Recentemente, o Papa Francisco proferiu um longo discurso sobre a Liturgia e sua importância para a vida da Igreja por ocasião da Semana Nacional Litúrgica Italiana. Em sua mensagem, de maneira inequívoca, o Pontífice defende a reforma litúrgica promovida por ordem do Concílio Vaticano II. Dentre as afirmações contundentes, ele fala sobre a dependência da ação litúrgico-sacramental à presença de Cristo. Ele afirmou que “aquilo que define a liturgia é, sobretudo, a atuação nos santos sinais, do sacerdócio de Jesus Cristo, isto é, a oferta de sua vida até abrir os braços sobre a cruz, sacerdócio feito presente permanentemente mediante os ritos e preces […].”
Os ritos com os quais a Igreja celebra dão concretude à fé que ela mesma professa. Não são ideias ou doutrinas que os fiéis celebram, mas o encontro da humanidade inteira com seu Criador, consignado na pessoa de Jesus de Nazaré, morto e ressuscitado. E isso somente nos é possível porque o mesmo Jesus ordenou que tomássemos seus gestos e guardássemos suas palavras, assumindo-os como nosso distintivo. Assim, assumindo em nós sua vida e prologando sua existência no mundo, chegamos àquela condição na qual Deus quer seus filhos e filhas. Sobre isso, Francisco comentou em seu discurso, chamando atenção para o fato de a Liturgia ser “vida e não uma ideia a compreender. Comporta, inclusive, viver uma experiência iniciática, ou seja, transformadora do modo de pensar e se comportar […] é uma fonte de vida e luz para o nosso caminho de fé.”
O liturgista jesuíta John F. Baldovin, ao comentar o discurso do Papa Francisco, distingue cinco aspectos importantes na fala do Papa sobre o significado profundo e atual da reforma litúrgica. Dentre eles, está a constatação de que a Liturgia é uma ação. Nesse sentido, diríamos que é uma ação teândrica, porque envolve de um lado Deus e do outro o ser humano, envolvidos sinergicamente. Primeiro, Deus que vem ao encontro das pessoas para servi-las em seu desejo salvífico. E depois os homens e mulheres que, percebendo essa procura de Deus, posicionam-se livre e responsavelmente, dirigindo-lhe uma palavra de acolhida e confiança, em resposta. Os ritos tornam evidente esse enlace por sua própria estrutura, por sua qualidade de signos. Comportando em si mesmos um significado transfigurador para aqueles que tomam parte no desenrolar-se celebrativo, os signos transmutam-se em símbolo que, na opinião de Ângelo Cardita, não são negação da realidade, mas uma maneira diferente e quiçá mais profunda de dizer e revelar a presença de Deus atuando no mundo.
A ritualidade é a mediação necessária para que se exprima a qualidade sacramental não apensa dos gestos e palavras da liturgia, mas a própria dinâmica com a qual Deus se revela em seu Filho e permanece presente e atuante no mundo no corpo da Igreja. Essa perspectiva coincide com a compreensão de Pelágio Visentin, liturgista italiano, que compreende o Concílio Vaticano II como responsável por ampliar a noção sacramental tal qual se dava na época patrística. Citando Maximo de Torino, contemporâneo de Agostinho embora com fama menor, fala do duplo nascimento de Cristo: natus hominibus – renatus sacramentis, isto é, em vista da salvação do ser humano ele, primeiramente, nasce ser humano e para que essa salvação permaneça atuando no mundo, renasce sacramentalmente. Ele põe em relação dois acontecimentos crísticos celebrados na liturgia: o Natal e a Epifania. No primeiro, Cristo nasce da Virgem, no segundo, ao ser batizado no Jordão (esse era o enfoque da Epifania na antiguidade), nasce em Mistério – “Este é o meu Filho amado”, diz o Senhor depois que Jesus passa pelas águas. Pelágio Visentin entende que essa é a chave para assimilar a dimensão sacramental da revelação. Por isso, cada vez que celebramos esses mistérios festivos do Senhor, a liturgia conservou em sua eucologia o advérbio “hoje”. Sacramentalmente, é no “hoje” da Igreja reunida em oração, per ritus et preces (pelos ritos e pelas orações, cf. SC 48) que Jesus nasce, morre, ressuscita, ascende aos Céus e envia seu Espírito. Essa afirmação não quer significar que o evento da salvação se dá uma segunda vez, mas que nos tornamos partícipes dele, como seus contemporâneos. E é isso que faz nascer e permanecer a Igreja. Essa é a razão de sua vitalidade. E esse é o sentido dos ritos com os quais celebra.
Padre Márcio Pimentel é especialista em Liturgia pela PUC-SP e mestrando
em Teologia na Faculdade Jesuíta de Teologia e Filosofia (Faje / Capes)