É famosa a afirmação da Constituição sobre a Sagrada Liturgia Sacrosanctum Concilium (SC), a respeito da participação ativa dos fiéis na celebração dos mistérios de Cristo. Basta conferir os números 8, 11 e 14 para verificarmos sua importância no conjunto da Constituição. Em termos técnicos, trata-se da ‘actuosa participatio’. De assistentes passivos, os cristãos e cristãs são chamados a tomarem parte naquele evento fundante da fé que é a morte e ressurreição do Senhor, mediado pelos ritos da Igreja. Dada a dificuldade instaurada no decorrer dos séculos quanto à participação da comunidade celebrante no ritus servandus oriundo da reforma litúrgica de Trento (expressão que significa ‘rito a que se deve obedecer’), quatrocentos anos depois, os padres conciliares cheios de zelo pastoral optam por uma reforma geral da Liturgia.
Com esse intuito, o Concílio apontou aqueles elementos importantes a partir dos quais a reforma deveria ser realizada. Dentre estes, queremos aqui destacar dois: a participação dos fiéis e o esplendor dos ritos, conforme a SC 21. Certamente, existem outros matizes sobre os quais nos debruçar.
Entretanto, parece-nos que estes dois elementos compõem o segredo para compreender e bem receber a reforma oriunda do Concílio, o que ainda não fizemos à contento. Sobretudo, porque estes dois aspectos podem ajudar a Igreja a discernir melhor em meio à confusão que se tem instaurado nas comunidades desde a promulgação do Motu Próprio Summorum Pontificum do Papa Bento XVI. Este, tem sido usado ideologicamente para descaracterizar a importância e o significado da reforma litúrgica para a vida da Igreja, criando um relativismo ritual, como se esta dimensão da vida cristã fosse parte de um cardápio de restaurante, onde cada um pode escolher o prato que melhor lhe apetecer.
Primeiramente, a participação ativa ou actuosa participatio. No processo de recepção do Concílio e nas diversas experiências eclesiais em torno da Liturgia – cujo acesso mais profundo para muitos era uma grande novidade – participar tornou-se sinônimo de interagir exteriormente. Embora este aspecto conte – e muito – para garantir a efetividade de uma celebração em que os fiéis tem lugar privilegiado e não simplesmente assistem, a participatiorequerida pela Sacrosanctum Concilium tem um alcance bem maior.
O teólogo da liturgia Andrea Grillo é da opinião que a grande questão da reforma se opera numa mudança fundamental: “a transição de um “rito a se observar” (ritus servandus) por parte apenas do padre a um “rito a se celebrar” (ritus celebrandus) por parte de toda a comunidade.1” A participação da comunidade fiel é aquilo que se desejou alcançar com a reforma dos ritos. Isso já não era possível, dada a caduquez das formas e também da teologia subjacente a estas, que era comunicada pela via celebrativa. Na própria estrutura e rubricas dos livros litúrgicos pré-conciliares, era notória a compreensão da celebração como uma operação do clero e não como um ato de culto no qual toda a comunidade, ministerialmente organizada, está implicada.
A gente não participa sozinho. A participação tem a ver com um feixe de relações que se dá entre os irmãos e irmãs, relações estas mediadas pela ritualidade (que será o assunto do próximo artigo). O lugar de revelação da presença de Deus é o encontro entre as pessoas. A Liturgia é esta ocasião em que Deus se funde com nossa carne. É o prolongamento do mistério da encarnação. Furtarmo-nos (ou sermos impedidos) de nos envolver com aquilo que se dá ao celebrarmos mediado pelas ações e palavras que compõem o fato litúrgico seria inconcebível na ótica da Liturgia pós conciliar.
Participar ‘conscientemente’ não implica apenas ‘saber’ o significado de cada gesto e texto previstos nos livros litúrgicos. É claro que uma iniciação ao sentido dos ritos, das palavras e símbolos é importante e tem seu lugar. Porém, ser ‘cônscio’ no que tange à participação implica nos fiéis a disposição para se deixarem conduzir pela trama ritual em conexão com seus irmãos e irmãs na fé. A ‘consciência’ tem a ver com possuir e exercer responsabilidade (do latim cum-scio) em determinado ato. É próprio da Liturgia a participação nela, faz parte de sua natureza. Por isso, para que a participação seja plena, é preciso que sejamos corresponsáveis por ela, isto é, participemos conscientemente. Sem nós – sem os fiéis reunidos – ela não acontece.
Padre Márcio Pimentel é mestrando em liturgia pela FAJE
In: Opinião e notícias