Catequeses sobre o discernimento 12. A vigilância
Já estamos na fase final deste percurso de catequeses sobre o discernimento. Começamos com o exemplo de Santo Inácio de Loyola; depois consideramos os elementos do discernimento - isto é, a oração, o conhecimento de si, o desejo e o “livro da vida” - e meditamos sobre a desolação e a consolação, que formam a sua “matéria”; e depois chegamos à confirmação da escolha feita.
Nesta altura considero necessário inserir a chamada a uma atitude essencial, a fim de que não se perca todo o trabalho levado a cabo para discernir o melhor e tomar a boa decisão, e esta seria a atitude da vigilância. Refletimos sobre o discernimento, a consolação e a desolação; escolhemos uma coisa... tudo está bem, mas agora, vigiar: a atitude da vigilância. Pois efetivamente, como ouvimos na passagem do Evangelho que foi lida, o risco existe. O risco existe, e é que o “desmancha-prazeres”, ou seja, o Maligno, possa arruinar tudo, fazendo-nos voltar ao ponto de partida, aliás, a uma condição ainda pior. É o que acontece, por isso é preciso estar atentos e vigiar. Eis por que é indispensável estar vigilante. Por conseguinte, hoje pareceu-me oportuno evidenciar esta atitude, de que todos nós precisamos para que o processo de discernimento tenha bom êxito e permaneça ali.
Com efeito, na sua pregação, Jesus insiste muito sobre o facto de que o bom discípulo é vigilante, não adormece, não se deixa tomar pela segurança excessiva quando tudo corre bem, mas permanece atento e pronto para cumprir o seu dever.
Por exemplo, no Evangelho de Lucas, Jesus diz: «Estejam cingidos os vossos rins, e acesas as vossas lâmpadas; sede semelhantes àqueles que esperam o seu senhor quando ele regressar de uma festa, para que quando ele vier e bater à porta, eles lha abram imediatamente. Bem-aventurados os servos aos quais o senhor encontrar vigilantes quando vier!» (12, 35-37).
Vigiar para salvaguardar o nosso coração e compreender o que acontece dentro. Trata-se da disposição de espírito dos cristãos que aguardam a vinda final do Senhor; mas pode ser entendida também como a atitude comum a ter na conduta de vida, de tal modo que as nossas boas escolhas, feitas às vezes depois de um discernimento exigente, possam continuar de maneira perseverante e coerente e dar fruto.
Se faltar a vigilância, como dissemos, será muito forte o risco de que tudo se perca. Não se trata de um perigo de ordem psicológica, mas sim espiritual, uma verdadeira cilada do espírito maligno. Com efeito, ele aguarda o momento exato em que nos sentimos demasiado seguros de nós próprios, este é o perigo: “Estou seguro de mim mesmo, venci, agora estou bem...”, este é o momento que o espírito maligno espera, quando tudo corre bem, quando as coisas vão “às mil maravilhas” e temos, como se diz, “o vento em popa”. Efetivamente, na breve parábola evangélica que ouvimos, afirma-se que o espírito impuro, quando regressa à casa de onde tinha saído, «encontra-a vazia, limpa e adornada» (Mt 12, 44). Tudo está no lugar, tudo está em ordem, mas onde se encontra o dono da casa? Não está presente. Não há ninguém que vigie sobre ela e a salvaguarde. Eis o problema! O dono da casa não está presente, saiu, distraiu-se; ou está em casa, mas adormeceu, e portanto é como se não estivesse presente. Não está vigilante, não está atento, pois sente-se demasiado seguro de si mesmo e perdeu a humildade de salvaguardar o próprio coração. Devemos preservar sempre a nossa casa, o nosso coração, e não nos devemos distrair e ir... pois o problema é este, como dizia a Parábola.
Então, o espírito maligno pode aproveitar-se e regressar àquela casa. Contudo, o Evangelho diz que não regressa sozinho, mas com «outros sete espíritos piores do que ele» (v. 45). Uma companhia de malfeitores, um quadrilha de bandidos. Mas - perguntemo-nos - como é possível que possam entrar sem ser perturbados? Como é que o senhor não se apercebe? Não fora porventura capaz de fazer o discernimento e de os expulsar? Não recebera até as felicitações dos seus amigos e vizinhos por aquela casa tão bonita e elegante, tão arrumada e limpa? Sim, mas talvez precisamente por isso apaixonou-se demasiado pela casa, ou seja, por ele mesmo, e deixou de esperar o Senhor, de aguardar a vinda do Esposo; talvez, por medo de estragar aquela ordem, já não recebesse ninguém, não convidasse os pobres, os desabrigados, aqueles que incomodam... Uma coisa é certa: tem a ver com o mau orgulho, com a presunção de estar certo, de ser bom, de estar bem. Muitas vezes ouvimos dizer: “Sim, antes eu era malvado, depois converti-me e agora a casa está em ordem, graças a Deus, fica tranquilo quanto a isto...”. Quando confiamos demasiado em nós próprios e não na graça de Deus, então o Maligno encontra a porta aberta. Em seguida, organiza a expedição e toma posse daquela casa. E Jesus conclui: «A condição daquele homem torna-se pior do que a primeira» (v. 45).
