Motivações
Em nosso empenho para redescobrir a dimensão pedagógica da Liturgia, deparamo-nos com a linguagem simbólica que se desenvolve enquanto atuação ritual de quem celebra. Os ritos, que não em si e por si mesmos o Evento rememorado (Mistério Pascal) e nem a vida habitual (existência cristã) faz-se ocasião (tempo) e lugar (espaço) para que se dê o encontro da assembleia celebrante – povo de Deus – com o seu Senhor (intersubjetividade), de modo que ela mesma seja transformada naquele que acolhe sacramentalmente. Isso porque:

“O cristianismo não é somente uma doutrina, nem tampouco apenas uma moral – ou seja, se não e antes de tudo, algo para compreender ou algo de querer-dever – mas é sempre, antes de tudo, um encontro pessoal, uma história que transforma a existência como tal”.(GRILLO, 2017, p. 44).

Estamos, então, diante daquilo que a Constituição Conciliar sobre a Sagrada Liturgia Sacrosanctum Concilium afirma: as celebrações da Igreja são cumen et fons da vida cristã.

A Liturgia é simultaneamente a meta para a qual se encaminha a ação da Igreja e a fonte de onde promana toda a sua força. Na verdade, o trabalho apostólico ordena-se a conseguir que todos os que se tornaram filhos de Deus pela fé e pelo Batismo se reúnam em assembleia para louvar a Deus no meio da Igreja, participem no Sacrifício e comam a Ceia do Senhor.

A Liturgia, por sua vez, impele os fiéis, saciados pelos «mistérios pascais», a viverem «unidos no amor» (26); pede «que sejam fiéis na vida a quanto receberam pela fé» (27); e pela renovação da aliança do Senhor com os homens na Eucaristia, e aquece os fiéis na caridade urgente de Cristo. Da Liturgia, pois, em especial da Eucaristia, corre sobre nós, como de sua fonte, a graça, e por meio dela conseguem os homens com total eficácia a santificação em Cristo e a glorificação de Deus, a que se ordenam, como a seu fim, todas as outras obras da Igreja. (SC 10)

Isso implica compreender a Liturgia não apenas como expressão, mas também e sobretudo como experiência.

A Liturgia como poiesis e aesthesis

Paralelamente (e em conexão) com a perspectiva de Andrea Grillo que trata o rito não como uma ‘coisa’ que se encontra nos livros litúrgicos, mas como ‘ação ritual’ a ser consumada e consumida por uma comunidade, trazemos para nossa consideração a noção de poiésis e aesthesis. Parece-nos que estsa forma de tratar a celebração litúrgica nos ajuda de modo mais direto na compreensão do fenômeno ritual e suas implicações elementares e decisivas para a fé. Estes conceitos – poiésis e aesthesis – articulam-se com o caráter sacramental de toda a celebração cristã e, consequentemente, de toda a existência cristã que daí brota.

A Liturgia enquanto poiésis, é ação. Dissemos anteriormente, ação criativa e não um mero ato vulgar e estéril. Os Santos Padres ao referir-se à Liturgia mencionavam-na não como algo a assistir passivamente, mas a um acontecimento como qual se envolver. João Crisóstomo, por exemplo, não admite que os membros da comunidade se comportem nas celebrações com a postura própria ao ambiente de espetáculos: “as nossas coisas não são representações teatrais” dizia. Gregório de Nazianzo, em um de seus sermões exortava aos seus: “Apresento-te Cristo (…) e também esta mesa, da qual todos nós nos aproximamos ao mesmo tempo, estes ritos da minha salvação (…)”. Agostinho ensinava que a força e importância dos ritos era tal que seria incompreensível reunir-se como uma comunidade de fato sem deles tomar parte.

A Liturgia enquanto estética, é rito, pelo qual o invisível torna-se contemplável. O Mistério de Cristo não é apenas acolhido pela narratividade que o ouvido capta, mas também por aquilo que os olhos veem e as mãos apalpam; na medida em que olfato se excita com os odores e a boca exprime com hinos e canções.

