Nunca se insistiu tanto na formação da pessoa do catequista como nos tempos atuais, caracterizados não somente por”tempos de mudanças”, mas também por mudança de tempo. Várias são as iniciativas realizadas pela Igreja ante às realidades apresentadas como desafios e sinais das mudanças históricas e culturais, que exigem formas novas, métodos próprios e expressões diferenciadas do mesmo conteúdo evangélico.
As exigências da formação do catequista decorrem do sentido da catequese e da função que ela tem no processo de evangelização. A Catequese é um processo permanente de educação da fé das crianças, dos jovens e dos adultos, dentro de um itinerário pedagógico e mistagógico que, numa ação dialógica, vai educando na fé e conduzindo o catequizando para dentro do Mistério Pascal que tem seu centro vital em Jesus Cristo.
O Concílio Vaticano II já falava de formação Permanente sobre os catequistas, pedindo-lhes que fizessem cursos procurando renovar-se para os tempos em mudanças. O Diretório Geral para a Catequese fala de ‘prioridade absoluta’. Ele nos chama a atenção para a organização adequada sobre a formação dos catequistas no que concerne tanto à formação de base quanto à formação permanente. Assim diz o Diretório: “A pastoral catequética diocesana deve dar absoluta prioridade à formação dos catequistas leigos. Deve estar atenta, também, à formação catequética dos presbíteros, tanto nos planos de estudo da formação seminarística quanto no período da formação permanente. Pede-se ao bispo que cuide dessa formação.(cf. DGC, 234).
A formação do catequista tem por finalidade torná-lo apto a transmitir o Evangelho, ou seja, apto à comunicar a mensagem cristã. Assim o objetivo da formação é levar o catequista a saber construir um itinerário eficaz no qual, através das diversas etapas, anuncie Jesus Cristo; faça conhecer a sua vida, enquadrando-a na totalidade da história da salvação; explique o mistério do Filho de Deus, feito homem por nós; ajude o catecúmeno e ou catequizando a identificar-se com Jesus, mediante os sacramentos da iniciação.
Ao falar “explique o mistério do Filho de Deus”, vamos ressaltar aqui que a etimologia do verbo “explicar”, do grego, significa guiar, orientar, encaminhar, conduzir. Assim como Jesus, no caminho de Emaús (Lc 24,27), explica as escrituras aos discípulos, Filipe conduz o etíope ao caminho das Escrituras, explicando-lhe a catequese sobre a morte e ressurreição de Jesus Cristo (cf. At 8,25-40).
Desde os primórdios do cristianismo, o Espírito tem despertado no coração e na mente dos evangelizadores e catequistas o desejo de que a Palavra de Jesus ecoe fortemente na vida e na história da humanidade convocada pelo próprio Senhor a uma experiência profunda d’Ele próprio, Caminho, Verdade e Vida (cf. Jo 14,6).
O anúncio é o despertar da fé, o ensino é o viver da fé. O anúncio é ser inebriado pelo amor de Deus; o ensino é viver o amor de Deus. O anúncio nos leva a Deus, o ensino nos faz ir aos irmãos. Assim, a primeira formação do anúncio é a chamada “formação querigmática” que nos leva a conhecer Jesus Cristo, morto, ressuscitado e glorificado. A partir desse anúncio somos chamados a fazer uma experiência de mudança de vida, graças à fé, seguindo a tradição oral dos primeiros cristãos. É experimentar e viver Jesus vivo como Salvador, Senhor, Messias que dá o Espírito Santo.
Hoje, com a grande evolução e o progresso da concepção sobre a catequese, o valor da experiência de Deus acentua-se ainda mais, do que na tradicional catequese ligada aos conteúdos da fé, ou à doutrina. Esta está em função daquela, ou seja, os conteúdos da fé são importantes, mas a catequese deve estar mais voltada para a Palavra proclamada, anunciada e ensinada, que leva o catecúmeno e/ou o catequizando a experimentar Deus. Trata-se de uma catequese mais existencial, vivencial e mistagógica, de inspiração catecumenal.
A formação catequética continuada, que se renova em seus métodos, exige renovação no perfil do catequista como pedagogo e mistagogo, a exemplo de Jesus. No itinerário a caminho da maturação da fé, o catequista tem dupla missão: transmitir o ensinamento e conduzir o catequizando no mistério da fé. Nesse sentido, o despertar para o discipulado se processa numa interação permanente, em que os evangelizadores, catequistas e catequizandos são “crescentes e aprendentes ” a vida inteira.
Neuza Silveira de Souza – Coordenadora da comissão
Arquidiocesana Bíblico-Catequética de Belo Horizont
As árvores e as pedras ensinar-te-ão aquilo que tu
nunca aprenderás com os mestres.
(Bernardo de Claraval)
Cultivar o apreço pela natureza é aprofundar a nossa própria vida espiritual, aproximarmo-nos mais da criação, ver a nossa própria responsabilidade moral por ela, segundo a forma como tratamos cada hastezinha de erva. Viver em harmonia com a natureza significa estarmos nós próprios mais vivos.
A nossa sincronia com a natureza é demonstrada pelo efeito emocional que essa exerce sobre nós. Quando está escuro, podemos tornar-nos mais taciturnos. Quando a neblina paira sobre as montanhas que nos cercam, quando o nevoeiro nos envolve, também nós nos tornamos mais reflexivos. Quando o sol aquece as pedras, cada nervo cobra vida dentro de nós. Cada mudança da natureza é esta a nos chamar a entrar mais a fundo nos ritmos da vida. É vendo-nos como parte da natureza, e não exteriores a ela, que sincronizamos a alma com os ensinamentos da natureza.
Não podemos controlar a natureza, é ela que nos controla. O único problema é que um mundo moderno e laborioso leva várias gerações a compreendê-lo. Quando destruímos a natureza sem ter em conta as consequências daquilo que estamos fazendo ao futuro, a natureza tem sempre a última palavra. Basta olhar para aquilo que estamos a fazer à Terra, para saber que mudanças precisamos de introduzir na nossa própria vida, se quisermos ser verdadeiros buscadores de Deus.
Caminhando através da natureza, vamos de mãos dadas com Deus, que lhe deu a vida. A única questão é: dar-lhe-emos vida ou morte? Numa das suas visões, Hildegarda de Bingen, mística do século XII, diz acerca da natureza: “Eu sou aquela essência viva e ardente da substância divina... Eu brilho dentro da água e ardo no sol, na lua e nas estrelas”. Oh, quem nos dera viver tempo suficiente e suficientemente bem para chegarmos a ver estas coisas!.
Joan Chittister
In "Os tempos do coração", ed. Paulinas (Portugal)
O CATEQUISTA, O EDUCADOR.
O PASTORALISTA, ARTICULADOR E ANIMADOR DO DIÁLOGO
HOMEM DE DEUS: FIEL DISCÍPULO DE JESUS, A SERVIÇO EXCLUSIVO DA MISSÃO ASSUMIDA
Dom Albano Bortoleto Cavallin[1] é presença permanente entre as pessoas que com ele conviveram, ou que se beneficiaram e ainda lucram de seus empreendimentos pastorais. E que participam, direta ou indiretamente, da grande obra por ele realizada, durante sua trajetória local ou nacional:
no mundo da Evangelização, com ênfase na Catequese;
no universo da Educação, com destaque do Ensino Religioso;
no lócus das Ciências Teológicas, com prioridade das teorias e práticas metodológicas que encaminham ao maior aprofundamento e adesão ao Cristo Palavra e Pão. Duas realidades inseparáveis, com fortalecimento da dimensão trinitária do ensino e da vivência cristã. Prova disto é a organização da Capela em sua residência, para ilustrar e chamar a atenção para ambas as dimensões que devem ser bem trabalhadas, enfatizadas no múnus de ensinar (Cân. 747 ss).
Reuniu e continua agregando pessoas de todos os recantos do país. Conclamou seguidores do Mestre que acreditam: na necessidade de contínua renovação; na permanente fidelidade à missão de evangelizar, catequizar, educar e caminhar juntos, rumo aos ideais de eternidade. Isto de forma participativa, comprometida com a transformação da realidade; sensíveis às necessidades de mudança de paradigmas; aptas a promover a comunhão; e revelar o Pai, concretizando o projeto de Jesus Cristo, Palavra Viva que se faz Pão, Alimento.
Daí a concretização de seu lema episcopal:
INTERPRETABATUR IN SCRIPTURIS (interpretava-lhes nas escrituras)
“Seu nome e seu serviço à Evangelização pela Catequese inclui-se entre as mais vivas e inspiradoras colaborações à história recente da Igreja em nosso país. Entre tantos dons recebidos, o documento Catequese Renovada, que conferiu novas feições ao anúncio da mensagem de Jesus Cristo e educação da fé, é a expressão mais predileta de sua liderança e de sua capacidade de diálogo.” (Peruzzo, 2017)
Para Dom José Antônio Peruzzo,[2] Dom Albano manteve a integridade de quem se entregou a uma causa maior e deu testemunho de fidelidade à missão, com tranquilidade, pois era portador de qualidades inerentes à sua personalidade que “são traços e retratos profundos de quem fez de sua vida um dom acolhido com gratidão a Deus, e um dom oferecido com afeição aos irmãos e aos Catequistas”.
Como desdobramento de seu lema, a Catequese foi a expressão marcante de seu ministério. Integrou a Comissão de Pastoral da CNBB (CEP) na Dimensão Bíblico-Catequética, onde prestou à Igreja no Brasil serviços de grande relevo, de 1984 a 1988, dentre os quais a reflexão, elaboração e divulgação do documento Catequese Renovada, orientações e conteúdo, lançado em 1983. Para operacionalizá-lo criou Grupos de Reflexão e Trabalho, sendo o GRECAT, o pioneiro. O mesmo Grupo, sob a coordenação de dois assessores da CNBB para a dimensão bíblico-catequética, Irmão Israel José Nery e Frei Bernardo Cansi, o auxiliou no planejamento e realização da primeira Semana Brasileira de Catequese, reunindo em Itaici – SP, mais de 500 Catequistas e alguns Catequetas, com substanciosa produção de suas conclusões.
Ainda na CEP, Dom Albano promoveu dois Encontros Nacionais de Catequese, contando sempre com a mesma assessoria nas quais confiou e soube valorizar. Esses e outros eventos deram um novo impulso à catequese no Brasil, incentivando a produção de dezenas de coleções de catequese, contemplando os aspectos apresentados como essenciais numa catequese completa e eficaz para a educação permanente da fé. Os ciclos bíblicos receberam grande incentivo de Dom Albano e de seus assessores.
