«Apesar de tantas dificuldades que afligem hoje as nossas famílias, não nos esqueçamos, por favor, disto: as famílias não são um problema, são sobretudo uma oportunidade; uma oportunidade que temos de cuidar, proteger, acompanhar.»
Este foi um dos apelos que o papa lançou às famílias reunidas na catedral de Nossa Senhora da Assunção, em Santiago, no último dia da viagem a Cuba(22/09/2015).
Selecionamos algumas das passagens da intervenção do papa Francisco, com subtítulos acrescentados pela redação da página do Secretariado Nacional da Pastoral da Cultura de Portugal.
O casamento, colheita de uma vida doada
As bodas são momentos especiais na vida de muitos. Para os "mais veteranos", pais, avós, é uma ocasião para recolher o fruto da sementeira. Dá alegria à alma ver os filhos crescerem, conseguindo formar o seu lar. É a oportunidade de verificar, por um instante, que valeu a pena tudo aquilo por que se lutou. Acompanhar os filhos, apoiá-los, incentivá-los para que possam decidir-se a construir a sua vida, a formar a sua família, é um grande desafio para todos os pais.
O casamento, festa da alegria e da esperança
Os recém-casados, por sua vez, encontram-se na alegria. Todo um futuro que começa; tudo tem «sabor» a coisas novas, a esperança. Nas bodas, sempre se une o passado que herdamos e o futuro que nos espera. Sempre se abre a oportunidade de agradecer tudo o que nos permitiu chegar até ao dia de hoje com o mesmo amor que recebemos.
Jesus, presença à (nossa) mesa
É no seio dos nossos lares que Ele [Jesus] incessantemente continua a inserir-Se, e deles continua a fazer parte. É interessante observar como Jesus se manifesta também nos almoços, nos jantares. Comer com diferentes pessoas, visitar casas diferentes foi um lugar que Jesus privilegiou para dar a conhecer o projeto de Deus. Vai à casa dos seus amigos – Lázaro, Marta e Maria -, mas não é seletivo: não lhe importa se são publicanos ou pecadores, como Zaqueu. (...) Bodas, visitas aos lares, jantares: algo de «especial» hão de ter estes momentos na vida das pessoas, para que Jesus prefira manifestar-se aí.
A refeição, hora sagrada
Lembro-me que, na minha diocese anterior, muitas famílias me explicavam que o único momento que tinham para estar juntos era, normalmente, o jantar, à noite, quando se voltava do trabalho e as crianças terminavam os deveres da escola. Era um momento especial de vida familiar. Comentava-se o dia, aquilo que cada um fizera, arrumava-se a casa, guardava-se a roupa, organizavam-se as tarefas principais para os dias seguintes. São momentos em que uma pessoa chega também cansada, e pode acontecer uma ou outra discussão, um ou outro "litígio". Jesus escolhe estes momentos para nos mostrar o amor de Deus, Jesus escolhe estes espaços para entrar nas nossas casas e ajudar-nos a descobrir o Espírito vivo e atuante nas nossas realidades quotidianas.
Família, escola de vida
É em casa onde aprendemos a fraternidade, a solidariedade, o não ser prepotentes. É em casa onde aprendemos a receber e agradecer a vida como uma bênção, e aprendemos que cada um precisa dos outros para seguir em frente. É em casa onde experimentamos o perdão, e somos continuamente convidados a perdoar, a deixarmo-nos transformar. Em casa, não há lugar para "máscaras": somos aquilo que somos e, duma forma ou doutra, somos convidados a procurar o melhor para os outros. Por isso, a comunidade cristã designa as famílias pelo nome de igrejas domésticas, porque é no calor do lar onde a fé permeia cada canto, ilumina cada espaço, constrói comunidade; porque foi em momentos assim que as pessoas começaram a descobrir o amor concreto e operante de Deus.
Sem família, a vida torna-se vazia
Em muitas culturas, hoje em dia, vão desaparecendo estes espaços, vão desaparecendo estes momentos familiares; pouco a pouco, tudo leva a separar-se, a isolar-se; escasseiam os momentos em comum, para estar juntos, para estar em família. Assim não se sabe esperar, não se sabe pedir licença ou desculpa, nem dizer obrigado, porque a casa vai ficando vazia: vazia de relações, vazia de contatos, vazia de encontros. (...) Sem família, sem o calor do lar, a vida torna-se vazia; começam a faltar as redes que nos sustentam na adversidade, alimentam na vida quotidiana e motivam na luta pela prosperidade.
A família ensina a ser para os outros
A família salva-nos de dois fenômenos atuais: a fragmentação (a divisão) e a massificação. Em ambos os casos, as pessoas transformam-se em indivíduos isolados, fáceis de manipular e controlar. Sociedades divididas, quebradas, separadas ou altamente massificadas são consequência da ruptura dos laços familiares, quando se perdem as relações que nos constituem como pessoa, que nos ensinam a ser pessoa. A família é escola da humanidade, que ensina a pôr o coração aberto às necessidades dos outros, a estar atento à vida dos demais. Apesar de tantas dificuldades que afligem hoje as nossas famílias, não nos esqueçamos, por favor, disto: as famílias não são um problema, são, sobretudo, uma oportunidade; uma oportunidade que temos de cuidar, proteger, acompanhar.
Família, centro e futuro de humanidade
Discute-se muito sobre o futuro, sobre o tipo de mundo que queremos deixar aos nossos filhos, que sociedade queremos para eles. Creio que uma das respostas possíveis se encontra pondo o olhar em vós: deixemos um mundo com famílias. É certo que não existe a família perfeita, não existem esposos perfeitos, pais perfeitos nem filhos perfeitos, mas isso não impede que sejam a resposta para o amanhã. Deus incentiva-nos ao amor, e o amor sempre se compromete com as pessoas que ama. Portanto, cuidemos das nossas famílias, verdadeiras escolas do amanhã. Cuidemos das nossas famílias, verdadeiros espaços de liberdade. Cuidemos das nossas famílias, verdadeiros centros de humanidade.
Eucaristia, Pão de Vida das famílias
Não quero concluir sem fazer menção da Eucaristia. Tereis notado que Jesus, como espaço do seu memorial, quis utilizar uma ceia. Escolhe como espaço da sua presença entre nós um momento concreto da vida familiar; um momento vivido e compreensível a todos: a ceia. A Eucaristia é a ceia da família de Jesus, que, de um extremo ao outro da terra, se reúne para escutar a sua Palavra e alimentar-se com o seu Corpo. Jesus é o Pão de Vida das nossas famílias, quer estar sempre presente, alimentando-nos com o seu amor, sustentando-nos com a sua fé, ajudando-nos a caminhar com a sua esperança, para que possamos, em todas as circunstâncias, experimentar que Ele é o verdadeiro Pão do Céu.
Pedir pela Igreja e pelas famílias
Daqui a alguns dias, participarei juntamente com famílias do mundo inteiro no Encontro Mundial das Famílias e, dentro de um mês, no Sínodo dos Bispos, cujo tema é a família. Convido-vos a rezar especialmente por estas duas intenções, para que saibamos todos juntos ajudar-nos a cuidar da família, para que saibamos cada vez mais descobrir o Emanuel, o Deus que vive no meio do seu povo fazendo das famílias a sua morada.
Papa Francisco
Edição: Rui Jorge Martins
Publicado em 22.09.2015 no SNPC
O apelo a uma Igreja desacomodada e a serviço, a viajar sem mapa rumo à surpresa, a partir ao encontro de quem precisa, a construir pontes e a derrubar muros, marcou a homilia que o papa pronunciou hoje (22.09.2015) em Santiago, Cuba, na missa a que presidiu no santuário da Virgem da Caridade do Cobre, padroeira nacional da ilha caribenha.
«[Deus] faz-nos sair de casa (...) A presença de Deus na nossa vida nunca nos deixa tranquilos, impele-nos sempre a mover-nos. Quando Deus visita, tira-nos sempre para fora de casa: visitados para visitar, encontrados para encontrar, amados para amar», afirmou.
Num país marcado pelos ideais de uma revolução política protagonizada por Fidel Castro e, atualmente, pelo seu irmão, Raúl, o papa apelou à «revolução da ternura».
«Somos convidados a «sair de casa», a ter os olhos e o coração abertos aos outros. A nossa revolução passa pela ternura, pela alegria que sempre se faz proximidade, que sempre se faz compaixão e leva a envolver-nos, para servir, na vida dos outros», vincou.
A crença dos católicos, prosseguiu Francisco, impele a «ir ao encontro dos outros para partilhar alegrias e sofrimentos, esperanças e frustrações»: «A nossa fé tira-nos de casa para visitar o doente, o recluso, quem chora e também quem sabe rir com quem ri, rejubilar com as alegrias dos vizinhos».
