jana vanourkova

Com a Quarta-feira de Cinzas entramos no Tempo da Quaresma. O que sabemos ou lembramos em relação a esse Tempo?

Na minha infância era um período de muitos “nãos”.

- Não pode comer carne, menino, é pecado. Não pode comer muito, tem que fazer jejum. Não pode cantar, nem jogar bola, nem ficar feliz; Jesus morreu na cruz, não sabia?

Mas a gente sempre dava um jeitinho...

No lugar do bife ou da carne moída, uma lauta bacalhoada ou uma estupenda peixada (pra quem podia $, claro). Ficar triste era o mais difícil. Eu era moleque de rua, numa época em que ser moleque e estar na rua eram as coisas mais saudáveis e divertidas do mundo.

Assim, ao meu olhar infantil, a Quaresma era um tempo diferente, com as imagens da igreja cobertas por um pano roxo, uma “coisa” esquisita, principalmente para quem não entendia o “espírito” da coisa.

Para muita gente, adultos inclusive, até hoje é assim. A Quaresma se resume a um conjunto de práticas das quais se perdeu o significado mais profundo. O jejum virou dieta, a abstinência de carne permite variar o cardápio, a oração virou promessa, a esmola, alívio para a consciência.

Mas o que é, afinal de contas, a Quaresma? Que “espírito” está por trás dessa tradição? 

Visão teológico/catequética

No calendário litúrgico da Igreja, Quaresma é um período, um “tempo” de 40 dias que vai da quarta-feira de Cinzas até o Domingo de Ramos, que abre a Semana Santa. Ou seja, na pior das hipóteses, o Tempo da Quaresma serve pra gente calcular quanto tempo falta para o próximo feriadão; 40 dias.

Mas, é mais. Começando pelo número quarenta, que tem um significado especial na linguagem bíblica, simbolizando purificação e renovação.

Antigamente, antes do desenvolvimento das vacinas e dos antibióticos, uma das formas de evitar a transmissão de doenças era colocar as pessoas com suspeita de moléstias contagiosas em “quarentena”, afastadas, isoladas das outras, até que se recuperassem, que estivessem curadas.

Na parábola da Arca de Noé (Gn 7,17-24), por quarenta dias caíram as águas do dilúvio sobre a Terra, preparando uma nova Criação.

Por quarenta anos o povo hebreu vagou pelo deserto (Nm 33,1-39), guiado por Moisés, até chegar e conquistar a Terra Prometida.

Jesus ficou 40 dias no deserto, em jejum e oração (Mt 4,1-11), preparando-se para iniciar sua vida pública.

O Tempo da Quaresma é, pois, um tempo de purificação e preparação que nos leva à festa maior do Cristianismo, a Páscoa, mistério maior da Fé Cristã. Mas alguém pode perguntar: a maior festa cristã não é o Natal?

Não, no Natal celebramos a vida que nasce em Jesus. Na Páscoa, celebramos a vida que renasce por Jesus, que vence a morte, superando todos os limites da experiência humana.

No Natal Jesus nasce. Torna-se um homem como tantos. Vive sua vida no meio de nós. Suas ideias e ações o colocam em confronto com os poderosos do seu tempo. O conflito é inevitável. As consequências também. Ele é preso, julgado, condenado e morto. Seu corpo é colocado num túmulo.

Vamos lembrar e celebrar tudo isso na Semana Santa.

Até aí, Jesus é um personagem que, como tantos outros na História, deu a vida por suas ideias, por seus ideais.

Quantas pessoas podemos lembrar que viveram e até morreram por um ideal, por um sonho, pela liberdade, pela dignidade humana? Pessoas que são a força de uma família, de um grupo, de uma comunidade; pessoas que são luz e que geram vida para outras pessoas. São “pessoas pascais”, que professam, inclusive, outras crenças e religiões.