Dom Albano iniciou um tempo novo para a educação no Brasil, estando este setor sob seus cuidados na Comissão de Pastoral da CNBB, incluindo o Ensino Religioso (ER). Esta disciplina passou a ocupar um lugar de destaque, pois coincidentemente, em 1984 é divulgado o novo Código de Direito Canônico, cujo cânon 804 trata do ensino religioso na rede pública. Ao mesmo tempo, teve início ao processo de abertura política no Brasil, sendo constituída a Comissão “Afonso Arinos” que elaborou o anteprojeto da nova Carta, preparatório da Assembleia Nacional Constituinte. O Ensino Religioso entrou na pauta das discussões desde o referido anteprojeto. Posteriormente disciplina passou a ser alvo de interesse em todas as regiões do país, uma vez constante dos Projetos já consolidados e debatidos na referida Assembleia, durante os anos de 1986 a 1988.
Com igual dedicação, Dom Albano envidou esforços, constituiu, em 1985, o Grupo Nacional de Reflexão sobre o Ensino Religioso (GRERE) que, também, sob a coordenação dos dois assessores da catequese e do Pe. Irineu Brand, além de dezenas de reuniões, organizou e realizou dois Encontros Nacionais de Ensino Religioso (5º e 6º ENER), em Brasília, durante a Assembléia Nacional Constituinte. Completou estas atividades com um encontro de deputados na sede da CNBB em Brasília, várias reuniões no Congresso Nacional e dezenas de visitas aos parlamentares para refletir sobre a garantia do ER na Carta Magna.
Animou o movimento nacional de professores e coordenadores do Ensino Religioso nas Secretarias de Educação dos Estados e alguns municípios sede de Capitais. Deste movimento surgiram os abaixo-assinados, sendo o Ensino Religioso a segunda maior emenda popular a entrar no Congresso Nacional, com setenta e oito mil assinaturas, seguindo as normas pré-estabelecidas. O artigo 210, § 1º da Constituição Federal que garante o ER, no momento, resultou desta mobilização. Ao mesmo tempo, foi dada oportunidade aos professores, de participar pela primeira vez de um evento desta natureza. Estava sendo formada a consciência política, da plena cidadania.
Para auxiliar a sociedade brasileira - especificamente os parlamentares - o GRERE, ouvindo os professores, elaborou e divulgou, durante a Assembleia Constituinte, os Estudos nº 49 da CNBB[3], trazendo a história e algumas reflexões sobre esta área de conhecimento no Brasil, durante sucessivas fases do processo civilizatório brasileiro.
É importante destacar que Dom Albano Cavallin soube manter todas as velas acesas. Para ele um setor pastoral ou educacional não era mais importante do que outro. Deu testemunho de dedicação e atenção a todos, com igual competência e disponibilidade.
A Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) manifesta seu pesar pelo falecimento de dom Albano Bortoletto Cavallin, arcebispo emérito de Londrina (PR), aos 86 anos, ocorrido na quarta-feira, dia 1º de fevereiro de 2017, após um procedimento cirúrgico.
Tivemos o privilégio de visitar, em 2014, a esse ilustre educador, em sua residência em Londrina. E de gravar uma entrevista com ele sobre o ER, utilizada três meses depois no 3º Encontro Nacional dos Bispos referenciais do ER nos Regionais da CNBB (3º ENBRER). A Biblioteca Virtual do ER irá ao ar com a 2ª edição, trazendo entre outros este vídeo.
A Dom Albano Bortoletto Cavallin, a homenagem, a gratidão e o reconhecimento por sua atuação benfeitora de todos(as) os(as) Catequistas e Educadores(as) do Brasil.
Anísia de Paulo Figueiredo
Autora de vários títulos de Catequese e Ensino Religioso.
Atuou como consultora da CNBB, a convite de Dom Albano, durante a Assembléia Nacional Constituinte, na função de pesquisadora
e redatora principal dos Estudos da CNBB nº 49, com total apoio da Arquidiocese de Diamantina - MG.
[1] Dom Albano Bortoleto Cavallin nasceu em Lapa - PR, aos 25 de abril de 1930. Faleceu no dia 1º de fevereiro de 2017, após uma cirurgia. Sua ordenação presbiteral se deu em 06 de dezembro de 1953. Ordenação episcopal em 28 de agosto de 1973. Funções que exerceu: vigário cooperador da catedral de Curitiba - PR; pároco, diretor espiritual do Seminário Maior Rainha dos Apóstolos; coordenador de Pastoral e subsecretário do regional Sul 2 da CNBB; professor no Studium Theologicum em Curitiba; bispo auxiliar na arquidiocese de Curitiba; bispo da diocese de Guarapuava (PR); de 1992 até 2006, arcebispo de Londrina-PR.
[2] Arcebispo de Curitiba (PR) e atual presidente da Comissão Episcopal Pastoral para a Animação Bíblico-Catequética da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB).
[3] Os Estudos nº 49 da CNBB é um documento histórico que registra, pela primeira vez, a História do Ensino Religioso no Brasil. De sua divulgação em diante, foi dado início a uma reflexão mais ampla sobre o ER na legislação de ensino. O mesmo apresenta os desafios que ainda permanecem; esses desafios dificultam a compreensão e aplicação da matéria do sistema escolar da rede oficial de ensino, aberto aos cidadãos e cidadãs de qualquer crença, ou indiferentes, ou declaradamente ateus.
Num recente programa de rádio, o escritor norte-americano Jack Hitt contou uma história sobre como explicar o Natal à sua filha de quatro anos. Um dia, quando ela lhe perguntou sobre o que era essa festa, ele falou-lhe do nascimento de Jesus, o que aguçou a sua curiosidade. Compraram-lhe uma Bíblia para crianças e ela aprendeu sobre o nascimento de Jesus e os seus ensinamentos, incluindo a antiquada expressão «faz aos outros como gostarias que te fizessem».
Noutro dia, passaram de carro por uma grande igreja com um enorme crucifixo no exterior. «Quem é aquele?», perguntou ela. Hitt percebeu que nunca tinha falado à filha dessa parte da história. «Então respondi-lhe alguma coisa como "oh, bem, é Jesus. E eu esqueci-me de te dizer o final. Ele entrou em conflito com o governo romano», recordou Hitt na emissão.
«Esta mensagem que Ele tinha foi tão radical e perturbadora para as autoridades do tempo, que elas tiveram de o matar. Elas chegaram à conclusão de que Ele tinha de morrer. A sua mensagem era muito problemática», explicou o escritor à criança.
Algumas semanas após aquele Natal, a escola pré-primária fechou por causa do feriado dedicado a Martin Luther King Jr., e Hitt levou a filha a almoçar. Na mesa do restaurante estava o suplemento artístico do jornal local, que tinha um grande desenho de Luther King feito por uma criança. «Quem é este?», interrogou ela.
Ele respondeu que King tinha sido um pregador que havia afirmado que «deves tratar todos da mesma forma, sem olhar à aparência». Ela ficou a pensar naquelas palavras por alguns momentos. «Então foi o que Jesus disse», respondeu. Hitt afirmou que nunca tinha pensado nisso daquela maneira, mas sim, tem muito a ver com a frase «faz aos outros...».
A criança voltou a ficar pensativa por instantes, depois olhou para o pai e interrogou: «Também o mataram?».
Esta história andou às voltas na minha cabeça a 26 de dezembro, a festa de Santo Estêvão, o primeiro mártir cristão. Os novos brinquedos da nossa filha continuavam dispersos por toda a sala de estar, o quarto dela, a entrada. As imagens do Menino Jesus descansavam pacificamente na meia dúzia de presépios espalhados pela casa. E a Igreja celebrava um jovem do primeiro século que foi apedrejado por causa do que acreditava e fez. É uma justaposição dissonante. Segue até ao extremo a mensagem de amor e paz revelada na manjedoura e pode ser que acabes numa cruz ou na varanda de um hotel.
Nunca vi uma imagem mais poderosa sobre esta verdade do que a fotografia que povoou a internet nos dias a seguir ao Natal: crentes amontoados na secção frontal da catedral maronita católica em Alepo, tendo atrás de si a grande nave da igreja totalmente bombardeada.
A palavra "mártir" significa testemunha, e estas testemunhas sírias deixaram-me estupefacto. As suas vidas do dia a dia tornam-nas pessoalmente mais íntimas com a história de Santo Estêvão do que a maioria de nós alguma vez será. Ainda assim, confrontadas com uma violência inimaginável, apareceram para adorar juntas o Príncipe da Paz. Apareceram. Apareceram.
Eu, quanto a mim, passei os olhos pela seleção de cânticos da nossa Missa do Galo. Tenho evitado olhar diretamente para os olhos da maior parte dos sem-abrigo que vejo nas ruas em redor do meu escritório. Muitas vezes, demasiadas vezes, não estou a aparecer.
«Digo-vos uma coisa», afirmou o papa Francisco no dia de Santo Estêvão. Na sua habitual forma direta, pareceu-me que estava a falar precisamente para mim e para os meus confortáveis companheiros cristãos: «Os mártires de hoje são muitos mais em relação aos dos primeiros séculos [da Igreja]. Quando lemos a história dos primeiros séculos, aqui, em Roma, lemos tanta crueldade com os cristãos; eu digo-vos: hoje existe a mesma crueldade, em número superior».
«Hoje queremos pensar neles que sofrem perseguições, e estar próximos deles com o nosso afeto, a nossa oração e também com o nosso pranto», continuou ele. «Não obstante as provas e os perigos, eles testemunham com coragem a sua pertença a Cristo e vivem o Evangelho comprometendo-se a favor dos últimos, dos mais esquecidos, fazendo o bem a todos sem distinção; testemunham assim a caridade na verdade.»
Eis aqui alguma inspiração para uma resolução de Ano Novo que valha a pena. Pertencer a Jesus. Viver o Evangelho. Favorecer os últimos e os esquecidos. Fazer o bem a todos sem distinção. Extrair energia da coragem de Martin Luther King, dos cristãos de Alepo e de Santo Estêvão. Por outras palavras: ser uma testemunha, por amor de Deus.
Mike Jordan Laskey
In "National Catholic Reporter"
Trad. / adapt.: Rui Jorge Martins
Publicado em 03.01.2017 no SNPC
Durante séculos os primeiros cristãos festejaram como festa das festas a Páscoa da ressurreição de Jesus o primeiro dia da semana judaica, para eles tornado “dia do Senhor”, e não sabemos se em algumas comunidades do Mediterrâneo se recordava o nascimento de Jesus com uma festa particular.
No século IV, após o edito de Constantino e a liberdade de culto concedida aos crentes em Cristo, ocorre a cristianização de uma festa pagã introduzida pouco antes pelo imperador Aureliano (c. 270) e celebrada em Roma como festa do “Sol invictus”, do “Sol vencedor”, que nesse dia começa a alongar o seu tempo de luz sobre a Terra.