«Como Maria, queremos ser uma Igreja que serve, que sai de casa, que sai dos seus templos, das suas sacristias, para acompanhar a vida, sustentar a esperança, ser sinal de unidade. Como Maria, Mãe da Caridade, queremos ser uma Igreja que saia de casa para lançar pontes, abater muros, semear reconciliação», frisou o papa.
Na última missa a que presidiu em Cuba, Francisco realçou que o cristianismo à imagem da mãe de Jesus não se refugia mas dá o corpo: «Uma Igreja que saiba acompanhar todas as situações "grávidas" da nossa gente, comprometidos com a vida, a cultura, a sociedade, não nos escondendo mas caminhando com os nossos irmãos».
«Este é o nosso "cobre" mais precioso, esta é a nossa maior riqueza e o melhor legado que podemos deixar: aprender a sair de casa, como Maria, pelas sendas da visitação. E aprender a rezar com Maria, pois a sua oração é cheia de memória e agradecimento», apontou.
Maria, apontou Francisco, «é a memória viva» de que Deus continua presente na história de cada ser humano: «É a memória perene de que Deus olhou para a humildade do seu povo, socorreu o seu servo como prometera aos nossos pais e à sua descendência para sempre».
Celebração da missa - Santuário de Nossa Senhora da Caridade do Cobre, 22.9.2015
imagem: pexels.com
Aconteceu dos dias 02 a 04 de Setembro de 2015, em Aparecida, o Encontro dos representantes da Catequese no Pontifício Conselho para a Nova Evangelização e os representantes da catequese do Brasil.
Estiveram presentes os representantes da Santa Sé, D. Mons. Octávio Ruiz Arenas secretário do Pontifício Conselho para a Nova Evangelização (PCPNE), D. Franz-Peter Tebarz-van Elst Delegado para a catequese no PCPNE, Pe. Miguel López Varela e Pe. Alejandro Díaz Garcia, oficiais do PCPNE, além destes tivemos a participação de dois representantes do CELAM, D. Waldemar Passini Dalbello e Pe. Felipe de Jesús de Leon Ojeda. D. José Antonio Peruzzo, Presidente da Comissão Episcopal para a Animação Bíblico Catequética e o Assessor para a mesma comissão o Pe. Antonio Marcos Depizzoli também estavam presentes. Além destes estiveram presentes todos os Bispos Referenciais de Catequese e os devidos Coordenadores de catequese dos 18 Regionais da CNBB.
O encontro tinha como objetivo conhecer a realidade da catequese no Brasil. Dom Octávio e sua equipe ouviu atentamente a apresentação da realidade da catequese de cada regional, tendo assim um panorama dos principais desafios e avanços da catequese, principais projetos em cada região do país.
Foram destacados como avanços, dentre outros, o caminho da Catequese de Iniciação à vida cristã, as linhas de orientação comuns que a CNBB possui para a catequese no Brasil, a enorme produção de subsídios, o forte empenho na formação de catequistas, a acentuada presença da Bíblia no processo catequético do Brasil. Como desafios foram destacados, dentre outros, as enormes distâncias geográficas, a dificuldade financeira, o pouco envolvimento do clero com a catequese, a resistência a uma catequese de iniciação à vida cristã, a enorme rotatividade dos catequistas.
Num segundo momento foram feitas reflexões de alguns importantes temas para a caminhada da catequese, que após serem apresentados pelo Mons. Octávio Ruiz culminavam num debate. Os temas foram: 1) A Catequese a serviço da Iniciação Cristã e dos outros sacramentos; 2) A Catequese a serviço da formação permanente de jovens e adultos; 3) A Catequese e a educação religiosa das crianças e adolescentes nas paróquias e nas escolas; 4) A Formação dos catequistas.
Além destes temas de debate com troca de experiências dos diversos regionais foi feita apresentação das linhas principais do documento “A alegria de iniciar discípulos missionários numa mudança de época. Novas perspectivas para a catequese na América Latina e Caribe”, elaborado pelo CELAM e apresentado pelo Pe. Luiz Alves de Lima, representante da CNBB junto ao CELAM. Outro questionamento feito pelo PCPNE foi sobre a conveniência da instituição do “Ministério do Catequista”.
O grupo presente participou ativamente das reflexões, partilhou experiências, fez indicações para a catequese. No final Dom Octávio agradeceu a presença e participação de todos e se disse feliz com o caminho que a catequese está trilhando no Brasil. Dom Peruzzo agradeceu em nome de todos pelo encontro, pela escuta atenta da realidade da catequese no Brasil.
A equipe da Catequese do Pontifício Conselho para nova Evangelização segue para Lima no Peru(7 a 9 de setembro), onde realiza encontro com as comissões de catequese dos países andinos e do cone sul da América Latina.
setembro/2015
Deixa-te satisfazer pelo Deus da tua vida e faz silêncio. Se a alguém não basta Deus, que outra realidade lhe poderia alguma vez bastar na comunidade, no mundo? Karl Barth foi o maior teólogo protestante do século XX, nascido na cidade suíça de Basileia em 1886 e nela falecido em 1968. Um pároco da diocese de Milão escolheu e enviou-me estas escassas e simples palavras daquele teólogo, extraídas da sua introdução à teologia evangélica, e eu proponho-as para esta meditação dominical.
Seria belo se, pelo menos neste dia festivo, o cristão entrasse na igreja não para pedir alguma coisa, mas apenas para escutar Deus, não para esperar uma graça, mas apenas para louvar a graça divina que se efunde nele e na humanidade, não para encontrar uma solução para os seus problemas, mas apenas para descobrir uma presença.
É fácil ouvir nas palavras de Barth o eco de um célebre canto de Santa Teresa de Ávila, «nada te perturbe, nada te espante, quem a Deus tem nada lhe falta. Só Deus basta. Tudo passa, Deus não muda». Na realidade, nós agarramo-nos a muitas coisas; procuramos encher o nosso espírito com prazeres, emoções, aventuras, presenças. E sempre se intui um vazio, uma fome, uma sede, uma pergunta, uma espera. É este o sinal daquilo que bem exprimia Pascal: «O homem supera infinitamente o homem», isto é, está além de si próprio a última resposta.
P. (Card.) Gianfranco Ravasi
Presidente do Pontifício Conselho da Cultura
In "Avvenire" - 4.09.2013
A Comissão para animação Bíblico-Catequética do Regional Leste 2 (Minas Gerais e Espírito Santo) realiza nos dias os dias 22 a 26 de julho, na Casa de Retiros São José, em Belo Horizonte (MG), o Encontro Regional de Catequese.
O tema abordado neste ano será “A catequese na era digital”. A proposta é refletir sobre a evangelização e educação da fé da geração NET; compreender a internet como lugar de evangelização e como as diversas redes sociais podem contribuir na transmissão da fé. Além disso, a midiatização da religião e seu impacto para a vivência da fé também fazem parte da pauta de discussão.
A programação terá início na quinta-feira, 23, com o tema “A Catequese na era digital. A nova evangelização e geração net”, que será assessorado pela jornalista, especialista nas áreas de Ciberteologia e Cibercultura e mestre em Teologia pela PUC do Rio Grande do Sul, Aline Amaro da Silva. Na sexta-feira, 24, a Ir. Joana Puntel, pós-doutora em Cultura da Comunicação, autoras de vários livros nesta área, irá tratar o tema Midiatização da Religião e Redes sociais e Catequese.
Os dois últimos dias, 25 e 26, serão dedicados a outros temas de atualização catequética. O professor da PUC-Minas e mestre em teologia, Edward Guimarães, irá refletir sobre “As Novas Diretrizes e a catequese” e a equipe de catequese do regional fará apresentação do “Itinerário catequético” publicado pela comissão nacional de catequese.
A expectativa da Comissão para Animação Bíblico-Catequética do Regional Leste 2 é reunir o maior número de lideranças da catequese das (arqui)dioceses de Minas Gerais e Espírito Santo e promover uma reflexão sobre desafios e oportunidades para a catequese na era digital.
O Encontro Regional de Catequese é direcionado a membros das equipes de coordenação diocesanas de catequese, alunos do IRPAC e pessoas com experiência catequética. As inscrições podem ser feitas até o dia 17 de julho com a Coordenação de Catequese da sua (Arqui)diocese.
Outras informações pelo e-mail
Você já deve ter lido e ouvido muitas vezes a narração da Anunciação do anjo Gabriel à Maria, que está em Lucas 1,26-38. As catequistas e outros evangelizadores comentam sobre o “sim” de Maria, e falam que ela respondeu prontamente ao apelo de Deus. Isso é verdade. Mas a jovem de Nazaré não deu seu consentimento a Deus de qualquer jeito, sem pensar. O evangelista, servindo-se do gênero literário de vocação e de missão na bíblia, mostra que houve um diálogo demorado. Quanto tempo durou, e como se deu em detalhes, não se sabe. Deus tomou a iniciativa, veio ao encontro de Maria. Fez uma pro-posta para ela. E Maria, refletiu, questionou e por fim, deu uma res-posta. Acontece também assim quando duas pessoas se enamoram. Começa com o encantamento. Depois, os olhos os olhos, a aproximação, até que um toma a iniciativa de propor o relacionamento amoroso. Na fé, é Deus que sempre toma a iniciativa, nos seduz e nos convida.
