Nesta semana, damos continuidade à reflexão iniciada na edição anterior sobre a oração ensinada por Jesus aos discípulo, presente nos muitos momentos de celebração. Constatamos que Jesus dá aos seus discípulos mais que uma fórmula. Ele concede a eles algo muito próprio da sua relação com Deus. Para Jesus, Deus é Pai e é Rei. Essas duas imagens são simbólicas e traduzem experiências variadas e diversas, sempre abertas, porque igualmente ricas de significados.
A oração: aquilo que Jesus nos dá de seu
O Verbo assume a condição humana para que ela receba a condição divina. Os antigos chamaram isso de sacrum commercium, que poderíamos traduzir por sagrado comércio, ou troca sagrada. Significa: com a encarnação do Verbo acontece um encontro entre o divino e o humano, na pessoa de Jesus. Nele, o céu e a terra trocam seus dons: o humano se torna divino e o divino se torna humano. Dessa unidade da pessoa do Verbo com a nossa humanidade se deduz, desde o Novo Testamento, que aquilo que é próprio de Jesus é comunicado a todos nós, seres humanos:
Especial e estreitíssima relação existe entre Cristo e aquelas pessoas que ele assume como membros do seu Corpo, que é a Igreja, através do sacramento da regeneração. Com efeito, da Cabeça se difundem por todo o corpo as riquezas do Filho: a comunhão no Espírito, a verdade, a vida e a participação em sua filiação divina, que se manifestava em toda a sua oração, enquanto ele vivia neste mundo. […] Portanto, a dignidade da oração cristã tem sua raiz na participação da mesma piedade do Unigênito para com o Pai e daquela oração que lhe dirigiu durante sua vida terrena e que agora continua, sem interrupção em toda a Igreja e em cada um de seus membros, em nome e pela salvação de todo gênero humano.6
Dentre as coisas divinas que a humanidade recebe de Jesus está, portanto, a oração como um dos desdobramentos da sua filiação. O cristão reza como Jesus ao Pai, porque está inseparavelmente unido ao Filho, pelo Batismo. Assim, a oração do cristão, outra coisa não pode ser, senão a oração de Cristo nele, pois em cada fiel opera o mesmo Espírito de Jesus Cristo, como aquele que hoje, realiza em cada um de nós, a “coincidência filial” do Verbo encarnado.
Uma oração mimética, uma imitação
Quando falamos em imitação, pensamos em algo falso e não autêntico. Acontece que a vida é feita mais de imitações do que de originalidades. O que chamamos de original, outra coisa não é senão a nossa reedição de algo que pudemos conhecer ou contemplar. Rezar o Pai nosso é imitar, mimetizar o lugar de outra Pessoa, no caso, do Filho, incorporando seu ser, até se tornar ela mesma. Alguns autores falam de “divino fingimento”, como o consagrado escritor C.S. Lewis:
Peço licença ao leitor para iniciar novamente o capítulo com duas imagens, ou histórias. Uma das histórias você já deve ter lido; chama-se A Bela e a Fera. Você há de se lembrar que a garota, por alguma razão, tem de se casar com o monstro. Depois de casada, beija-o como a um homem e então, para seu alívio, ele se torna um rapaz e eles vivem felizes para sempre. A segunda história é sobre uma pessoa que teve de usar uma máscara, uma máscara que a tornava muito mais bonita do que era de fato. Teve de usá-la por anos a fio. Quando finalmente a tirou, descobriu que sua face tinha se adaptado, crescido e se tornado igual à máscara. Assim, se tornara muito bonita. O que começara como um disfarce terminou como a própria realidade. Tenho a impressão de que ambas as histórias podem ajudar a ilustrar (dentro dos limites da fantasia, é claro) o que tenho a dizer neste capítulo. Até aqui, tentei descrever fatos – o que é Deus e o que ele fez. Agora, gostaria de passar para a prática – o que fazer a seguir. Qual a importância de toda essa Teologia? Ela pode começar a ter importância hoje à noite. Se você teve interesse suficiente para ler o livro até aqui, provavelmente terá interesse suficiente para fazer suas orações à noite; e, quaisquer que sejam essas orações, uma delas certamente será o Pai-nosso.
Suas primeiras palavras são justamente essas, Pai nosso. Você percebe, por acaso, o que elas significam? Significam, na verdade, que você se põe na posição de um filho de Deus. Sem meias-palavras, é como se você se fantasiasse de Cristo. Você finge. Porque é evidente que, no momento em que se dá conta do significado das palavras, você percebe que não é um filho de Deus. Não é um ser como o Filho de Deus, cuja vontade e cujos interesses estavam em uníssono com os do Pai: é um feixe de medos egocêntricos, de esperanças vãs, de cobiça, de ciúmes, de vaidade, fadados à morte. Sob um certo ponto de vista, portanto, fantasiar-se de Cristo é uma tremenda desfaçatez. O estranho nisso tudo é que ele ordenou que agíssemos assim.
