A Campanha da Fraternidade de 2014, com o tema “Fraternidade e Tráfico Humano” e o lema, “É para a liberdade que Cristo nos libertou”, coloca o dedo numa chaga aberta na sociedade.
No dia 14/09, a CAEC, Comissão Arquidiocesana das Escolas Católicas (BH), da qual faço parte, promoveu um seminário sobre o assunto, com a participação de inúmeros educadores. A Irmã Maria Helena Lima, da PUC-Minas, fez a apresentação do tema e o Deputado Nilmário Miranda descreveu o cenário a partir da visão da Frente Parlamentar em defesa dos Direitos Humanos.
No intervalo entre uma fala e outra, aconteceu uma intervenção da contadora de histórias Alessandra Nogueira. Com graça e leveza, ela apresentou uma visão lúdica sobre tema tão árido e pesado, contando e cantando a história do “homem do saco”.
Histórias infantis costumam ter muitas versões e variações sobre o mesmo tema. Com “o homem do saco” não é diferente. Na versão de Alessandra, encontro o mesmo refrão da história que ouvi, na minha infância: “canta, canta meu surrão, que eu te dou um beliscão!”.
“Surrão” era o saco onde o homem colocava crianças desobedientes que eram levadas (sequestro) de suas casas. O homem percorria aldeias e cidades, recolhendo dinheiro das pessoas que pagavam para ver “o surrão cantar” (tráfico humano, exploração de trabalho infantil e escravidão).
Na versão da minha família, o homem do saco chamava-se “Tibum Guererê”, não me perguntem por quê. O enredo era o mesmo e, no final, a menina sequestrada era salva pela mãe, que a resgatava do saco, colocando no lugar estrume de vaca para desespero do Tibum Guererê.
Minha infância já vai longe e nela, no imaginário de uma história infantil, a questão do tráfico humano já se fazia presente. Ao longo do tempo, um olhar atento, crítico, pode desnudar outras formas camufladas de tráfico humano. Famílias que traziam meninas pobres do interior para “ajudar a criar”, e que aqui, na capital, sob o manto dessa aparente caridade, eram submetidas à condição de empregadas domésticas num regime quase escravo, mantidas na ignorância, no analfabetismo, na submissão absoluta.
Hoje, com a globalização, a questão é mais complexa. No cenário internacional, o Brasil figura como um dos maiores “fornecedores” de homens, mulheres e crianças submetidos ao tráfico sexual no país e no exterior, assim como para trabalho forçado no próprio país. A Polícia Federal registra índices mais altos de prostituição infantil no Nordeste brasileiro.
Em grau menor, o Brasil é destino e trânsito de homens, mulheres e crianças usados no trabalho forçado e no tráfico sexual.
Um grande número de mulheres brasileiras é encontrado no tráfico sexual no exterior, quase sempre em países europeus, como Espanha, Itália, Portugal, Reino Unido, Holanda, Suíça, França e Alemanha, também nos Estados Unidos e em destinos mais distantes como o Japão. Algumas mulheres e crianças brasileiras também são submetidas ao tráfico sexual em países vizinhos, como Suriname, Guiana Francesa, Guiana e Venezuela.
Em menor escala, algumas mulheres de países vizinhos são exploradas pelo tráfico sexual no Brasil. Alguns transgêneros brasileiros são forçados à prostituição no país, e alguns homens e transgêneros brasileiros são explorados pelo tráfico sexual na Espanha e na Itália.
A pedofilia, na forma de turismo sexual infantil, continua sendo um problema grave, em especial nas cidades litorâneas e em complexos turísticos do Nordeste do Brasil. Turistas em busca de sexo com crianças normalmente vêm da Europa e, em menor escala, dos Estados Unidos.
Segundo a lei brasileira, o termo “trabalho escravo” pode significar trabalho forçado ou trabalho desempenhado durante jornada exaustiva ou em condições degradantes de trabalho. Não está claro quantas pessoas identificadas em situação de trabalho escravo são vítimas de tráfico: no entanto, estudo publicado em 2012 revelou que 60% dos trabalhadores entrevistados no trabalho escravo rural haviam sido submetidos aos principais indicadores do trabalho forçado.