Coloque-se no lugar de Maria. Quando menos espera, você recebe uma comunicação, uma proposta de Deus, que não imaginava antes. Qual seria sua primeira reação? Uma pessoa normal sentiria um choque, uma sensação de estremecimento e insegurança, como se de repente o chão tremesse. “Será verdade, ou estou imaginando coisas?” Assim também se passou com Maria. Ela “perturbou-se” ao ouvir a saudação de Gabriel (Lc 1,29). Mas não ficou imobilizada. Logo começou a pensar o significado da saudação: “alegre-se, agraciada, o Senhor está com você!” (Lc 1,28). Então Deus, através de seu enviado, lhe diz para não ter medo, pois ela encontrou graça diante do Senhor, e será a mãe do messias. Como aconteceu com Maria, algo parecido se passa com cada cristão. Ao mesmo tempo em que ele se assusta diante das exigências da missão confiada, tem uma certeza de que é agraciado, de que Deus ao seu lado, e então não precisa ter medo.
Embora seja uma mulher muito jovem, Maria sabe como acontecem as realidades humanas. Não é boba, nem ingênua. Pureza não quer dizer “ignorância”. Para ter um filho, seria necessário estar engajada num relacionamento conjugal. E ela ainda era noiva de José. Então pergunta: “Como se fará isso, se eu não tenho relações sexuais com ninguém?” (Lc 1,34). Mais do que simples pergunta, revela-se aqui um traço da personalidade de Maria: ser uma pessoa questionadora. Ela não aceita sem pensar. Quer saber em que chão vai pisar, para assumir seu compromisso de forma livre e consciente. Então, Gabriel lhe explicar sobre a concepção virginal, sob ação do Espírito Santo.
Por fim, Maria responde com firmeza: “Eis aqui a servidora do Senhor”. Quando adulto, Jesus se apresentará “como aquele que serve”. Sua mãe já vive esta atitude do mestre. Ela não quer ser rainha, nem se deixa levar pelo orgulho e pela vaidade. Simplesmente, quer servir a Deus. Por isso, completa a sua resposta, dizendo: “Eu quero que se faça em mim segundo a sua vontade” (Lc 1,38). Aqui, novamente, o evangelista Lucas vê no gesto de Maria aquilo que vai orientar toda a vida de Jesus: buscar fazer a vontade do Pai, que algumas vezes não era tão clara, nem fácil. Exigia discernimento, com tempo de silêncio e oração. Especialmente, antes de tomar grandes decisões. Assim, o autor da Carta aos Hebreus relembra que Jesus realizou o que o Salmo 40 prenunciava: “O Senhor não quis sacrifícios de sangue. Ele me abriu os ouvidos e eu disse: Eis que venho para fazer sua vontade” (Heb 10,7).
Quando você ler novamente o texto da Anunciação, lembre-se que o “sim” de Maria não foi automático, feito de qualquer jeito e sem pensar. Ao contrário. Aconteceu em um diálogo com Deus. Maria escuta seu chamado, deixa-se surpreender pelo Senhor, se perturba, vence o medo, questiona e então responde com inteireza. Que Maria, a jovem de Nazaré, nos ensine a dar um sim consciente a Deus. Amém!
Afonso Murad
Irmão Marista, teólogo e especialista em mariologia
Mais uma vez é Semana Santa. O que ela tem de santa? Nada de santa se a nossa vida não se aproximar da vida do Santo Filho de Deus, que morreu e ressuscitou possibilitando a todos saírem dos seus túmulos existenciais. Nada de santa se a nossa vida não melhorar. Para algumas pessoas ela será só uma semana como as outras do quotidiano, sem um significado especial, ou será uma semana com feriado prolongado. Mas, quem desejar, perceberá o significado desta semana e procurará viver a mística que dela emana. Nela celebra-se o maior ato de amor de Deus pela humanidade e por todo o mundo que Ele criou. A humanidade e a natureza a partir do facto central celebrado nesta semana ficou profundamente mergulhada no mistério da redenção. Segue-se uma história dos redimidos pelo amor grande de Deus.
Esta semana merece ser vivida em clima de muita oração, contemplação, esforço de conversão e convivência fraterna. A oração, como disse Paulo VI, faz-nos respirar na graça. Através dela a leveza de Deus suaviza a vida dos peregrinos. Com esta grande Semana chega-se, para nós, o tempo de rezar contemplando a redenção.
Pelo esforço de conversão, o ser humano percebe que não está completo. Há um longo caminho a percorrer para todas as pessoas. Como disse Sartre «o ser humano é inacabado, é incompleto do seu nascimento até sua morte». Pelo esforço de conversão é possível corrigir as deformações pessoais e aquelas que na nossa fragilidade provocamos nos outros e na natureza. Vivendo desta forma pode dizer-se que está iniciado, desde já, o processo de convivência fraterna que culminará na eternidade. A vivência entre irmãos que se amam é repleta de ternura. Como é bom os irmãos viverem juntos, numa só fé, com muita esperança e cheios de amor! (Cf. Salmo 133).
Nesta semana maior da Igreja celebramos o mistério central da nossa fé. Do Domingo de Ramos até Quinta-feira Santa, completamos o grande retiro quaresmal iniciado na Quarta-feira de Cinzas e vivido na perspetiva do crescimento cristão. Com a missa da Ceia do Senhor, na Quinta-feira à tarde, inicia-se o Tríduo pascal da morte e ressurreição do Senhor. O cume de todas as celebrações desta grande semana é a Vigília Pascal na noite do Sábado Santo. Esta Vigília desdobra-se na alegria do Domingo da Ressurreição e nos cinquenta dias do Tempo Pascal até ao Pentecostes sagrado. Este tempo pascal é considerado como que um único e grande domingo. O ritmo pascal envolve a todos na dança alegre das pessoas que têm um rosto iluminado pela fé na ressurreição.
Vamos viver cheios de esperanças esta semana especial da Igreja com o desejo de revigorar a vida cristã. Vamos entrar na Páscoa com semblantes de ressuscitados. «No Domingo de Páscoa tem-se a oportunidade para o ser humano deixar-se ser tocado pelo triunfo de vida sobre a morte. Cristo venceu a morte. Este é um bom dia para se semear uma flor» (Rubem Alves).
D. Messias dos Reis Silveira
Bispo de Uruaçu, Brasil
In: Conferência Nacional dos Bispos do Brasil
Publicado em 30.03.2015
“Lembre-se, VOCÊ também é Igreja”.
Este foi o lema da primeira Campanha da Fraternidade, em 1964. Então, os bispos brasileiros, tocados pelos ventos de renovação que vinham do Concílio Vaticano II, em Roma, propunham uma profunda reforma na Igreja, mudando a ideia de que ela era formada somente pelo Papa, os bispos, os religiosos e religiosas. Igreja somos todos nós, discípulos seguidores de Jesus Cristo. E é como cristãos e, portanto, como Igreja, que nos fazemos presentes em todas as realidades humanas, inclusive na Política.
Mas falar em Política, hoje, no Brasil (ou será desde sempre?), provoca arrepios. Corrupção, incompetência, mentiras, arrogância, manipulação, tudo isso faz parte do cardápio, tanto do governo quanto da oposição. Aliás, em muitas situações, nem se sabe quem é governo, quem é oposição.
A situação é crítica, o momento é grave. Diante desse quadro, como deve agir o cristão?
Queremos mudança, e não revezamento. E a mudança só virá se uma profunda, verdadeira e saneadora Reforma Política acontecer.
É o que propõe a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, junto a mais de cem outras entidades que representam a sociedade civil.
Confira o projeto de lei, o formulário para assinatura no link:
http://www.reformapoliticademocratica.org.br/conheca-o-projeto/
É possível baixar a cartilha e encaminhar para todos os catequistas, também baixar o formulário de assinatura para o grupo de catequistas assinar e, depois, enviar assinado para o endereço que consta no site.
Eduardo Machado
Educador, escritor e diretor da formação cristã no Colégio Imaculada em BH.
Começou dia 20 deste mês (sexta-feira) a "Semana de Mobilização pela Reforma Política Democrática". Seu objetivo é conseguir um 1,5 milhão assinaturas para a proposição do Projeto de Lei de Iniciativa Popular pela Reforma Política e Eleições Limpas.