Mas o senhor não se apercebe? Não, porque estes são os demónios educados: entram sem que te dês conta, batem à porta, são gentis. “Não está bem, vai, vai, entra...” e depois acabam por mandar na tua alma. Cuidado com estes diabinhos, com estes demónios: o diabo é educado quando finge ser um grande senhor. Pois entra com a nossa para sair com a sua. É preciso proteger a casa deste engano de demónios educados. E a mundanidade espiritual segue sempre este caminho.
Caros irmãos e irmãs, parece impossível, mas é assim! Muitas vezes perdemos, somos derrotados nas batalhas, devido a esta falta de vigilância. Muitas vezes, talvez o Senhor tenha concedido tantas graças e no final não fomos capazes de perseverar nesta graça e perdemos tudo, porque nos falta a vigilância: não protegemos as portas. E depois fomos enganados por alguém que vem, educado, que entra e diz olá... o diabo comporta-se assim! Cada um pode até verificá-lo, reconsiderando a sua história pessoal. Não é suficiente fazer um bom discernimento e uma boa escolha. Não, não é suficiente: é preciso permanecer vigilante, preservar esta graça que Deus nos concedeu, mas vigiar, pois podes dizer-me: “Mas quando vejo alguma desordem, apercebo-me imediatamente que é o diabo, que é uma tentação...”, sim, mas desta vez vem disfarçado de anjo: o diabo sabe disfarçar-se de anjo, entra com palavras educadas, convence-te e no fim é pior do que no início... Devemos permanecer vigilantes, velar sobre o coração. Se hoje eu perguntasse a cada um de nós, e também a mim mesmo: “O que acontece no teu coração?”. Talvez não saibamos dizer tudo: diremos uma ou duas coisas, mas não tudo. Velar sobre o coração, pois a vigilância é sinal de sabedoria, é sobretudo sinal de humildade, pois temos medo de cair, e a humildade é a via mestra da vida cristã.
Papa Francisco
Catequese na audiência geral 14.12.22
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Catequeses sobre o discernimento 11. A confirmação da boa escolha
No processo de discernimento, é importante permanecer atento também à fase que se segue imediatamente à decisão tomada, para captar os sinais que a confirmam, ou aqueles que a desmentem. Devo tomar uma decisão, faço o discernimento a favor ou contra, sentimentos, rezo... depois, termina este processo e tomo a decisão, e em seguida vem aquela parte em que devemos estar atentos, ver. Pois na vida há decisões que não são boas e existem sinais que as desmentem, enquanto as boas as confirmam.
Com efeito, vimos que o tempo é um critério fundamental para reconhecer a voz de Deus no meio de muitas outras vozes. Somente Ele é Senhor do tempo: é uma marca de garantia da sua originalidade, que o diferencia das imitações que, sem sucesso, falam em seu nome. Um dos sinais distintivos do espírito bom é que ele comunica uma paz que perdura no tempo. Se fizeres um aprofundamento e depois tomares a decisão, e se isto te der uma paz que perdura no tempo, este é um bom sinal, pois indica que o caminho foi bom. Uma paz que traz harmonia, unidade, fervor, zelo. Sais do processo de aprofundamento melhor do que entraste.
Por exemplo, se eu tomar a decisão de dedicar meia hora a mais à oração, e depois sentir que vivo melhor os outros momentos do dia, que estou mais tranquilo, menos ansioso, desempenho o trabalho com mais atenção e prazer, até as relações com algumas pessoas difíceis se tornam mais fáceis..., todos estes são sinais importantes que vão a favor da bondade da decisão tomada. A vida espiritual é circular: a bondade de uma escolha beneficia todos os âmbitos da nossa vida, porque é participação na criatividade de Deus.
Podemos reconhecer alguns aspetos importantes, que ajudam a ler o tempo que se segue à decisão como possível confirmação da sua bondade, pois o tempo que se segue confirma a bondade da decisão. De certo modo, já descobrimos estes aspetos importantes no decurso destas catequeses, mas agora elas encontram uma sua ulterior aplicação.
Um primeiro aspeto consiste em saber se a decisão é considerada como um possível sinal de resposta ao amor e à generosidade que o Senhor tem em relação a mim. Não nasce do medo, não nasce de uma chantagem afetiva, nem de uma constrição, mas nasce da gratidão pelo bem recebido, que leva o coração a viver com liberalidade a relação com o Senhor.
