O mais comum é agradecer o que nos foi dado. E não nos faltam motivos de gratidão. Há, é claro, imensas coisas que dependem do nosso esforço e engenho, coisas que fomos capazes de conquistar ao longo do tempo, contrariando mesmo o que seria previsível, ou que nos surgiram ao fim de um laborioso e solitário processo. Mas isso em nada apaga o essencial: as nossas vidas são um recetáculo do dom.
Por pura dádiva recebemos o bem mais precioso, a própria existência, e do mesmo modo gratuito fizemos e fazemos a experiência de que somos protegidos, cuidados, acolhidos e amados. Se tivéssemos de fazer a listagem daquilo que recebemos dos outros (e é pena que esse exercício não nos seja mais habitual), perceberíamos o que a poetisa Adília Lopes repete como sendo a sua verdade: «sou uma obra dos outros». Todos somos.
A nossa história começou antes de nós e persistirá depois. Somos o resultado de uma cadeia inumerável de encontros, de gestos, boas vontades, sementeiras, afagos, afetos. Colhemos inspiração e sentido de vidas que não são nossas, mas que se inclinam pacientemente para nós, iluminando-nos, fundando-nos na confiança. Esse movimento, sabemo-lo bem, não tem preço, nem se compra em parte alguma: só se efetiva através do dom.
Por isso é que quando ele falta a sua ausência indelével faz-se sentir a vida inteira. O seu lugar não consegue ser preenchido, mesmo se abunda uma poderosa indústria de ficções de todo o tipo com a inútil pretensão de ser oblívio e substituição para essa espécie de fala geológica que nos morde.
Hoje, porém, dei comigo a pensar também na importância do que não nos foi dado. E a provocação chegou-me por uma amiga que confidenciou: «Gosto de agradecer a Deus tudo o que Ele me dá, e é sempre tanto que nem tenho palavras para descrever. Sinto, contudo, que lhe tenho de agradecer igualmente o que Ele não me dá, as coisas que seriam boas e que eu não tive, o que até pedi e desejei muito, mas não encontrei. O fato de não me ter sido dado obrigou-me a descobrir forças que não sabia que tinha e, de certa maneira, permitiu-se ser eu».
Isto é tão verdadeiro. Mas exige uma transformação radical da nossa atitude interior. Tornar-se adulto por dentro não é propriamente um parto imediato ou indolor. No entanto, enquanto não agradecermos a Deus, à vida ou aos outros o que não nos deram, parece que a nossa prece permanece incompleta. Podemos facilmente continuar pela vida dentro a nutrir o ressentimento pelo que não nos foi dado, a compararmo-nos e a considerarmo-nos injustiçados, a prantear a dureza daquilo que em cada estação não corresponde ao que idealizamos.
Ou podemos olhar o que não nos foi dado como a oportunidade, ainda que misteriosa, ainda que ao inverso, para entabular um caminho de aprofundamento... e de ressurreição. Foi assim que numa das horas mais sombrias do século XX; desde o interior de um campo de concentração, a escritora Etty Hillesum conseguiu, por exemplo, protagonizar uma das mais admiráveis aventuras espirituais da contemporaneidade. No seu diário deixou escrito:
«A grandeza do ser humano, a sua verdadeira riqueza, não está naquilo que se vê, mas naquilo que traz no coração. A grandeza do homem não lhe advém do lugar que ocupa na sociedade, nem no papel que nela desempenha, nem do seu êxito social. Tudo isso pode ser-lhe tirado de um dia para o outro. Tudo isso pode desaparecer num nada de tempo. A grandeza do homem está naquilo que lhe resta precisamente quando tudo o que lhe dava algum brilho exterior, se apaga. E que lhe resta? Os seus recursos interiores e nada mais.»
Pe. José Tolentino Mendonça
(In Expresso, 18.4.2014)
Porque é que divinizamos artistas, desportistas, músicos, políticos, atores de cinema? Não sei bem explicar porquê. Teria que estudar alguma psicologia. Suponho que é uma questão de segurança: precisamos de nos agarrar a imagens de sucesso, precisamos de ter em quem depositar as nossas esperanças, alguém em quem projetar a nossa felicidade.
O problema é que colocamos as nossas esperanças em “cavalos errados“, ou seja: depositamos as nossas delicadas vidas em “cavalos” que não são os que verdadeiramente influenciam o nosso caminho. A divinização que façamos do Benfica, dos U2, do Obama ou do Brad Pitt, é como um balão de ar pronto a rebentar. Pior: divinizamos esses que nada têm a ver connosco e ignoramos outros que, esses sim, têm as nossas vidas nas suas mãos sem que nós o saibamos.
Um exemplo muito prosaico: nunca deixo de me impressionar quando olho para o meu Nokia 2630 de 66 gramas de peso. Fico a pensar: como é possível que esta caixinha me ponha em comunicação com outro aparelhozinho que está a não-sei-quantos quilômetros de distância? É um milagre da tecnologia! E a quem agradeço isso? Não sei. Um grupo de anônimos trabalhou centenas de horas para eu ter esta tecnologia à minha disposição. Apetecia mandar um cartãozinho a agradecer o trabalho que tiveram.
Mas o que é que isto tem a ver com o dia de Todos os Santos?
Tem tudo a ver. De todos os dias santos que celebramos ao longo do ano, o de Todos os Santos é o meu preferido. A razão é simples. Neste dia celebramos Todos os Santos. Não celebramos este ou aquele. Não celebramos um ou outro aspecto da vida da Igreja. Celebramos todas as pedras da Igreja. Celebramos os Benficas, os U2’s, os Obamas e os Brad Pitt’s da Igreja, mas celebramos sobretudo aqueles que ninguém conhece. Celebramos aqueles que ficaram na penumbra.
Neste dia celebramos os nossos santos pais, os nossos santos irmãos. Celebramos os nossos santos avós, os nossos santos amigos. Os nossos santos professores e colegas. Todos quantos tiveram uma santa paciência para nos aturar. Todos os que passaram por um santo sofrimento por causa de nós. Todos os que nos deram santas ferramentas para crescer. Todos os que nos ensinaram qualquer coisa sobre o santo caminho da felicidade.
Fazendo uns cálculos rápidos de cabeça, imagino que 99,99% dos santos morrem no anonimato mais silencioso. E, dos santos que tiveram influência direta nas nossas vidas é provável que 99,99% nunca tenham sido e nunca virão a ser canonizados. Por isso é tão bom celebrar a santidade no anonimato! Vivam Todos os Santos!
João Delicado
in: verparaalemdoolhar.blogspot.pt
Sophia de Mello Breyner naquele conto tão conhecido, «O retrato de Mônica», explica que a poesia é-nos dada uma vez e quando dizemos que não, ela afasta-se. O amor é-nos dado algumas vezes, e também se o recusamos ele distancia-se de nós. Mas a santidade é-nos dada todos os dias como possibilidade. E se a recusamos teremos de a recusar todos os dias da nossa vida, porque quotidianamente a santidade se avizinha de nós como possibilidade.
Contudo, fizemos da santidade uma coisa tão extraordinária, abstrata e inalcançável, que quase não ousamos falar dela. De certa forma, habituamo-nos a olhar para a experiência cristã como que acontecendo a duas velocidades: o caminho heroico dos santos e a frágil estrada que é aquela de todos os outros, e por maior razão a nossa. Ora esta conceção de santidade não pode estar mais longe daquilo que a tradição cristã propõe. O Concílio Vaticano II, por exemplo, deixa bem claro: a santidade é vocação mais inclusiva e comum. Mas é preciso entender de que falamos quando falamos de santidade.
Bastar-nos-ia certamente ler as bem-aventuranças. Jesus não declara que os bem-aventurados são os outros, os que não estão ali. Jesus olha para a multidão e começa a dizer: “bem-aventurados vós os pobres”, “bem-aventurados vós os aflitos”, “bem-aventurados vós os misericordiosos”. Que quer isto dizer? Que são, no fundo, as nossas pobrezas, fragilidades, aflições, mansidões, procuras e sedes que dão a substância da bem-aventurança, a matéria da santidade. É naquilo que somos e fazemos, no mapa vulgaríssimo de quanto buscamos, na humilde e mesmo monótona geografia que nos situa, na pequena história que dia a dia protagonizamos que podemos ligar a terra e o céu. Falar de santidade em chave cristã passou a ser isso: acreditar que a humanidade do homem se tornou morada do divino de Deus.
Conta-se que um dia, uma dona de casa quis também criar uma seita, pois não estava disposta a deixar-se ficar atrás dos outros, assistindo ao quotidiano espetáculo da sua proliferação. E decidiu então começar uma seita em que ela e a sua empregada, eram, digamos, os “gurus” e os profetas daquela nova bolha. E, a verdade, é que aquilo começou a ter uma certa importância, e era sempre ela e a empregada, a empregada e ela... Passados uns tempos, vieram os jornalistas entrevistá-la. Escolheram, naturalmente, falar com a dona de casa... e inquiriram: “A senhora está contente?...” – “muito, estou muito contente com a igreja que eu fundei, mas olhem que eu já estou a pensar noutra!”.
- “Já está a pensar noutra?”
- “Sim, acho que tem de haver uma seita em que seja só eu profeta”.
Dizer “santificado seja o Vosso nome” é viver no inconformismo em relação às experiências de Deus que são claramente egóticas e insuficientes. É ter coragem, ter audácia de dizer: “Deus sê Deus em mim. Ensina-me a ser discípulo, fiel à escuta, à sugestão do Espírito, à aprendizagem da Palavra, disponível para as suas implicações históricas. O Teu Nome, ó Deus, é um “não Nome”; é um desafio para me colocar cada dia à escuta do Teu Nome. Que eu não me tranque por dentro num confortável reservatório de certezas, mas olhe com frescura os caminhos, esperados e inesperados, que Tu me apontas...”.
Em Toledo, está escrito à entrada de um mosteiro do século XII: “Não há caminhos, há que caminhar”. Dizer “santificado seja o Vosso nome” é, assim, aceitar sermos peregrinos do Nome de Deus... é tomar para si a condição de Abraão, a condição de todo o povo de Deus que foi peregrino do nome e do rosto de Deus, a condição de Jesus que «não tinha onde reclinar a cabeça», construindo uma história de santidade, e nada mais.
«Sede santos, porque Eu, o vosso Deus, sou santo» (Lv 11,45). O escritor Léon Bloy dizia: «Só há uma infelicidade, que é a de não sermos santos». E, contudo, como o testemunha Sophia de Mello Breyner, a santidade é-nos dada, como possibilidade real, em cada dia: «a santidade é oferecida a cada pessoa de novo cada dia, e por isso aqueles que renunciam à santidade são obrigados a repetir a negação todos os dias». É como desafio a uma santidade vivida que também São Cipriano explica este segmento do Pater. Incita ele: «peçamos e imploramos para preservar naquilo que começamos a ser, uma vez santificados no batismo. E peçamos isto em cada dia, pois, de fato, em cada dia estamos necessitados de santificação…Peçamos para que permaneça em nós esta santificação».
A flor do mundo é a santidade. Essa forma de Deus presente em todos os tempos, em todas as latitudes, em todas as culturas. O que salva o mundo é a santidade: ela dá flexibilidade à dureza, torna uno o dividido, dá liberdade ao aprisionado, põe esperança nos corações abatidos, esconde o pão no regaço dos famintos, abraça-se à dor dos que choram e dança com outros a sua alegria. A santidade é um sulco invisível, mas torna tudo nítido em seu redor. A santidade é anônima e sem alarde. A santidade não é heroica: expressa-se no pequeno, no quotidiano, no usual. O pecado é a banalidade do mal. A santidade é a normalidade do bem. Como fica demonstrado neste poema de Maria de Lourdes Belchior:
«Hoje é dia de todos os santos: dos que têm auréola
e dos que não foram canonizados.