Esse movimento de apoio ao projeto foi lançado no final de agosto do ano passado, pela Conferên-cia Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), pela Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), pelo Movimento de Combate à Corrupção Eleitoral (MCCE), pela Plata-forma dos Movimentos Sociais pela Reforma do Sistema Político e por mais 98 entidades da sociedade civil. Poucos dias depois – isto é, a 9 de setembro de 2014 –, numa entrevista que dei à Imprensa, a Arquidiocese de São Salvador da Bahia anunciou sua adesão a esse Projeto de Lei.
Para quem ainda não tomou conhecimento, a Reforma Política Democrática defendida por essas entidades pode ser resumida em quatro pontos: 1) financiamento das campanhas dos candidatos; 2) eleição em dois turnos: um para se votar em um programa e outro, para se votar em uma pessoa; 3) aumento de candidaturas de mulheres para cargos eletivos; 4) regulamentação do Artigo 14 da Constituição, com o objetivo de se melhorar a participação do povo brasileiro nas decisões mais importantes, por meio de Projetos de Lei de iniciativa popular, de plebiscitos e de referendos, mesclando a democracia representativa com a democracia participativa.
Os pontos defendidos pelas entidades e grupos que assumiram essa proposta poderiam, naturalmente, ser diferentes, em maior número ou mais amplos. No entanto, a proposta final foi a síntese a que elas chegaram, depois de inúmeras reuniões e debates. Se tais pontos não resolvem todos os problemas que nos preocupam no momento atual, servirão, no entanto, para darmos um importante passo para um novo tempo. As notícias que entram diariamente em nossas casas, a respeito do desvios de enormes quantidades de dinheiro para o financiamento de eleições, nos mostram que é melhor procurarmos o possível, já que o ideal é mais difícil. Afinal, como diziam os romanos, há 2 mil anos: "O ótimo é inimigo do bom". No futuro, outros passos poderão ser dados para o aperfeiçoamento de nossa Democracia. Não exagero ao afirmar que, nesse campo, a CNBB poderá oferecer uma preciosa contribuição, como a deu no tempo da Constituinte, com o texto "Por uma nova ordem constitucional".
É bom frisar que o Projeto de Lei que está esperando assinaturas – a sua, inclusive –, para poder ser apresentado em Brasília, não está vinculado a nenhum partido político, embora não haja restrição ao apoio de bons políticos. Os que já assinaram demonstraram estar convictos de que uma verdadeira reforma política melhorará a realidade política brasileira e possibilitará a realização de várias outras reformas necessárias ao país como, por exemplo, a tributária.
Quem quiser conhecer melhor o Projeto de Lei em questão, pode acessá-lo pela internet, onde pode ser baixado, inclusive, o Formulário de coleta de assinaturas e o endereço para onde deverá ser encaminhado. Por ele, também pode ser obtido e assinado em sua Paróquia. Em qualquer circunstância, é importante que você tenha em mãos o título de eleitor porque, além da assinatura, você deverá anotar dados como número desse documento, a zona, a seção e o nome do município onde você vota.
Enfim, como lembrou Dom Joaquim Mol, Bispo Auxiliar de Belo Horizonte e coordenador da Comissão da CNBB para o Acompanhamento da Reforma Política, "Precisamos fazer isso com alegria, com esperança, iluminados pela nossa fé em Jesus Cristo, que veio para que todos tenham vida em abundância. Por isso precisamos rezar e celebrar nesta intenção em nossas comunidades".
Mãos à obra, pois!
CNBB, 20-03-2015.
*Dom Murilo S. R. Krieger é arcebispo de São Salvador da Bahia e Primaz do Brasil.
“EU VI O SENHOR” (Ano B)
(Jo 20, 1.11-18)
(Reflexão para o tempo da Páscoa)
Introdução
Esta reflexão, própria para o primeiro dia da Páscoa, talvez seja feita melhor individualmente, no meio da natureza, num jardim.
“Beba” o silêncio do lugar, prepare-se para um encontro pessoal com o Senhor Ressuscitado. (Se for com mais pessoas, procurem guardar os momentos de silêncio, oração, leituras...)
Leia, agora, devagar, o texto citado acima procurando saborear a sua beleza e profundidade.
Este Evangelho segue, com liberdade, o esquema da esposa do Cântico dos Cânticos”. Agora, vamos deixar-nos inspirar por este livro. É uma coleção de poesias de amor que foram lidas nas sinagogas, na festa da primavera (em Israel), a Páscoa. Na tradição judaica o Canto significa o amor entre o povo eleito e Deus. Na tradição cristã, simboliza o amor entre Cristo e a Igreja (a comunidade).
O assunto não é o casamento, mas o amor. (Leia na sua Bíblia a introdução ao Livro dos Cânticos, para maior esclarecimento)
Para aproveitar do melhor modo esta reflexão, é necessário ler todos os textos citados do Livro Cântico dos Cânticos.
Já perceberam que somente no Evangelho de João se fala que Jesus foi enterrado num JARDIM (Cf. Jo 19,41)? O jardim perpassa todo o livro dos Cânticos, e o evangelho também fala de um jardim (Ct 5,1; 6,1-2; 7,11-14). Faz lembrar também o Paraíso terrestre, talvez fundamentado no Gn 2,23-24.
Vamos agora, passo a passo, acompanhar Maria Madalena na sua procura de Jesus
Ela é uma das três mulheres que estiveram junto à cruz. Ela esperou todo o sábado e a noite do dia seguinte, mas se levanta apressadamente de madrugada (Sl 63,2).
O versículo 1 diz que no primeiro dia da semana, bem de madrugada, quando ainda estava escuro, Maria Madalena foi ao túmulo e viu que a pedra havia sido retirada do túmulo. Maria ficou do lado de fora, chorando.
Ainda estava escuro. Escuridão, no Evangelho de João, simboliza não somente a escuridão exterior, mas também interior. O coração de Maria estava no escuro, triste por causa dos últimos acontecimentos.
Maria viu dois anjos que lhe perguntaram: “Por que choras?” Ela respondeu: “Levaram meu Senhor e não sei onde o colocaram”. (Verifiquemos agora, no Livro dos Cânticos, 3,1-4, a angústia da amada.)
Maria virou-se e viu Jesus, mas pensou que era o jardineiro (referência ao jardim). Perguntou novamente: “Senhor, se foste tu que o levaste, dize-me onde o colocaste, e eu irei buscá-lo”.
Neste momento, se deu o feliz encontro. Jesus pronunciou seu nome, e ela reconheceu o Senhor. Exclamou: “Rabuni” (Mestre).”É a voz do meu amado” ,diz o Cântico (2,8). É a voz do pastor que conhece suas ovelhas, diz João 10,3).
O livro Cântico dos Cânticos termina com uma linda exclamação de amor que é para ler e meditar agora: Ct 8,6-7.
O envio
Jesus disse a Maria: “Vai dizer aos meus irmãos: ”subo para junto do meu Pai e vosso Pai, meu Deus e vosso Deus”. E Maria foi anunciar aos discípulos: “EU VI O SENHOR!”. Maria tornou-se assim a primeira anunciadora da ressurreição.
Será que anuncio a alegria da ressurreição através de meu testemunho de vida? Posso dizer, como Maria: Eu vi o Senhor, eu ouvi sua voz e ele me chamou pelo nome?
Na catequese e no trabalho na comunidade faço ressoar a voz do Senhor Ressuscitado, despertando para alegria e esperança?
Leia de novo o texto do Evangelho. Coloca-se diante do Senhor com toda a atenção como Madalena. Fique na sua presença um bom tempo. Leia duas vezes com muita atenção Ct 8,5-7).
(Em caso de mais pessoas presentes:) Tempo para preces espontâneas e um canto da ressurreição.
Inês Broshuis
Comissão Bíblico-Catequética do Regional Leste 2
1. Organizar formação para as catequistas sobre o tema da Campanha e combinar o que a catequese irá fazer. Pensar em ações transformadoras, mesmo que sejam pequenos gestos.
2. Utilizar o subsídio para Encontros Catequéticos com crianças e adolescentes e Jovens na CF para a Crisma, disponibilizados pela CNBB.
3. Incentivar a produção de peças de teatro sobre o tema. A solidariedade, o compromisso com a vida pode ser o foco da apresentação.
4. Músicas:
- O Sal da Terra; Sementes do amanhã; Eu só peço a Deus
Outras Atividades com o tema da Campanha:
a) Construir um mural em mutirão sobre o tema;
b) Incentivar a produção de poemas, pinturas, maquetes, dança, paródias, músicas...
c) Pedir para pesquisar sobre o assunto na Internet. Indicar sites interessantes que mostram a atuação da Igreja na transformação das realidades:
- ver sites da própria diocese e paróquias
- site da Cáritas brasileira: http://caritas.org.br/
d) Promover um debate sobre o tema da CF;
e) Identificar pastorais sociais da Igreja no Brasil e na comunidade (conhecer as atividades que realizam).
f) Ler o discurso do Papa Francisco aos jovens na abertura da vigília da JMJ 2013.
g) Filmes: Elysium (um cidadão pobre da terra tem um plano de invadir a estação espacial luxuosa Elysium e trazer igualdade entre as pessoas da terra que também tem direito de vida digna)
- Tropa de Elite 2 – O inimigo é outro – (gestão e segurança pública, banalização da vida, os valores e contravalores vividos no mundo político são os principais temas abordados).
h) Utilizar estórias infantis sobre o tema.
i) Ler o Estatuto das crianças e adolescentes.