Os que promovem esse tipo de exploração formam grupos poderosos e truculentos. Tem sido destaque na mídia o episódio do assassinato de três fiscais do Ministério do Trabalho e do motorista que os conduzia na região de Unaí, no norte de Minas, onde investigavam denúncias de trabalho escravo em fazendas da região.
A chacina aconteceu em 2004 e, até hoje, o julgamento dos acusados se arrasta na Justiça. Os mandantes do crime seriam fazendeiros e políticos influentes da região, considerados os maiores produtores de feijão do país.
Organizações da sociedade civil identificaram um forte vínculo entre degradação ambiental e desmatamento em áreas com incidência de trabalho escravo, em particular na Amazônia. Milhares de brasileiros são submetidos a trabalho escravo no país, em geral em fazendas de gado, acampamentos de mineração e extração de madeira, plantações de cana-de-açúcar e grandes fazendas produtoras de milho, algodão, soja e carvão, e também na construção civil e no desmatamento. Algumas crianças foram identificadas em situação de trabalho escravo na pecuária, no desmatamento, na mineração e na agricultura.
Vítimas do trabalho forçado costumam ser atraídas por recrutadores locais (conhecidos como gatos) com promessas de bom pagamento em estados do Nordeste, como Maranhão e Piauí, e em Tocantins e levadas para outros estados, em especial, Pará, Mato Grosso, Goiás e São Paulo, onde muitas delas são submetidas à escravidão por dívida, o chamado sistema de “barracão”, onde o trabalhador paga pela acomodação, alimentação e ferramentas quantias maiores que o salário, ficando “preso” ao patrão. Caso recente, descoberto pelas autoridades, revelou que as vítimas foram submetidas a um sistema de escravidão por dívida, na fabricação de tijolos, por mais de 30 anos.
O norte e o nordeste do Brasil já produziram vários mártires dessa luta, destacando-se, na nossa apagada memória, o padre Josimo Tavares, assassinado em Imperatriz, Maranhão, e a irmã missionária Dorothy Stang, morta a tiros no município de Anapu, no sudoeste paraense, em 12 de fevereiro de 2005. Na semana em que escrevo este artigo a Justiça do Pará condenou o mandante do crime, o fazendeiro Vitalmiro Bastos de Moura, a 30 anos de prisão. Mas o que se tem visto é que, de recurso em recurso, os criminosos, amparados e competentes e caros advogados, vão adiando o cumprimento das sentenças, respondendo em liberdade pelas acusações, gerando um círculo vicioso de crime, impunidade e violência.
À margem da violência escandalosa que ocupa as manchetes da mídia, formas de exploração sutis e camufladas continuam presentes no tecido social. A servidão doméstica, em especial de meninas adolescentes, também continua sendo um problema no país.
Em menor escala, o Brasil é destino de homens, mulheres e crianças, provenientes da Bolívia, do Paraguai, do Peru e da China, para trabalho escravo em confecções de roupas e tecelagens clandestinas em grandes centros metropolitanos, principalmente em São Paulo. Algumas dessas fábricas clandestinas são subcontratadas por grandes empresas, várias delas internacionais. O problema veio à luz, recentemente, com o assassinato do garoto Brayan, filho de imigrantes bolivianos que trabalhavam em SP.
O Ministério do Trabalho publica uma “lista suja” na qual divulga os nomes de pessoas físicas e jurídicas identificadas pelo governo como responsáveis por trabalho escravo e que estão sujeitas a penalidades civis. Embora algumas ONGs, uma organização internacional e o Ministério do Trabalho citem a “lista suja” como ferramenta eficaz contra o trabalho escravo, estudo constatou que muitas empresas da lista não sofreram processos criminais.
Como vemos, “o homem do saco” continua ativo e presente em pleno terceiro milênio, convivendo com a tecnologia moderna e até se servindo dela para fazer o “seu surrão” cantar. Ou seja, teremos, no ano que vem um tema difícil de ser abordado, em especial no ambiente escolar, mas que faz parte de um cenário global e local diante do qual não podemos nos calar e omitir, até porque, neste cenário, nosso país ocupa lugar de infeliz destaque.
Eduardo Machado
Educador, escritor