Dia de todos os santos: daqueles que viveram, serenos
e brandos, sem darem nas vistas e que no fim
dos tempos hão de seguir o Cordeiro.
Hoje é dia de todos os Santos: santos barbeiros e
santos cozinheiros, jogadores de football e porque
não? comerciantes, mercadores, caldeireiros e arrumadores (porque não arrumadoras? se até
é mais frequente que sejam elas a encaminhar o espectador?)
Ao longo dos séculos, no silêncio da noite e à
claridade do dia foram tuas testemunhas; disseram sim/sim e não/não; gastaram palavras,
poucas, em rodeios, divagações. Foram teus
imitadores e na transparência dos seus gestos a
Tua imagem se divisava. Empreendedores e bravos
ou tímidos e mansos, traziam-te no coração,
Olharam o mundo com amor e os
homens como irmãos.
Do chão que pisavam
rebentava a esperança de um futuro de justiça e de salvação
e o seu presente era já quase só amor.
Cortejo inumerável de homens e mulheres que Te
seguiram e contigo conviveram, de modo admirável:
com os que tinham fome partilharam o seu pão
olharam compadecidos as dores do
mundo e sofreram perseguição por causa da Justiça
Foram limpos de coração e por isso
dos seus olhos jorrou pureza e dos seus lábios
brotaram palavras de consolação.
Amaram-Te e amaram o mundo.
Cantaram os teus louvores e a beleza da Criação.
E choraram as dores dos que desesperam.
Tiveram gestos de indignação e palavras proféticas
que rasgavam horizontes límpidos.
Estes são os que seguem o Cordeiro
porque te conheceram e reconheceram e de ti receberam
o dom de anunciar ao mundo a justiça e a salvação»
Dizer “santificado seja o Vosso nome” é dizer a Deus: sê inteiro, não deixes que eu Te divida ou diminua, em função do meu egoísmo e dos meus humores... Sê como és, manifesta-Te em mim e na universalidade, manifesta-Te naquilo que é diferente e oposto a mim, naquilo que me contraria. Livra-me de ser um limite para o Teu amor. Que a Tua Santidade, ó Deus, seja uma estrela que caminha à nossa frente, a coluna de fogo que vai diante de nós, o assobio do pastor que nos serve de sinal… Na nossa humildade, somos a tenda onde Deus vai acampando no mundo, e cada dia vamos, num lugar diferente, num modo novo... Como escrevia Santo Agostinho: «A santificação do Nome de Deus é a nossa santificação». Os que creem não são gestores de uma empresa externa: são servidores e viajantes, nômades e enamorados peregrinos, leitores e ouvintes, adoradores…
José Tolentino Mendonça
In Pai-nosso que estais na terra, ed. Paulinas, 2013.
A cidadania brasileira está desafiada, mais uma vez, a viver o necessário discernimento eleitoral, para fazer escolhas qualificadas no próximo domingo. Esse exercício é de fundamental importância, pois serão definidos nomes a ocuparem os cargos eletivos, todos estratégicos para a condução do país. Não é fácil esse processo de discernimento. A primeira e importante consideração, necessariamente, é sobre o perfil e a vida de cada candidato. É difícil encontrar um nome que reúna todos os itens apontados como indispensáveis para governar e representar bem o poder que pertence ao povo; e que a ele deve ser devolvido na forma de serviços. Os eleitos precisam ser pessoas capazes de reconhecer e atender aos anseios da população, particularmente dos mais pobres. Diante dos critérios a serem observados, constata-se que processo de qualificada escolha de candidatos é laborioso, mas isso não pode produzir desânimo.
Nas eleições, o povo tem a chance de compor um time que, embora possa não alcançar o patamar da seleção sonhada, seja capaz de produzir avanços na superação urgente de graves problemas, como as desigualdades sociais. Para isso, é preciso contrabalançar elementos - trajetória, consistências pessoais, força de liderança, lastro de representatividade. Essas qualidades, e muitas outras, precisam ser observadas e identificadas nas pessoas que se submetem ao sufrágio das urnas. Eleger políticos com perfil marcado pela articulação dessas características é contribuir para a composição de um quadro, nos governos e parlamentos, com mais lucidez no trato, defesa e promoção de tudo que é público.
Vale ressaltar que mediocridades são um veneno terrível que enterra definitivamente as aspirações do povo. Elas corroem instâncias de grande importância política e social, transformando-as em palcos de interesses partidários e de grupos. A partir da presença de pessoas desqualificadas, governos e parlamentos tornam-se marcados por uma visão míope das urgências da sociedade, agravada pela incapacidade de analisar, escolher e agir com rapidez. Não se pode permitir que um mandato de quatro anos torne-se tempo para o eleito “ciscar de cá prá lá e de lá prá cá”, obrigando o gigante que é esta nação a permanecer adormecido. Bom seria contar com uma série de nomes cuja dificuldade de escolha residisse na excelência dos muitos perfis, todos sem senões, com os elementos adequados da vida pessoal, social e política. Infelizmente não é assim.
Não se crê que o ambiente político partidário vigente consiga produzir essas excelências cidadãs. Ao contrário, talvez muitas vezes seduza em direção inadequada aqueles que poderiam construir uma trajetória brilhante no mundo da política. Mas a sabedoria popular ensina que “não adianta chorar o leite derramado”. Providências significativas e transformadoras são sonhadas e buscadas, entre elas a urgência da reforma política, que deve contracenar com um processo educativo e de configuração social capaz de revitalizar a cidadania brasileira. Agora, na lista dos nomes a serem escolhidos, com uma isenção que localiza o discernimento no território da lucidez, é preciso escolher quem pode representar melhor o povo, sem se sucumbir ao “peso pesado”, e até perverso, do mundo da política.
Há quem preferiria que se apontassem os nomes, à moda do chamado “voto de cabresto”, algo totalmente obsoleto e prejudicial que não pode mais ser o vetor das eleições. Seu contraponto é o qualificado processo de discernimento. Ainda é tempo para vivê-lo, confrontando perfis, nomes, histórias e, não menos importante, o fôlego de candidatos para dar conta de sua missão. A meta dos eleitos não pode se resumir ao sucesso nas urnas. Definidos como representantes da população nos governos e parlamentos, eles precisam permanentemente buscar o diálogo, a proximidade com o povo, disposição para trabalhar com transparência e almejar sempre as conquistas sociais.
Não é possível, a modo de cartilha, listar todos os critérios que sirvam de parâmetro para a definição dos perfis ideais de candidatos. Neste período de preparação que precede a ida às urnas, é cidadania bem vivida guiar-se também por um razoável tempo de silêncio e confrontos pessoais para chegar ao nome. Discernimento eleitoral não é simples emoção, simpatia ou antipatia, cor partidária, mero conhecimento ou amizade pessoal. O atual momento exige muito mais esforço de cada pessoa. Todos precisam partilhar a certeza de que a situação social, o desenvolvimento integral e o tratamento lúcido da sociedade civil estão no que é poder de cada cidadão: o seu discernimento eleitoral.
Dom Walmor Oliveira de Azevedo
Arcebispo metropolitano de Belo Horizonte
(In: Opinião e notícias - 03.10.2014)
“Se você não mover os pés, não reconhecerá o ritmo da vida”
O peregrino é alguém que “entra” numa terra estranha, que se afasta dos apoios comuns da existência; é alguém livre, que “saboreia” cada passo em cada momento, que não se acomoda num determinado lugar, que está sempre na expetativa do novo, do diferente, do inesperado...
A estrada, são os caminhos do mundo... de Portugal, da Espanha, do Brasil... Mas é muito mais a senda de mistério e luz que o Senhor o faz seguir no decorrer de suas longas caminhadas.
Na estrada do peregrino há o despojamento, a pobreza, por vezes a fome e a sede, os caprichos das estações, a incerteza dos dias de amanhã. Há a liberdade do espírito, horizontes infinitos, desafios que despertam a criatividade, ousadia que ultrapassa o momento histórico...
Há o imprevisto, o acontecimento inesperado, que comanda o ritmo da marcha, as paradas, as estadias, as mudanças de rumo... Há o encontro com “fiéis e infiéis”, companheiros que se agregam, amigos que ajudam, inimigos que espreitam, pobres que compartilham o mesmo pão...
Finalmente, a estrada aproxima o peregrino, a cada instante, da meta ainda escondida, mas certa. Ao voltar-se para trás, ele se dá conta que o itinerário foi realmente maravilhoso, que a experiência o transformou, que está mais livre, mais autêntico, mais rejuvenescido...
Anchieta é o homem “peregrino”: vai contemplar a outra face da fronteira geográfica e cultural, até então inédita para ele e para todos; busca viver em profundidade esta “experiência de travessia”, até os limites extremos do despojamento e de tudo. Percorre, a pé e de barco, todo o litoral brasileiro. Seu caminho tinha de ser desbravado com criatividade, ousadia e destemor. “Tinha o coração maior que o mundo...”
Anchieta é o homem de “fronteira”; há nele uma força interior que o arranca da acomodação, o coloca em contínuo movimento e o transforma em cidadão do mundo.
Mais que um simples deslocar-se, trata-se de um modo de viver e de situar-se no mundo. Invadido por uma paixão que não lhe dá repouso, Anchieta está presente em tudo, sem extraviar-se nunca na confusão das coisas. Tudo lhe interessa e em tudo deixa o seu “toque”: literatura, educação, medicina, teatro, catequese, botânica... Sempre em marcha, sem encurtar os passos, o peregrino Anchieta avança como homem livre, sem deixar-se aprisionar por nada nem por ninguém, aberto aos acontecimentos, pronto a servir a Deus e seus pobres preferidos.
O “seguidor de Jesus” é, em sua essência, mudança, movimento, dinamismo, energia... pois Deus não nos deu um espírito de timidez, de medo, de fuga, de acomodação... mas de audácia, de criatividade, de luta, de participação.... A “fidelidade criativa” no mundo de hoje nos impulsiona a “inventar” constantemente, a “ousar” sem medo, a “deslocar-nos” sem parar, a “sair” de nossos esquemas fechados, mentalidades ultrapassadas, formalismos frios, modos de agir arcaicos...
Fidelidade criativa significa uma “leitura” atenta dos sinais dos tempos e abertura dócil a uma realidade em contínua mudança que define o campo de nossa criatividade. É a ousadia, motivada e sustentada pelo amor de Deus, mas também pelo zelo apostólico e por uma sensibilidade para perceber as novas “necessidades” do nosso tempo.
Para isso é importante reconhecer o momento atual, espreitar possibilidades de mudança... que os horizontes sejam ampliados, que a imaginação seja desempoeirada, que os sentidos sejam ativados, que se renovem os tecidos da alma e sejam removidos os véus do espírito... para que avancemos, como Anchieta, em direção às novas fronteiras do espaço sem limites, que nos espera aberto e acolhedor.
Isto consiste em colocar-nos nos “passos” de Deus, com suficiente visão da realidade para ir adiante, e com bastante disponibilidade para mudar de caminho quando o sopro do Espírito assim nos sugerir.
Nas nossas vidas acontece algo de verdadeiro e belo quando nos dispomos a viver em “estado de êxodo”: existem ainda céus por explorar, aventuras por empreender, experiências por aceitar, ideias por experimentar... Ainda existe uma “terra desconhecida” que nos desafia, que suscita curiosidade, nos põe a caminho...