Essas pessoas viveram e até morreram por causa das suas ideias, dos seus ideais. Jesus também. Mas, na madrugada daquele domingo, Ele salta da História para revelar o mistério maior, o mistério da Fé:

Jesus está vivo. POR Ele, COM Ele e NELE, a Vida RENASCE. E para sempre, pois os dons de Deus são assim, irrevogáveis.

Por isso nos preparamos, durante a Quaresma, para celebrar a Páscoa. No Brasil, desde 1964, essa caminhada é feita tendo como ‘mapa do caminho’ a temática da Campanha da Fraternidade. Mas, vamos lembrar esse caminho que vem de longe, num passeio pela memória, um olhar sobre a História... 

Páscoa e Pêssach: um passeio pela História

A primeira experiência pascal é do povo hebreu, cerca de 1300 anos antes de Cristo. Muita gente se lembra de alguma coisa dessa história. A saga dos descendentes de José do Egito, que se multiplicaram em terra estrangeira e se viram submetidos a cruel escravidão. Deus VÊ a realidade do seu povo, ouve o seu clamor e se compadece.

E do olhar, à ação: Deus toca o coração de Moisés e o envia como o libertador. Vem então o confronto com o Faraó, as pragas e flagelos. No último, o Anjo do Senhor passa e fere de morte os primogênitos do Egito, inclusive a casa do Faraó, que, vencido, cede. Moisés inicia, então, a caminhada com o povo Hebreu em busca da Terra que Deus lhes prometera.

Mas o Faraó se arrepende e envia seus exércitos contra os fugitivos. Eles se veem cercados, acuados diante do Mar Vermelho. Mais uma vez, a força de Deus os conduz na travessia, numa passagem cheia de simbolismo. De um lado fica a escravidão, o sofrimento. Do outro, a promessa de uma terra onde jorra leite e mel, onde se poderá viver em liberdade, louvando o Deus de Israel.

Conquistada a terra, o povo hebreu assimila essa história e a transforma em rito no qual relembra, todos os anos, a passagem (Pêssach) (Passagem), da escravidão para a liberdade. É a Páscoa, que os judeus celebram até hoje. 

A Páscoa cristã

Mais de mil anos depois de Moisés, encontramos Jesus com seus amigos ao redor de uma mesa. Como bons judeus, eles se reúnem para celebrar a Páscoa Judaica. O rito é cheio de gestos, cantos, símbolos e alegria. Toda uma história que começou na casa de Abraão é ali celebrada. À mesa, ervas amargas lembram a escravidão. Mas o cordeiro pascal, o pão, o vinho, falam de fartura e da alegria de ser o povo escolhido por Javé.

Mas algo misterioso acontece naquela ceia. Jesus, em dado momento, apropria-se dos símbolos da Páscoa Judaica e dá a eles outro sentido, mais amplo, universal. Já não é mais apenas um povo, fechado em si mesmo, em suas tradições, que é chamado a sentar-se à mesa do Senhor. Jesus convida a passar a uma ‘nova e eterna aliança com todos os homens...’.

Jesus Parte o pão e revela que o seu corpo também será ‘partido’. O vinho, brinde à vida, antecipa o sangue que será derramado em gesto de amor pleno. E ao final, Ele convida a fazer de tudo isso memória viva da sua presença; “Eu estarei com vocês todos os dias...”.

Desde então, desde sempre, Ele está no meio de nós...

As horas seguintes confirmam cada palavra dita ao redor daquela mesa. Em Jesus, uma passagem também acontece. Ele passa pela escravidão feita de traição, prisão, julgamento, tortura e condenação. Na cruz, o sinal de uma derrota aparentemente total. Aquele que passou pela vida fazendo o bem é agora prisioneiro de um túmulo de morte.

Mas, no amanhecer do domingo, o dia do Senhor... a travessia se completa. Passando da escravidão da Morte para liberdade da Vida, Deus faz a nova Páscoa acontecer. A Ressurreição é a Páscoa de Jesus de Nazaré.

Mas essa é outra história, ou melhor, a continuação da história que vamos celebrar no Domingo de Páscoa...

 

Eduardo Machado

É professor, escritor, mora em Belo Horizonte-MG