Com a Quarta-feira de Cinzas entramos no Tempo da Quaresma. O que sabemos ou lembramos em relação a esse Tempo?
Na minha infância era um período de muitos “nãos”.
- Não pode comer carne, menino, é pecado. Não pode comer muito, tem que fazer jejum. Não pode cantar, nem jogar bola, nem ficar feliz; Jesus morreu na cruz, não sabia?
Mas a gente sempre dava um jeitinho...
No lugar do bife ou da carne moída, uma lauta bacalhoada ou uma estupenda peixada (pra quem podia $, claro). Ficar triste era o mais difícil. Eu era moleque de rua, numa época em que ser moleque e estar na rua eram as coisas mais saudáveis e divertidas do mundo.
Assim, ao meu olhar infantil, a Quaresma era um tempo diferente, com as imagens da igreja cobertas por um pano roxo, uma “coisa” esquisita, principalmente para quem não entendia o “espírito” da coisa.
Para muita gente, adultos inclusive, até hoje é assim. A Quaresma se resume a um conjunto de práticas das quais se perdeu o significado mais profundo. O jejum virou dieta, a abstinência de carne permite variar o cardápio, a oração virou promessa, a esmola, alívio para a consciência.
Mas o que é, afinal de contas, a Quaresma? Que “espírito” está por trás dessa tradição?
Visão teológico/catequética
No calendário litúrgico da Igreja, Quaresma é um período, um “tempo” de 40 dias que vai da quarta-feira de Cinzas até o Domingo de Ramos, que abre a Semana Santa. Ou seja, na pior das hipóteses, o Tempo da Quaresma serve pra gente calcular quanto tempo falta para o próximo feriadão; 40 dias.
Mas, é mais. Começando pelo número quarenta, que tem um significado especial na linguagem bíblica, simbolizando purificação e renovação.
Antigamente, antes do desenvolvimento das vacinas e dos antibióticos, uma das formas de evitar a transmissão de doenças era colocar as pessoas com suspeita de moléstias contagiosas em “quarentena”, afastadas, isoladas das outras, até que se recuperassem, que estivessem curadas.
Na parábola da Arca de Noé (Gn 7,17-24), por quarenta dias caíram as águas do dilúvio sobre a Terra, preparando uma nova Criação.
Por quarenta anos o povo hebreu vagou pelo deserto (Nm 33,1-39), guiado por Moisés, até chegar e conquistar a Terra Prometida.
Jesus ficou 40 dias no deserto, em jejum e oração (Mt 4,1-11), preparando-se para iniciar sua vida pública.
O Tempo da Quaresma é, pois, um tempo de purificação e preparação que nos leva à festa maior do Cristianismo, a Páscoa, mistério maior da Fé Cristã. Mas alguém pode perguntar: a maior festa cristã não é o Natal?
Não, no Natal celebramos a vida que nasce em Jesus. Na Páscoa, celebramos a vida que renasce por Jesus, que vence a morte, superando todos os limites da experiência humana.
No Natal Jesus nasce. Torna-se um homem como tantos. Vive sua vida no meio de nós. Suas ideias e ações o colocam em confronto com os poderosos do seu tempo. O conflito é inevitável. As consequências também. Ele é preso, julgado, condenado e morto. Seu corpo é colocado num túmulo.
Vamos lembrar e celebrar tudo isso na Semana Santa.
Até aí, Jesus é um personagem que, como tantos outros na História, deu a vida por suas ideias, por seus ideais.
Quantas pessoas podemos lembrar que viveram e até morreram por um ideal, por um sonho, pela liberdade, pela dignidade humana? Pessoas que são a força de uma família, de um grupo, de uma comunidade; pessoas que são luz e que geram vida para outras pessoas. São “pessoas pascais”, que professam, inclusive, outras crenças e religiões.
Essas pessoas viveram e até morreram por causa das suas ideias, dos seus ideais. Jesus também. Mas, na madrugada daquele domingo, Ele salta da História para revelar o mistério maior, o mistério da Fé:
Jesus está vivo. POR Ele, COM Ele e NELE, a Vida RENASCE. E para sempre, pois os dons de Deus são assim, irrevogáveis.
Por isso nos preparamos, durante a Quaresma, para celebrar a Páscoa. No Brasil, desde 1964, essa caminhada é feita tendo como ‘mapa do caminho’ a temática da Campanha da Fraternidade. Mas, vamos lembrar esse caminho que vem de longe, num passeio pela memória, um olhar sobre a História...
Páscoa e Pêssach: um passeio pela História
A primeira experiência pascal é do povo hebreu, cerca de 1300 anos antes de Cristo. Muita gente se lembra de alguma coisa dessa história. A saga dos descendentes de José do Egito, que se multiplicaram em terra estrangeira e se viram submetidos a cruel escravidão. Deus VÊ a realidade do seu povo, ouve o seu clamor e se compadece.
E do olhar, à ação: Deus toca o coração de Moisés e o envia como o libertador. Vem então o confronto com o Faraó, as pragas e flagelos. No último, o Anjo do Senhor passa e fere de morte os primogênitos do Egito, inclusive a casa do Faraó, que, vencido, cede. Moisés inicia, então, a caminhada com o povo Hebreu em busca da Terra que Deus lhes prometera.
Mas o Faraó se arrepende e envia seus exércitos contra os fugitivos. Eles se veem cercados, acuados diante do Mar Vermelho. Mais uma vez, a força de Deus os conduz na travessia, numa passagem cheia de simbolismo. De um lado fica a escravidão, o sofrimento. Do outro, a promessa de uma terra onde jorra leite e mel, onde se poderá viver em liberdade, louvando o Deus de Israel.
Conquistada a terra, o povo hebreu assimila essa história e a transforma em rito no qual relembra, todos os anos, a passagem (Pêssach) (Passagem), da escravidão para a liberdade. É a Páscoa, que os judeus celebram até hoje.
A Páscoa cristã
Mais de mil anos depois de Moisés, encontramos Jesus com seus amigos ao redor de uma mesa. Como bons judeus, eles se reúnem para celebrar a Páscoa Judaica. O rito é cheio de gestos, cantos, símbolos e alegria. Toda uma história que começou na casa de Abraão é ali celebrada. À mesa, ervas amargas lembram a escravidão. Mas o cordeiro pascal, o pão, o vinho, falam de fartura e da alegria de ser o povo escolhido por Javé.
Mas algo misterioso acontece naquela ceia. Jesus, em dado momento, apropria-se dos símbolos da Páscoa Judaica e dá a eles outro sentido, mais amplo, universal. Já não é mais apenas um povo, fechado em si mesmo, em suas tradições, que é chamado a sentar-se à mesa do Senhor. Jesus convida a passar a uma ‘nova e eterna aliança com todos os homens...’.
Jesus Parte o pão e revela que o seu corpo também será ‘partido’. O vinho, brinde à vida, antecipa o sangue que será derramado em gesto de amor pleno. E ao final, Ele convida a fazer de tudo isso memória viva da sua presença; “Eu estarei com vocês todos os dias...”.
Desde então, desde sempre, Ele está no meio de nós...
As horas seguintes confirmam cada palavra dita ao redor daquela mesa. Em Jesus, uma passagem também acontece. Ele passa pela escravidão feita de traição, prisão, julgamento, tortura e condenação. Na cruz, o sinal de uma derrota aparentemente total. Aquele que passou pela vida fazendo o bem é agora prisioneiro de um túmulo de morte.
Mas, no amanhecer do domingo, o dia do Senhor... a travessia se completa. Passando da escravidão da Morte para liberdade da Vida, Deus faz a nova Páscoa acontecer. A Ressurreição é a Páscoa de Jesus de Nazaré.
Mas essa é outra história, ou melhor, a continuação da história que vamos celebrar no Domingo de Páscoa...
Eduardo Machado
É professor, escritor, mora em Belo Horizonte-MG
No mês de outubro de 2015, nós comemoramos o cinquentenário da conclusão do Concílio Vaticano II; concílio que enfatizou o diálogo entre a Igreja e a sociedade e reafirmou sua missão de servir. A Igreja nasceu do projeto salvífico de Jesus que, ressuscitado, enviou os discípulos, a anunciarem a todos, tudo o que dEle aprenderam. Esse é o serviço primeiro que a Igreja deve prestar ao mundo: anunciar a Palavra e a salvação realizada por Cristo. Sua missão primordial é, portanto, de cunho religioso evangelizador; um serviço à vida humana até que esta atinja sua plenitude, na comunhão com Deus. Decorrente desse evangelho, que permeia todos os aspectos da existência humana, emergem os inúmeros serviços que a Igreja presta ao mundo, em vista da promoção do bem, da justiça, da verdade, da paz, da defesa da vida; em uma palavra, todos os compromissos decorrentes do amor a Deus e ao próximo.