Pe. Adroaldo Palaoro sj
Diretor do Centro de Espiritualidade Inaciana – CEI
Observação: Natural de Tenerife, nas Ilhas de Canárias, na Espanha, Anchieta nasceu no dia 19 de março de 1534 e chegou ao Brasil em 1553. Foi responsável pela criação do colégio de Piratininga no dia 25 de janeiro de 1554, que deu origem à cidade de São Paulo.
No decorrer de sua vida, o santo passou por lugares como São Paulo, Espírito Santo e Bahia propagando os ensinamentos do Evangelho. Faleceu na cidade de Reritiba (atual Anchieta, no Estado do Espírito Santo), em 9 de junho de 1597.
Anchieta é um modelo de catequista e evangelizador, pois fez uma catequese levando em conta a cultura das pessoas. Escreveu teatro, poemas, que eram usados para transmitir a fé aos habitantes desse país. Foi canonizado pelo Papa Francisco em 03 de abril de 2014.
Foi declarado em setembro de 2014, Patrono dos catequistas do Brasil pela Congregação para o culto Divino e a Disciplina dos sacramentos da Santa Sé.
A propósito de uma eleição presidencial, como a que teremos no próximo mês, não seria de se esperar a proliferação de debates, a contraposição de ideias, o exame animado das propostas apresentadas, o teste dos programas partidários junto à situação que o País atravessa? Haveria ocasião mais propícia para a controvérsia e o posicionamento? Não estaremos cada um de nós, e o Brasil como um todo, concernidos pelo resultado do pleito?
Se as coisas são assim, por que assistimos, quase sempre, a uma mera troca de acusações, à boataria generalizada, à veiculação de um ódio que parece desconhecer qualquer limite? Os partidos não são distintos, não é diverso o que propõem, a singularidade de sua filiação ideológica não é marcante? Então porque o debate é tão decepcionante? São, certamente, muitas as razões, arrisco, entretanto, a hipótese de parte da causa se deve ao crescente empobrecimento da discussão de ideias. Desconfiamos das ideias, da sua capacidade de decifrar a realidade, preferimos o calor de nossa opinião. Ideias constituem o lugar onde, longe da nossa particularidade, encontramos as outras pessoas. Ideias pertencem ao espaço público, lugar da tolerância trabalhosa e da disposição de cotejarmos junto aos outros o que defendemos. Privados de ideias, esquecidos de que apenas somos juntos uns aos outros – animais políticos – só nos restará, como reação ao esvaziamento, esbravejar o nosso ódio. O que é uma tolice, porque as ideias seguirão o seu curso cheio de conseqüências.
Para pensar:
“Narciso acha feio o que não é espelho” (Caetano Veloso)
Ricardo Fenati
Filósofo e membro da equipe do Centro Loyola de BH.
Meu Ipê começou a florir. Ele esperava pela chuva, certamente. Desabrochou seu amarelo ouro pra encantar a vida.
Tenho um Ipê no meu quintal. Herança de meu pai, que adorava árvores que florescem. É dele também outra herança: o flamboyant!
Eu adotei o Ipê do papai. E passei a observá-lo com os olhos do coração e da sensibilidade. Ah! Quanta coisa a aprender com a beleza que a natureza nos oferece. Oferecimento gratuito...silencioso... e ao mesmo tempo gritante.
Meu Ipê não é tão majestoso quantos outros que olhei. Tem um porte mediano, simples, porém é esguio, vaidoso. Sabe que é observado por olhos curiosos e ávidos pelos detalhes. Caprichosamente ele se deixa observar, como que querendo dizer: “Põe seu olhar em mim e veja o que lhe reservo”.
Mais animado ainda ficou meu olhar. Observei-o atentamente e fui captando, a cada dia, as mudanças que meu Ipê se permitia. E, quanta boa surpresa tem acontecido.
É mágico e belo o que acontece. Como um ritual, o Ipê desenha sua trajetória de transformação. Como a ‘sabedoria bíblica’, o Ipê brinca diante da presença de Deus e de todos nós, homens e mulheres, enfeitando nossa existência. Longo tempo, o Ipê é geometria de galhos entrelaçados. Aos poucos, os desenhos geométricos, se enchem de folhas, vocacionadas a cair para tornarem-se tapete aos pés descalços. As folhas caem, mas não se inutilizam. Tornam-se passarela para os passos. Quilômetros deles!
O desejo das folhas é darem lugar ao amarelo ouro das flores! Elas se abdicam dos galhos do Ipê e da altura, para que o perfume, a cor e felicidade das flores, se tornem espaço de encantamento. As folhas têm seu encanto, claro. Mas elas duram o tempo de dar seu lugar a outras possibilidades.
As flores vêem tocar outra sinfonia, diferente da sinfonia das folhas. Flores...flores...tocam a sinfonia da liberdade, da ausência de fardos, da alegria, do lúdico.
O Ipê, com sua pedagogia e espiritualidade, vem ensinando-me a beleza do “transformar-me”. Que delicia saber-me com essa perspectiva: transformação é fruto da persistência que busca novas metas e novas realizações.
Posso realizar-me como folha, mas a realização da flor é a ousadia. A flor do meu Ipê é ousada, pois curta é sua existência. Ela é o avanço da folha e a canção da vida! É a razão de ser da árvore, e o colorido dos jardins. É a brincadeira da árvore e a felicidade das folhas.
Minha vida tem seu momento de folha: preenche o galho seco do Ipê, dá-lhe abrigo ao frio e ao calor. Cai para a possibilidade da flor. Eu posso preencher vazios existenciais dentro de mim, alimentar por um tempo a solidão da minha alma e... sair sorrateiramente para que a inteireza da beleza resplandeça. Vazios preenchidos, solidão acompanhada. Outro rito tem seu inicio: o rito do encanto da cor da flor, do cheiro e da alegria! Um rito não anula outro. Complementa-o. Dá-lhe significado. O rito do Ipê em flor é pura oração. É conversa comigo mesma. É silêncio que grita.
Adoro os ritos. Especialmente a mudança deles e sua complementaridade! Ritos organizam e enfeitam a vida! Contam experiências vividas de relacionamentos, de amor, de encontros e saudades. De esperança e sonhos.
Minha vida quer ser liturgia a cada instante alimentada pela espiritualidade de meu Ipê. Seqüencia de ritos: árvore, galhos entrelaçados, folhas, flores. Puro sentimento, sinais e gestos. O que é real-meu momento e o que eu espero-minha parusia!
Rita de Cássia Rezende
Coordenadora da Comissão para Animação Bíblico-Catequética de Pouso Alegre-MG
A dada altura percebemos que o mais importante não é saber se a vida é bela ou trágica, se, feitas as contas, ela não passa de uma paixão irrisória ou se a cada momento se revela uma empresa sublime. Certamente está-nos reservada a possibilidade de a tornar em cada um desses modos, só distantes e contraditórios na aparência.
A mistura de verdade e sofrimento, de pura alegria e cansaço, de amor e solidão que no seu fundo misterioso a vida é, há de aparecer-nos nas suas diversas faces. Se as soubermos acolher, com a força interior que pudermos, essas representarão para nós o privilégio de outros tantos caminhos. Mas o mais importante nem é isso, aprendemos depois. Importante mesmo é saber, com uma daquelas certezas que brotam inegociáveis do fundo da própria alma, se estamos dispostos a amar a vida como esta se apresenta.
A dada altura compreendemos que falar sobre o ar, como faz o poeta Tonino Guerra, não tem de ser uma deriva, mas um chamamento à construção concreta que a vida é, confirmada (ou não) pelo nosso sim: «O ar é esta coisa ligeira/ que te gira em torno à cabeça/ e torna-se mais clara/ quando ris». Ou que quando Simone Weil repete que «a atenção é uma prece», ela mais não faz do que mobilizar-nos para a aliança com o agora, porque se não formos prudentes e generosos para manter os olhos maximamente abertos sobre o presente, que ciência poderá o futuro constituir para nós?
O viver tem esta simplicidade, que precisamos de redescobrir, despojando-nos do muito que nos atravanca, relançando-nos no seu obstinado fluxo. Estamos muitas vezes alienados da vida, separados dela, por uma muralha de discursos, de angústias, de confusas esperanças. Precisamos de perfurar esse muro até ao fim.
É necessário decidir, portanto, entre o amor ilusório à vida, que nos faz adiá-la perenemente, e o amor real, mesmo que ferido, com que a assumimos. Entre amar a vida hipoteticamente pelo que dela se espera ou amá-la incondicionalmente pelo que ela é, muitas vezes em completa impotência, em pura perda, em irresolúvel carência. Condicionar o júbilo pela vida a uma felicidade sonhada é já renunciar a ele, porque a vida é decepcionante (não temamos a palavra).
Com aquela profunda lucidez espiritual que por vezes só os homens frívolos atingem, Bernard Shaw dizia que na existência há duas catástrofes: a primeira, quando não vemos os nossos desejos realizarem-se de forma alguma; a segunda, quando se realizam completamente. Há um trabalho a fazer para passar do apego narcisista a uma idealização da vida, à hospitalidade da vida como ela nos assoma, sem mentira e sem ilusão, o que requer de nós um amor muito mais rico e difícil. Esse que é, em grande medida, um trabalho de luto, um caminho de depuração, sem renunciar à complexidade da própria existência, mas aceitando que não se pode demonstrá-la inteiramente.
A vida é o que permanece, apesar de tudo: a vida embaciada, minúscula, imprecisa e preciosa como nenhuma outra coisa. A sabedoria é a vida mesma: o real do viver, a existência não como trégua, mas como pacto, conhecido e aceite na sua fascinante e dolorosa totalidade.
Não se trata apenas de viver o instante, tarefa inútil, pois a vida é duração. Aquilo que nos é dado dura, e nós dentro dele, com ele, por ele. Não é a flor do instante que nos perfuma, mas o presente eterno do que dura e passa, do que dura e não passa.
E quando é que chega a hora da felicidade?, perguntamo-nos. Chega nesses momentos de graça em que não esperamos nada. Como ensina o magnífico dito de Angelus Silesius, o místico alemão do século XVII: «A rosa é sem porquê, floresce por florescer/ Não se preocupa consigo, não pretende nada ser vista».
José Tolentino Mendonça
padre e poeta português
A evangelização, se pretende a transmissão da fé, tem de ser muito pessoal e muito transmissível. Num mundo global de incerteza, ambiguidade e imprevisibilidade, de ansiedade e distúrbio, de comunicação massiva e hiperescala nas ofertas de solução, a maioria das pessoas vive entrincheirada em mecanismos de defesa, atraída por muitas verdades provisórias e sem capacidade para a leitura profunda das realidades. Neste contexto, a evangelização deve assumir a atitude de proximidade e dedicação da «pesca à linha», legível a partir da posição de cada um, ponto de partida para uma proposta de fé aceitável. E como as pessoas são continuamente sujeitas a grande número de «primeiro anúncio», a proposta cristã só se pode sedimentar com o testemunho coerente dessa coisa complexa, morosa e difícil que é ser-se um cristão.
Adverso às expectativas humanas dominantes dos prazeres imediatos e dos poderes mal distribuídos, o cristianismo, não desejando apoderar-se da linguagem da publicidade e do consumo religioso, progride nas consciências vacilantes pela convicção e pela alegria balsâmica derramada sobre os sofrimentos que resultam da perda endêmica do ideal e da esperança.
