Dando continuidade à primeira parte deste artigo, publicada na edição anterior do Catequese Hoje, vale destacarmos um aspecto relevante na Constituição sobre a Sagrada Liturgia Sacrosanctum Concilium (SC). Trata-se da importância que esse documento atribui às celebrações na elaboração de uma maneira de ser, conforme a nova condição do ser humano no mundo a partir do Batismo e da Crisma:
O Sagrado Concílio propõe-se a fomentar a vida cristã entre os fiéis […]. Julga, por isso, dever também interessar-se de modo particular pela reforma e incremento da Liturgia. A Liturgia […] contribui em sumo grau para que os fiéis exprimam na vida e manifestem aos outros o mistério de Cristo e a autêntica natureza da verdadeira Igreja, que é simultâneamente humana e divina, visível e dotada de elementos invisíveis, empenhada na ação e dada à contemplação, presente no mundo e, todavia, peregrina, mas de forma que o que nela é humano se deve ordenar e subordinar ao divino, o visível ao invisível, a ação à contemplação, e o presente à cidade futura que buscamos. (SC 1)
Já em sua introdução, a SC expressa a compreensão que é nas celebrações da Igreja que os fiéis haurem o verdadeiro espírito cristão. Por ela podem associar-se a Cristo e, bebendo de seu Espírito, manter-se dentro daquela relação parental com o Pai e o Filho, oferecida pela regeneração batismal. A vida cristã é, por assim dizer, nutrida pela Liturgia: “O nosso pão seja Cristo; a fé nos seja a bebida; o Santo Espírito bebamos nas fontes puras da vida.” (LH)
Jesus Castellano em sua obra “Liturgia e Vida Espiritual” (Paulinas: 2008, p. 33) afirma que
o modo habitual […] como o mistério da salvação nos é revelado ou comunicado é pela palavra e pelo sacramento da igreja em suas diversas expressões; daí o nexo indissolúvel entre liturgia e vida espiritual cristã.
E ainda:
A liturgia é colocada no contexto normal da vida cristã como ponto de inserção concreto nessa história da salvação, contínua celebração do mistério de Cristo e do Espírito, caminho que acompanha a experiência do mistério cristão, desde o Batismo até o último momento da passagem pascal da morte. […]
A finalidade da vida espiritual é a realização da resposta existencial ao dom de Deus realizada em uma conformação à imagem e aos sentimentos de Cristo, segundo a própria vocação particular da Igreja. (CASTELLANO, p. 34;53)
Não há vida cristã – leia-se, vida espiritual – sem Liturgia. A celebração do Mistério Pascal de Cristo não é um acréscimo à experiência de fé e muito menos algo sobre o que podemos prescindir. A celebração é cume e fonte da vida nova em Cristo. Integra nosso processo de santificação, de modo que nosso querer e nosso agir esteja em consonância com a vontade de Deus. (cf. Oração do Dia do XI DTC)
Como a Liturgia ‘compõe’ a vida espiritual
É sabido que, no livro do Gênesis, a criação é narrada poeticamente como consequência do ‘falar’ de Deus. Ele diz e as coisas passam a existir, canta o salmista (cf. Sl 104). A criação perpetua-se no contínuo agir de Deus, que chama a existência – ex nihilo. Tudo passa a existir à medida que é chamado a existência.
O primeiro capítulo do Gênesis faz desfilar diante de Deus a obra da criação, na medida em que Deus convoca para que venha à luz. É sua Palavra que tudo cria. É ela que chama e comunica a vida. No hebraico, emprega-se o verbo BaRa. Esta palavra indica o início das coisas, seu start. Em certa medida, pode-se associar a ela a ideia de ‘novidade’. Quando a Sagrada Escritura foi traduzida do hebraico para o grego – a chamada versão ‘dos Setenta (LXX) ou Septuaginta – o verbo acolhido foi poieo. Poderia aqui significar ‘ação criativa’ Ele está na raiz da palavra ‘poesia’. Deus, então, é apresentado no Gênesis como ‘poeta’, pois é por sua Palavra que traz à existência uma obra original, saída do nada.
Pois bem, na Liturgia quem age é a Palavra e o Espírito de Deus, como na criação narrada poeticamente no livro do Gênesis. Esta Palavra não é pura oralidade divina, mas refere-se agora a uma pessoa também em sua gestualidade humana: Jesus de Nazaré. Nas celebrações da Igreja, é esta a Palavra da qual se faz memória. Também a podemos chamar de ‘Evangelho’, pois é Notícia Boa, Palavra Nova que regenera, rejuvenesce, torna novo aquele que a escuta. A Liturgia é – toda ela – acontecimento da Palavra de Deus. Por ela, Deus em seu Filho continua a nos ‘compor’, como Poeta. Somos um texto de Deus. Fomos e continuamos a ser ‘tecidos’ por ele. Ele fia a trama da nossa existência (cf. Sl 139), mas o faz agora com as fibras da carne de Jesus, seu Filho. E assim é criada em nós uma nova existência.
Crispino Valenziano, filósofo e teólogo dedicado à Liturgia em sua perspectiva artística, afirma que uma das características primordiais da Liturgia é ser poiética, quer dizer, ação criativa em que se dá a biologia espiritual: A Palavra equivale a ação criadora (poiesis) de Deus e também do ser humano. (VALENZIANO. Bologna, 1999, p.178) Por essa razão, cada vez que o Evangelho é proclamado na Igreja, traçamos em nosso corpo o sinal de nossa redenção – a cruz – como gesto batismal. Ele nos recorda que é pelo ecoar da Boa Nova de Jesus que nos marca carne (= existência no mundo) que fomos tornados novas criaturas, animadas pelo Espírito dEle (ruah), que se funde ao nosso e nos fornece a identidade de filhos e filhas de Deus (psique). Assim, a Liturgia compõe nossa espiritualidade.
Padre Márcio Pimentel, é especialista em Liturgia pela PUC-SP e mestrando
em Teologia na Faculdade Jesuíta de Teologia e Filosofia (Faje / Capes)
In: Opinião e notícias 30.06.2017