A Campanha da Fraternidade deste ano, vem situada nesse horizonte, como oportunidade de aprofundar esse compromisso cristão, de despertar cada pessoa para o serviço e, frente aos desafios de nosso tempo, aperfeiçoar o próprio modo que toda Igreja tem de servir.
Estar a serviço é uma atitude decorrente do amor. Esse nos faz “sair” de nós mesmos e ir ao encontro do outro; coloca nosso centro de atenção não em nós, mas no outro e no conjunto da sociedade, visando o bem de todos.
Ao colocar-se nessa atitude de serviço em relação ao mundo, a Igreja espelha-se em seu Senhor, que não veio para ser servido, mas para servir e dar sua vida por todos (cf. Mt 20,28). Estar a serviço é uma atitude decorrente do amor. Esse nos faz “sair” de nós mesmos e ir ao encontro do outro; coloca nosso centro de atenção não em nós, mas no outro e no conjunto da sociedade, visando o bem de todos. A atitude do serviço é o oposto do egoísmo auto referencial, que leva o indivíduo a viver somente para si, tendo em vista os próprios interesses. O cristianismo descontrói essa lógica rasteira do egoísmo interesseiro e descortina perspectivas novas que, pela doação de si no serviço generoso, abrem os horizontes da pessoa para o verdadeiro sentido da vida e da realização humana.
Tal amor e espírito de serviço concretizaram-se na generosa doação de cristãos que, ao longo dos séculos, doaram-se e continuam oferecendo a vida a serviço dos outros em hospitais, creches, orfanatos, asilos, escolas, universidades, e numa infinidade de projetos e pastorais que atendem, sobretudo aos mais necessitados. Assim, a Igreja presta serviço formando gerações, influenciando culturas, salvando vidas, infundindo e consolidando valores em meio a sociedade onde se situa.
A Campanha da Fraternidade não pretende exaltar o que a Igreja faz; porém, é justo e oportuno que tais ações sejam conhecidas a fim de que sirvam de estímulo às pessoas e suscitem inúmeras outras generosas atitudes de serviço. Situada no tempo da Quaresma, a Campanha da Fraternidade provoca o questionamento sobre o que cada cristão tem feito pelos seus semelhantes e o que poderia ainda por eles fazer.
Dom Wilson Angotti
Bispo Auxiliar da Arquidiocese de Belo Horizonte
(Marcos 1, 21-28, Evangelho do 4.º Domingo do Tempo Comum)
Estavam maravilhados com o seu ensinamento. O deslumbramento, essa experiência feliz que nos surpreende e desconstrói os esquemas, que se introduz como lâmina de liberdade em tudo o que nos oprime: rumores, palavras, processos mentais, hábitos, que nos faz entrar na dimensão da paixão, que é capaz de mover montanhas.
Resgatemos o deslumbramento, a capacidade de nos encantarmos de cada vez que encontramos alguém com palavras que transmitem a sabedoria do viver, que tocam o coração da vida porque nascem do silêncio, da dor, da profundidade, da proximidade da sarça ardente. A nossa capacidade de experimentar alegria é diretamente proporcional à nossa capacidade de nos deslumbrarmos.
Jesus ensinava como alguém que tem autoridade. Autorizadas são apenas as palavras que alimentam a vida e a fazem florir. Jesus tem autoridade porque nunca está contra o ser humano, mas sempre a favor dele, e sabe-o algo no interior de quem o escuta. Autorizadas e verdadeiras são apenas as palavras tornadas carne e sangue, como em Jesus; a sua pessoa é a mensagem.
Como emerge do excerto que se segue: Havia um homem possuído por um espírito impuro. O primeiro olhar de Jesus repousa sempre na fragilidade do ser humano, e a primeira de todas as pobrezas é a ausência de liberdade, como para um homem «possuído», prisioneiro de alguém mais forte que ele.
E vemos como Jesus intervém: não faz discursos sobre Deus, não procura explicações sobre o mal, antes mostra Deus que se imerge nas feridas do ser humano; é Ele mesmo, Deus, que se imerge, como cura, na vida ferida, e mostra que o Evangelho não é um sistema de pensamento, não é uma moral, mas uma admirável libertação.
Ele é o Deus chamado liberdade e que se opõe a tudo o que aprisiona o homem. Os demónios dão-se conta: o que há entre nós e Tu, Jesus de Nazaré? Vieste para nos arruinar? Sim, Jesus veio para arruinar tudo o que arruína o homem, veio para demolir prisões; veio trazer espada e fogo para cortar e queimar tudo o que não é amor. Veio para arruinar o reino dos desejos equivocados que se apoderam e devoram o homem: dinheiro, sucesso, poder, egoísmos.
A esses, que dirigem os corações, Jesus diz apenas duas palavras: cala-te, sai. Como sonhou Isaías, que as espadas se transformem em arados, que se quebre a concha e apareça a pérola. A pérola da criação é o homem livre e amante. Posso tornar-me assim, também eu, se o Evangelho for para mim paixão e encanto. Padecimento e parto. Então descobrirei «Cristo, minha doce ruína» (Turoldo), que arruína em mim tudo o que não é amor, que dos meus braços liberta todas as coisas vazias e dilata os horizontes que respiro.
Ermes Ronchi
In "Avvenire"
Trad. / edição: Rui Jorge Martins
Nos teus invernos há sementes que germinam, sabias?:
Meditação sobre o Evangelho do 3º Dom. T.Comum
Depois de João ter sido preso, Jesus partiu para a Galileia e começou a proclamar o Evangelho de Deus, dizendo: «Cumpriu-se o tempo e está próximo o reino de Deus. Arrependei-vos e acreditai no Evangelho».
Caminhando junto ao mar da Galileia, viu Simão e seu irmão André, que lançavam as redes ao mar, porque eram pescadores. Disse-lhes Jesus: «Vinde comigo e farei de vós pescadores de homens». Eles deixaram logo as redes e seguiram Jesus. Um pouco mais adiante, viu Tiago, filho de Zebedeu, e seu irmão João, que estavam no barco a consertar as redes; e chamou-os. Eles deixaram logo seu pai Zebedeu no barco com os assalariados e seguiram Jesus. (Marcos 1, 14-20, Evangelho do 3.º Domingo do Tempo Comum)
Marcos conduz-nos ao momento primordial em que uma notícia extraordinária começa a correr pela Galileia, anunciando com a primeira palavra: o tempo cumpriu-se, o Reino de Deus está aqui.
Jesus não demonstra o Reino, mostra-o e fá-lo florir das suas mãos: liberta, cura, perdoa, derruba barreiras, volta a dar a plenitude a todos, a começar pelos últimos. O Reino é Deus que vem para curar do mal de viver, como a vida que desponta em todas as suas formas.
A segunda palavra de Jesus pede para tomar posição: convertei-vos, voltai-vos para o Reino. Há uma ideia de movimento na conversão, como no girassol que a cada manhã volta a erguer a sua corola e a orienta na direção do sol. Convertei-vos: isto é, voltai-vos para a luz porque a luz já está aqui.
A cada manhã, a cada despertar, também eu posso converter-me, dirigir pensamentos, sentimentos e escolhas para uma estrela polar do viver, para a boa notícia de que Deus está hoje mais próximo, penetrou mais profundamente no coração do mundo e no meu, com mansidão e poderosa energia para o amanhecer de novos céus e nova terra.
Também eu posso construir o meu dia sobre esta feliz certeza; deixar de ter os olhos baixos sobre os meus mil problemas, mas levantar a cabeça para a luz, para o Senhor que me assegura: Eu estou contigo, nunca te deixo, nunca serás abandonado.
Crer no Evangelho. Não basta aderir a uma doutrina; é preciso atirar-se para dentro dele, para que a nossa vida seja submersa nele e dele derivem as nossas escolhas.
Caminhando ao longo do lago, Jesus vê... Vê Simão e nele intui Pedro, a Rocha. Vê João e nele perscruta o discípulo das mais belas palavras de amor. Um dia olhará a adúltera trazida à força para diante dele e nela verá a mulher capaz de amar de novo.
O Mestre olha também para mim; nos meus invernos vê sementes que germinam, generosidade que desconhecia ter, capacidades de que não suspeitava. O olhar de Jesus alarga o coração, torna-o mais amplo. Deus tem para mim a confiança de quem contempla as estrelas ainda antes que se iluminem.