Outro elemento importante é a consciência de se sentir à-vontade na vida – aquela tranquilidade, “estou à-vontade” - e de se sentir parte de um desígnio maior, para o qual se deseja oferecer a própria contribuição. Na Praça de São Pedro, há dois pontos exatos - os focos da elipse - de onde se veem as colunas de Bernini perfeitamente alinhadas. De maneira análoga, o homem pode reconhecer que encontrou o que procura, quando o seu dia se torna mais ordenado, sente uma integração crescente entre os seus múltiplos interesses, estabelece uma hierarquia correta de importância e consegue viver tudo isto com facilidade, enfrentando com renovadas energia e força de espírito as dificuldades que se apresentam. Estes são sinais de que tomaste uma boa decisão.
Por exemplo, outro bom sinal de confirmação é quando se permanece livre em relação ao que se decidiu, disposto a pô-lo novamente em questão, até a renunciar ao mesmo perante possíveis negações, procurando encontrar nelas um eventual ensinamento do Senhor. Não porque Ele nos quer privar do que nos é querido, mas para o viver com liberdade, sem apego. Só Deus sabe o que é verdadeiramente bom para nós. A possessividade é inimiga do bem e mata o afeto, prestai atenção a isto, a possessividade é inimiga do bem, mata o afeto: os numerosos casos de violência no âmbito doméstico, de que infelizmente temos notícias frequentes, surgem quase sempre da pretensão de possuir o afeto do outro, da busca de uma segurança absoluta que mata a liberdade e sufoca a vida, tornando-a um inferno.
Só podemos amar na liberdade, e foi por isso que o Senhor nos criou livres, livres até de lhe dizer não. Oferecer-lhe o que temos de mais querido é interesse nosso, permite-nos vivê-lo da melhor maneira possível e na verdade, como um dom que nos concedeu, como sinal da sua bondade gratuita, conscientes de que a nossa vida, assim como toda a História, está nas suas mãos benevolentes. É a isto que a Bíblia chama temor de Deus, ou seja, o respeito por Deus, não é que Deus me assusta, não, mas é um respeito, uma condição indispensável para aceitar a dádiva da Sabedoria (cf. Eclo 1, 1-18). É o temor que afasta todos os outros receios, porque está orientado para Ele, que é o Senhor de tudo. Perante Ele nada nos pode inquietar. É a surpreendente experiência de São Paulo, que dizia assim: «Sei viver na penúria, e sei também viver na abundância. Estou habituado a todas as vicissitudes: fartura e fome, abundância e indigência. Tudo posso n’Aquele que me conforta» (Fl 4, 12-13). Este é o homem livre, que bendiz o Senhor quer quando recebe coisas boas, quer quando recebe coisas não muito boas: bendito seja e vamos em frente!
Reconhecer isto é fundamental para uma boa decisão, e tranquiliza acerca daquilo que não podemos controlar nem prever: a saúde, o futuro, os entes queridos, os nossos projetos. O que importa é que a nossa confiança seja depositada no Senhor do universo, que nos ama imensamente e sabe que, com Ele, podemos edificar algo magnífico, algo eterno. A vida dos santos no-lo mostra da maneira mais bonita! Vamos em frente, procurando sempre tomar decisões assim, com a oração, sentindo o que acontece no nosso coração e progredindo lentamente, ânimo!
Papa Francisco
Catequese na audiência geral 07.12.22
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Catequeses sobre o discernimento 10. A consolação autêntica
Continuando a nossa reflexão sobre o discernimento, e em particular sobre a experiência espiritual chamada “consolação”, sobre a qual falámos na outra quarta-feira, perguntemo-nos: como reconhecer a verdadeira consolação? É uma pergunta muito importante para um bom discernimento, para não sermos enganados na busca do nosso verdadeiro bem.
Podemos encontrar alguns critérios num trecho dos Exercícios espirituais de Santo Inácio de Loyola. «Se nos pensamentos tudo é bom – diz Santo Inácio - o princípio, o meio e o fim, e se tudo está orientado para o bem, este é um sinal do anjo bom. Por outro lado, pode ser que no decurso dos pensamentos se apresente algo mau, ou que distraia, ou menos bom do que aquilo que antes a alma se propusera fazer, ou algo que debilite a alma, que a torne inquieta, que a ponha em agitação e lhe tire a paz, lhe tira a tranquilidade e a calma que antes tinha: então, este é um sinal claro de que tais pensamentos vêm do espírito maligno» (n. 333). Pois é verdade: há uma verdadeira consolação, mas também há algumas consolações que não são verdadeiras. E por isso é preciso compreender bem o percurso da consolação: como vai e onde me leva? Se me levar a algo que não está bem, que não é bom, a consolação não é verdadeira, é “fingida”, digamos assim.