Para os cristãos, Jesus o Senhor era «o Sol de Justiça» cantado por Malaquias, era «a Luz do Mundo» proclamada pelo Evangelho. Eis então que no ocidente o renascimento do “Sol invictus” pagão foi cristianizado mediante a festa do Natal, da Natividade de Jesus Cristo. Paralelamente, no oriente (Egito e Síria), onde o solstício de inverno se assinalava a 6 de janeiro, assume-se essa data para celebrar a Epifania como festa da manifestação da vinda do Filho de Deus à nossa humanidade.
Esta é a origem da nossa festa, que desde sempre teve no seu centro o Evangelho do nascimento de Jesus segundo Lucas (2, 1-14). Na missa da noite, celebrada no coração das trevas, refulge uma grande luz: Jesus, dado à luz por Maria em Belém.
Esta narrativa não é uma fábula, ainda que pareça escrita para as crianças, que significativamente a recordam para toda a vida, mas é uma página do Evangelho, uma noa notícia. Por isso Lucas quer antes de mais situar esse acontecimento na grande história do Mediterrâneo, marcada pelo domínio do Império Romano.
César Augusto decide contar os habitantes de todas as terras conquistadas por Roma: para tal ordena um recenseamento, executado na terra de Israel por Quirínio, governador da Síria. José obedece a esta ordem e, juntamente com a mulher, Maria, deixa a sua cidade de Nazaré para se dirigir a Belém, na Judeia, no sul da Terra Santa, onde tinha tido origem a casa e a descendência de David, o Messias, o ungido do Senhor, o rei de Israel.
Enquanto este casal se encontra em Belém, numa condição precária e de pobreza, não tendo encontrado lugar na estalagem, numa pequena construção, somente um abrigo no campo, Maria, que está grávida, dá à luz o seu filho primogénito, a ela anunciado por revelação como gerado pelo Espírito de Deus, um Filho que só Deus podia dar a toda a humanidade.
Aqui já está uma forte contraposição, que caraterizará toda a vida deste recém-nascido. Quem domina o mundo é Augusto – chamado “Divus”, “Deus”; “Sotér”, “Salvador”; “Kýrios”, “Senhor” –, mas o verdadeiro Salvador e Senhor é um seu súbdito, um bebé nascido numa situação pobre, para o qual desde logo parece não haver lugar neste mundo.
Conhecemos todos bem o ícone da Natividade: uma cabana ou uma gruta, e Maria que deita o seu filho numa manjedoura, com José ao lado, testemunha e guardador daquele mistério no qual é envolvido e ao qual presta pontualmente obediência. Tudo acontece na noite, no silêncio, na condição humaníssima de uma mãe que dá à luz um filho. Ninguém conhece aquele casal, ninguém o acolhe, ninguém se dá conta de nada.
Mas eis que Deus envia um seu mensageiro aos pastores que se encontram nas colinas que circundam Belém, para levantar o véu sobre aquele acontecimento: «Um anjo do Senhor apresentou-se a eles e a Glória do Senhor envolveu-os em luz». Os pastores são gente desprezada, marginalizada, que nem sequer são considerados dignos de ir ao templo para encontrar o Senhor. Mas é precisamente a estes últimos da sociedade da Judeia que é dirigido o anúncio, a boa notícia por excelência, que é alegria para todo o Israel, para todo o povo de Deus. Pela sua condição de pobres e últimos, os pastores são os primeiros destinatários por direito desta boa notícia:
«Hoje, na cidade de David, do Messias, nasceu para vós um Salvador, que é o Messias, Senhor».
Neste anúncio colhemos como que uma antecipação da boa notícia pascal: Jesus é o “Kýrios”, o Salvador. Não Augusto, que se vangloriava desse título, mas um menino recém-nascido recebe esse mesmo título da parte de Deus. Assim acontece a revelação aos pequenos, aos últimos, da qual são excluídos quantos acreditavam ser destinatários de direito: sacerdotes, peritos da Lei, crentes militantes convencidos de serem só eles os verdadeiros filhos de Abraão.
Aos pastores é dado também um sinal, uma indicação para que possam ver e compreender: nada de extraordinário ou de divino mas, de novo, uma realidade humaníssimas: «Encontrareis um recém-nascido envolvido em faixas, deitado numa manjedoura». Realidade simples e humilde, sem ornamentos, sem “extraordinário”.
E todavia este anúncio é dado por um coro incontável de criaturas invisíveis, numa espécie de liturgia cósmica, essa liturgia do céu que não conseguimos ver nem escutar mas que enche o universo e canta a santidade e a glória de Deus, isto é, proclama quem e como Deus ama. Com efeito, o que nesse canto coral é revelado é a vontade de Deus: «Deus tem peso (“kabod”, glória), Deus age no mundo mesmo sendo Santo e está no mais alto dos céus, Deus dá a paz à humanidade que Ele ama».
Eis a boa notícia do Natal: Deus ama-nos de tal modo que quis ser um de nós, entre nós, igual a nós, um homem como nós.
Enzo Bianchi
In Monastero di Bose
Trad.: Rui Jorge Martins
Publicado em 22.12.2016
Na penumbra da noite, olhos carregados de nuvens, encontro oculto um convite a descobrir o sentido da chuva em mim. O piano toca baixinho a melodia dedilhada nas batidas do coração. Raios cortam o céu, fazem um espetáculo acontecer. Tomada pelo assombro diante do espetáculo da vida sinto essa sensação quase esquecida... Gravo na retina a imagem do céu, que cai sobre minha face no meio da escuridão. Soberana a natureza manifesta sua grandeza. Recorda-me a pequenez e a fragilidade da vida humana e ainda assim, a vida humana encarnada por Deus...
Durmo no embalo dessa torrente de águas que envolve meus sonhos. Aconchegada a cobertas e travesseiros entrego-me. O inconsciente, esse mundo desconhecido, então se abre à graça. Não sei, mas sinto: é aí que acontecem os milagres que já não posso ver. É nesse lugar que Deus afasta nuvens pesadas, carregadas de tantas preocupações e passeia tranquilo por entre os fios de meus cabelos. Ventos impetuosos abrem portas e janelas no meu interior. Suas mãos num delicado gesto derramam sem pressa, o bálsamo perfumado sobre as cicatrizes endurecidas. Sou banhada como a chuva em terra seca, embalada como um recém nascido. Suavemente sinto o sopro sobre os meus sonhos sufocados. Respiro profundamente e solto-me dos travesseiros... Liberdade chega sorrateira no toque de seus lábios a cobrir de beijos enternecidos os meus, seus, desejos em mim. Seus pés tocam com intimidade o chão da minh'alma e as franjas de sua veste varrem carinhosamente tudo que preciso esquecer. Então Ele sorri pra mim num rosto de criança fazendo alegre a menina dos meus olhos.
O tempo, amigo, lá não existe. Os raios de sabedoria vão formando mandalas de vida brincando com a luz na escuridão... e os medos, esses que falam mansinho o dia todo ao pé do ouvido, esses saem voando ao som dos trovões. Assim que eles saem a chuva mansa vem então testemunhar, o amor eterno de meus pais que me visitam só para lembrar: meu lugar de filha em seus corações para sempre vai estar.
Acordo desejando lá permanecer... mas a chuva mansa se transforma numa melodia alegre anunciando o novo dia. Agora posso sentir o assombro e a surpresa pela vida renascida em mim. Descubro o sentido de ter nascido assim... em meio a chuvas, no tempo da espera da vinda, da esperança! Reconheço-me toda Advento, a espera do que já se realiza no meu interior: o natal, o Deus conosco Emanuel.
No meu aniversário é esse o presente que eu desejo: que cada ser humano, em sua fragilidade tão divina, sinta o assombro pela vida renascida a cada dia, na presença do Amor encarnado em seus corações em forma de esperança que encharca de sentido o existir.
Lilian Carvalho
BH - 18.12.2016
«Ide aprender o que quer dizer “misericórdia quero, e não sacrifícios”» (Mateus 9, 13). Assim Jesus se dirigia aos homens religiosos do seu tempo que o censuravam porque se sentava à mesa com publicanos e pecadores. Ele, com efeito, veio «não para os justos, mas para os pecadores». E sobre este «aprender a misericórdia» o papa Francisco quis configurar o jubileu que se encerrou no domingo: não uma rejeição daquilo que é bem e daquilo que é mal em absoluto, não uma relativização da gravidade de certos comportamentos, mas a convicção evangélica de que, para usar as palavras do papa João XXIII na abertura do Vaticano II, «no tempo presente a Igreja prefere usar o remédio da misericórdia em vez de pegar nas armas do rigor; pensa que se deve ir ao encontro das necessidades contemporâneas, expondo mais claramente o valor do seu ensinamento, em vez de condenar».
Não fez outra coisa o papa Francisco durante este ano senão evidenciar algumas das «necessidades contemporâneas» a que a Igreja deveria responder com o remédio da misericórdia para curar os doentes ou aliviar-lhes o sofrimento, não para contentar os justos que não carecem de conversão. E esta, naturalmente, é uma tarefa que não se pode esgotar num ano, não se pode deter nos umbrais das portas das catedrais, agora simbolicamente a nível litúrgico infelizmente “encerradas”: trata-se, efetivamente, de “aprender” uma arte, “aprender” o que quer dizer usar misericórdia nas nossas relações no interior da Igreja e na companhia dos homens.
O âmbito que suscitou maior ênfase foi o da vida familiar: infelizmente da exortação pós-sinodal “Amoris laetitia” foram explorados só poucos parágrafos e algumas notas relativas à possibilidade ou não de acesso aos sacramentos da parte dos divorciados recasados, enquanto se negligenciou a solicitude pastoral que atravessa o conjunto do texto e abraça os muitos aspetos de alegria e de sofrimento ligados à vida concreta de milhões de famílias nas realidades sociais e culturais mais díspares.
É nesta ótica autenticamente global que o papa recordou vigorosamente que usar misericórdia não significa calar as realidades que ferem os seres humanos e a sua dignidade: as guerras e a fome, antes de tudo, que semeiam morte e obrigam milhões de pessoas a fugir em condições desesperadas da sua terra e, depois de terem ultrapassado territórios e mares de morte, a encontrarem muros de recusa da parte de quem não sabe abrir o coração e a casa ao pobre que bate à porta.