Segue-me, vem após mim. Jesus não se alonga em motivações, porque o motivo é Ele, que te coloca o Reino recém-nascido entre as mãos. E di-lo com uma palavra inédita: farei de vós pescadores de homens. Como se dissesse: farei de vós buscadores de tesouros.
Como se dissesse: o meu e o vosso tesouro são os homens. Havereis de os tirar para fora da escuridão, como peixes sob a superfície das águas, como recém-nascidos das águas maternas, como tesouro desenterrado do campo. Passá-los-eis da vida submersa à vida ao sol. Mostrareis que o Evangelho é a chave para viver melhor.
Ermes Ronchi
In "Avvenire"
Estamos empenhados em preparar a vinda do Senhor, em preparar-lhe simbolicamente um espaço, e isso torna-se uma parábola do grande acolhimento, da grande hospitalidade à qual estamos dispostos. E dizemos: «Vem, Senhor Jesus».
Abrimos as casas, encontramos um lugar no seu interior, preparamos formas diferentes para o tráfico dos nossos dons, das palavras, dos sentimentos, dos votos e desejos. Encontramos na nossa vida um modo de Deus chegar. As portas estão abertas. A contagem decrescente começou.
E então dá-se o volte-face: ao rei David, que tem um papel emblemático na expetativa messiânica, Deus diz: «Não és tu que me preparas uma casa, sou Eu que preparo uma casa para ti».
Não mergulhamos profundamente no mistério do Natal se não acolhermos esta reviravolta no nosso coração: não somos nós que preparamos um presépio para Deus nascer; é Deus que prepara o lugar, é Deus que prepara a possibilidade, as condições do renascimento de cada um de nós.
Jesus é o Deus que se torna homem para que o homem e mulher que somos se possa divinizar. Ele nasceu para potenciar os nossos nascimentos.
Como Maria, podemos perguntar: «Como será isso, se eu não vejo essa possibilidade? Que o Menino possa nascer simbolicamente em minha casa, eu acredito, mas que a minha casa toda e o que ela significa possa renascer, não vejo como. Que eu me possa preparar e abrir as portas para o Deus connosco vir, isso entendo; mas que eu, na minha rigidez, nos meus entraves, nos meus dilemas, no caminho que estou a fazer, possa verdadeiramente recomeçar e renascer, não vejo como».
A dupla palavra do anjo é uma das grandes palavras de Natal: «Não temas». Não desanimes, não penses que não é para ti. O Espírito Santo virá em teu socorro, a sombra do Altíssimo te cobrirá. E o mistério que acontece na nossa vida, humaníssima e fragilíssima, é ação do próprio Deus: é Ele que pode renovar, é Ele que pode transformar as nossas vidas; é Ele que pode fazer acontecer, dentro de cada um de nós, o Natal, essa irrupção de vida nova e cintilante, a possibilidade de uma esperança maior do que aquela de que somos capazes.
O que é este novo nascimento? S. Paulo, com uma palavra só, com uma das palavras mais importantes desse texto maior da memória cristã que é a carta aos Romanos, diz: o grande mistério, esperado desde sempre e agora revelado, é este: Deus Pai confirma-nos. Uma palavra só: «Confirma-nos».
O que é o Natal de 2014 que estamos prestes a celebrar? É sentir dentro de si que se é confirmado por Deus, confirmado como filho e filha amado, querido, em quem Deus coloca todo o seu amor. E a nossa vida passa a valer mais: porque não é só o que somos, o que conseguimos, o que trazemos - não é só isso; é o olhar de Deus pousado na fragilidade que eu sou.
É o olhar de Deus que me confirma, muitas vezes para lá das evidências e contrariando-as, contra toda a esperança. Deus confirma-nos e diz: «Tu és a minha filha, tu és o meu filho». É isso que nos faz nascer: a certeza do amor de Deus depositado, mostrado por Jesus face a face na nossa história, a certeza indefectível desse amor que não falha, desse amor em que podemos confiar. O Deus connosco é um Deus credível, em quem um homem e uma mulher podem acreditar. Nós acreditamos nesse amor, e acreditamos que ele nos é dado como fundamento, como pedra angular, como razão, como possibilidade, como manjedoura onde nascemos.
Temos de olhar para os nossos dias e sentir que não somos nós que estamos a construir uma manjedoura; é Deus que faz do tempo da nossa vida, deste tempo onde estamos, deste aqui e agora, o lugar da nossa confirmação, o lugar do nosso nascimento. Abramos, por isso, o nosso coração em alegria.
Pe. José Tolentino Mendonça
Poeta e escritor português. Lisboa, 21.12.2014
No Natal não celebramos uma recordação, mas uma profecia. O Natal não é uma festa sentimental, mas o juízo sobre o mundo e o novo ordenamento de todas as coisas. Naquela noite, o sentido da história tomou outra direção: Deus para o homem, o grande para o pequeno, do alto para baixo, de uma cidade para uma gruta, do templo para um campo de pastores. A história recomeça dos últimos.
Enquanto que em Roma se decidem as sortes do mundo, enquanto as legiões mantêm a paz com a espada, neste mecanismo perfeitamente oleado cai um grão de areia: nasce uma criança, suficiente para mudar a direção da história. A nova capital do mundo é Belém.
Ali Maria dá à luz o seu filho primogénito, envolve-o em faixas e depõe-no numa manjedoura... no comedouro dos animais, que Maria, na sua necessidade, lê como um berço. O estábulo e a manjedoura são um "não" aos modelos mundanos, um "não" à fome de poder, um "não" ao que está estabelecido. Deus entra no mundo do ponto mais baixo, para que nenhuma criatura nunca mais esteja por baixo, para que ninguém fique de fora do seu abraço que salva.
O Natal é o maior ato de fé de Deus na humanidade: confia o filho nas mãos de uma jovem inexperiente e generosa, tem fé nela. Maria cuida do recém-nascido, alimenta-o de leite, de carícias e de sonhos. Fá-lo viver com o seu abraço.
Do mesmo modo, na encarnação nunca concluída do Verbo, Deus só viverá na nossa Terra se cuidarmos dele, como uma mãe, a cada dia.
Havia naquela região alguns pastores... uma nuvem de asas e de canto os envolve. É muito belo que Lucas anote esta visita única, um grupo de pastores a cheirar a lã e a leite. É belo para todos os pobres, os últimos, os anônimos, os esquecidos. Deus recomeça deles.
Vão e encontram uma criança. Contemplam-no: os seus olhos são os olhos de Deus, a sua fome é a fome de Deus, aquelas mãozinhas que se estendem para a mãe são as mãos de Deus estendidas para eles.
Por quê o Natal? Deus fez-se homem para que o homem se faça Deus. Cristo nasce para que eu nasça. O nascimento de Jesus requer o meu nascimento: que eu nasça diferente e novo, que nasça com o Espírito de Deus em mim.
O Natal é a "reconsagração" do corpo. A certeza de que a nossa carne que Deus assumiu, amou, fez sua, é sagrada em qualquer dos seus membros, que a nossa história é sagrada qualquer que seja a sua página.
O Criador que tinha plasmado Adão com a argila do solo faz-se Ele mesmo argila deste nosso solo. O oleiro faz-se argila de um vaso frágil e belíssimo. E ninguém pode dizer: aqui acaba o homem, aqui começa Deus, porque Criador e criatura abraçam-se a partir de agora. Para sempre.
Pe. Ermes Ronchi
In "La Chiesa"
Trad.: Rui Jorge Martins
«Nas mãos do oleiro/ o universo descobre-se/ inacabado»
Uma das formas fundamentais da sabedoria é a descoberta que cada um de nós vai fazendo, a ciclo e a contraciclo, a tempo e fora de tempo, na nossa vida. E numa vida adulta avançada, muitas vezes é isto que experimentamos: descobrimo-nos inacabados porque nos descobrimos nas mãos do oleiro.
É importante associar a experiência da vida em aberto e a experiência de estarmos a viver continuamente um processo de criação.
Este dia da nossa vida, em que parece que já não há nada para acontecer, em que parece que já vivemos tudo o que havia a viver, é um dia da criação.
«O que se instala na perfeição/ desconhece aquilo/ que só a indigência revela»
Um dos maiores obstáculos na vida espiritual é a ideia ou desejo de perfeição, porque eles se configuram como o anseio de sair para fora da nossa vida, imaginar uma vida outra, viver com a culpa ou a miragem de uma vida que não é nossa.
O objetivo do trabalho espiritual não é colocar-nos fora de órbita, mas reenviar-nos para o coração da existência, para o que somos, abrindo-nos para uma arte inesperada que é a da indigência - percebermos que na nossa imperfeição há uma sabedoria que está a ser revelada.
A verdadeira sabedoria, que nos faz tocar o coração da vida, é a da indigência, da pobreza, do tosco. Tudo o resto são fórmulas, que podem até ser úteis, mas não são a experiência; podem ser um belo sentimento, uma bela paixão, mas não são aquilo que nós podemos viver.
