Sobre a Mesa, o Verbo
Aos Domingos e também nas festas e solenidades, o Livro dos Evangelhos (Evangeliário) costuma ser levado na Procissão de Entrada e elevado pelas mãos de um diácono ou leitor. Colocado sobre o altar, ele permanece até o momento da Aclamação ao Evangelho. Durante a Liturgia da Palavra, é transladado, em procissão, até o Ambão, de onde é proclamada a perícope evangélica proposta para aquela ocasião, à qual todos escutam de pé. O Livro é incensado, iluminado, assinalado, “lido” e beijado. Com ele a assembleia pode ser abençoada e, em alguns casos, segundo o costume do lugar, apresentado à comunidade para que lhe ofereça um gesto de aclamação. Logo depois é conduzido a um lugar de dignidade.
Sabe-se que o uso de um livro específico para a proclamação evangélica no contexto da Liturgia da Palavra aparece no século VI e vai perdendo importância a partir do século XIII, com o surgimento do Missal plenário que traz todos os textos para a Celebração Eucarística, incluídos os Lecionários. Esse uso é comum às Igrejas do Ocidente e do Oriente. À medida que o ano litúrgico foi sendo estruturado nas diversas tradições eclesiais, os textos evangélicos de Mateus, Marcos, Lucas e João foram, paulatinamente, sendo organizados com base na sua utilização no culto divino.
Assim como o Verbo se fez Carne…
Bento XVI, na exortação pós-sinodal Verbum Domini, oferece-nos uma síntese cuidadosa a respeito da consciência eclesial sobre a expressão Palavra de Deus. O Papa emérito singulariza a compreensão da Igreja sobre a revelação divina construindo uma espécie de caminho percorrido pelo diálogo divino. Por ter sido chamado à existência pelo Verbo, o mundo constituiu-se um liber naturae , já que é pela obra da criação que o Verbo se dá a conhecer por primeiro, exprimindo-se em um segundo momento pela Escritura e sua transmissão (Tradição). Sua referência predileta é o prólogo de João, no qual se afirma que tudo foi chamado à existência pelo Verbo, pois ele é pré-existente e – como vimos na primeira catequese – é referência absoluta para a criação do mundo e do ser humano segundo as tradições judaica e cristã.
Esse Verbo, que está na origem e também na finalidade de tudo quanto existe, não permanecendo preso à autorreferencialidade divina, mas sendo dado no ato criador, chegou e penetrou a história humana. Progressivamente, mostrou-se, sobretudo, pela voz dos profetas e perspicácia dos sábios, até que “O Verbo se fez Carne e habitou entre nós.” Seguindo de perto as intuições de João em seu evangelho, reconhecemos neste versículo da Escritura que se tornou fórmula basilar da fé cristã, que a misteriosa presença de Deus que, ao criar o universo, se dá a conhecer (comunicando-se e doando-se neste diálogo), fez-se ser humano. Assim, depois de pronunciar o ser humano, falar mediante seu existir e dialogar com ele, Deus-Palavra se faz pessoa humana.
A Palavra de Deus, cujas “Sagradas Escrituras são o ‘testemunho’ (…), o memorial canônico, histórico e literário que testifica o acontecimento da Revelação criadora e salvadora”, adota um rosto em Jesus de Nazaré. Assim, “A Palavra Divina e Eterna entra no espaço e no tempo e assume um rosto e uma identidade humana”. Esse é o sentido preciso de Lógos, sarx, eghéneto, presente no Prólogo joanino.
… compendiando-se em Jesus de Nazaré…
Na Verbum Domini, encontramos em sua cristologia da Palavra uma expressão tradicional da época patrística em que se diz que “O Verbo abreviou-se”. A citação é de Orígenes num comentário da versão grega do Antigo Testamento, de uma passagem do Profeta Is 10,23: “Lógon syntetmeménon poései ho Theós en tê oikomenen hole” que pode ser traduzido por “o Senhor, pois, abreviará e consumará a sua Palavra sobre toda a terra” . Orígenes interpreta esta passagem aplicando-a a Jesus:
O próprio Verbo do Pai e Sabedoria de Deus, por meio da qual foram criadas todas as coisas, visíveis e invisíveis, tenhamos de crer que estava circunscrita dentro dos limites daquele homem que apareceu na Judeia. Ainda mais: essa fé nos convida a aceitar que a Sabedoria de Deus penetrou no seio de uma mulher, que nasceu como menino, que prorrompeu em prantos como qualquer outro menino que chora. E, por fim, dele se conta, que se perturbou na presença da morte, como o próprio Jesus confessou dizendo: “Minha alma está triste até a morte; e finalizando, que foi conduzido a uma morte considerada pelos homens como a mais ignominiosa, ainda que ressuscitasse ao terceiro dia.