Essa capacidade de testemunho necessita de uma âncora forte, já que os cristãos partilham a carne dolorida de todos e os efeitos da ampla democratização da falibilidade das soluções modernas. Tal âncora é, inequivocamente, a família, cuja erosão é a mais ameaçadora derrota do cristianismo. Não é possível fazer uma iniciação cristã sem a família ou contra a família, e quando a família natural não é possível, é sempre necessário encontrar uma outra. A recuperação da família e a evangelização em família não terão um caminho fácil, já que uma Igreja excessivamente clericalizada perdeu, para o medo, a culpabilização e o romantismo, a noção exata do que a família é e de como esta deve ser tratada na sua unidade e multiplicidade de relações internas, pedra angular da classe média, apanágio da estabilidade e da transmissão de valores, agora em violenta transformação por obra da austeridade e das várias crises sociais. Mas por alguma razão Jesus entregou os apóstolos a Maria.
Nas famílias, há que contar com os desafios que são colocados à sua autoridade educativa, a mobilidade social que as mães estão a alcançar, a importância da felicidade destas e da normatividade vigilante que deve vir da figura do pai, quando os jovens casais não têm ninguém com quem aprender a ser educadores e de como preservar os indispensáveis laços de união. Mas as comunidades de fé podem ser a família alargada que as famílias, hoje, não têm: um espaço que acolhe, que aceita, que ensina, que acompanha, que facilita, que celebra. Um espaço onde a pessoa é relevante e, por isso, pode ser ajudada a responsabilizar-se pelo seu percurso, pelo dos outros, pelo crescimento de uma sociedade fundada na justiça e na fraternidade, aprendidas na experiência do viver em comum cristão, à maneira, atualizada, das primeiras comunidades.
Também há que considerar a educação formal e a produção do conhecimento: a Igreja tem um passado de excelência educativa e respondeu às crises históricas mais rebeldes com inteligência, com meios e com constância na procura da verdade. É indispensável que se entregue dedicadamente a este caminho de salvação da humanidade quando a pessoa parece condenada aos rudimentos da informação que a habilitam para o trabalho e numa época em que a investigação científica é manipulada pelos interesses comerciais e políticos mais espúrios.
Finalmente, a evangelização, para ter futuro, deve ser mais equilibradamente feminina: mais comunicativa, mais acessível, mais próxima, mais doméstica, mais interessada, mais realista, mais acolhedora, mais dedicada, mais paciente e mais persistente. É necessário abraçar a fé, comprazer-se com a sua beleza, alimentá-la colherada a colherada, vitaminá-la com sumo, curar-lhe as feridas, abrigá-la das ventanias, acreditar que tem potencial para crescer. Tal como fazem as Mães: gratuitamente, arriscando, errando e aprendendo umas com as outras.
Cristina Sá Carvalho
Psicóloga, responsável pelo Departamento de Formação do Secretariado Nacional de Educação Cristã de Portugal.
Falai de Deus com a clareza da verdade
e da certeza: com um poder
de corpo e alma que não possa ninguém, à passagem vossa, não O entender
Falai de Deus brandamente,
que o mundo se pôs dolente, tão sem leis
Falai de Deus com doçura,
que é difícil ser criatura: bem o sabeis.
Falai de Deus de tal modo
que por Ele o mundo todo tenha amor
à vida e à morte, e, de vê-Lo,
O escolha como modelo superior.
Com voz, pensamentos e atos representai tão exatos os reinos seus
que todos vão livremente para esse encontro excelente.
Falai de Deus.
Cecília Meireles
O processo catequético empreendido no Brasil e em todo o continente latino americano desde o início do século passado, possui características bastante peculiares no tocante à metodologia e caminhos percorridos ao longo do processo.
A catequese é o lugar da experiência de fé e amor, vividos por todos os envolvidos nessa “trama” de fios de seda, tão bem desenhados e delicados, entrelaçados pela troca de desejos, conhecimentos, histórias de vida, caminhos que conduzem ao amadurecimento e educação da fé. Fé que é dom e adesão a Jesus Cristo!
Catequizar é justamente aprofundar essa adesão, iluminando a pessoa de Jesus Cristo, seus gestos, suas palavras, seu modo como acolhia as pessoas e como evangelizava seus discípulos. A pedagogia de Jesus é a inspiração para o processo de educação da fé; e voltar o olhar para a caminhada catequética do nosso continente é importante para se perceber os desejos de retorno à fonte inspiradora- Cristo Jesus! Quantos desafios enfrentados e também quantas oportunidades de novas escolhas que possibilitaram a retomada do Método de Jesus.
O que muito nos impressiona em Jesus é sua fidelidade à missão que recebera do Pai. Veio ao mundo para fazer a vontade do Pai e, mesmo diante da crise de fé de alguns discípulos, mesmo vendo que muitos deixavam de segui-lo, Jesus permanece firme e desafia seus Apóstolos: “vocês também querem ir embora?” ( Jo 6, 67) Não se impressiona com a falta de fé, não se impressiona com o escândalo que seu ensinamento promove no meio do grupo. Nem mesmo suaviza seu ensinamento aos Apóstolos e aos discípulos que ficaram; ao contrário, confirma que ele é o Pão vivo descido do céu e que sua carne e seu sangue são realmente comida e bebida. Se isso escandalizava, dizia Jesus, o que dizer do grande escândalo da Cruz, o caminho necessário para ele subir até o Pai? (Jo 6, 62). Diferentemente de nós, que a todo o momento medimos nossas audiências para avaliar se estamos ou não agradando, Jesus mede a presença dos discípulos pela fidelidade ao que ensina. Aqueles que ficaram, muito possivelmente, não entenderam muita coisa, mas creram e por isso continuaram com Jesus.
Jesus é o paradigma de catequista que escolhe, chama, seduz, caminha, ensina e envia à missão. O Mestre diferenciado que educa para um novo modo de amar: “Não há maior amor que dar a vida pelo irmão”. É o mestre que “aponta saída e cura as feridas”. Catequizar ao modo do Mestre Jesus é despertar no catequizando o olhar para as pegadas de Deus nos fatos, na Sagrada Escritura, na pessoa humana e na liberdade. Seguindo os passos d´Ele, o catequista é aquele que ajuda seus catequizandos a lidar com as dificuldades da vida, que caminha junto e faz junto com os seus interlocutores, numa sincera e verdadeira troca de experiência.
O Evangelho de João conta-nos as características próprias da vocação dos primeiros discípulos e como eles iniciam seu itinerário de fé descobrindo o mistério de Jesus e gradualmente vão conhecendo e aderindo a Ele. A iniciativa parte do mestre que interpela e chama a viver a fé: “Vinde e Vede!”( Jo 1,39) Jesus deseja que o sigamos e que sejamos seus discípulos.
Nesse sentido, o texto de João é modelo de como a vida de Jesus marcou os primeiros discípulos e as comunidades formadas a partir dessa experiência. A identidade dessas comunidades foi se firmando pelo desejo de propagar a Mensagem de Jesus de Nazaré e pela educação da fé ensinada por Ele.
A catequese tem essa tarefa: o agir e prática de educar a fé e a Igreja zela com especial cuidado por ela. A Igreja orienta a volta à fonte que é a Palavra de Deus em Jesus Cristo, à sensibilidade à dimensão humana, à experiência pessoal, comunitária e existencial ao serviço, com um novo jeito de ser Igreja: a catequese tem a missão de aprofundar a vivência da comunidade, suscitando e educando discípulos missionários para o seguimento autêntico de Jesus Cristo.
No contexto histórico que o ser humano vive, educa-se, cria culturas e, expressa o amor a Deus na experiência da Mensagem de Jesus. A V Conferência Episcopal Latino americana e caribenha de Aparecida refletiu-se sobre o espírito renovador da Igreja e que ela encontra-se em momento de recepção pelas Igrejas particulares. Seu “agir” depende da abertura à ação do Espírito aos “novos sinais dos tempos”, e uma resposta corajosa e ativa à tarefa de educação da fé.
Que todos nós catequistas percebamos que a catequese deve unir serviço/ministério e prazer nas pegadas de Jesus de Nazaré. Assim, alimentaremos sempre a mística de nossa vocação através da alegria dessa missão e ser sinal visível da presença de Deus na vida da comunidade e para todas as pessoas.
Rita de Cássia Rezende
Coordenadora da Comissão para Animação Bíblico-Catequética da Arquidiocese de Pouso Alegre-MG
Co-autora do Livro "O processo de formação da identidade cristã" - Ed. Paulus
Caminhar... A vida é seguir em frente, haja o que houver, um passo após o outro, como o rio que flui sem medo, assim é o fluir da vida, é o cantar do rio. Ela segue e não nos pede licença. Vez ou outra pensamos ser donos da vida, ledo engano... A vida é algo muito mais grandioso do que nosso pobre pensar. Nós é que somos seus, seres vivos, mergulhados no mistério infinito da força dinâmica que a tudo transforma.
Caminhar é uma palavra própria do meu tempo, mas não revela o que tento descobrir ou somente dizer. No silêncio da alma, lá onde o pensamento cala e a simplicidade existe, sou habitada por diversas palavras. Elas brincam, são crianças a bailar com leveza sob o ritmo da música do rio da vida. Da mesma forma que surgem imagens no contemplar das nuvens, as palavras surgem em mim quando contemplo o fluir da água que passa entre meus dedos sem resistências. Há palavras que moram na gente, essas procedem de Deus, nos devolvem o sentido da vida e apenas estão esquecidas no emaranhado que se forma em nosso consciente. “As palavras que vos disse são espírito e vida” (Jo 6,63). Para ouvi-las é necessário encontrar o silêncio da alma.
Eis que brota a palavra: peregrinar... Com ela surgem imagens, desejos que viajam no tempo, rompem as barreiras do espaço e me revelam sentimentos que tento compreender, como essa solidão que cisma de me acompanhar, esse vazio que me preenche de mistérios feitos de acontecimentos, sinais, ausências, presença e tanta carência...
Colho a palavra com o mesmo cuidado de um jardineiro que colhe uma rosa. Peregrinar... tento sentir seu perfume que acorda certas emoções que me desinstalam, levam-me a um outro lugar, meu lugar... Mas o pensamento é estranho, interpela o sentir buscando dar significados. Penso na figura de um peregrino: ser que caminha em busca de algo. Surge Jesus, o peregrino de todos os tempos em busca de nossos corações para nos libertar da falta de sentido, para nos dar a vida plena, a alegria que ninguém rouba... “Mas vos verei de novo e vosso coração se alegrará e ninguém vos tirará a vossa alegria” (Jo 16,22). Nem sempre ele soube o que iria acontecer. “Quanto à data e à hora, ninguém sabe, nem os anjos no céu nem o Filho, somente o Pai” (Mc 13,32). Cada passo revelava o caminho a seguir, cada pessoa expandia mais sua missão, como no encontro com a mulher estrangeira que lhe pede para curar a filha e ele percebe que não veio apenas para os judeus, mas para toda a humanidade (Mt 15, 21-28). Ah... quanto me identifiquei com Ele em suas andanças! Também uma vez ouvi um chamado, fiz uma experiência profunda de me sentir amada por Deus, isso mudou o itinerário de toda minha vida. O chamado passou a ser mais importante que o caminho. O caminho que a razão tinha traçado com detalhes, em companhia de meus pensamentos, tão dedicados, fora completamente abandonado. Iniciei minha peregrinação.