«Diariamente repito/ escolhas e imperfeições:/ a natureza dos seres em solidão»
É importante percebermos que a nossa escolha é sempre imperfeita, e que diariamente habitamos o imperfeito de forma estável.
É importante levarmos a sério a nossa própria vida, aquilo que somos, abraçarmos a nossa solidão. Porque esse abraço àquilo que somos de forma desprevenida, despojada, é a única possibilidade de um abraço de Deus, a única possibilidade de um abraço que nos salva.
«O meu desejo na primavera:/ que mesmo as flores selvagens/ venham florir à minha porta»
Gostamos da arte da jardinagem, e por vezes a nossa vida é uma arte permanente. Olhamos para o jardim, gostamos, não gostamos, intervimos, cortamos, cerceamos; é muitas vezes um jardim à maneira francesa, com aquele gosto pelas figuras geométricas, pelas formas, pelo jogo da simetria, pelo pandã.
Por vezes, a nossa forma de arrumação torna-se uma obsessiva ilusão, porque a vida é viva, isto é, é informe, em bruto, não trabalhada. Temos de desejar os nossos canteiros muito bem ordenados e floridos, mas também desejar que as flores selvagens, de que não conhecemos o nome nem a forma, venham florir à nossa porta.
Elas dão-nos o espelho do nosso inacabamento, dão-nos a impressão não de uma vida doméstica, que é sempre uma vida domesticada, mas a impressão de uma vida outra, de uma vida na sua torrente, na sua originalidade, na sua verdade.
«A vida monástica/ é uma forma de nudez/ que não se envergonha de si»
É essencial olharmos para uma das imagens iniciais do livro do Génesis, quando Adão e Eva se descobriram nus e se esconderam de Deus. Esta metáfora é também muito da nossa existência.
A nossa vida espiritual é muitas vezes uma arte de esconder, uma arte de não revelar. E a vida que mostramos a Deus é subtraída, é uma vida que nós queremos ser digna de ser vista por Deus, mas que deixa de ser a nossa própria vida.
Os mestres da vida espiritual mostram-nos precisamente o contrário: a Deus, temos de levar a nossa nudez, isto é, a nossa radical verdade, a vida destapada, desoculta e informe.
José Tolentino Mendonça
Publicado em 30.11.2014
O mais comum é agradecer o que nos foi dado. E não nos faltam motivos de gratidão. Há, é claro, imensas coisas que dependem do nosso esforço e engenho, coisas que fomos capazes de conquistar ao longo do tempo, contrariando mesmo o que seria previsível, ou que nos surgiram ao fim de um laborioso e solitário processo. Mas isso em nada apaga o essencial: as nossas vidas são um recetáculo do dom.
Por pura dádiva recebemos o bem mais precioso, a própria existência, e do mesmo modo gratuito fizemos e fazemos a experiência de que somos protegidos, cuidados, acolhidos e amados. Se tivéssemos de fazer a listagem daquilo que recebemos dos outros (e é pena que esse exercício não nos seja mais habitual), perceberíamos o que a poetisa Adília Lopes repete como sendo a sua verdade: «sou uma obra dos outros». Todos somos.
A nossa história começou antes de nós e persistirá depois. Somos o resultado de uma cadeia inumerável de encontros, de gestos, boas vontades, sementeiras, afagos, afetos. Colhemos inspiração e sentido de vidas que não são nossas, mas que se inclinam pacientemente para nós, iluminando-nos, fundando-nos na confiança. Esse movimento, sabemo-lo bem, não tem preço, nem se compra em parte alguma: só se efetiva através do dom.
Por isso é que quando ele falta a sua ausência indelével faz-se sentir a vida inteira. O seu lugar não consegue ser preenchido, mesmo se abunda uma poderosa indústria de ficções de todo o tipo com a inútil pretensão de ser oblívio e substituição para essa espécie de fala geológica que nos morde.
Hoje, porém, dei comigo a pensar também na importância do que não nos foi dado. E a provocação chegou-me por uma amiga que confidenciou: «Gosto de agradecer a Deus tudo o que Ele me dá, e é sempre tanto que nem tenho palavras para descrever. Sinto, contudo, que lhe tenho de agradecer igualmente o que Ele não me dá, as coisas que seriam boas e que eu não tive, o que até pedi e desejei muito, mas não encontrei. O fato de não me ter sido dado obrigou-me a descobrir forças que não sabia que tinha e, de certa maneira, permitiu-se ser eu».
Isto é tão verdadeiro. Mas exige uma transformação radical da nossa atitude interior. Tornar-se adulto por dentro não é propriamente um parto imediato ou indolor. No entanto, enquanto não agradecermos a Deus, à vida ou aos outros o que não nos deram, parece que a nossa prece permanece incompleta. Podemos facilmente continuar pela vida dentro a nutrir o ressentimento pelo que não nos foi dado, a compararmo-nos e a considerarmo-nos injustiçados, a prantear a dureza daquilo que em cada estação não corresponde ao que idealizamos.
Ou podemos olhar o que não nos foi dado como a oportunidade, ainda que misteriosa, ainda que ao inverso, para entabular um caminho de aprofundamento... e de ressurreição. Foi assim que numa das horas mais sombrias do século XX; desde o interior de um campo de concentração, a escritora Etty Hillesum conseguiu, por exemplo, protagonizar uma das mais admiráveis aventuras espirituais da contemporaneidade. No seu diário deixou escrito:
«A grandeza do ser humano, a sua verdadeira riqueza, não está naquilo que se vê, mas naquilo que traz no coração. A grandeza do homem não lhe advém do lugar que ocupa na sociedade, nem no papel que nela desempenha, nem do seu êxito social. Tudo isso pode ser-lhe tirado de um dia para o outro. Tudo isso pode desaparecer num nada de tempo. A grandeza do homem está naquilo que lhe resta precisamente quando tudo o que lhe dava algum brilho exterior, se apaga. E que lhe resta? Os seus recursos interiores e nada mais.»
Pe. José Tolentino Mendonça
(In Expresso, 18.4.2014)
Porque é que divinizamos artistas, desportistas, músicos, políticos, atores de cinema? Não sei bem explicar porquê. Teria que estudar alguma psicologia. Suponho que é uma questão de segurança: precisamos de nos agarrar a imagens de sucesso, precisamos de ter em quem depositar as nossas esperanças, alguém em quem projetar a nossa felicidade.
O problema é que colocamos as nossas esperanças em “cavalos errados“, ou seja: depositamos as nossas delicadas vidas em “cavalos” que não são os que verdadeiramente influenciam o nosso caminho. A divinização que façamos do Benfica, dos U2, do Obama ou do Brad Pitt, é como um balão de ar pronto a rebentar. Pior: divinizamos esses que nada têm a ver connosco e ignoramos outros que, esses sim, têm as nossas vidas nas suas mãos sem que nós o saibamos.
Um exemplo muito prosaico: nunca deixo de me impressionar quando olho para o meu Nokia 2630 de 66 gramas de peso. Fico a pensar: como é possível que esta caixinha me ponha em comunicação com outro aparelhozinho que está a não-sei-quantos quilômetros de distância? É um milagre da tecnologia! E a quem agradeço isso? Não sei. Um grupo de anônimos trabalhou centenas de horas para eu ter esta tecnologia à minha disposição. Apetecia mandar um cartãozinho a agradecer o trabalho que tiveram.
Mas o que é que isto tem a ver com o dia de Todos os Santos?
Tem tudo a ver. De todos os dias santos que celebramos ao longo do ano, o de Todos os Santos é o meu preferido. A razão é simples. Neste dia celebramos Todos os Santos. Não celebramos este ou aquele. Não celebramos um ou outro aspecto da vida da Igreja. Celebramos todas as pedras da Igreja. Celebramos os Benficas, os U2’s, os Obamas e os Brad Pitt’s da Igreja, mas celebramos sobretudo aqueles que ninguém conhece. Celebramos aqueles que ficaram na penumbra.
Neste dia celebramos os nossos santos pais, os nossos santos irmãos. Celebramos os nossos santos avós, os nossos santos amigos. Os nossos santos professores e colegas. Todos quantos tiveram uma santa paciência para nos aturar. Todos os que passaram por um santo sofrimento por causa de nós. Todos os que nos deram santas ferramentas para crescer. Todos os que nos ensinaram qualquer coisa sobre o santo caminho da felicidade.
Fazendo uns cálculos rápidos de cabeça, imagino que 99,99% dos santos morrem no anonimato mais silencioso. E, dos santos que tiveram influência direta nas nossas vidas é provável que 99,99% nunca tenham sido e nunca virão a ser canonizados. Por isso é tão bom celebrar a santidade no anonimato! Vivam Todos os Santos!
João Delicado
in: verparaalemdoolhar.blogspot.pt
Página 8 de 11