O Papa Francisco, na recente Bula Misericordiae Vultus, afirma que Cristo é o rosto da misericórdia do Pai, de modo que “Tal misericórdia tornou-se viva, visível e atingiu o seu clímax em Jesus de Nazaré”. A Encarnação é a grande obra misericordiosa de Deus que é Pai, Filho e Espírito Santo, cuja glória em Jesus Cristo se nos é dada a conhecer plenamente. Ao vir morar com os seres humanos, entretendo-se com eles como outrora no paraíso (Irineu), Jesus é visto na tradição neotestamentária e também patrística como fundamento, síntese e sentido de toda a História da Salvação. “No Mistério Pascal, realizam-se as palavras da Escritura (…) acontecimento que contém em si mesmo um logos, uma lógica: a morte de Cristo testemunha que a Palavra de Deus se fez totalmente ‘carne’, ‘história humana’” e segundo o Apóstolo, por causa da força criadora do Verbo, “a palavra da Escritura cumpre-se em Jesus que ressuscita antes de começar a corrupção.”
… a Palavra se fez Livro…
Aquela humanidade do Verbo realizada na pessoa de Jesus, que morre e ressuscita, tornou-se mediação, instrumento para a salvação dos seres humanos. O objetivo da encarnação, da parte de Deus, é tornar-nos parte de sua intimidade, inscrevendo-nos no seio da comunhão trinitária. Associados a Cristo Jesus, assumindo em nós sua morte e ressurreição, adentramos no coração familiar daquela comunidade que é o Pai, Filho e o Espírito Santo, os três que – eternamente – se doam numa mutualidade que a tradição patrística condensou no termo pericorese. Esse é o conteúdo da revelação que é a origem mesma de nossa fé.
A proclamação do Evangelho na Assembleia Litúrgica, precedida ritualmente pela procissão de entrada, se exprime legítima e explicitamente como cume da Liturgia da Palavra e reitera esses fatos concernentes ao Verbo na comunidade dos fiéis. Neste ponto, compreendemos a Celebração Eucarística e demais orações litúrgicas como realização da Palavra Divina. Nessas celebrações o Verbo de Deus é, de novo, entregue por amor aos seus que estão no mundo numa significativa distância do Paraíso. Inserida no contexto da transmissão da Palavra Divina, a Liturgia é compreendida como ação de Deus em favor de sua criação, sobretudo porque o Pai continua a oferecer-nos seu Filho como o fizera “Naquele Tempo”, por Ele, com Ele e n’Ele concede-nos sua presença no seio da comunidade dos fiéis: “O Senhor esteja convosco! Ele está no meio de nós!” Uma ação misericordiosa que recupera em nós a condição de logos, de palavras na Palavra. São Boaventura – que juntamente com a grande tradição dos Padres Gregos, vê todas as possibilidades da criação no Logos – afirma que ‘cada criatura é Palavra de Deus, porque proclama Deus.’”
No ato da proclamação do Evangelho, não só o livro recebe o hálito vivificador do leitor vertendo a letra morta em voz viva e ativa do Filho; a letra ressuscita para que a Assembleia seja revivificada na vida entregue do Verbo Encarnado. Deste modo, assim como o Verbo se fez carne, a Palavra se faz livro, uma vez que “o Corpo do Filho é a Escritura que nos foi transmitida”; assim, aquilo que o Corpo morto e ressuscitado de Cristo registrou do derramamento do Espírito na história humana, é transmitido no hoje da Liturgia aos seus seguidores e seguidoras, permanecendo, então, inscrito no coração de seu Corpo Eclesial.
… para que sejamos Escritura de Deus.
Como conclusão, podemos dizer que há uma transformação que se dá pelas vias rituais das celebrações litúrgicas, de forma que o mundo é abraçado pelo amor de Deus, a começar pela Assembleia Litúrgica. Mas como é possível reconhecer os efeitos do acontecimento litúrgico na vida do mundo? Como o Evangelho – que é Cristo em nossa carne – rejuvenesce o velho ser humano e renova a face da terra? Que tal começarmos a desencavar os sinais desta metamorfose que o Verbo morto e ressuscitado realiza em nós e entre nós?