Deparo-me com a trajetória feita até aqui. Na incerteza para onde o chamado me apontava, peregrinei repleta de dúvidas. Lembrei-me de uma música do Renato Russo que dizia: “A dúvida é o preço da pureza e é inútil ter certeza.” Sim, é da incerteza que se vive a fé! Afinal, “a fé é a garantia dos bens que se esperam, a prova das realidades que não se vêem” ( Hb 11,1). E peregrinei pelas estradas da vida na companhia da minha fé. No cansaço dos passos a lembrança da experiência do chamado me sustentou. A certeza de estar no caminho certo surgia no encontro com as pessoas e daquilo que conseguíamos edificar. Iniciei um caminho na vida real abandonando ilusões, como a de ser dona da própria vida e ser independente. O chamado fez de mim uma peregrina, nasci de novo, com olhos curiosos, dependente da vida do mundo inteiro, pois me senti parte da vida gerada por Deus. O chamado faz-me recordar quem realmente sou: peregrina em busca de Deus, minha origem, meu fim.
As experiências mais doces que fiz da presença de Deus foi através do amor dos meus pais, do meu marido e do amor que nasceu em mim quando Deus me fez mãe. No meu cotidiano, o Senhor teve mais trabalho para que eu o reconhecesse. Hoje vejo que nessa trajetória não existem fronteiras, ser peregrino é abrir-se ao inesperado e ir encontrando o sentido que dá vida em cada ser sagrado. Deus se revela, se dá a conhecer em cada olhar. Ao me configurar peregrina abandonei mais que ilusões, tive que deixar as malas do passado que carregava pensando ter nelas a segurança e o controle que o mundo tanto valoriza. O peregrino aceita não saber. Que segurança e controle podemos ter no mundo? Com nossas preocupações não podemos acrescentar um só segundo à nossa existência, tão efêmera (Lc12, 25). Só em Deus podemos confiar e entregar de fato nossa vida.
Nas estações da natureza vemos as mudanças... Folhas caem, flores desabrocham, as chuvas vem, o sol devolve a cor. Os olhos de peregrina revelam a constante santificação da disposição de encontrar o Senhor a todo instante. Vivemos nossas mortes cotidianas, banhadas em lágrimas e tristeza que trazem uma incomparável beleza ao caminho que se trilha, por ser verdadeiro. Vivemos nossa pequenez diante das separações daqueles que amamos, na esperança de que daqui a pouco os veremos novamente. A esperança nos devolve o sorriso da fé.
De qualquer forma, prefiro estar nesse mundo a peregrinar do que simplesmente a caminhar. Embora pareça tão similar, cada palavra é carregada de seu próprio mistério. Em mim peregrinar traduz melhor minha forma de existir, me ajuda a acolher esse sentimento de orfandade que ora me ocupa os olhos com lágrimas de dor. Ajuda-me a lembrar que devo continuar a dar passos na certeza de que não caminho sozinha, embora em muitos momentos a solidão me acompanhe, a presença de Deus se revela em tudo que me cerca. A exemplo daqueles que se foram e que deixaram uma história de vida entumecida de um sentido pleno de amor incondicional, sigo peregrinando nesse mundo em busca de Deus...
Lilian Carvalho
Catequista em BH.
Ao falar de uma espiritualidade inscrita no quotidiano, o frei Carlos Maria Antunes, no livro "Só o pobre se faz pão", diz que uma das nossas dificuldades é a dispersão. O nosso coração está disperso, dividido por muitas coisas. Somos objeto de múltiplos apelos e necessidades. Um rebuliço sem fim atravessa o nosso interior. E com ele também um cansaço e uma angústia que vamos tentando compensar de várias formas.
O cansaço e a angústia são um terreno fértil para a multiplicação das falsas necessidades e falsos desejos. A dispersão provoca mais dispersão.
Neste quadro, a nossa unidade e vigilância interior, que são fundamentais no nosso interior, tornam-se frágeis. Vamo-nos tornando mais vulneráveis, e acabamos, muitas vezes, num movimento de defesa, por endurecer o nosso coração, fazendo de conta que não vejo, que não ouço. Mas esta atitude também não nos dá a verdadeira unidade de coração.
Precisamos de aprender uma arte do acolhimento da nossa própria vida. Acolhermo-nos, acolher aquilo que somos, acolher o que nos chega como uma oportunidade, mas partindo de um centro, de um núcleo vital que em nós está desperto.
O padre Carlos cita o trecho de um poeta persa, Rumi, que diz o seguinte: «O ser humano é uma casa de hóspedes; cada manhã, um novo recém-chegado, uma alegria, uma tristeza, uma maldade, que vem como um visitante inesperado. Diz-lhes que são bem-vindos, e recebe-os a todos, ainda se são um coro de penúrias que esvaziam a tua casa violentamente. Trata cada hóspede com todas as honras; ele pode estar a criar-te um espaço para uma nova delícia. O pensamento obscuro, a vergonha, a malícia, recebe-os à porta sorrindo e convida-os a entrar. Agradece a quem quer que venha, porque cada um foi enviado como um guia do Além».
Esta arte do acolhimento da vida, de saber abraçar tudo a partir de uma unidade interior, pede de nós a pobreza espiritual, a pobreza de coração.
Quando da eleição do papa Jorge Mario Bergoglio - todos nós já tivemos a oportunidade de ouvir esta história -, o cardeal Claudio Hummes, arcebispo de S. Paulo, que estava ao lado dele, abraçou-o e disse-lhe: «Não te esqueças dos pobres». Estas palavras ficaram a fazer-lhe caminho no coração, e quando se tratou de escolher o nome, ele optou por Francisco, lembrando-se de Francisco de Assis e da sua espiritualidade universal.
Falando aos jornalistas nos primeiros dias, o papa deixou os papéis e teve um suspiro, a expressão de um desejo, e disse: Quem me dera que a Igreja se tornasse pobre e fosse uma Igreja para os pobres. Uma Igreja que se torna pobre e faz do acolhimento dos pobres a sua razão de ser, a sua missão.
A pobreza espiritual aparece-nos como um conselho evangélico, isto é, como modo de vida, como uma opção que cada cristão é chamado a fazer para se configurar a Cristo, para se tornar mais próximo de Cristo. Há mais dois conselhos evangélicos: a obediência, ou seja, a capacidade de escutar e permanecer fiel à palavra que se recebe; o outro é a pureza de coração, e aí a castidade é muito mais do que uma privação, tornando-se um modo positivo de estar na vida.
Cada um destes conselhos é vivido na Igreja por todos os batizados, embora de modos diferentes. Todos somos chamados à configuração com Cristo, que é pobre, puro de coração e obediente ao Pai.
Como é que podemos concretizar a opção por uma vida pobre, por uma pobreza espiritual? A vida espiritual não é uma técnica, não é uma habilidade, não é um conjunto de ritos. A vida espiritual é um modo de ser. E quando se fala de adotar uma atitude espiritual de pobreza no coração - S. Francisco chamava-lhe a Irmã Pobreza, ou Santa Pobreza -, temos, antes de tudo, de exercitar o nosso ser.
«Numa disciplina constante procuro a lei da liberdade medindo o equilíbrio dos meus passos. Mas as coisas têm máscaras e véus com que me enganam, e, quando eu um momento espantada me esqueço, a força perversa das coisas ata-me os braços e atira-me, prisioneira de ninguém mas só de laços, para o vazio horror das voltas do caminho» (Sophia de Mello Breyner).
Há um momento da nossa vida em que deixamos de saber de nós próprios. Parece que já não há um fundo de ser a marcar aquilo que somos e que nos estrutura, uma decisão fundamental, mas, pelo contrário, somos a dispersão.
A nossa vida não é só um conjunto de inevitabilidades: ela tem de ser uma opção fundamental, isto é, tem de ser algo que eu decido, que eu quero, um caminho que escolho, em diálogo com o Espírito. A minha vida tem de ter fundamento, para não ser uma deriva, um fragmento flutuante no oceano convulso. Precisamos de um centro.
E para ter um centro, precisamos de momentos de recentramento para ouvirmos a nossa voz interior, para nos escutarmos mais profundamente, para perguntarmos: «O que é que eu vivo? O que me enlaça? O que procuro? O que sou?». Estes momentos de recentramento são revitalizadores.
A Quaresma não são 40 dias para tentarmos fazer rituais mais ou menos arcaicos. A Quaresma é um tempo de revitalização, um tempo para nos colocarmos as perguntas-chave que vão favorecer o renascimento do que somos. E Deus sabe como cada um de nós precisa de renascer. Por isso este é o tempo de voltar a si.
Pe. José Tolentino Mendonça
Escritor e poeta de Portugal
A Campanha da Fraternidade de 2014, com o tema “Fraternidade e Tráfico Humano” e o lema, “É para a liberdade que Cristo nos libertou”, coloca o dedo numa chaga aberta na sociedade.
No dia 14/09, a CAEC, Comissão Arquidiocesana das Escolas Católicas (BH), da qual faço parte, promoveu um seminário sobre o assunto, com a participação de inúmeros educadores. A Irmã Maria Helena Lima, da PUC-Minas, fez a apresentação do tema e o Deputado Nilmário Miranda descreveu o cenário a partir da visão da Frente Parlamentar em defesa dos Direitos Humanos.
No intervalo entre uma fala e outra, aconteceu uma intervenção da contadora de histórias Alessandra Nogueira. Com graça e leveza, ela apresentou uma visão lúdica sobre tema tão árido e pesado, contando e cantando a história do “homem do saco”.
Histórias infantis costumam ter muitas versões e variações sobre o mesmo tema. Com “o homem do saco” não é diferente. Na versão de Alessandra, encontro o mesmo refrão da história que ouvi, na minha infância: “canta, canta meu surrão, que eu te dou um beliscão!”.
“Surrão” era o saco onde o homem colocava crianças desobedientes que eram levadas (sequestro) de suas casas. O homem percorria aldeias e cidades, recolhendo dinheiro das pessoas que pagavam para ver “o surrão cantar” (tráfico humano, exploração de trabalho infantil e escravidão).
Na versão da minha família, o homem do saco chamava-se “Tibum Guererê”, não me perguntem por quê. O enredo era o mesmo e, no final, a menina sequestrada era salva pela mãe, que a resgatava do saco, colocando no lugar estrume de vaca para desespero do Tibum Guererê.
Minha infância já vai longe e nela, no imaginário de uma história infantil, a questão do tráfico humano já se fazia presente. Ao longo do tempo, um olhar atento, crítico, pode desnudar outras formas camufladas de tráfico humano. Famílias que traziam meninas pobres do interior para “ajudar a criar”, e que aqui, na capital, sob o manto dessa aparente caridade, eram submetidas à condição de empregadas domésticas num regime quase escravo, mantidas na ignorância, no analfabetismo, na submissão absoluta.
Hoje, com a globalização, a questão é mais complexa. No cenário internacional, o Brasil figura como um dos maiores “fornecedores” de homens, mulheres e crianças submetidos ao tráfico sexual no país e no exterior, assim como para trabalho forçado no próprio país. A Polícia Federal registra índices mais altos de prostituição infantil no Nordeste brasileiro.
Em grau menor, o Brasil é destino e trânsito de homens, mulheres e crianças usados no trabalho forçado e no tráfico sexual.
Um grande número de mulheres brasileiras é encontrado no tráfico sexual no exterior, quase sempre em países europeus, como Espanha, Itália, Portugal, Reino Unido, Holanda, Suíça, França e Alemanha, também nos Estados Unidos e em destinos mais distantes como o Japão. Algumas mulheres e crianças brasileiras também são submetidas ao tráfico sexual em países vizinhos, como Suriname, Guiana Francesa, Guiana e Venezuela.