Mas também a superação das injustiças econômicas estruturais é obra de misericórdia: garantir “terra, casa e trabalho” a cada ser humano significa salvaguardar-lhe a dignidade mais profunda, dignidade que nenhuma lei ou sociedade podem negar, nem sequer a quem está na prisão. Neste sentido, o papa Francisco não hesitou em estigmatizar o mercado quando percorre caminhos desumanos ou mortíferos – como no caso dos traficantes de armas – ou a própria justiça humana quando por um crime, ainda que brutal, prevê a pena de morte evidente ou a “oculta” da prisão perpétua.
Misericórdia, recordou-nos o papa durante este jubileu, é também revisitar as divisões históricas entre os cristãos para regressarem juntos ao Evangelho e juntos caminharem para a unidade querida por Jesus para os seus discípulos.
Nos últimos dias alguns tentaram fazer um balanço deste ano jubilar a nível turístico e econômico para a cidade de Roma, mas torna-se impossível elaborar a nível mundial o único balanço que conta para quem leva a peito o Evangelho: o da conversão das consciências e da mudança de comportamentos por parte de quem se professa cristão. Sem dúvida que a centralidade do Evangelho manifestada e afirmada de muitos modos e em diversas ocasiões sacudiu e até escandalizou quantos estão mais preocupados pela religião do que pela mensagem de Jesus Cristo. Neste sentido, se a hostilidade para com o papa Francisco se manifestou ou cresceu é por causa do seu arrojo no mostrar e pregar a misericórdia.
É certo que não basta um ano para “aprender” o que quer dizer misericórdia e agir em consequência, mas o papa Francisco quis recordar que sobre ela se mede para os cristãos a fidelidade ao Evangelho e para todos a possibilidade de percorrer caminhos de humanização.
Enzo Bianchi
Prior do Mosteiro de Bose, Itália
Trad: Rui Jorge Martins
Publicado em 25.11.2016 no SNPC
O mês de outubro convoca-nos para uma reflexão maior sobre o que é ser missionário. Mas não se pode esquecer que missionariedade é compromisso de todos os dias de nossa vida. Jesus, ao se encarnar no mundo dos pobres, recebeu do Espírito Santo sua missão: "O Espírito do Senhor está sobre mim, porque ele me ungiu para que dê a Boa-Notícia aos pobres; enviou-me para anunciar a liberdade aos cativos e a visão aos cegos, para por em liberdade os oprimidos e para proclamar o ano da graça do Senhor" Lc 4,181-19).
A Igreja de Jesus Cristo sempre foi e continua sendo chamada a ser missionária. Desde o início ela se colocou no seguimento de Jesus atendendo o seu pedido: "Ide a todas as nações e pregai o evangelho" (Mt 28,19). Ao colocar em prática a sua missionariedade, esta propicia o encontro com o outro e realiza um resgate da beleza que existe dentro de cada um. Isto acontece por causa do anúncio da Pessoa de Jesus Cristo gerador de relacionamentos que provocam vários tipos de sentimentos e possibilitam descobertas de valores e carismas.
A cada um de nós o Espírito Santo nos chama à responsabilidade para com o mundo, com a missão de salvá-lo. E salvá-lo de todas as formas de pecado: egoísmo, injustiça, opressão, discriminação, pobreza, riqueza. Em Jesus , os pobres continuam os destinatários da ação de Deus. Ação que é sempre uma re-ação aos clamores do povo e uma re-ação libertadora/salvífica. Nesse sentido, testemunhar a vida de Jesus através do anúncio e da ação é ser testemunha do Reino de Deus.
Jesus, essa pessoa fascinante
Quem é Jesus e como se encontrar com ele? Jesus é o mestre que nos convida a inovar. Ele manifesta seu dom carismático de congregar e agir junto a outras pessoas. Foi um verdadeiro líder capaz de interagir e convocar para a missão a mulher e os últimos. Apresentou-se como um mestre controvertido, profético, surpreendente. Para ele o pequeno era o maior, e o último, o primeiro.
Diante da realidade na qual encontramos somos chamados a sair do comodismo e, na execução do trabalho missionário contribuir para que aconteça atitudes cristãs, interação fé e vida, dar-se a conhecer Jesus Cristo, para que crianças jovens e adultos vivam dele e com ele uma vida nova, uma vida de amor a Deus e aos outros. Como disse Santo Inácio de Antioquia, no século II: "Viver imitando os bons costumes de Deus".
Nos evangelhos, através das narrativas, podemos nos encontrar com Jesus, o Cristo Ressuscitado. Iniciando com o Evangelho de Marcos, encontramos em Mc 8,27-30 uma pergunta de Jesus a seus discípulos: 'Quem dizem as pessoas que eu sou?" E eles responderam: " Uns dizem João Batista, outros, Elias; outros ainda, um dos profetas". E Jesus perguntou a seus discípulos: "E vós, quem dizeis que eu sou?" Pedro Respondeu: "Tu és o Messias, o Cristo. Esta foi a consciência da comunidade dos discípulos depois da Páscoa.
Percorrendo o caminho dos evangelhos mais um pouco, vamos encontrar lá na comunidade Joanina (Jo 3,1-15)) a proposta de Jesus. Aquela que ele faz a Nicodemos: nascer de novo. Mas como? O primeiro passo é abrir-se ao novo, deixar-se seduzir pelo Espírito que sopra onde quer, quando quer e como quer. Jesus Cristo é o centro da mensagem evangélica no conjunto da história da salvação. É por meio dele, em primeiro lugar, que Deus intervém no mundo e se manifesta a todos: crianças, jovens e adultos.
Levar esta mensagem ao mundo constituiu tarefa de todos os cristãos. Dirigindo um olhar para nossa realidade, cada pessoa pode perceber que a mesma nos impulsiona à mudança, e podemos, sem medo, iniciar a partir de uma abordagem nova diante da realidade, ou ainda retomar o caminho feito pelas primeiras comunidades cristãs, as quais levavam o adulto a aderir a Cristo e se comprometer com Ele através da participação ativa na comunidade e abrir-se ao mundo levando o anúncio de Jesus Cristo.
Como diz o Papa Francisco: "É hora de voltar a "abrir portas e Janelas" para que a Igreja possa retomar o compasso da história e fazer um novo aggiornamento com os novos sinais dos tempos, suscitados pelo Espírito no seio de uma sociedade em profundas transformações (Cf. FRANCISCO renasce a esperança).
Neuza Silveira de Souza
Coordenadora da Comissão Bíblico-Catequética da Arquidiocese de Belo Horizonte.
JUBILEU EXTRAORDINÁRIO DA MISERICÓRDIA
JUBILEU DOS CATEQUISTAS
HOMILIA DO PAPA FRANCISCO
Na segunda Leitura, o apóstolo Paulo dirige a Timóteo – e a nós também – algumas recomendações que tinha a peito. Entre elas, pede que «guarde o mandamento, sem mancha nem culpa» (1 Tm 6, 14). Fala apenas de um mandamento, parecendo querer fazer com que o nosso olhar se mantenha fixo no que é essencial na fé. De facto, São Paulo não recomenda uma multidão de pontos e aspetos, mas sublinha o centro da fé. Este centro à volta do qual tudo gira, este coração pulsante que a tudo dá vida é o anúncio pascal, o primeiro anúncio: O Senhor Jesus ressuscitou, o Senhor Jesus ama-te, por ti deu a sua vida; ressuscitado e vivo, está ao teu lado e interessa-Se por ti todos os dias. Isto, nunca o devemos esquecer. Neste Jubileu dos Catequistas, pede-se-nos para não nos cansarmos de colocar em primeiro lugar o anúncio principal da fé: o Senhor ressuscitou. Não há conteúdos mais importantes, nada é mais firme e atual. Cada conteúdo da fé torna-se perfeito, se se mantiver ligado a este centro, se for permeado pelo anúncio pascal; mas se, pelo contrário, se isolar, perde sentido e força. Somos chamados continuamente a viver e anunciar a boa-nova do amor do Senhor: «Jesus ama-te verdadeiramente, tal como és. Dá-Lhe lugar: apesar das deceções e feridas da vida, deixa-Lhe a possibilidade de te amar. Não te decepcionará».
O mandamento de que fala São Paulo faz-nos pensar também no mandamento novo de Jesus: «Que vos ameis uns aos outros como Eu vos amei» (Jo 15, 12). É amando que se anuncia Deus-Amor: não à força de convencer, nunca impondo a verdade nem mesmo obstinando-se em torno de alguma obrigação religiosa ou moral. Anuncia-se Deus, encontrando as pessoas, com atenção à sua história e ao seu caminho. Porque o Senhor não é uma ideia, mas uma Pessoa viva: a sua mensagem comunica-se através do testemunho simples e verdadeiro, da escuta e acolhimento, da alegria que se irradia. Não se fala bem de Jesus, quando nos mostramos tristes; nem se transmite a beleza de Deus limitando-nos a fazer bonitos sermões. O Deus da esperança anuncia-Se vivendo no dia-a-dia o Evangelho da caridade, sem medo de o testemunhar inclusive com novas formas de anúncio.
O Evangelho deste domingo ajuda-nos a compreender o que significa amar, especialmente a evitar alguns riscos. Na parábola, há um homem rico que não se dá conta de Lázaro, um pobre que «jazia ao seu portão» (Lc 16, 20). Na realidade, este rico não faz mal a ninguém, não se diz que é mau; e todavia tem uma enfermidade pior que a de Lázaro, apesar deste estar «coberto de chagas» (ibid.): este rico sofre duma forte cegueira, porque não consegue olhar para além do seu mundo, feito de banquetes e roupa fina. Não vê mais além da porta de sua casa, onde jazia Lázaro, porque não se importa com o que acontece fora. Não vê com os olhos, porque não sente com o coração. No seu coração, entrou a mundanidade que anestesia a alma. A mundanidade é como um «buraco negro» que engole o bem, que apaga o amor, que absorve tudo no próprio eu. Então só se veem as aparências e não nos damos conta dos outros, porque nos tornamos indiferentes a tudo. Quem sofre desta grave cegueira, assume muitas vezes comportamento «estrábicos»: olha com reverência as pessoas famosas, de alto nível, admiradas pelo mundo, e afasta o olhar dos inúmeros Lázaros de hoje, dos pobres e dos doentes, que são os prediletos do Senhor.
Mas o Senhor olha para quem é transcurado e rejeitado pelo mundo. Lázaro é o único personagem, em todas as parábolas de Jesus, a ser designado pelo nome. O seu nome significa «Deus ajuda». Deus não o esquece… Acolhê-lo-á no banquete do seu Reino, juntamente com Abraão, numa rica comunhão de afetos. Ao contrário, na parábola, o homem rico não tem sequer um nome; a sua vida cai esquecida, porque quem vive para si mesmo não faz a história. E um cristão deve fazer a história; deve sair de si mesmo, para fazer a história. Mas quem vive para si mesmo, não faz a história. A insensibilidade de hoje escava abismos intransponíveis para sempre. E hoje caímos nesta doença da indiferença, do egoísmo, da mundanidade.
