A Igreja Católica, depois do breve e revolucionário papado de João XXIII, entrava na fase final do Concílio Vaticano II, já sob o cajado de Paulo VI. O momento era de profunda reflexão da Igreja sobre seu papel na História, buscando rever seus compromissos, suas raízes mais evangélicas e maior coerência entre Fé e Vida
O Brasil vivia a efervescência política provocada pelo Golpe Militar.
Em 1964, parte significativa dos bispos brasileiros, em sintonia com os ventos renovadores que vinham do Concílio, queriam aproveitar o momento rico do Tempo da Quaresma, tempo de conversão e penitência, para convocar os católicos a participarem de uma reflexão que começava por rever e atualizar os próprios conceitos de Conversão e Penitência, até então muito ligados à ideia de sacrifícios físicos e mortificação dos sentidos.
A catequese quaresmal tradicional corria o risco de valorizar mais a exterioridade das celebrações pomposas, da ritualização de tradições e costumes, em especial da Paixão, que o chamado pascal mais profundo, questionador e transformador, rito de passagem para uma Vida Nova.
Ainda hoje, na cobertura que se vê na grande mídia, o destaque é dado a eventos como a Procissão do Fogaréu, em Goiás, a encenação da Paixão ao vivo, em Nova Jerusalém, Pernambuco e outros de conteúdo mais turístico que religioso.
Nesse contexto histórico e cultural, a Campanha da Fraternidade surge como um convite a refletir sobre o sentido de uma verdadeira conversão, que se traduz em mudança de rumo na vida pessoal e comunitária, e do significado vivencial da penitência, umchamado a voltar-se para Deus, buscando “amá-lo de todo coração e de toda a alma e de todo o entendimento e de todas as forças; e amar ao próximo como a si mesmo” (Marcos 12:30-31), sempre a partir de um tema específico, enraizado na realidade, e renovado a cada ano.
Em 1964, significativamente, o tema foi “Igreja em renovação” com o lema: “Lembre-se, você também é Igreja.”
Através dele, retomava-se, bem dentro do espírito do Vaticano II, o significado maior da expressão “Povo de Deus”. A Igreja, sublinhavam os bispos conciliares, não é apenas uma instituição constituída por padres, freiras, religiosos e religiosas, clérigos em geral. É Povo de Deus em comunhão,ou seja, o leigo cristão era chamado a ocupar o lugar que sempre foi dele. Em síntese: não bastava mais ao cristão IR À IGREJA. O convite, a missão, é SER IGREJA!
Depois de uma série de temas voltados para a renovação do espírito eclesial da comunidade católica, como “Faça de sua paróquia uma comunidade de fé, culto e amor” (1965), ou “Ser Cristão é participar” (1970), com o lema “Comece em sua casa”(1977), a Igreja ampliava seu olhar que, da contemplação ativa da realidade mais próxima, mais doméstica, estendia-se para a realidade em volta.
O que se via então, em meados da década de 1970, era um Brasil oprimido pelo regime militar, sufocado por uma crise econômica permanente que gerava recessão, desemprego e miséria. Quem ousava protestar, contestar, sofria a violência da repressão que não deixava espaço àqueles que lutavam pela restauração da democracia no País.
Em 1978, com coragem profética, o lema da Campanha clamava “Trabalho e Justiça para todos!”
Desde então, a cada ano, temas ligados à realidade mais cotidiana, desafios em todas as áreas, questões de cidadania, contradições políticas e econômicas, tudo tem sido ponto de partida para um VER, JULGAR e AGIR dos cristãos.
Importante lembrar que desde o ano 2000 a Campanha da Fraternidade abriu-se também a uma construção ecumênica, ao lado de outras Igrejas Cristãs.
A Campanha da Fraternidade acontece durante o Tempo litúrgico da Quaresma, ou seja, o período de quarenta dias que vai da quarta-feira de cinzas ao domingo de ramos, que abre a Semana Santa.
Na simbologia bíblica, o número 40 tem a ver com tempo de recolhimento, renovação profunda, preparação para fazer nascer o NOVO. Por quarenta dias, choveu sobre a Terra, na parábola do Dilúvio. Por quarenta anos, o povo hebreu foi peregrino, em busca da Terra Prometida. Por quarenta dias, Jesus esteve no deserto, em jejum e oração, antes de dar início à vida pública. Na linguagem corriqueira, a palavra “quarentena” também é utilizada para falar de um tempo de recolhimento, em geral para cuidar da saúde ou fazer prevenção de alguma enfermidade.
Durante a Quaresma, somos, portanto, convidados a fazer essa experiência de “recolhimento”, de “deserto”, em que, pelo jejum (simplicidade) e oração (vida interior), buscamos conversão (mudança de rumo, renovação) e penitência (buscar a intimidade com Deus). E como o encontro íntimo e pessoal com Deus acontece no cotidiano, a Igreja, a cada ano, propõe que a vivência quaresmal se traduza também em esmola (gestos concretos de fraternidade e solidariedade, em especial com os mais necessitados). Tudo a partir de um tema concreto, enraizado no cotidiano, que nos ajude a buscar uma coerência sempre maior entre fé e vida.
Ao fim dessa caminhada de quarenta dias, chegamos à Semana Santa, cujo auge é a celebração pascal do Cristo Vivo, presente no meio de nós. Ele nos convida a passar do túmulo à alegria, da morte à vida, do egoísmo ao amor, do pecado à santidade. Passar de uma fé amedrontada para uma fé esperançosa.
A mística pascal nos revela que o contrário do amor não é o ódio, o contrário do amor é o medo de amar. Por isso, para viver a Páscoa, é preciso coragem e disposição para experimentar no coração as virtudes teologais da Fé e da Esperança, que nos conduzem à possibilidade do Amor, do amar e ser amado.
Neste ano de 2014 o tema proposto pela Campanha é “Fraternidade e Tráfico Humano”, com o lema “É para a liberdade que Cristo nos libertou”.
Eduardo Machado
Escritor e coordenador de Pastoral do Colégio Imaculada em Belo Horizonte