Por quê? Qual a vantagem de fingir ser o que não somos? Bem, na esfera humana existem dois tipos de fingimento. Existe um ruim, em que o fingir toma o lugar da própria coisa, como quando um homem diz que vai nos ajudar, mas não ajuda. Mas também existe um bom, quando o fingimento nos leva à realidade. Quando você não está se sentindo muito amigável, mas sabe que deveria sê-lo, em geral a melhor coisa a fazer é adotar modos agradáveis e se comportar como se fosse uma pessoa melhor do que realmente é. Em poucos minutos, como todos sabemos por experiência própria, passará a se sentir, de fato, mais amistoso. Com muita freqüência, a única maneira de adquirir uma qualidade consiste em comportar-se como se já a tivesse. E por isso que as brincadeiras infantis são tão importantes. As crianças fingem ser adultos – brincando de soldado e de dona-de-casa. Estão sempre retesando os músculos e afiando a inteligência, de modo que, fingindo ser adultos, acabam tornando-se adultos de verdade.
No momento em que você se dá por si e diz “Aqui estou, nos trajes de Cristo”, é bem provável que vislumbre de imediato algum modo pelo qual o fingimento possa deixar de ser tão fingido e se torne mais real.7
Talvez aqui compreendamos a importância das introduções ao Pai nosso. Elas nos recordam o lugar da oração cristã que as doxologias insistem em nos situar: “por Cristo, com Cristo, em Cristo”. As introduções nos recordam que rezamos unidos, como Corpo, animados por um determinado e mesmo Espírito, mas sobretudo, no lugar do Filho, com seus trajes, deixando ocorrer em nós a transformação filial.
As introduções nos recordam palavras importantes para dizer o sentido da oração: “obedientes…”, “ousamos…”, “confiantes”, “guiados pelo Espírito de Jesus”. A oração em si mesma é um ato de obediência ao Senhor que nos ensinou que devemos orar incessantemente (cf. Lc 18,1; 1Ts 5,17), mas é também um associar-nos à obediência filial de Jesus que, segundo as palavras da Carta aos Hebreus, aprendeu a ser obediente pelo sofrimento (cf. Hb 5,8-9). O Pai nosso, expressão da nossa filiação, nos associa ao crucificado, àquele que revelou na cruz, mais densamente sua filiação, pelo ato supremo de sua obediência. Na oração do Pai nosso, assumimos de Jesus, a confiança que chega à ousadia, que introduz na piedade dos seus discípulos uma novidade absoluta, viver diante de Deus e rezar a Ele como seu Abbá. Tal confiança-ousadia, de quem se coloca na presença,8 corajosamente do todo-poderoso, para suplicar-lhe como filho, advém do Espírito Santo que foi dado por Jesus aos seus discípulos, e que os enche de coragem na súplica e na oração.
O mistério da oração: expressão vocal e gestual
Por longa tradição, os cristãos espalmam as mãos para o alto, como o Filho obediente e orante da cruz. Os discípulos que pedem a Jesus para ensinar-lhes a rezar, o aprendem da fórmula e da cruz, deixando que ele ore em nós como orou naquela hora derradeira, onde sua filiação divina encontrou coincidência entre a sua divindade e a sua humanidade. Sobre isso dirá Tertuliano (sec. II): “Nós, porém, não só levantamos as mãos, mas também as estendemos, abrindo os braços, e amoldando-nos aos sofrimentos do nosso Senhor, confessamos a Cristo também em oração”.9 Não somente pelas palavras, mas também pelos gestos, os cristãos unem-se a Cristo, assumindo ritualmente o seu lugar filial e deixando que todo o seu ser dê espaço a Cristo, o filho de Deus.
O gesto de erguer as mãos, pode ser associado ao gesto das crianças que já na tenra infância aprendem a estender as mãos para os seus genitores, como gesto que suplica o colo, ou os braços seguros dos pais. Também pode ser associado ao gesto sacerdotal. Na antiga Aliança, os sacerdotes do templo eram hábeis em erguer o punhal para subtrair a vida das vítimas que seriam oferecidas em sacrifício. Os cristãos, erguemos os braços também por razões sacerdotais, contudo, é de outro sacerdócio que falamos, o sacerdócio único de Cristo que nos deu tudo o que é seu. Já não mais para subtrair a vida de vítimas, sem a habilidade de quem impunha um punhal, mas de mãos vazias, para oferecer a própria vida, junto com a d’Ele, na cruz. É um gesto sacerdotal de todo o povo sacerdotal, fiéis e ministros ordenados, que participam, cada qual, a seu modo, do único sacrifício de Cristo e que tem a Cristo, e apenas a ele, como único sacerdote e mediador.
Padre Danilo César dos Santos Lima é liturgista e pároco em BH
6 Instrução Geral sobre a Liturgia das Horas, 7. Em: Ofício Divino, renovado conforme o Decreto do Concílio Vaticano II e promulgado pelo Papa Paulo VI. Tradução para o Brasil da segunda edição típica. Liturgia das Horas, segundo o rito romano – I. Tempo do Advento e Tempo do Natal. Aparecida: (Ed. Santuário) Vozes, Paulinas, Paulus, Ave Maria, 1999, p. 25-26.
7 LEWIS, C.S. Cristianismo Puro e Simples. Livro 4, Cap. 7 Martins Fontes, 2009.
8 LEWIS, C.S. Cristianismo Puro e Simples. Livro 4, Cap. 7 Martins Fontes, 2009.
No evangelho, José de Arimateia ousa se colocar na presença de Pilatos para reivindicar o corpo de Jesus, cf. Mt 22,46.
9 TERTULIANO, “De oratione,14”, citado em: GRÜN, Anselm – REEPEN, Michael. Rezar com o corpo. O poder curativo dos gestos. Petrópolis, Vozes, 2016, p. 44.