E há outro detalhe na parábola: um contraste. A vida opulenta deste homem sem nome é descrita com ostentação: nele, carências e direitos, tudo é espalhafatoso. Mesmo na morte, insiste em ser ajudado e pretende os seus interesses. Ao contrário, a pobreza de Lázaro é expressa com grande dignidade: da sua boca não saem lamentações, protestos nem palavras de desprezo. É uma válida lição: como servidores da palavra de Jesus, somos chamados a não ostentar aparência, nem procurar glória; não podemos sequer ser tristes ou lastimosos. Não sejamos profetas da desgraça, que se comprazem em lobrigar perigos ou desvios; não sejamos pessoas que vivem entrincheiradas nos seus ambientes, proferindo juízos amargos sobre a sociedade, sobre a Igreja, sobre tudo e todos, poluindo o mundo de negatividade. O ceticismo lamentoso não se coaduna a quem vive familiarizado com a Palavra de Deus.
Quem anuncia a esperança de Jesus é portador de alegria e vê longe, tem pela frente horizontes, e não um muro que o impede de ver; vê longe porque sabe olhar para além do mal e dos problemas. Ao mesmo tempo, vê bem ao perto, porque está atento ao próximo e às suas necessidades. Hoje o Senhor pede-nos isto: face aos inúmeros Lázaros que vemos, somos chamados a inquietar-nos, a encontrar formas de os atender e ajudar, sem delegar sempre a outras pessoas nem dizer: «Ajudar-te-ei amanhã, hoje não tenho tempo, ajudar-te-ei amanhã». E isto é um pecado. O tempo gasto a socorrer os outros é tempo dado a Jesus, é amor que permanece: é o nosso tesouro no céu, que nos asseguramos aqui na terra.
Concluindo, amados catequistas e queridos irmãos e irmãs, que o Senhor nos dê a graça de sermos renovados cada dia pela alegria do primeiro anúncio: Jesus morreu e ressuscitou, Jesus ama-nos pessoalmente! Que Ele nos dê a força de viver e anunciar o mandamento do amor, vencendo a cegueira da aparência e as tristezas mundanas. Que nos torne sensíveis aos pobres, que não são um apêndice do Evangelho, mas página central, sempre aberta diante de todos.
Praça São Pedro
Domingo, 25 de setembro de 2016
imagem: site do vaticano
Caríssima irmã, caríssimo irmão Catequista.
Os caminhos da Igreja no Brasil assinalam o mês de agosto com uma nobre particularidade. A temática vocacional recebe forte acentuação: dia dos pais, dia do padre, dia do religioso, dia do Catequista. Este previsto para o próximo dia 28.08.
Em nome da CNBB quero servir-me da data para uma palavra permeada de sincero afeto e imensa gratidão. Embora não seja possível ser suficientemente grato a tanta dedicação, com muita simplicidade, apresento-me para uma reflexão agradecida.
Começo chamando-lhe à recordação uma sua experiência pessoal muito singular: lembra quando alguém lhe dirigiu o convite a tornar-se Catequista? Certamente está presente em sua memória a pessoa, as frases e o contexto. Lembra também de sua própria reação? Talvez inquietação, ou dúvidas, ou temor por não se sentir apta(o). É até possível que lhe tenha aflorado a preocupação pela falta de tempo...
Mesmo assim, embora com tantas objeções, Você aceitou. Estou certo que ainda estão bem presentes os motivos que moveram a aceitar... E o Espírito Santo estava lá: movia, suscitava, inquietava. E eis que desde sua liberdade e desde sua capacidade de amar houve um movimento de afeição amorosa pelo Senhor, pela comunidade, pelos “seus” catequizandos.
Hoje, tendo já passado um bom tempo, talvez anos, cabem duas perguntas bastante simples: mais ofereceu ou mais recebeu? Mais aprendeu ou mais ensinou? É verdade que os desânimos por vezes se apresentaram; também sinais de cruz se pronunciaram. Mas quanto crescimento! Quantos sinais da proximidade de Deus! Quantas experiências de fé! É... Catequese é um caminho, um discipulado, um encontro que perdura e atravessa os anos. Mas o Senhor nunca se deixa vencer em generosidade. Quantas graças!!!
Seu sim ajudou a Igreja a ser Evangelizadora; a ser mais Igreja. Sua dedicação de Catequista a(o) faz lembrar-se de que o Senhor Jesus quer ser conhecido mais por seu amor do que por doutrinas. Por isso mesmo o episcopado brasileiro lhe agradece, caríssima(o) Catequista. E neste dia louva o Senhor por seu ministério. Que Deus lhe multiplique em bênçãos a bênção que é Você para a nossa Igreja.
Dom José Antonio Peruzzo
Arcebispo de Curitiba-PR
Presidente da Comissão Episcopal Pastoral para a Animação Bíblico-Catequética
Ela é uma amiga querida que a catequese e a vida me deram! Fui até ela depois de meses sem vê-la, uma alegria encontrá-la. E o que me disse, no meio da conversa, me fez agora perder o sono. Necessidade de colocar no papel o que me comoveu e alegrou o coração.
Eu a conheci já como catequista de catequista. Pois ela decidiu, depois de se recuperar de um período de dores após uma queda, atender ao pedido de uma catequista que queria formação. Marcou encontros semanais em sua casa e começou a fazer o que sempre fez: preparar catequista. E me contou com brilho nos olhos que isso a alegrou e a refez. E que, além disso, aprende com a catequista que lhe pediu ajuda, pois essa moça, diz ela, tem um olhar atento a tudo e um jeito bom de saborear as coisas.
Impressionante, pensei comigo mesma, olhando para o brilho do olhar dela e para o sorriso no rosto. Enchi o olho d’água e fiquei comovida, sem palavras. Pensei: ela ainda ama a catequese e encontrou aos 93 anos um novo motivo para viver essa vocação e esse amor que a moveu a vida inteira.
E caminhando de volta pra casa olhei para mim mesma e o cansaço do dia se foi. Também achei ridícula minha justa angústia diante da partilha que fiz sobre a alta rotatividade dos catequistas e do fato de que isso impede, em muitos lugares, a catequese de avançar. Pois enquanto tivermos uma catequista que mesmo sem condições físicas, financeiras, materiais, conseguir acreditar na educação da fé e fazer de tudo para melhorar a formação de uma só catequista, a catequese terá futuro, está a salvo.
A maturidade da fé cristã depende de catequistas que sabem da importância da iniciação à fé e ao seguimento de Jesus Cristo. Sem preocupação com o quanto de tempo gastará ou, no caso dessa amiga, até se terá tempo de terminar o processo de formação. O que importa é cuidar do que é o mais importante: a formação de catequista.
Aí está uma razão para viver: ajudar uma catequista crescer na fé, na compreensão de si mesma, no amor a Jesus Cristo e a Igreja, no amor ao catequizando, o que a faz aprender o melhor jeito e linguagem para chegar ao seu coração.
Ah! Que lindo! Amar e Servir com alegria, fazer o que é possível para o bem da catequese. E, ao servir deixar-se modificar pelo outro, aprender. Que maturidade de fé e de amor, que paixão pelo Reino!
Minha amiga não me contou para se exaltar ou para que eu contasse esse fato a alguém. Mas não resisti, transborda em mim o desejo de espalhar experiência tão linda. E a razão pela qual eu faço isso é para animar você a seguir em frente, a dedicar a vida pela causa do Reino, como catequista.
Lembrei-me de outros rostos queridos, de tantas(os) catequistas que encontrei pela vida e reverencio essa gente que resiste e insiste em continuar na catequese apesar de tantos desafios, que se dá generosamente e inventa jeitos novos de cuidar da própria formação. E termino enviando um beijo pra Deus que em sua grande bondade e amor nos chamou a ser catequista, coisa tão linda na sua Igreja.
Lucimara Trevizan
Coordenadora da Comissão Bíblico-Catequética do Leste 2
12.08.2016
Sexta-feira da paixão. Uma manifestação de infecção localizada. À noite já estava hospitalizada, acometida da temida septicemia, aquela tal infecção generalizada. Sábado Santo(26.03.2016), às 16h, Aída vive a sua Páscoa definitiva, passando pela morte.
Uma contabilista de 86 anos, moradora do Santa Efigênia. Melhor identificá-la como servidora da catequese. Serviu durante décadas, várias décadas, muitas décadas à catequese porque sabia o valor da educação da fé. Baixinha, sorridente, enérgica, organizada. Pele cor de canela. Cabelos branquinhos encaracolados, bem curtos. Até a quinta-feira santa à tarde ela trabalhou pela catequese, organizando o arquivo do IRPAC – Instituto Regional de Pastoral Catequética, da CNBB-Leste II. Este Instituto está para completar 30 anos. Durante 30 anos ela prestou serviços – por amor à catequese – ao IRPAC.
É uma história bela. Uma anônima para os grandes. Uma conhecida dos catequistas. Aída fará muita falta. A trajetória dela faz-me pensar na diferença entre o que “faz sucesso” – mundanismo como diz o papa Francisco – tão buscado pela igreja midiática e seus vorazes artistas, ainda que de qualidade sofrível, que a todo instante precisam “explicar” que não são artistas, mas ministros, pastores, evangelizadores... e o que “é bem sucedido”, porque foi realizado com amor ao outro, num percurso de crescimento e amadurecimento da fé. Aída foi bem sucedida, suficiente. Como uma vela diminuía-se para iluminar com a fé cristã.
Alcançou uma quantidade enorme de pessoas, com uma mensagem consistente. Ao invés de gerar alienados compulsivos, saltitantes, educou na fé cristãos comprometidos, testemunhas do evangelho. Ao invés de holofotes, preferiu a chama fumegante, ardente e perseverante.
Aída continua acesa.
Dom Joaquim Giovani Mol Guimarães
Bispo Auxiliar da Arquidiocese de Belo Horizonte
29 de março de 2016
“A terra estava deserta e vazia, as trevas cobriam o abismo...”. Assim começa a narração do Livro do Gênesis, permitindo uma analogia com o atual momento político do Brasil. A política partidária instalou incontestavelmente o caos na sociedade. Está perdida a capacidade para o diálogo que gera consensos e entendimentos. Não paira, absolutamente, o Espírito de Deus no mundo da política. É uma escuridão que fomenta o caos - um “salve-se quem puder” que passa por cima do bem comum como um trator. Não há esperança de que a política partidária consiga, rapidamente, oferecer contribuições para os rumos da nação. A lista de desmandos, escolhas absurdas, interesseiras e manipulações é interminável. Comenta-se, em muitas esferas da sociedade, sobre a expectativa do surgimento de um líder político capaz de gerar agregação e apontar novas direções. Isso parece ser difícil de ocorrer, justamente pelo atual cenário vivido pela política partidária. Quem seria capaz, agora, de reverter essa difícil situação? O mundo da política partidária no Brasil configura-se como um devastador desastre humano à semelhança das incidências horrendas que ferem o meio ambiente.