Pe. Marcio Pimentel (Liturgista)
In: Opinião e Notícias 20.09.2019
Nestes tempos em que se procuram novos messias, “a la zelotes”, sobretudo, e um (ou mais) bodes expiatórios urge retomarmos as discussões acerca do “nosso Messias”, como diziam os padres da Igreja. Afinal, pautados pelas demandas, sejam elas sóciopolíticas, sejam puramente subjetivas, corremos o sério de risco de construir uma imagem de Jesus pouquíssimo fiel ao que as Escritura e a Tradição nos transmitem.
Hoje, é fácil escrever e postar o que se deseja. Tornamo-nos consumidores ávidos de novidades, fofocas, pseudoanálises, mensagens de autoajuda, etc. Passamos para frente aquilo que consideramos importante ou minimamente significativo. Dentre estes conteúdos – em não poucos casos – estão imagens de Deus, de Jesus, da Igreja. Elas escondem e revelam uma visão de mundo e de pessoa que, nem sempre, são óbvias. Analisando mais a fundo, perceberemos que em grande parte correspondem pouco àquilo que o Evangelho guarda e a Igreja recebeu a incumbência de apregoar.
Uma das maneiras mais importantes de fazer circular “imagens” de Jesus é a Liturgia. Importante porque sua dinâmica e linguagem estão situadas no campo simbólico. Sua narrativa verbal e gestual alcançam as pessoas de uma forma muito própria, indisponível a outros meios de transmissão da fé, como a catequese, as pregações não litúrgicas, bibliografias e até mesmo o que se tem tornado última moda ultimamente: as pregações em contexto de show ou espetáculo religioso.
Importante também porque a narrativa simbólica que a Liturgia faz acerca de Jesus tem – explicitamente – sua raiz, sobretudo, nos Evangelhos e na Tradição mais genuína da Igreja, registrada, conservada e transmitida em suas orações e cantos. Há, portanto, uma objetividade da fé que é resguardada pelas celebrações da Igreja. Como dissera Paulo, transmitimos aquilo que do Senhor recebemos.1 O detalhe está em perceber que os ritos não se fundam sobre a “ressonância emotiva” próprias das subjetividades, mas numa prescrição que lhe confere objetividade e autenticidade.2
Essa característica da Liturgia faz dela excelente instrumento evangelizador. E esse potencial das celebrações tem sua fonte e poder no fato de não somente fazer circular conteúdos religiosos, teológicos e éticos, mas, sobretudo, por sua capacidade de gerar presença. A evangelização, em última análise é isso: dotar o mundo com uma presença que alegra. A presença do Verbo de Deus, princípio e fim de tudo; qualificador primordial de todas as realidades criadas. Por Ela tudo se sustêm.
Uma vez que nas celebrações da Igreja quem opera é Cristo, explicitamente,3 a Liturgia ganha, de longe, de todas as outras formas de pregação e anúncios do Evangelho. Nela e por ela, mais do que “falar sobre” Deus e suas coisas, é Ele mesmo quem fala e por sua Palavra, se revela e se dá. Isso é muito diferente da catequese, na qual predomina o discurso sobre o Mistério; ou as pregações-show, nas quais tem destaque a perspectiva subjetiva do “artista-pregador” mais do que a objetividade da fé.
A Liturgia, por sua plasticidade ritual, não se contenta em ilustrar o Mistério. Ela o desvela em nosso corpo, revelando o Filho em nós e inserindo-nos em seu pastoreio. Nesse sentido, a Liturgia não é composta de ideias a serem comunicadas, mas de uma presença a ser percebida, experimentada e expressa. A Liturgia não é, primeiramente, pensamento, é corporeidade. O corpo antecede a mente, na verdade, a forma, como dirá Bonaccorso.4 Na Liturgia, é o jogo estético, isto é, das percepções ancoradas na sensorialidade humana, que determinará o conhecimento de Deus e de nós mesmos.
