Caminhar... A vida é seguir em frente, haja o que houver, um passo após o outro, como o rio que flui sem medo, assim é o fluir da vida, é o cantar do rio. Ela segue e não nos pede licença. Vez ou outra pensamos ser donos da vida, ledo engano... A vida é algo muito mais grandioso do que nosso pobre pensar. Nós é que somos seus, seres vivos, mergulhados no mistério infinito da força dinâmica que a tudo transforma.
Caminhar é uma palavra própria do meu tempo, mas não revela o que tento descobrir ou somente dizer. No silêncio da alma, lá onde o pensamento cala e a simplicidade existe, sou habitada por diversas palavras. Elas brincam, são crianças a bailar com leveza sob o ritmo da música do rio da vida. Da mesma forma que surgem imagens no contemplar das nuvens, as palavras surgem em mim quando contemplo o fluir da água que passa entre meus dedos sem resistências. Há palavras que moram na gente, essas procedem de Deus, nos devolvem o sentido da vida e apenas estão esquecidas no emaranhado que se forma em nosso consciente. “As palavras que vos disse são espírito e vida” (Jo 6,63). Para ouvi-las é necessário encontrar o silêncio da alma.
Eis que brota a palavra: peregrinar... Com ela surgem imagens, desejos que viajam no tempo, rompem as barreiras do espaço e me revelam sentimentos que tento compreender, como essa solidão que cisma de me acompanhar, esse vazio que me preenche de mistérios feitos de acontecimentos, sinais, ausências, presença e tanta carência...
Colho a palavra com o mesmo cuidado de um jardineiro que colhe uma rosa. Peregrinar... tento sentir seu perfume que acorda certas emoções que me desinstalam, levam-me a um outro lugar, meu lugar... Mas o pensamento é estranho, interpela o sentir buscando dar significados. Penso na figura de um peregrino: ser que caminha em busca de algo. Surge Jesus, o peregrino de todos os tempos em busca de nossos corações para nos libertar da falta de sentido, para nos dar a vida plena, a alegria que ninguém rouba... “Mas vos verei de novo e vosso coração se alegrará e ninguém vos tirará a vossa alegria” (Jo 16,22). Nem sempre ele soube o que iria acontecer. “Quanto à data e à hora, ninguém sabe, nem os anjos no céu nem o Filho, somente o Pai” (Mc 13,32). Cada passo revelava o caminho a seguir, cada pessoa expandia mais sua missão, como no encontro com a mulher estrangeira que lhe pede para curar a filha e ele percebe que não veio apenas para os judeus, mas para toda a humanidade (Mt 15, 21-28). Ah... quanto me identifiquei com Ele em suas andanças! Também uma vez ouvi um chamado, fiz uma experiência profunda de me sentir amada por Deus, isso mudou o itinerário de toda minha vida. O chamado passou a ser mais importante que o caminho. O caminho que a razão tinha traçado com detalhes, em companhia de meus pensamentos, tão dedicados, fora completamente abandonado. Iniciei minha peregrinação.
Deparo-me com a trajetória feita até aqui. Na incerteza para onde o chamado me apontava, peregrinei repleta de dúvidas. Lembrei-me de uma música do Renato Russo que dizia: “A dúvida é o preço da pureza e é inútil ter certeza.” Sim, é da incerteza que se vive a fé! Afinal, “a fé é a garantia dos bens que se esperam, a prova das realidades que não se vêem” ( Hb 11,1). E peregrinei pelas estradas da vida na companhia da minha fé. No cansaço dos passos a lembrança da experiência do chamado me sustentou. A certeza de estar no caminho certo surgia no encontro com as pessoas e daquilo que conseguíamos edificar. Iniciei um caminho na vida real abandonando ilusões, como a de ser dona da própria vida e ser independente. O chamado fez de mim uma peregrina, nasci de novo, com olhos curiosos, dependente da vida do mundo inteiro, pois me senti parte da vida gerada por Deus. O chamado faz-me recordar quem realmente sou: peregrina em busca de Deus, minha origem, meu fim.
As experiências mais doces que fiz da presença de Deus foi através do amor dos meus pais, do meu marido e do amor que nasceu em mim quando Deus me fez mãe. No meu cotidiano, o Senhor teve mais trabalho para que eu o reconhecesse. Hoje vejo que nessa trajetória não existem fronteiras, ser peregrino é abrir-se ao inesperado e ir encontrando o sentido que dá vida em cada ser sagrado. Deus se revela, se dá a conhecer em cada olhar. Ao me configurar peregrina abandonei mais que ilusões, tive que deixar as malas do passado que carregava pensando ter nelas a segurança e o controle que o mundo tanto valoriza. O peregrino aceita não saber. Que segurança e controle podemos ter no mundo? Com nossas preocupações não podemos acrescentar um só segundo à nossa existência, tão efêmera (Lc12, 25). Só em Deus podemos confiar e entregar de fato nossa vida.
Nas estações da natureza vemos as mudanças... Folhas caem, flores desabrocham, as chuvas vem, o sol devolve a cor. Os olhos de peregrina revelam a constante santificação da disposição de encontrar o Senhor a todo instante. Vivemos nossas mortes cotidianas, banhadas em lágrimas e tristeza que trazem uma incomparável beleza ao caminho que se trilha, por ser verdadeiro. Vivemos nossa pequenez diante das separações daqueles que amamos, na esperança de que daqui a pouco os veremos novamente. A esperança nos devolve o sorriso da fé.
De qualquer forma, prefiro estar nesse mundo a peregrinar do que simplesmente a caminhar. Embora pareça tão similar, cada palavra é carregada de seu próprio mistério. Em mim peregrinar traduz melhor minha forma de existir, me ajuda a acolher esse sentimento de orfandade que ora me ocupa os olhos com lágrimas de dor. Ajuda-me a lembrar que devo continuar a dar passos na certeza de que não caminho sozinha, embora em muitos momentos a solidão me acompanhe, a presença de Deus se revela em tudo que me cerca. A exemplo daqueles que se foram e que deixaram uma história de vida entumecida de um sentido pleno de amor incondicional, sigo peregrinando nesse mundo em busca de Deus...
Lilian Carvalho
Catequista em BH.