A deterioração da esfera política e o tratamento inadequado das questões ambientais se desenvolvem a partir da mesma raiz. Aqui vale relembrar as palavras do Papa Francisco, na sua Exortação Apostólica Alegria do Evangelho, quando se refere à nova idolatria do dinheiro. O caos vem dessa idolatria. É inexistente a nobreza de fazer política pelo bem comum, com o objetivo de ajudar a nação a alcançar patamares de civilidade e de funcionamentos que promovam, sem populismos, os seus cidadãos. A falta dessa nobreza é resultado de carência na formação humanística que ilumina intuições, capacita para o bem, muito acima do interesse de enriquecimentos ilícitos. O Papa Francisco afirma que “uma das causas desta situação está na relação estabelecida com o dinheiro porque aceitamos pacificamente o seu domínio sobre nós e nossas sociedades”. Essa verdade explica os desajustes no tecido da cultura, que delineia a identidade da sociedade e influencia suas direções.
O Papa Francisco oferece a chave de interpretação desse caos instalado que produz, por exemplo, a crise financeira que pesa sobre os ombros de todos. A base da desordem é a negação da primazia do ser humano. Esse colapso antropológico tem muitas feições. Descompassa relações, articulações de grupos e segmentos na sustentação de uma sociedade que deve se mover no horizonte da justiça e da solidariedade. É triste constatar o que ocorre na política partidária. O desejo de ocupar cargos públicos não vem acompanhado do sentido cidadão mais profundo de ajudar decisivamente na construção de uma sociedade solidária e justa. Trata-se de interesse doentio pelo dinheiro, para alimentar ilusórias sensações de poder e segurança. Uma ambição que produz essa economia sem rosto e sem um objetivo verdadeiramente humano.
Ora, a idolatria do dinheiro é perigosa, gera ilusões e desgasta o mais nobre sentido da política, que é promover o bem comum. Essa idolatria é tão terrível que faz crescer, de modo generalizado, a sensação de que não há mais tempo para fazer o que é necessário. Isto fica explícito nas muitas lamentações e ladainhas exaustivamente propaladas. O interesse mesmo é ganhar sempre mais, produzir menos. Nada de sacrifícios e esforços para alcançar o bem de todos. Uma luz precisa brilhar para iluminar essas trevas. E de onde ela pode vir? Em primeiro lugar, da corresponsabilidade e seriedade cidadã de cada indivíduo. Sistemicamente, essa luz pode e precisa brilhar com o fortalecimento, em seriedade e audácia, dos diferentes segmentos da sociedade - empresarial, religioso, judiciário, acadêmico e intelectual, artístico e outros mais. Cada setor, pela seriedade e honestidade, tem o dever de dissipar as trevas que preenchem o abismo onde está inserida a sociedade brasileira. Que venha de todas as pessoas e grupos, pelo compromisso com o bem, a justiça e a verdade, essa a luz que tem a força para resgatar o país do caos.
Dom Walmor Oliveira de Azevedo
Arcebispo metropolitano de Belo Horizonte
In: Opinião e notícias
18/03/2016
A partir de 1964, com abrangência nacional, vem sendo realizado no Brasil a Campanha da Fraternidade, completando 52 edições neste ano de 2016. Para cada campanha é escolhido um tema e um lema, segundo as exigências relacionadas com as necessidades mais urgentes da população. É espaço de diálogo, reflexão e conscientização sobre a temática apresentada.
A que foi preparada para este ano tem como tema, “Casa Comum, nossa responsabilidade”. O lema vem do profeta Amós 5,24: “Quero ver o direito brotar como fonte e correr a justiça qual riacho que não seca”. É um alerta para nos fazer sair da acomodação e assumir os desafios da vida moderna como sujeitos. Criar consciência de que a terra, a casa comum de todos nós, pode ser diferente.
A Campanha tem por finalidade primeira criar esperança de que a vida das pessoas pode ser muito melhor. As práticas brutais e de ofensa à natureza também podem ser mudadas. Mesmo numa nação de tanta migração, a qualidade de vida pode ser diferente sem transferência de lugar. O mais importante é a mudança nas atitudes pessoais referentes ao tratamento das coisas públicas e da natureza.
Reclamamos de muita coisa. Mas o que é dito deve coincidir com nossa prática, fazendo, de nossa parte, o que é possível realizar. É feio jogar a culpa das coisas não assumidas nos outros. Aliás, isto é muito fácil, mas não ajuda na preservação da casa comum. É como ter fé em Deus, mas não colocar em prática as exigências da vida cristã, principalmente a realização da caridade com o próximo.
A duplicidade de comportamento desabona a autenticidade da vida humana. De um lado, ficar cobrando tarefas e, de outro, não cumprir os próprios deveres. São situações que não conferem com a dignidade cidadã e, muito menos, cristã. Na responsabilidade ecológica da casa comum, na visão do papa Francisco, ninguém fica de fora e todos participam dos sofrimentos e alegrias advindos daí.
A referência principal da Campanha da Fraternidade deste ano é o “saneamento básico”, fazendo parte de seu objetivo geral. Para isso ser realidade, dependemos de políticas públicas para garantir a integridade da casa comum hodierna e para o futuro. Ainda é tempo de reagir e agir, não deixando para depois o que deve ser feito hoje. O mundo está ameaçado pela prática predatória.
Dom Paulo Mendes Peixoto
Arcebispo de Uberaba-MG
Quando as crianças se dão conta - e dão-se conta muito depressa - que o Papai Noel não existe, falam disso entre elas, mas diante dos adultos fingem que não o sabem ainda durante algum tempo, porque percebem que isso lhes dá prazer. O Papai Noel é uma crença extremamente efêmera que se torna numa representação cultural ou familiar tácita, apenas isso. Não admira que muitos se interroguem sobre a razão da persistência da sua figura quando, grandes ou pequenos, muito poucos acreditam verdadeiramente nela. O Papai Noel seria então uma imposição meramente comercial, um ícone vazio, um símbolo gasto e esgotado que não tem nada mais a dizer? Provavelmente sim, se pensarmos na banalização massiva que assistimos ano após ano.
Em todo o caso, vale a pena sondar esta estranheza que faz com que os pais continuem a atribuir a uma outra entidade - uma entidade gráfica e pitoresca como o Papai Noel - os dons que eles mesmos compram para os próprios filhos. Seria lógico pensar que faria mais sentido que o presente fosse ligado ao seu rosto, um rosto bem conhecido, que transmite confiança e afeto, um rosto que reforça o contexto habitual da criança. O dom é, em vez disso, atribuído a uma entidade anônima, desconhecida, que aparece anualmente e de modo fugaz, sem uma relação personalizada com aqueles que oferecem os dons. Mas é precisamente este fato que nos induz a refletir sobre aquilo que se ativa no ato de dar e de receber. Que significa dar? Quem é o agente do dom? De quem recebemos aquilo que nos é dado? É aqui que se decide o sentido submerso do Papai Noel.
Sublinhemos, antes de mais, que o Papai Noel não deixa de ser um pai. Ou, melhor, o pai de um pai, um avô, se tivermos em consideração a sua idade, a sua barba branca, o seu humor tilintante e redondo, a sua bondade um pouco extravagante. Trata-se, no fundo, de um predecessor, de alguém que não representa apenas o instante atual mas quanto nos é transmitido de geração em geração, aquilo que os nossos pais nos dão porque o receberam antes dos seus pais e assim por diante.
O Papai Noel alarga os restritos metros quadrados da família contemporânea e estende os laços, testemunhando também tudo aquilo que se recebe dos outros, e não só dos pais, não só daqueles que constituem o quadro normal da vida. Deste modo, ele une cada criança a todas as crianças do mundo na expectativa e no entusiasmo pelo dom, sem o qual a vida nada seria. O dom, não o esqueçamos, é muito diferente do circuito frio, tão sonâmbulo e voraz, da troca e do comércio, mesmo se hoje parece totalmente sequestrado por essas lógicas.
O que é que de mais precioso podemos dar aos outros que a nossa atenção criativa, o nosso cuidado, o nosso tempo, a nossa fidelidade ao que cada um, em cada instante, é? O dom gera dom, mas não no sentido da gramática mercantil que procura o proveito próprio mais do que a experiência autêntica da oferta de um presente.
O citadíssimo "do ut des" (dou-te para que me dês) é um mote que trai a beleza do dom, o qual pode ser unicamente uma expressão de amor sem cálculo nem medida. Por isso é urgente resistir à pressão comercial que enche o saco do Papai Noel de coisas, coisas e mais coisas, que têm o único efeito de neutralizar a relação, de perpetuar de modo camuflado a indiferença e a distância, em vez de construir uma presença calorosa, disponível, confiante na nossa humanidade diante da humanidade dos outros.
Por isso, quando nós, adultos, nos sentamos junto às crianças, mesmo àquelas que ainda não sabem escrever, para as ajudar a redigir a sua cartinha ao Papai Noel, é importante que tenhamos bem claro dentro de nós a oportunidade e o sentido que naquele momento estão em jogo. Precisamos de reaprender a arte do dom.
José Tolentino Mendonça
In "Avvenire"
Trad.: Rui Jorge Martins
Publicado em 19.12.2015 no SNPC
«Naquele tempo, o Anjo Gabriel foi enviado por Deus a uma cidade da Galileia chamada Nazaré, a uma Virgem desposada com um homem chamado José, que era descendente de David. O nome da Virgem era Maria.
Tendo entrado onde ela estava, disse o Anjo: «Ave, cheia de graça, o Senhor está contigo».
Ela ficou perturbada com estas palavras e pensava que saudação seria aquela.
Disse-lhe o Anjo: «Não temas, Maria, porque encontraste graça diante de Deus.
Conceberás e darás à luz um Filho, a quem porás o nome de Jesus. Ele será grande e chamar-Se-á Filho do Altíssimo. O Senhor Deus Lhe dará o trono de seu pai David; reinará eternamente sobre a casa de Jacob e o seu reinado não terá fim».
Maria disse ao Anjo: «Como será isto, se eu não conheço homem?». O Anjo respondeu-lhe: «O Espírito Santo virá sobre ti e a força do Altíssimo te cobrirá com a sua sombra. Por isso o Santo que vai nascer será chamado Filho de Deus. E a tua parenta Isabel concebeu também um filho na sua velhice e este é o sexto mês daquela a quem chamavam estéril; porque a Deus nada é impossível».