A Liturgia, portanto, evangeliza à medida que nos insere no mundo de Deus e qualifica a história com a presença sacramental do Cristo morto e ressuscitado. O liturgista Gofredo Boseli diz que isso “significa atestar que a liturgia é, em si mesma, mistagogia, ou seja, é capaz de ser epifania do mistério, de modo que a Liturgia inicia ao Mistério celebrando-o.”5
Celebrar é marcar um lugar e um tempo como significativos, enriquecê-los, diríamos. Lola Mayenco em seu “Algo que celebrar” adverte-nos que o poder das celebrações reside em “criar um marco comum que nos permita apreciar em profundidade a beleza da vida e que, por sua vez, nos faça sentir mais próximos às pessoas que amamos.”6 E o que fazem as liturgias cristãs senão abrir para nós a beleza regeneradora da vida do Filho Amado, Jesus, e tornar-nos próximos dEle e nEle, uns dos outros?! O Catecismo da Igreja Católica fala disso ao citar Ef 3,16-17: “Pela Liturgia, o homem interior é enraizado e fundado no ‘grande amor com o qual o Pai nos amou em seu Filho bem-amado. É a mesma “maravilha de Deus” que é vivida e interiorizada por toda oração, ‘em todo tempo, no Espírito.’”7
Pe. Marcio Pimentel (liturgista)
In: Opinião e Notícias 13.09.2019
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1 Cf. 1Cor 11,23
2 Cf. ZANQUI, Giuliano. In presenza di spirito: rito Cristiano e temp dell’anima. In. VV.AA. Il culto incarnato. Sipiritualità e liturgia. Milano: Glosa, 2011, p. 33.
3 Constituição Conciliar sobre a Sagrada Liturgia Sacrosanctum Concilium 7.
4 Cf. BONACCORSO, Giorgio. Il culto nello Spirito come culto incarnato. In. VV.AA. Il culto incarnato. Sipiritualità e liturgia. Milano: Glosa, 2011, p. 18-23.
5 BOSELI, Gofredo. O sentido espiritual da Liturgia. Brasília: Edições CNBB, 2014, p. 15.
6 MAYENCO, Lola. Algo que celebrar. Guía sencilla para enriquecer la vida com belas tradiciones. Barcelona: Urano, 2013, p. 18.
7 Catecismo da Igreja Católica n. 1073.
“E o povo todo respondeu a uma só voz”
Na Celebração Eucarística, segundo o Rito Romano, se prevê para depois da “Primeira Leitura” um canto denominado “interlecional”. Trata-se de um Salmo entoado por um ministro específico, o salmista, e, na sua ausência, o leitor ou cantor. A assembleia, depois de ouvir os versículos por ele proferidos responde com o refrão previsto no Lecionário.
O Elenco das Leituras da Missa (OLM) prevê a celebração litúrgica da Palavra de Deus como oportunidade na qual Ela (a Palavra) se exprime de maneiras diversas, de modo que seja sempre viva e eficaz. Para o OLM o Salmo Responsorial é “uma parte integrante da Liturgia da Palavra”. Unido às demais leituras bíblico-litúrgicas, o Salmo Responsorial é considerado na sua riqueza pastoral, no conjunto das demais peças da Escritura desenvolvidas e concluídas pela homilia, profissão de fé e oração dos fiéis . Muito embora seja também expressão orante da Igreja, transmite a Palavra Divina que deve ser escutada e acolhida pelos fieis. Fazê-lo do Ambão como nos indica o OLM não “de um lugar oportuno” como sugere a Intrução Geral do Missal Romano nº 61, confere ao Salmo o status adequado de proclamação da Palavra de Deus cantada.
“Faremos tudo o que o Senhor disse”
O canto dos Salmos configura-se uma tradição que, na Igreja, remonta ao próprio Jesus. O Livro dos Salmos, desde épocas imemoriais, é considerado o Livro de Orações por excelência. Para Jesus, como membro do povo judeu, homem cuja atividade cotidiana brotava da oração, certo que os Salmos eram elemento chave da vida espiritual. Seja na Sinagoga, no Templo ou em sua casa, como também em suas pregações é possível reconhecermos o lugar que os poemas de louvor ocupavam em seu ministério.