Enfim, todos os sentidos estão à disposição daquele encontro vivificante, pelo qual nossa corporeidade é tomada e todo o nosso ser é envolvido. Não apenas a mente, mas a carne é tocada para que a pessoa desperte integra numa nova existência. Deus deixa-se ver, faz-se perceptível aos nossos sentidos. Isso significa compreender a carne “como lugar da revelação de Deus: a partir do momento em que o Verbo se fez carne, a inteira concretude sensível do corpo é revelada uma vez por todas como capax Dei” (TOMATIS, 210, p. 419). Essa ótica acerca das celebrações da Igreja é já compartilhada na antiguidade, cuja voz de São Leão Magno fez-se decisiva: “o que na vida de nosso Redentor era visível passou para os ritos sacramentais.”

Tem razão portanto Grillo, quando afirma que a ação ritual “não é uma manifestação acessória (…); ele (o rito) é uma experiência primeira, ação originária, comunhão radical, ato de identidade profunda”. E ainda: “a Igreja e o cristão (…), nele encontram, no modo mais íntimo, o Senhor Jesus” (GRILLO, p. 47).

Um breve exercício

Vivemos no tempo da maquiagem. Na contramão daquilo que temos afirmado sobre os ritos litúrgicos, cuja realização opera o processo de identificação da nossa vida com sua mais íntima e genuína verdade, que é Deus mesmo (cf. GRILLO, p. 46), movemo-nos em um contexto cultural no qual vale mais parecer do que ser. Há uma certa institucionalização da mentira cultivada nos perfis falsos do facebook, nas fotos tratadas ao extremo, nas maquiagens que se tornaram máscaras que escondem o real ao invés de revela-lo em profundidade. A vida é tornada espetáculo e visa-se atrair os olhares e promover curtidas. E, uma vez que as mídias sociais ocupam cada vez mais espaço e consomem cada vez mais tempo em nossa vida, acostumamo-nos com um simulacro da existência. E é este arremedo de nossa história que é transmitido – agora até mesmo ao vivo – via interfaces do ciberespaço.

O rito não se presta a falsear o real maquiando-o. Não é um mundo idealizado, mas aquela vida possível que está ao alcance dos nossos sentidos: o Evangelho feito carne. Uma história na qual sou convidado a entrar – livre e conscientemente, assumindo-a como minha, mas reconhecida como dom. Não sou eu quem produz esta história, antes ela é transmitida, narrada e ilustrada (no sentido de ser trazida à luz). O rito permite que seja ouvida e avistada e põe em conexão a vida e o Evento recordado de modo sinergético e simbiótico. Nem sempre nos damos conta disso enquanto celebramos. A teologia da liturgia ocupa-se, então, como momento segundo de reflexão e análise, recuperar o que é disseminado da vida de Jesus per ritus et preces. Não quer dar uma pura e simples explicação ou instrução sobre os ritos mas trazer à tona as nuances várias que a experiência celebrativa oportunizou. Esta teologia segunda procura ser fiel à teologia primeira que é a própria celebração pela qual e na qual Deus se exprime e imprime em nossa carne. Há várias técnicas para chegarmos a este objetivo: laboratórios, vivências, análises literárias da eucologia, estudo da iconografia, observação participante, etc. Com base no tempo que dispomos, tomaremos como auxílio alguns registros fotográficos de nossas celebrações.

Em geral, o bom fotógrafo não maquia, mas tem boa percepção dos ângulos e atenção nos detalhes daquilo que deve registrar. Seu olhar é minucioso na busca de uma interpretação imagética que comunique a totalidade do fato na parcialidade do momento apreendido. A seguir, reproduziremos algumas fotografias de celebrações em nossa comunidade paroquial. Buscamos os registros mais significativos das ações rituais, com o intuito de analisarmos à certa distância do evento registrado aquele Evento com o qual a assembleia parece envolver-se.

Padre Márcio Pimentel é especialista em Liturgia pela PUC-SP e mestrando
em Teologia na Faculdade Jesuíta de Teologia e Filosofia (Faje / Capes)

IN: Opinião e Notícias 11.08.2017