Maria disse então: «Eis a escrava do Senhor; faça-se em mim segundo a tua palavra». (Lucas 1, 26-38)
O Evangelho de Lucas desenvolve a narrativa do anúncio a Maria como o zoom de uma câmara de cinema: parte da imensidão dos céus, restringe progressivamente o olhar até uma pequena povoação, depois a uma casa, ao primeiro plano de uma jovem entre muitas, ocupada nas suas atividades e nos seus pensamentos.
O anjo Gabriel veio até ela. É belo pensar que Deus te acaricia, te toca na tua vida diária, na tua casa. Fá-lo num dia de festa, no tempo das lágrimas ou quando dizes a quem amas as palavras mais belas que conheces.
A primeira palavra do anjo não é uma simples saudação, dentro vibra aquela coisa boa e rara que todos os dias procuramos: a alegria: regozija-te, rejubila, sê feliz. Não pede: reza, ajoelha-te, faz isto ou aquilo. Mas simplesmente: abre-te à alegria como uma porta se abre ao sol. Deus aproxima-se e aperta-te num abraço, vem e traz uma promessa de felicidade.
A segunda palavra do anjo revela o porquê da alegria: és cheia de graça. Um termo novo, nunca ressoado na Bíblia ou nas sinagogas, literalmente inaudito, de tal maneira que perturba Maria: és repleta de Deus, que se inclinou sobre ti, enamorou-se de tu, deu-se a ti e dele transbordas. O seu nome é: amada para sempre. Ternamente, livremente, sem arrependimento amada.
Cheia de graça chama-a o anjo, Imaculada di-la o povo cristão. E é a mesma coisa. Não está cheia de graça porque disse "sim" a Deus, mas porque Deus disse "sim" a ela, antes ainda da sua resposta. E di-lo a cada um de nós: cada qual cheio de graça, todos amados como somos, por aquilo que somos; bons e menos bons, cada qual amado para sempre, pequenos ou grandes cada um repleto de céu.
A primeira palavra de Maria não é um sim, mas uma pergunta: como é possível? Está diante de Deus com toda a sua dignidade humana, com a sua maturidade de mulher, com a sua necessidade de entender. Uma a inteligência e depois pronuncia o seu sim, que então tem o poder de um sim livre e criativo.
Seguramente, como disseram profetas e patriarcas, sou a serva do Senhor. Serva é palavra que nada tem de passivo: serva do rei é a primeira depois do rei, aquela que colabora, que cria juntamente com o Criador.
«A resposta de Maria é uma realidade libertadora, não uma submissão remissiva. É ela pessoalmente a escolher, em autonomia, a pronunciar aquele "sim" corajoso que a contrapõe a todo o seu mundo, que a projeta nos desígnios grandiosos de Deus» (M. Marcolini).
A história de Maria é também a minha e a tua história. Uma vez mais o anjo é enviado à tua casa e diz-te: alegra-te, és cheio de graça! Deus está dentro de ti e cumula a vida de vida.
Ermes Ronchi
In "La Chiesa"
Trad.: Rui Jorge Martins
Publicado em 07.12.2015 no SNPC
Quando eu era criança, cantava: “Ó Maria, concebida sem pecado original/ Quero amar-vos toda a vida, com ternura filial”. Mas eu não entendia bem o que era este tal pecado, que não me parecia nada original. Afinal, se Adão e Eva fizeram uma coisa errada no passado, o que temos a ver com isso? Depois compreendi que essa música fala de algo atual, que marca a humanidade. Cada um de nós, e toda a comunidade humana, experimentamos o mistério do mal. Quantas vezes a gente quer fazer o bem, ser inteiro nas decisões, perdoar, exercitar a generosidade, lutar para melhorar o mundo... Mas as nossas realizações ficam abaixo dos bons desejos. Vivemos uma divisão interior, uma fragilidade, uma tendência ao mais fácil e imediato.
O dogma da Imaculada afirma que Maria, sendo humana como nós, recebe de Deus uma graça especial, para ser forte diante das tentações do mal, assumir com inteireza suas decisões e ser proativa. E assim ela fez, como nos mostra o evangelho: ouviu a palavra, guardou no coração e frutificou. A graça de Deus, quando atua no ser humano, é sempre uma estrada de duas mãos. De um lado, o Senhor nos oferece sua presença irradiante, que purifica, perdoa, fascina, integra e convoca para a missão. De outro lado, a gente responde, ao viver na fé, na esperança e no amor solidário. Portanto, o dogma da Imaculada não fala somente de um privilégio de Maria, mas sim da vitória da graça de Deus nela. E isso tem enorme valor para toda a humanidade. Mostra que o mais original no ser humano não é o pecado, a mediocridade, as sombras, mas sim o dom de Deus, a criatividade, a luz.
Desde o início Deus nos chama para a comunhão com ele. Assim já experimentaram os profetas: “Antes de saíres do ventre de tua mãe, eu te conhecia, e te consagrei (Jr 1,5)”; “O senhor me chamou desde o ventre materno (Is 49,1)”. Maria, mais do que ninguém, viveu esta inteireza da resposta a Deus: “Um coração que era sim para a vida/ Um coração que era sim para o irmão. Um coração que era sim para Deus, Reino de Deus renovando este chão!”.
Como é bom celebrar a festa da Imaculada no tempo do Advento. Assim, recordamos que Maria foi preparada por Deus para a missão de mãe, educadora e discípula de Jesus. E que ela também se preparou, cultivando o amor e interpretando os Sinais divinos na história do seu povo. Com José, viveu o tempo de espera da gravidez e a alegria do nascimento.
Que Maria imaculada nos prepare para o natal. Que a nossa casa e o nosso coração sejam como o presépio que acolhe o Deus-menino. Belém é aqui e agora. Junto com a multidão de homens e mulheres de toda a Terra nos alegramos porque o Senhor visitou definitivamente este mundo, com uma luz que não conhece o ocaso. Assumiu, com sua encarnação, a nossa bela e frágil história humana. Santificou todos os seres. Por isso, cantamos: “Glória a Deus nas alturas, e paz para a humanidade e cuidado com a Terra!” Amém!
Ir. Afonso Murad
Irmão Marista, teólogo, especialista em Mariologia
In: blog Maria: mãe nossa e companheira na fé - 7/12/2015
Com quatro semanas antecedendo o Natal, o Advento, próprio do Ocidente, tem sua origem desde o século IV.
É um tempo que nos coloca em permanente expectativa da vinda, da manifestação de Deus e de seu Reino em nossa realidade. Abre-nos para o encontro com o Senhor que vem nos acontecimentos da vida, particularmente, no momento celebrativo, comemorando o Senhor que veio e fazendo-nos dar um passo à frente ao encontro do Senhor que virá glorioso, quando seu Reino estiver plenamente estabelecido entre nós.
Essa manifestação se dá em dois aspectos: a manifestação em nossa carne ao nascer, que constitui sua primeira vinda, e sua manifestação gloriosa, no fim dos tempos, sua segunda vinda.
Este duplo sentido determina a organização do Advento: o Advento escatológico, que vai do primeiro domingo do Advento ao dia 16 de dezembro e cuja liturgia nos inflama para a vinda final de Cristo; o Advento natalício, como preparação mais imediata para a festa do Natal, do dia 17 ao dia 24 de dezembro.
Os textos bíblicos propostos para os domingos deste tempo fazem emergir este duplo caráter do Advento. Assim, o primeiro domingo orienta para a vinda final, o segundo e o terceiro chamam atenção para a vinda cotidiana do Senhor; o quarto domingo prepara-nos para o nascimento de Cristo, ao mesmo tempo apresentando seu sentido e sua história.
Também os textos eucológicos (coletas, prefácios...) acentuam as vindas do Senhor, seja na encarnação, seja na parusia, como juiz e senhor, em íntima relação entre si, como expressão de um único mistério: a Vinda do Senhor e seu Reino, já iniciada mas, aguardando sua plena realização, no final dos tempos.(cf. At 1,11)
Recordamos no Advento a grande verdade de que nossa história, com todos os seus dramas, contradições, conquistas e retrocessos é o lugar da atuação salvífica de Deus, para quem nada é impossível: aterrar vales, aplainar montanhas, fazer florir desertos, fazer conviver leões e cordeiros; transformar armas de guerra em instrumentos de trabalho e cultivo de vida.
Pe. Luiz Renato sj
in: blog Arte, Liturgia e Espiritualidade
ADVENTO: “JESUS CRISTO ONTEM, HOJE E SEMPRE!”
Nesse período, conduzidos por grandes figuras bíblicas, como Isaías, João Batista, Maria, José, Isabel, Zacarias... modelos dos pobres que esperam e confiam nas promessas de Deus, entramos em ritmo mais intenso de espera e esperança, de alegre e cuidadosa vigilância, como uma noiva que se enfeita, ansiosa e feliz, para a chegada de seu amado, como um incansável vigia anseia pelo amanhecer, como a terra seca deseja ardentemente a chuva benfazeja para o germinar das sementes.
De modo semelhante ao que ocorreu com Maria, o Espírito nos engravida da Palavra, fazendo crescer em nós uma atitude de humilde expectativa, de fé comprometida com a força escondida da vida, na certeza de um novo parto da salvação em nosso tempo, ainda tão marcado por decepções, desesperanças e incertezas.
Aguardamos a chegada do Senhor, aguçando nossa sensibilidade para perceber os inúmeros sinais que revelam a transparência de Deus em nossa realidade.
Abrindo-nos à contemplação do mistério da encarnação, a liturgia vem ao encontro de nossa busca fundamental. Somos seres de desejo, inacabados, com sonhos de ser sempre mais, grávidos da utopia do Reino. O conjunto das celebrações nos mantém acordados e vigilantes, buscando a perfeição, para que as múltiplas vindas do Senhor hoje nos encontrem humildemente despojados, confiantes e repletos dos frutos da justiça.
A mística do Advento nos move também a cultivar uma atitude nova diante da realidade humana e cósmica, intensifica nosso desejo de felicidade plena, de relações fraternas verdadeiras e duradouras, e fortalece nossa vocação de testemunhas da esperança, superando todo o pessimismo e desencanto que nos possam abater. Um acúmulo de desejos fará apressar a vinda do Reino, com nosso engajamento solidário nas lutas pela defesa da vida, pela transformação do mundo, em que todos sejamos, igualitariamente, livres e felizes.
