquele governo que ontem existia e hoje já não existe, caiu. As riquezas deste mundo desaparecem, e o dinheiro também. Os idosos ensinavam-nos que a mortalha não tinha bolsos. Isto é verdade. Nunca vi atrás de um cortejo fúnebre um camião para a mudança. Ninguém leva nada. Estas riquezas ficam aqui.
O Reino de Deus é dos pobres em espírito. Há aqueles que têm os reinos deste mundo, têm bens e conforto. Mas nós sabemos que eles acabam. Reina deveras quem sabe amar o verdadeiro bem mais do que a si mesmo. Tal é o poder de Deus.
Como se mostrou Cristo poderoso? Pois Ele soube fazer o que os reis da terra não fazem: dar a sua vida pelos homens. E esse é o verdadeiro poder. Poder da fraternidade, poder da caridade, poder do amor, poder da humildade. Foi o que Cristo fez.
Nisto reside a verdadeira liberdade: quem tem este poder de humildade, de serviço, de fraternidade, é livre. Ao serviço desta liberdade está a pobreza louvada pelas bem-aventuranças.
Pois existe uma pobreza que devemos aceitar, a do nosso ser, e uma pobreza que, ao contrário, devemos procurar, a pobreza concreta, das coisas deste mundo, para sermos livres e podermos amar. Devemos procurar sempre a liberdade do coração, a liberdade que está enraizada na pobreza de nós mesmos.
Papa Francisco
Catequese na audiência Geral 5.02.2020
imagem: site do Vaticano
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