Em menor escala, algumas mulheres de países vizinhos são exploradas pelo tráfico sexual no Brasil. Alguns transgêneros brasileiros são forçados à prostituição no país, e alguns homens e transgêneros brasileiros são explorados pelo tráfico sexual na Espanha e na Itália.
A pedofilia, na forma de turismo sexual infantil, continua sendo um problema grave, em especial nas cidades litorâneas e em complexos turísticos do Nordeste do Brasil. Turistas em busca de sexo com crianças normalmente vêm da Europa e, em menor escala, dos Estados Unidos.
Segundo a lei brasileira, o termo “trabalho escravo” pode significar trabalho forçado ou trabalho desempenhado durante jornada exaustiva ou em condições degradantes de trabalho. Não está claro quantas pessoas identificadas em situação de trabalho escravo são vítimas de tráfico: no entanto, estudo publicado em 2012 revelou que 60% dos trabalhadores entrevistados no trabalho escravo rural haviam sido submetidos aos principais indicadores do trabalho forçado.
Os que promovem esse tipo de exploração formam grupos poderosos e truculentos. Tem sido destaque na mídia o episódio do assassinato de três fiscais do Ministério do Trabalho e do motorista que os conduzia na região de Unaí, no norte de Minas, onde investigavam denúncias de trabalho escravo em fazendas da região.
A chacina aconteceu em 2004 e, até hoje, o julgamento dos acusados se arrasta na Justiça. Os mandantes do crime seriam fazendeiros e políticos influentes da região, considerados os maiores produtores de feijão do país.
Organizações da sociedade civil identificaram um forte vínculo entre degradação ambiental e desmatamento em áreas com incidência de trabalho escravo, em particular na Amazônia. Milhares de brasileiros são submetidos a trabalho escravo no país, em geral em fazendas de gado, acampamentos de mineração e extração de madeira, plantações de cana-de-açúcar e grandes fazendas produtoras de milho, algodão, soja e carvão, e também na construção civil e no desmatamento. Algumas crianças foram identificadas em situação de trabalho escravo na pecuária, no desmatamento, na mineração e na agricultura.
Vítimas do trabalho forçado costumam ser atraídas por recrutadores locais (conhecidos como gatos) com promessas de bom pagamento em estados do Nordeste, como Maranhão e Piauí, e em Tocantins e levadas para outros estados, em especial, Pará, Mato Grosso, Goiás e São Paulo, onde muitas delas são submetidas à escravidão por dívida, o chamado sistema de “barracão”, onde o trabalhador paga pela acomodação, alimentação e ferramentas quantias maiores que o salário, ficando “preso” ao patrão. Caso recente, descoberto pelas autoridades, revelou que as vítimas foram submetidas a um sistema de escravidão por dívida, na fabricação de tijolos, por mais de 30 anos.
O norte e o nordeste do Brasil já produziram vários mártires dessa luta, destacando-se, na nossa apagada memória, o padre Josimo Tavares, assassinado em Imperatriz, Maranhão, e a irmã missionária Dorothy Stang, morta a tiros no município de Anapu, no sudoeste paraense, em 12 de fevereiro de 2005. Na semana em que escrevo este artigo a Justiça do Pará condenou o mandante do crime, o fazendeiro Vitalmiro Bastos de Moura, a 30 anos de prisão. Mas o que se tem visto é que, de recurso em recurso, os criminosos, amparados e competentes e caros advogados, vão adiando o cumprimento das sentenças, respondendo em liberdade pelas acusações, gerando um círculo vicioso de crime, impunidade e violência.
À margem da violência escandalosa que ocupa as manchetes da mídia, formas de exploração sutis e camufladas continuam presentes no tecido social. A servidão doméstica, em especial de meninas adolescentes, também continua sendo um problema no país.
Em menor escala, o Brasil é destino de homens, mulheres e crianças, provenientes da Bolívia, do Paraguai, do Peru e da China, para trabalho escravo em confecções de roupas e tecelagens clandestinas em grandes centros metropolitanos, principalmente em São Paulo. Algumas dessas fábricas clandestinas são subcontratadas por grandes empresas, várias delas internacionais. O problema veio à luz, recentemente, com o assassinato do garoto Brayan, filho de imigrantes bolivianos que trabalhavam em SP.
O Ministério do Trabalho publica uma “lista suja” na qual divulga os nomes de pessoas físicas e jurídicas identificadas pelo governo como responsáveis por trabalho escravo e que estão sujeitas a penalidades civis. Embora algumas ONGs, uma organização internacional e o Ministério do Trabalho citem a “lista suja” como ferramenta eficaz contra o trabalho escravo, estudo constatou que muitas empresas da lista não sofreram processos criminais.
Como vemos, “o homem do saco” continua ativo e presente em pleno terceiro milênio, convivendo com a tecnologia moderna e até se servindo dela para fazer o “seu surrão” cantar. Ou seja, teremos, no ano que vem um tema difícil de ser abordado, em especial no ambiente escolar, mas que faz parte de um cenário global e local diante do qual não podemos nos calar e omitir, até porque, neste cenário, nosso país ocupa lugar de infeliz destaque.
Eduardo Machado
Educador, escritor
A Igreja Católica, depois do breve e revolucionário papado de João XXIII, entrava na fase final do Concílio Vaticano II, já sob o cajado de Paulo VI. O momento era de profunda reflexão da Igreja sobre seu papel na História, buscando rever seus compromissos, suas raízes mais evangélicas e maior coerência entre Fé e Vida
O Brasil vivia a efervescência política provocada pelo Golpe Militar.
Em 1964, parte significativa dos bispos brasileiros, em sintonia com os ventos renovadores que vinham do Concílio, queriam aproveitar o momento rico do Tempo da Quaresma, tempo de conversão e penitência, para convocar os católicos a participarem de uma reflexão que começava por rever e atualizar os próprios conceitos de Conversão e Penitência, até então muito ligados à ideia de sacrifícios físicos e mortificação dos sentidos.
A catequese quaresmal tradicional corria o risco de valorizar mais a exterioridade das celebrações pomposas, da ritualização de tradições e costumes, em especial da Paixão, que o chamado pascal mais profundo, questionador e transformador, rito de passagem para uma Vida Nova.
Ainda hoje, na cobertura que se vê na grande mídia, o destaque é dado a eventos como a Procissão do Fogaréu, em Goiás, a encenação da Paixão ao vivo, em Nova Jerusalém, Pernambuco e outros de conteúdo mais turístico que religioso.
Nesse contexto histórico e cultural, a Campanha da Fraternidade surge como um convite a refletir sobre o sentido de uma verdadeira conversão, que se traduz em mudança de rumo na vida pessoal e comunitária, e do significado vivencial da penitência, umchamado a voltar-se para Deus, buscando “amá-lo de todo coração e de toda a alma e de todo o entendimento e de todas as forças; e amar ao próximo como a si mesmo” (Marcos 12:30-31), sempre a partir de um tema específico, enraizado na realidade, e renovado a cada ano.
Em 1964, significativamente, o tema foi “Igreja em renovação” com o lema: “Lembre-se, você também é Igreja.”
Através dele, retomava-se, bem dentro do espírito do Vaticano II, o significado maior da expressão “Povo de Deus”. A Igreja, sublinhavam os bispos conciliares, não é apenas uma instituição constituída por padres, freiras, religiosos e religiosas, clérigos em geral. É Povo de Deus em comunhão,ou seja, o leigo cristão era chamado a ocupar o lugar que sempre foi dele. Em síntese: não bastava mais ao cristão IR À IGREJA. O convite, a missão, é SER IGREJA!
Depois de uma série de temas voltados para a renovação do espírito eclesial da comunidade católica, como “Faça de sua paróquia uma comunidade de fé, culto e amor” (1965), ou “Ser Cristão é participar” (1970), com o lema “Comece em sua casa”(1977), a Igreja ampliava seu olhar que, da contemplação ativa da realidade mais próxima, mais doméstica, estendia-se para a realidade em volta.
O que se via então, em meados da década de 1970, era um Brasil oprimido pelo regime militar, sufocado por uma crise econômica permanente que gerava recessão, desemprego e miséria. Quem ousava protestar, contestar, sofria a violência da repressão que não deixava espaço àqueles que lutavam pela restauração da democracia no País.
Em 1978, com coragem profética, o lema da Campanha clamava “Trabalho e Justiça para todos!”
Desde então, a cada ano, temas ligados à realidade mais cotidiana, desafios em todas as áreas, questões de cidadania, contradições políticas e econômicas, tudo tem sido ponto de partida para um VER, JULGAR e AGIR dos cristãos.
Importante lembrar que desde o ano 2000 a Campanha da Fraternidade abriu-se também a uma construção ecumênica, ao lado de outras Igrejas Cristãs.
A Campanha da Fraternidade acontece durante o Tempo litúrgico da Quaresma, ou seja, o período de quarenta dias que vai da quarta-feira de cinzas ao domingo de ramos, que abre a Semana Santa.
Na simbologia bíblica, o número 40 tem a ver com tempo de recolhimento, renovação profunda, preparação para fazer nascer o NOVO. Por quarenta dias, choveu sobre a Terra, na parábola do Dilúvio. Por quarenta anos, o povo hebreu foi peregrino, em busca da Terra Prometida. Por quarenta dias, Jesus esteve no deserto, em jejum e oração, antes de dar início à vida pública. Na linguagem corriqueira, a palavra “quarentena” também é utilizada para falar de um tempo de recolhimento, em geral para cuidar da saúde ou fazer prevenção de alguma enfermidade.
Durante a Quaresma, somos, portanto, convidados a fazer essa experiência de “recolhimento”, de “deserto”, em que, pelo jejum (simplicidade) e oração (vida interior), buscamos conversão (mudança de rumo, renovação) e penitência (buscar a intimidade com Deus). E como o encontro íntimo e pessoal com Deus acontece no cotidiano, a Igreja, a cada ano, propõe que a vivência quaresmal se traduza também em esmola (gestos concretos de fraternidade e solidariedade, em especial com os mais necessitados). Tudo a partir de um tema concreto, enraizado no cotidiano, que nos ajude a buscar uma coerência sempre maior entre fé e vida.
Ao fim dessa caminhada de quarenta dias, chegamos à Semana Santa, cujo auge é a celebração pascal do Cristo Vivo, presente no meio de nós. Ele nos convida a passar do túmulo à alegria, da morte à vida, do egoísmo ao amor, do pecado à santidade. Passar de uma fé amedrontada para uma fé esperançosa.
A mística pascal nos revela que o contrário do amor não é o ódio, o contrário do amor é o medo de amar. Por isso, para viver a Páscoa, é preciso coragem e disposição para experimentar no coração as virtudes teologais da Fé e da Esperança, que nos conduzem à possibilidade do Amor, do amar e ser amado.
Neste ano de 2014 o tema proposto pela Campanha é “Fraternidade e Tráfico Humano”, com o lema “É para a liberdade que Cristo nos libertou”.
Eduardo Machado
Escritor e coordenador de Pastoral do Colégio Imaculada em Belo Horizonte
A CNBB nos apresenta a Campanha da Fraternidade como itinerário de libertação pessoal, comunitária e social. Tráfico Humano e Fraternidade é o tema da Campanha para a quaresma em 2014. O lema é inspirado na carta aos Gálatas: “É para a Liberdade que Cristo nos libertou” (5,1).