Neste tempo, em que a religião do mercado faz das festas natalinas, o grande sacramento do lucro, somos convidados a proclamar profeticamente que o Senhor está chegando como libertador. Seus sinais se manifestam diariamente, nas lutas dos pobres e de todos os que com eles se fazem solidários na busca de melhores condições de vida, de dignidade humana, de paz universal e de preservação da natureza.
Não só nós, cristãos, mas toda a humanidade e a criação inteira estão em clima de Advento, de ansiosa espera. Aguardam a manifestação cada vez mais visível do Reino de Deus em que “justiça e paz se abracem”, todos os povos culturas desabrochem felizes e reconciliados e toda “a terra se abra ao amor”.
Toda a celebração cristã é uma contínua vinda do Senhor a nossa vida pessoal, a nossa comunidade e a nossa história. Ele vem ao nosso encontro no presente e no futuro, como veio no passado. Ele é caminheiro fiel na grande peregrinação que fazemos rumo à casa do Pai. Ele é o Emanuel, o Deus-conosco com quem descobrimos sempre de novo quem somos, o que queremos e para onde vamos.
Pe. Luiz Renato sj
in: Bolg Arte, Liturgia e Espiritualidade
Podem tornar-se instantes de graça todos os instantes da vida? Ou, pelo contrário, não: há instantes límpidos, incomparáveis, de que não conhecemos as regras, e só estas são portadores da possibilidade de sentido e redenção para a vida?
Não fiz sondagens, mas direi sem muitas hesitações que a maior parte de nós tende para esta segunda hipótese. A vida normal goza de má imprensão, sobre ela recai um imutável descrédito, como se vivêssemos a descobrir que o que nos falta está noutro lado.
Olhamos os dias, o curso dos seus instantes reputados como sem história, estranhamento seguros de que deles não virá o que procuramos. Seduz-nos muito mais o extraordinário: pensamos que, no fundo, a felicidade depende da experiência não habitual, descontínua, de uma visita esporádica, de um lampejo que não se detém.
Se tivéssemos de assinalar, entre as práticas artísticas, um exemplo desta sensibilidade dominante, poderíamos citar as fotografias (extraordinárias, ainda para mais) de Henri Cartier-Bresson.
Na introdução ao primeiro livro de imagens que publicou, ele propõe uma tese precisa sobre o que chamava «o instante decisivo». Hoje é impossível pensar na sua fotografia e, em certo sentido, no que é a fotografia em geral, sem revisitar esse texto que o tempo tornou cada vez mais influente.
O ponto de partida de Cartier-Bresson é uma epígrafe extraída dos volumes de memórias do cardeal de Retz: «Não há nada neste mundo que não tenha um momento decisivo». E o que diz, em síntese? Que quando o olhar do fotógrafo considera o mundo, sabe que exercita um poder: pode modificar perspectivas, colocar a máquina fotográfica próxima ou afastada do sujeito, realçar um detalhe ou recompor a realidade.
Mas ao fotógrafo ocorre também dar-se conta de que estão reunidos todos os elementos para uma excelente fotografia, e todavia ainda falta alguma coisa, e não sabe o quê. Até que acontece alguma coisa de imprevisto a atravessar a cena. O fotógrafo põe-se então a acompanhar o movimento por trás da sua máquina e espera, espera, espera.
Quando, por fim, carrega no botão, sente confusamente que captou algo. Mais tarde, no laboratório, revelando aquele material, dá-se conta de que o que captou era o instante decisivo. Fixou o instante sem o qual aquela imagem seria banal, não possuiria a mesma forma, intensidade, pulsão, mistério e vida.
Por isso, a atividade do fotógrafo e do artista pode apenas consistir numa espera aberta ao momento extraordinário. Será também assim para nós? Será que é isto que talvez suceda no labor interno que desenvolvemos, na vida espiritual que se ativa em nós?
Os ingredientes estão lá todos, mas ainda não é suficiente. O quotidiano é opaco, demasiado preso àquilo que conhecemos, que nos é familiar. «De Nazaré pode vir alguma coisa de bom?» (João 1, 46), perguntamos incessantemente. Consumimo-nos na espera difusa daquilo que virá, preferimos sempre o distante ao próximo, o futuro ao presente, e tornamos a existência uma ficção de si própria.
Mas se não é agora, é quando? Se a graça não atravessa precisamente estes instantes cinzentos e contraditórios, esta montanha de emoções dispersas, este movimento que nos parece demasiado concreto, demasiado denso, demasiado obtuso, dificilmente a graça se manifestará de outra forma.
Também aqui o caso de Henri Cartier-Bresson nos pode ajudar de novo. Porque a sua história é, no fim de contas, mais complexa. A curadora de uma grande mostra sobre a sua obra trouxe à luz elementos novos relativos ao seu modo de trabalhar, até então desconhecidos.
Aquilo que a sua investigação nos mostrou é que, mais do que um «instante decisivo», trata-se com mais verdade de uma «escolha decisiva», pois o fotógrafo fazia vários disparos da mesma cena, por vezes em grande número, mas escolhia só um e eliminava os outros.
O instante decisivo não é, então, um momento exterior irrepetível, nem essa epifania que encontra espaço num fugitivo piscar de olhos: é um instante, qualquer instante, que eu faço tornar decisivo, por nele investir deliberadamente a minha esperança.
José Tolentino Mendonça
In "Avvenire"
Trad.: Rui Jorge Martins
Publicado em 27.09.2015 no SNPC
O papa acentuou este sábado, em Filadélfia, a necessidade de os leigos e, em particular, as mulheres, serem encorajados a uma participação mais ativa da Igreja, tendo citado a pergunta que o papa Leão XIII dirigiu a Santa Catarina Drexel: «E tu, que farás?».
«Sabemos que o futuro da Igreja, numa sociedade em rápida mudança, exigirá – e já agora o exige – um compromisso cada vez mais ativo por parte dos leigos», afirmou Francisco na missa, a que presidiu, com o clero, religiosos e religiosas do estado norte-americano da Pensilvânia.
As palavras endereçadas a Santa Catarina Drexel (1858-1955, canonizada em 2000 por S. João Paulo II), oriunda de Filadélfia, recordaram-lhe que «cada cristão recebeu, em virtude do Batismo, uma missão», sublinhou o papa.
«"E tu, que farás?" É significativo que estas palavras do papa já idoso tivessem sido dirigidas a uma mulher leiga», apontou Francisco, acrescentando que «um dos grandes desafios que a Igreja tem pela frente» é «promover, em todos os fiéis, o sentido de responsabilidade pessoal pela missão».
Esta tarefa «exige criatividade para se adaptar às situações em mudança, para levar avante a herança do passado, não primariamente mantendo estruturas e as instituições que também são úteis, mas acima de tudo estando disponíveis para as possibilidades que o Espírito abre».
O propósito de integrar mais os leigos na missão da Igreja não significa, segundo o papa, que o clero venha a «transcurar a autoridade espiritual» que lhe foi confiada, «mas discernir e usar sabiamente os múltiplos dons que o Espírito concede à Igreja».
«De forma particular, significa valorizar a contribuição imensa que as mulheres, leigas e consagradas, deram e continuam a oferecer na vida das nossas comunidades», apontou Francisco.
O questionamento que Leão XIII lançou a Santa Catarina Drexel impeliu-a «a pensar no trabalho imenso que havia para realizar e a dar-se conta de que também ela era chamada a fazer a sua parte».
«Quantos jovens, nas nossas paróquias e escolas, têm os mesmos ideais elevados, generosidade de espírito e amor a Cristo e à Igreja! Perguntemo-nos: somos nós capazes de os pôr à prova? Somos capazes de os guiar e ajudar a fazer a sua parte?», perguntou o papa ao clero e religiosos.
Um dos muitos campos de ação da Igreja em que a contribuição de voluntários leigos é imprescindível consiste no apoio a pessoas detidas; Francisco, que como arcebispo de Buenos Aires era visitante frequente de prisões, encontrou-se este domingo, em Filadélfia, com reclusos do Instituto Correcional de Curran-Fromhold.
«[Cristo] vem ao nosso encontro para nos calçar de novo com a dignidade dos filhos de Deus. Quer ajudar-nos a recompor o nosso andar, retomar o nosso caminho, recuperar a nossa esperança, restituir-nos a fé e a confiança. Quer que regressemos às estradas da vida, sentindo que temos uma missão; que este tempo de reclusão nunca foi sinônimo de expulsão», declarou.
Depois de afirmar que é «penoso» constatar como por vezes «se geram sistemas prisionais que não procuram curar as chagas, curar as feridas, criar novas oportunidades», o papa acentuou que o período na prisão «só pode ter um objetivo: estender a mão para retomar o caminho, estender a mão para que ajude à reintegração social».
«Todos temos alguma coisa de que ser limpos, purificados. Que a consciência disto nos desperte para a solidariedade, para nos apoiarmos e procurarmos o melhor para os outros», assinalou Francisco.
Também neste domingo, último dia da visita aos EUA, o papa reuniu-se, à margem do programa da visita previamente divulgado, com três mulheres e dois homens que foram abusados sexualmente quando eram crianças.
«As palavras não podem exprimir cabalmente o meu lamento pelo abuso que sofrestes. Vós sois filhos preciosos de Deus que deveriam sempre esperar a nossa proteção, o nosso cuidado e o nosso amor. Lamento profundamente que a vossa inocência tenha sido violada por aqueles em quem confiastes. Em alguns casos a confiança foi traída por membros da vossa própria família, noutros casos por padres que tinham a responsabilidade sagrada pelo cuidado da alma. Em todas as circunstâncias, a traição foi uma terrível violação da dignidade humana», disse Francisco às vítimas, em declaração divulgada pela Rádio Vaticano.
«Para aqueles que foram abusados por um membro do clero, lamento profundamente as vezes que vós ou a vossa família falou do caso para reportar o abuso, mas não vos ouviram ou acreditaram. Por favor, saibam que o Santo Padre ouve-vos e acredita em vós. Lamento profundamente que alguns bispos tenham falhado na sua responsabilidade de proteger as crianças. É muito perturbador saber que, em alguns casos, houve bispos que foram mesmo abusadores. Peço-vos que sigam o caminho da verdade até onde ele conduzir», afirmou.
«Peço-vos humildemente, e a todos os sobreviventes dos abusos, que fiquem connosco, que fiquem com a Igreja, e que juntos, como peregrinos no percurso da fé, possamos encontrar o nosso caminho para o Pai», concluiu Francisco [tradução SNPC].»
No encontro que teve, a seguir, com prelados, Francisco prometeu que «todos os responsáveis pelos abusos sexuais a menores serão punidos», e declarou que sentia «vergonha» que esses crimes.
Missa do Papa com clero, religiosos e religiosas - Filadélfia, 26.9.2015 (publicado no SNPC 27.09.2015)
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