Ao rezar, Jesus usará naturalmente essa oração do povo em que nasceu e ao qual pertence. Na sinagoga ou no Templo, ele se unirá aos judeus seus compatriotas, para rezar os Salmos. Quando subir a Jerusalém, ele se unirá ao grupo de peregrinos para cantar os salmos das subidas (Sl 119-133). Na última Ceia, recitará o que os judeus chamam de “Grande Hallel”, os Salmos 134-135, prescritos pela Lei nas grandes festas. Na cruz, para fazer subir a seu Pai a oração que o habita, Jesus exclamará com uma voz forte, nos mesmos termos que o Salmista do Salmo 21(22): ‘Eli, Eli, lema sabachtani: Meu Deus, meu Deus, porque me abandonaste?’ Enfim, depois de pronunciar o versículo 6 do Salmo 30(31) Jesus morre na cruz: “E Jesus clamou com uma voz forte: ‘Pai, em tuas mãos entrego o meu espírito’. E dizendo isso expirou”.
O canto dos Salmos nas celebrações cristãs, portanto, são tidos como herança recebida do Senhor. Nossa maneira de empregá-los e deles de o vivenciarem na Liturgia está intimamente relacionada com “seu acontecimento”. Rezamos os Salmos na esteira da tradição de Jesus. Isso nos leva a compreendê-los como composições litúrgicas portadoras de um significado cristológico.
Em diversas passagens do Novo Testamento Jesus se refere ao sentido de seu ministério e de sua identidade messiânica a partir dos Salmos. O drama final de sua vida – a paixão e morte – por ele interpretado a partir da Escritura – inclui explicitamente o livro dos Salmos: “São estas as palavras que vos falei, quando ainda estava convosco: era preciso que se cumprisse tudo o que está escrito sobre mim na Lei de Moisés, nos Profetas e nos Salmos.” Desse modo, os Salmos não apenas encerram a oração de Cristo, mas sobretudo revelam sua alma, sua vida, seus desejos, inclinações e sentimentos; conduzem nosso olhar para a experiência da vontade do Pai que se realiza em sua pessoa. “Quando chegou o terceiro dia, ao raiar da manhã (…) uma nuvem cobriu a montanha”.
Os Santos Padres compreendem os Salmos como proclamação da Palavra de Deus o que significa intuir que a vontade salvadora de Deus, por eles, se torna manifesta. Por isso, Pacômio, fundador da vida monástica cenobítica (comunitária) diz que “não pode haver ninguém no mosteiro que não aprenda a ler e que não conheça de cor alguma parte das Escrituras, ao menos do Novo Testamento e do Saltério” e convida para que todos sejam “assíduos aos Salmos e orações.” Em sua “Carta a Marcelino”, Atanásio afirma que
o Livro dos Salmos… como um jardim que tivesse nele uma sementeira de frutos dos outros livros, canta-os a todos e, inclusivamente deles oferece o seus próprios frutos (…) no livro dos Salmos podem-se entender e discernir os impulsos da própria alma (…) Quem lê os salmos … diz as palavras como se fossem suas, e as salmodia como se dele mesmo tivesse escrito. Para aquele que salmodia, os salmos são como espelho no qual se pode contemplar a si mesmo, ver os impulsos de sua alma (…). Certamente, toda a Escritura é mestra da virtude e da fé verdadeira, mas o livro dos Salmos oferece, além disso, o ícone para a direção das almas. Recitar o livro dos Salmos não é cultivar o prazer do sons, mas traduzir uma harmonia interior em música (…) Os cristãos deveriam fazer suas as orações bíblicas, especialmente os salmos.
Ambrósio de Milão se pergunta
Que há de mais agradável que um salmo? Na verdade, o Salmo é a bênção do povo, o louvor de Deus, o hino dos fiéis, o aplauso da assembleia, a palavra da multidão, a voz da Igreja, a exultante confissão da fé, a expressão autêntica da piedade (…). No salmo, ao mesmo tempo canta-se com gosto e aprende-se com proveito. Haverá alguma coisa que não encontres quando lês os salmos? Neles encontro a graça da revelação, o testemunho da Ressurreição, os dons da promessa.
É bem fácil perceber nas palavras desses três padres da Igreja o quanto o Livro dos Salmos sempre foi estimado e assumido como referência obrigatória para a oração cristã privada ou litúrgica. O motivo fundamental pelo qual os Salmos são muitíssimo queridos e propostos como “regra” para a oração pode ser encontrado numa outra passagem de Ambrósio quando ele afirma que os Salmos ora anunciam Cristo, ora procedem do próprio Cristo, proclamando o que em seu corpo se realizará.