O Tráfico Humano viola a grandeza de filhos, é cerceamento da liberdade e o desprezo da dignidade dos filhos e filhas de Deus. Resgatar essa dignidade, identificar as práticas de tráfico humano e denunciá-lo são objetivos dessa Campanha da Fraternidade. Mobilizando cristãos e a sociedade brasileira para erradicar o mal do Tráfico Humano, a Campanha propõe-se a reivindicar dos poderes públicos, políticas e meios para a reinserção das pessoas atingidas e sensibilizar para a solidariedade com ações preventivas.
As principais modalidades do Tráfico Humano são: Tráfico para exploração no trabalho, para exploração sexual, para extração de órgãos, para adoção de crianças, para exploração da força de trabalho, para atividade ilícita.
O Tráfico Humano caracteriza-se pela ampla estrutura do crime organizado, em rotas nacionais e internacionais, pela invisibilidade ajudada pela falta de denúncia e pelo aliciamento e a coação.
A globalização com a competição econômica tem provocado migrações de pessoas em busca de melhores condições de trabalho e de vida. Essas pessoas tornam-se vulneráveis perante a ação de tráfico humano. Temos que distinguir, na migração atual, tráfico de pessoas de contrabando de migrantes, pois nesse último, pode existir o consentimento do trabalhador que se sujeita a uma condição de ilegalidade. Dessa condição aproveita-se o tráfico humano para aliciar pessoas, com propostas de trabalho enganosas.
Visando o lucro acima de tudo, a globalização econômica gera uma massa de excluídos sujeitados à terceirização à informalidade e a formas precárias de trabalho. O enfrentamento do crime do Tráfico Humano exige a cooperação entre os países, em áreas como a criminal, jurídica, tecnológica, econômica e de meios de comunicação. O Brasil adotou a “Convenção de Palermo” das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional onde foi assinado um Protocolo Adicional conhecido como” Protocolo de Palermo”. Esse instrumento legal internacional, o principal para prevenção, repressão e punição do tráfico humano, define o crime e aponta os elementos que o caracterizam:
Os atos mais comuns o recrutamento; o transporte; a transferência; o alojamento; o acolhimento de pessoas.
Os meios que configuram o tráfico - ameaça; uso da força; outras formas de coação; rapto; engano; abuso de autoridade; situação de vulnerabilidade; aceitação de pagamentos ou benefícios para obter o consentimento de uma pessoa que tenha autoridade sobre a outra.
A principal finalidade - A exploração da pessoa sob várias formas: prostituição e outras formas de exploração sexual; a servidão; a remoção de órgãos. É importante frisar que, para a configuração do crime de tráfico humano, o consentimento da vítima é irrelevante. Os traficados devem ser vistos como vítima e são protegidos pela lei brasileira, mas ainda faltam leis mais abrangentes quanto ao crime de tráfico de pessoas.
O II Plano Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas ( 2013-1016) pretende:
- A Integração e fortalecimento das políticas públicas,
- Redes de atendimento e organizações para a prestação de serviços;
- Capacitação para o enfrentamento;
- Produção, gestão e disseminação de informação;
- Campanhas e mobilização.
Há necessidade de conscientizar a sociedade da importância de informar, de denunciar ao Poder Público para que se possa investigar e punir os que praticam o crime do tráfico humano, através dos canais oficiais de denúncia disponíveis em todo o Brasil.
A Igreja é solidária com as pessoas traficadas e comprometida com a evolução da consciência sobre o valor da dignidade humana, fundamentada na Sagrada Escritura. Essa dignidade é assumida na medida em que o ser humano vive seus relacionamentos: consigo, com a natureza com o outro e com Deus em seu plano de Amor.
A ruptura dessas relações leva ao pecado da violência, da exploração do outro, agressões à dignidade humana como o tráfico de pessoas. A Boa Nova de Jesus como vemos em Gálatas “É para a liberdade que Cristo nos libertou” (5,1) é uma liberdade para o serviço (Rm 6,22) e para o compromisso com a justiça do Reino ( Rm 6,16) . “Fostes chamados para a liberdade” (Gl 5,13) nos impele a vencer a idolatria do dinheiro, da ideologia e a tecnologia que se encontra na origem do pecado do Trafico Humano, onde o TER sobrepõe-se ao SER. Todo cristão é ungido no Batismo para ser um libertador como Jesus, por isso o Tráfico Humano não é somente uma questão social, mas também, eclesial e desafio pastoral. A Igreja é desafiada a ser advogada da justiça e a defensora dos pobres, cabe a ela emprestar sua voz para quem não consegue gritar, denunciar. Os três caminhos de ação que desponta são: prevenção, cuidado pastoral das vítimas e a sua proteção e reintegração na sociedade.
O Tráfico Humano beneficiado por preconceitos sociais, raciais e sexuais, agride a dignidade e liberdade de todos, por isso sua erradicação deve ser assumida por todos. Uma conversão dos corações para a solidariedade e cuidado aponta para um caminho de menos opulência, menos concentração de riqueza e esbanjamento. Variam pastorais e organismos envolvidos com o tema foram reunidas pela CNBB ( 2011) no Grupo de Trabalho de Enfrentamento ao Tráfico Humano. Sem essas articulações da Igreja e também com a sociedade civil, não se transformará em realidade os três Ps ( prevenção, punição e proteção) planejados pelo II Plano Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas (2013-2016).
Fortalecer a defesa da dignidade do ser humano e esclarecer sobre a grave violação que o Trafico Humano representa, exige que sejamos como o bom samaritano. É preciso resistir “a cultura do bem estar que leva á globalização da indiferença” denunciada pelo Papa Francisco em Lampedusa-Italia.
Para mais subsídios acesse os links abaixo:
apresentação em imagens sobre o tema da Campanha da Fraternidade
Hino da Campanha – Gravação em 5 ritmos
Hino da Campanha - gravação original
Explicação do cartaz e objetivos
Eduardo Machado
Educador e escritor
Meditação sobre o Evangelho 3º Dom. para catequistas
«Jesus começou a pregar: "Arrependei-vos, porque está próximo o reino dos Céus".
Caminhando ao longo do mar da Galileia, viu dois irmãos: Simão, chamado Pedro, e seu irmão André, que lançavam as redes ao mar, pois eram pescadores. Disse-lhes Jesus: «Vinde e segui-me e farei de vós pescadores de homens". Eles deixaram logo as redes e seguiram-no. Um pouco mais adiante, viu outros dois irmãos: Tiago, filho de Zebedeu, e seu irmão João, que estavam no barco, na companhia de seu pai Zebedeu, a consertar as redes. Jesus chamou-os e eles, deixando o barco e o pai, seguiram-no.
Depois começou a percorrer toda a Galileia, ensinando nas sinagogas, proclamando o Evangelho do reino e curando todas as doenças e enfermidades entre o povo.» (Do Evangelho do III Domingo do Tempo Comum)
A palavra inaugural de Jesus, premissa de todo o Evangelho, é «convertei-vos». E logo depois o "porquê" da conversão: porque o reino fez-se próximo. Ou melhor: Deus fez-se próximo, muito próximo de ti, envolve-te, está dentro de ti. Então, «converte-te» significa: volta-te para a luz, porque a luz já está aqui. A conversão não é a causa mas o efeito da tua «noite tocada pela alegria da luz» (Maria Zambrano).
Imaginava que a conversão era fazer penitência pelo passado, uma condição imposta por Deus para o perdão, pensava encontrar Deus como resultado e recompensa do meu empenho. Mas que boa notícia seria um Deus que dá segundo a minha prestação?
Jesus revela-nos que o movimento é exatamente o inverso: é Ele que me encontra, que vem até mim, que me habita. Gratuitamente. Antes que eu faça alguma coisa, antes que eu seja bom, Ele fez-se próximo. Então eu mudo de vida, mudo a luz, mudo o modo de entender as coisas.
Escreve o padre Giovanni Vannucci: «A verdade é que nós estamos imersos num mar de amor e não nos damos conta». Quando finalmente me dou conta, começa a conversão. Cai o véu dos olhos, como a Paulo em Damasco. Abandono a barca como os quatro pescadores, troco a pequena rede por algo de bem maior.
Jesus, ao passar, viu... Duas duplas de irmãos, duas barcas, um trabalho? Não, vê muito mais: em Simão bar Jonas vê Cefas, Pedro, a rocha sobre a qual funda a sua Igreja; em João intui o discípulo da mais fulgurante definição de Deus: Deus é amor. Tiago será «filho do trovão», alguém que tem dentro de si a vibração e o poder do trovão.
O olhar de Jesus é um olhar criador, uma profecia. Olha-me e vê em mim um tesouro enterrado, no meu inverno vê a semente que amadurece, uma generosidade que não sabia ter, estrada à luz do sol. No seu olhar vejo para mim a luz de horizontes maiores.
Vinde após mim: farei de vós pescadores de homens. Recolheremos homens para a vida. Transportá-los-emos da vida enterrada à vida luminosa. Responderemos à sua fome de liberdade, amor, felicidade.
Os quatro pescadores seguem-no de imediato, sem saber onde Ele os conduzirá, e também sem lhe perguntar: já têm dentro de si as estradas do mundo e o coração de Deus.
Jesus caminhava pela Galileia e anunciava a boa-nova, caminhava e curava a vida. A extraordinária notícia é que Deus caminha contigo, sem condições, para curar cada mal, para curar a ferida que a vida te infligiu e os teus enganos de amor. Deus está contigo e cura. Deus está contigo, com amor: a única coisa que cura a vida.
É este o Evangelho de Jesus: Deus convosco, com amor.
Pe. Ermes Ronchi
25.01.2014
Na celebração de Natal da minha família, minha cunhada, Ana, nos presenteou com um texto que lhe foi dado por uma amiga budista, e que dizia assim:
Conta uma antiga lenda que o mestre de um mosteiro estava à morte e mandou reunir todos os seus discípulos.
- Até aqui, fui o mestre de vocês e sempre lhes ensinei como falar com Deus. Agora, que estou partindo ao Seu encontro, vocês terão que fazer isso sozinhos. Vocês guardaram bem o lugar sagrado na floresta, onde eu invoco a Deus? Pois bem, vão até lá sempre que quiseram falar com Ele. Façam uma fogueira, bem no centro da clareira, exatamente como eu lhes ensinei. Em seguida, façam a oração, usando as mesmas palavras que eu sempre usei. Façam exatamente assim, e Deus virá a vocês.
Depois que o Mestre morreu, a primeira geração dos seus discípulos obedeceu religiosamente às suas instruções, e Deus sempre veio.
A segunda geração de discípulos, porém, se esqueceu do modo exato de acender a fogueira, assim como o mestre ensinara. Mesmo assim, iam até o lugar sagrado, ficavam lá, parados, faziam a oração, e Deus vinha.
Na terceira geração as pessoas já não se lembravam de como acender a fogueira nem sabiam o lugar exato, na floresta. Mas reuniam-se, diziam a oração, e mesmo assim Deus vinha.
Na quarta geração ninguém se lembrava de acender fogueiras, ninguém sabia mais que havia um lugar sagrado na floresta, e, finalmente, não conseguiam se recordar nem das palavras da oração.
Mas um deles ainda se lembrava de que havia uma história sobre pessoas que se reuniam para falar com Deus. E que elas se amavam e se queriam bem. Ele compartilhou isso em voz alta. E Deus veio...
A pequena parábola me lembrou outra, de outro mestre, Rubem Alves. Ele conta:
Um amigo meu, nos Estados Unidos, comprou uma casa velha, de mais de um século, conservada, como muitas que por lá existem. No entanto, havia muitas coisas a serem consertadas. Tudo teria que ser pintado de novo. Antes de pintar com as cores novas ele achou melhor raspar das paredes a cor velha, um azul sujo e desbotado. Raspado o azul, debaixo dele surgiu uma cor rosa, mais velha ainda que o azul. Raspou-a também. Aí apareceu o creme, e depois do creme o branco...
Cada morador havia coberto a cor anterior com uma cor nova, reforma após reforma, mudança após mudança...
E assim, meu amigo foi indo, pacientemente, raspando camada após camada. Queria chegar à cor original, que apareceria depois que todas as camadas de tinta fossem raspadas. Até que o trabalho, finalmente, terminou. E o que encontrou foi uma surpresa inesperada que o encheu de alegria.
Na última raspagem, na textura primeira, original, mais bonita que qualquer tinta, a madeira mais linda, o maravilhoso Pinho de Riga, com nervuras e desenhos formando sinuosos arabescos de cor castanha sobre um imponente fundo marfim.
Esta noite, em todos os cantos do mundo, famílias, comunidades, amigos estarão reunidos festejando a chegada de mais um ano a que chamaremos novo.
Muita gente, talvez, terá esquecido que toda festa é, na verdade, um ritual. E todo ritual conta uma história. A Eucaristia cristã, católica, acontece ao redor de uma mesa. Sobre ela, há comida e bebida. Há música, cantos, palavras compartilhadas, pessoas que se alegram por se encontrar, por estarem juntas, em comunhão.
Em todas as crenças, e até nas descrenças, há ritos assim. Mesmo que as pessoas não saibam ou não se recordem da sacramentalidade das coisas, dos objetos, da profundidade dos gestos, da universalidade das palavras.
Onde houver um desejo que nos aproxime, ao redor de uma mesa ou em qualquer lugar, na emoção de um abraço, na saudade que brota, espontânea, nesses momentos mágicos e místicos em que o coração humano se aproxima da beleza original, do lugar sagrado de onde todos viemos, onde há amor, Deus não precisa vir.
Ele já está.
Feliz Ano Novo!
Eduardo Machado
Escritor e professor
31/12/2013
Mal começo a conversa e um garoto me questiona sobre a data e o local do nascimento de Jesus. Viu na internet uma matéria que dizia que Jesus não nasceu nem em 25 de dezembro, nem em Belém.Arrisco-me a falar sobre o sentido cristão do Natal para uma plateia de adolescentes da geração Google, esta que já nasceu sem pecado original. Para eles, todos os mistérios podem ser decifrados com um click no teclado. Em não sei quantos microsegundos, eis a resposta na tela.
É duro ser professor de Religião em tempos de Wikipédia...
Convido-os a fazer uma roda, sento-me ao lado deles, ficamos do mesmo tamanho e começo o que quer ser uma prosa sobre o espírito do Natal.
- Olha, meninada, em tudo podemos buscar a coisa e o espírito da coisa. Vamos, primeiro, à “coisa”.
Quanto à data de nascimento de Jesus, a reportagem certamente tem razão. Jesus de Nazaré não nasceu no dia 25 de dezembro. Esta data foi uma apropriação do cristianismo quando se integrou à cultura romana, vivendo um processo de sincretismo religioso semelhante ao experimentado, séculos depois, pelos escravos africanos, obrigados a camuflar seus deuses tribais entre os santos católicos.
- O que é sincretismo, professor?
- É misturar e fundir elementos de diferentes culturas, no caso, de diferentes religiões. Mas eu dizia que sobre a data real do nascimento de Jesus sabemos muito pouco. Afinal, a Bíblia não é um livro de História, nem de Ciências. É um livro de fé. Os evangelhos, por exemplo, não são uma biografia de Jesus. Eles trazem apenas informações e um ou outro detalhe que ajudam a compreender a mensagem do Mestre, a sua Boa Nova. Ela é o foco da narrativa. Mesmo assim, aqui e ali podemos pinçar alguma coisa.
Por exemplo, o evangelista Mateus nos informa que Jesus nasceu no tempo de Herodes, o Grande (Mt 2,13-23), um rei dos judeus que morreu na primavera do ano 750 do calendário romano, que corresponde ao ano 4 antes de Cristo. Baseando-nos nessas informações e outros estudos, sabemos, hoje, que o ano mais provável do nascimento de Jesus seria entre 7 ou 6 antes da era cristã, ou seja, estaríamos, na verdade, no ano 2019 ou 2020. Complicado, né? Mas vejamos mais alguns dados históricos que explicam o 25 de dezembro.
No ano 274 da era cristã o Imperador Aureliano proclamou o 25 de dezembro, como o Dia do Nascimento do Sol Invencível. É que neste período acontece, no hemisfério norte, o solstício do inverno, que vem a ser a noite mais longa do ano. Mesmo assim, o sol nasce e vence as trevas, fazendo brilhar sua luz sobre todos. Era a festa do Deus Sol Invictus!
Por volta do ano 312 d.C. o imperador Constantino converteu-se ao Cristianismo e o elevou à categoria de religião oficial do Império Romano. Acelera-se o processo de sincretismo, de inculturação cristã no universo pagão.
Ora, se durante o mês de dezembro celebravam-se as grandes festas pagãs, inclusive a Festa do “Deus Sol Invictus”, que vence as trevas e brilha sobre todos, nada mais significativo e adequado que dar-lhe uma roupagem e significado cristão. Afinal, é o próprio Jesus que diz: “Eu sou a Luz do mundo, quem me segue não anda nas trevas, mas terá a luz da vida”. No prólogo do seu evangelho, João diz: “Nele estava a vida e a vida era a luz dos homens... Era a luz verdadeira que ilumina todo homem que vem a este mundo...” Simples assim: “A ADEMG informa: sai a festa do deus Sol, pagão, entra a festa do Filho de Deus, Jesus, cristão”.
E nasce o Natal.
- Mas e a outra “coisa”, o lugar onde Jesus nasceu?
É... a definição do local de nascimento de Jesus é mais complicada. A narrativa dos evangelhos é clara em situar este acontecimentoem Belém. Afinal, todas as profecias do Primeiro Testamento apontam para a pequena cidade de Judá. Mas há quem argumente que o título “Jesus de Nazaré”, seria um indício de que ele teria nascido naquela aldeia da Galiléia. Neste caso, acho que a polêmica, provavelmente, permanecerá.
Mas, na verdade, o onde e quando são detalhes acidentais. O essencial é saber o porquê Jesus nasceu...
- Tá bom, vamos lá ao “espírito da coisa...”
- É a melhor parte. Buscar e contemplar o “espírito do natal” nos permite perguntar quando e onde Jesus nasceu de outra forma. Aí, quem sabe, encontraríamos diferentes respostas...
Maria, sua mãe, talvez nos dissesse:
- Jesus nasceu numa tarde em que eu estava sozinha, em minha casa, em Nazaré da Galiléia. Eu rezava. Senti, então, uma luz que brilhava em mim e à minha volta. E um mensageiro de Deus falou ao meu coração. Desde então, nunca mais me vi ou me senti só. Ele estava e está em mim. Mas não o guardei comigo. Eu o ofereci de presente ao mundo e aos homens...
José, esposo de Maria, responderia, quem sabe, assim:
- Jesus nasceu, para mim, numa noite de sono atribulado, de pesadelos que torturavam o meu coração. Então o vi no olhar suave de Maria, minha noiva, no seu sorriso doce, na sua fidelidade ao Pai. Quando a abracei, Ele nasceu em mim.
Um grupo de pastores, em Belém, diria:
- Jesus foi, primeiro, uma estrela no céu. Mas o desejo da sua vinda já brilhava em nosso coração...
Os magos confirmariam:
- Seguimos a estrela que anunciava a chegada de um rei. Encontramos um menino pequeno e frágil, seu pai e sua mãe, ambos simples e pobres. Jesus nasceu, para nós, num momento de surpresa, num lugar chamado simplicidade...
Os amigos de infância de Jesus, entre risos, afirmariam:
- Jesus nascia todos os dias, nas brincadeiras, na amizade, na alegria. Ele era, sempre, um companheiro, um amigo. Quando estava conosco era um renascimento.
João Batista contaria seu segredo:
- Meu coração bateu mais forte quando o vi, entrando no rio Jordão e caminhando em minha direção. Ele sorria e parecia saber exatamente o que fazer. Quando pediu que eu o batizasse, senti que algo extraordinário nascia naquele momento e lugar. E eu era parte dessa história. Meu coração exultou de alegria e me senti, de novo, criança, no ventre de minha mãe...
Simão daria o seguinte depoimento:
- Ele apareceu às margens do lago e não entendia nada de pescaria. Mas chamou a mim e meus amigos para segui-lo e sua voz fez nascer em minha alma uma sede que só ele podia saciar. Deixei tudo e, naquele dia, nasceu Pedro.
Maria de Magdala lembraria o dia em que encontrou Jesus.
- Eu o vi e ele era apenas mais um homem. Mas me olhou de um modo que homem nenhum jamais havia me olhado. Tive vergonha, mas Ele me amou por mim mesma e fez nascer uma mulher que eu nunca tinha sido, mas desejava ardentemente poder ser. Então, eu o segui até o túmulo, e depois do túmulo. Eu o vi renascer.
Tomé, emocionado, confessaria:
- Jesus estendeu as mãos e vi as marcas dos cravos. Era um sinal de morte, mas tudo nele era vida. Eu acreditei, e tive uma santa inveja dos que não precisaram ver, para renascer...
E assim, por quase dois mil anos de História podemos colher insistentes relatos de “nascimentos de Jesus” em lugares, circunstâncias e tempos mais extraordinários... ou comuns. Das formas mais diversas. Parece que todo ser humano sobre a face da Terra tem seu momento de vislumbre, sua “visão”, seu natal. E ele, quando acontece em profundidade, é decisivo. É capaz de mudar o rumo de uma vida. É capaz de dar sentido a gestos que só podem ser entendidos por aqueles que vivem grandes paixões.
Por isso, ao longo do Tempo e da História, poderíamos perguntar a todos e a cada um, quando e onde lhe nasceu Jesus.
Eu teria dificuldades em responder por mim mesmo. Meu primeiro impulso seria dizer que Ele nasceu, para mim, numa capela improvisada, forrada de capim, quase uma manjedoura, na cidade de Itaúna, no interior de Minas. Era fevereiro do ano de 1972. Eu participava de um encontro de jovens e, naquele dia, compreendi em meu coração que Deus não era uma ideia, mas uma pessoa que me conhecia e amava, desde sempre.
Ele renasceria, para mim muitas vezes. Em três ocasiões, num lugar adequado a nascimentos: uma sala de parto, num hospital. Nascia em mim um pai e Jesus, se fazia, cada vez mais, irmão...
Foi Natal, no dia em que pude ajudar um amigoem dificuldades. FoiNatalquando pedi e recebi perdão. Foi Natal quando O enxerguei no morador de rua, meu irmão. É Natal, todos os dias, na minha sala de aula, quando Ele nasce e renasce nas gerações e gerações de alunos que permitem que eu me sinta, ao menos um pouquinho, mestre, como Ele foi.
É Natal e também é Páscoa, quando, todos os dias, Ele morre por causa do meu egoísmo, e renasce pela força do meu amor...
E para você, meu irmão querido, minha irmã amada, quando e onde lhe nasceu Jesus?
Eduardo Machado
Professor de ensino religioso e escritor em Belo Horizonte-MG
17.12.2013
Página 9 de 11