Aqui se abre para nós o conceito de “Cântico Novo”, referindo-se a uma nova realização de Deus em favor de seu povo. Trata-se de uma nova vida nascida em Deus e assumida como dom recebido pelo Povo. O cântico de Moisés após a libertação do Egito é assim classificado.
Os cristãos também entoam um “Cântico Novo”: a vitória do Cordeiro sobre a morte. É um hino pelo qual se manifesta a todo o cosmo o sentido último da criação que se dá a partir da dignidade de quem fora imolado e ressuscitado. Esse canto dirigido a Cristo se exprime assim: “foste morto e compraste para Deus com o teu sangue homens de toda tribo, língua, povo e nação; fizeste deles para nosso Deus um Reino de Sacerdotes e reinarão sobre a terra.” Esse hino com ares sálmicos celebra a transformação que se opera nos fies redimidos pelo Mistério da Páscoa. Logo, o canto novo diz respeito não apenas a um louvor sonoro-musical, mas à experiência nova que se dá pela entrega de Cristo Jesus e nossa associação a ela.
“O Monte Sinai fumegava pois o Senhor desceu sobre ele”
Xabier Basurko nos lembra que o canto mais antigo da missa é o “interlecional”, isto é, o canto ligado às leituras. São cantos tradicionalmente construídos com a estrutura responsorial predominante até o século IV. A reforma litúrgica promovida a partir do Concílio Vaticano II reconduziu o Salmo Responsorial à seu lugar de dignidade, uma vez que houve um “empobrecimento” com a fixação do Salmo Gradual, no que concerne ao caráter litúrgico. O Gradual é composto de pouquíssimos versículos e sua melodia é bastante desenvolvida o que exige grande habilidade para executá-la. O Salmo Responsorial conforme a reforma litúrgica previu, recuperou a singeleza original, devolvendo-lhe seu aspecto proclamativo pelo uso de fórmulas salmódicas ligadas à cantilena. O uso abundante do refrão também propiciou a devolução do Salmo ao seu sujeito eclesial por excelência que é a assembleia.
O percurso feito até aqui no tocante ao canto cristão dos Salmos nos indica que também na Missa o salmo responsorial necessita ser assumido em sua perspectiva de anúncio do Mistério de Cristo e também de assentimento, acolhida e resposta a este dom do Pai por parte da Assembleia. O aspecto “meditativo” deve ser compreendido nesta direção. Não se trata apenas de um movimento mental, reflexivo, mas de uma ação ritual da qual se ocupa toda a comunidade de fieis em parceria com o ministro salmista. É uma ação que envolve todos os sentidos. Pensemos, como exemplo, no Salmo Responsorial previsto para a Missa de Vigília de Pentecostes. Enquanto o salmista entoa o versículo: “Todos eles, ó Senhor, de vós esperam, que a seu tempo vós lhes deis o alimento; vós lhes dais o que comer e eles recolhem, vós abris a vossa mão e eles se fartam” a assembleia contempla o altar e nele reconhece o Evangelho como aquele alimento que o Senhor fracionará e distribuirá. Imediatamente, desde o cântico do Salmo Responsorial, já se ilumina a experiência próxima da comunhão eucarística. E não só: o alimento dado por aquele que vem como sopro vivificador (o Espírito que renova a face da terra) é a própria Palavra de Deus doada ao Povo e entregue nas mãos de Moisés no alto Sinal na forma de mandamentos; e todos que vão ao altar podem fartar-se, saciar-se da água viva que de lá jorra. Água que rejuvenesce a fé e que passam a brotar daqueles que se ocupam de sua palavra. Por sua vez, o Salmo Responsorial é já no contexto da celebração litúrgica este mesmo rio que jorra do interior dos fieis. De fato, aos olhos e ouvidos, no corpo de uma assembleia atenta e formada, o Salmo Responsorial torna-se uma experiência espiritual deveras profunda.
“O som da trombeta ia aumentando cada vez mais”
Apenas uma questão para nos ocupar: que lugar tem o Salmo bíblico em nossa vida de oração? Cultivo a experiência do ofício divino? Quais seus frutos? Como o Salmo Responsorial na Miss anos ajuda a “decifrar” o Mistério de Cristo na celebração mas também (e sobretudo) no mundo?
Padre Márcio Pimentel (Liturgista)
In: Opinião e notícias 06.09.2019
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