E estas são indicações preciosas, que merecem um breve comentário. O que significa que o princípio está orientado para o bem, como diz Santo Inácio de uma boa consolação? Por exemplo, tenho o pensamento de rezar, e observo que se acompanha ao afeto pelo Senhor e pelo próximo, convida a realizar gestos de generosidade, de caridade: é um bom princípio. No entanto, pode acontecer que aquele pensamento surja para evitar um trabalho ou uma tarefa que me foi confiada: sempre que devo lavar a louça ou limpar a casa, vem-me uma grande vontade de começar a rezar! Acontece isto nos conventos. Mas a oração não é uma fuga dos nossos afazeres; pelo contrário, é uma ajuda para realizar o bem que somos chamados a praticar, aqui e agora. Isto a propósito do princípio.
Em seguida há o meio: Santo Inácio dizia que o princípio, o meio e o fim devem ser bons. O princípio é este: tenho vontade de rezar para não lavar os pratos: vai, lava os pratos e depois vai rezar. Depois há o meio, ou seja, o que vem depois, o que se segue a tal pensamento. Permanecendo no exemplo anterior, se eu começar a rezar e, como faz o fariseu da parábola (cf. Lc 18, 9-14), tendo a agradar a mim mesmo e a desprezar os outros, talvez com um ânimo ressentido e azedo, então estes são sinais de que o espírito maligno utilizou aquele pensamento como chave de acesso para entrar no meu coração e para me transmitir os seus sentimentos. Se eu for rezar e me vier à mente o famoso fariseu – “dou-te graças, Senhor, porque eu rezo, não sou como os outros que não te procuram, não rezam” – aquela oração acaba mal. Aquela consolação de rezar é para se sentir um pavão diante de Deus. E este é o meio que não está bem.
E depois há o fim: o princípio, o meio e o fim. O fim é um aspeto que já encontramos, ou seja: para onde me leva um pensamento? Por exemplo, onde me leva o pensamento de rezar. Ou então, pode acontecer que eu trabalhe arduamente por uma obra boa e meritória, mas isto impele-me a deixar de rezar, porque estou atarefado com muitas coisas, descubro-me cada vez mais agressivo e zangado, considero que tudo depende de mim, a ponto de perder a confiança em Deus. Evidentemente, aqui há a ação do espírito maligno. Ponho-me a rezar, depois na oração sinto-me omnipotente, que tudo deve estar nas minhas mãos pois sou o único, a única que sabe levar em frente as situações: evidentemente nisto não há o bom espírito. É preciso examinar bem o percurso dos nossos sentimentos e o percurso dos bons sentimentos, da consolação, no momento em que quero fazer alguma coisa. Como é o princípio, como é o meio e como é o fim.
O estilo do inimigo - quando falamos do inimigo, falamos do diabo, pois o demónio existe, está presente! – o seu estilo, sabemo-lo, consiste em apresentar-se de maneira sorrateira e disfarçada: começa a partir daquilo que nos é mais querido e depois, pouco a pouco, atrai-nos a si: o mal entra secretamente, sem que a pessoa se aperceba. E, com o passar do tempo, a suavidade torna-se dureza: aquele pensamento revela-se pelo que realmente é.
Eis a importância deste paciente, mas indispensável exame sobre a origem e a verdade dos próprios pensamentos; é um convite a aprender com as experiências, com o que nos acontece, para não continuar a repetir os mesmos erros. Quanto mais nos conhecemos, mais sentimos por onde entra o espírito maligno, as suas “passwords”, as portas de entrada do nosso coração, que são os pontos onde somos mais sensíveis, de modo a prestar-lhes atenção no futuro. Cada um de nós tem os pontos mais sensíveis, os pontos mais débeis da própria personalidade: e por ali entra o espírito mau e leva-nos para a estrada não reta, ou tira-nos da verdadeira estrada certa. Vou rezar, mas tira-me da oração.
Os exemplos poderiam multiplicar-se à vontade, refletindo sobre os nossos dias. Por isso é tão importante o exame de consciência diário: antes de acabar o dia, paremos um pouco. O que aconteceu? Não nos jornais, não na vida: o que aconteceu no meu coração? O meu coração prestou atenção? Cresceu? Foi uma estrada que passou por cima tudo, sem o meu conhecimento? O que aconteceu no meu coração? E este exame é importante, trata-se do precioso esforço de reler a experiência sob um ponto de vista particular. É importante compreender o que acontece, é sinal de que a graça de Deus age em nós, ajudando-nos a crescer em liberdade e consciência. Não estamos sozinhos: é o Espírito Santo que está connosco. Vejamos como correram as coisas.
A consolação autêntica é uma espécie de confirmação de que estamos a cumprir o que Deus quer de nós, que percorremos os seus caminhos, ou seja, as veredas da vida, da alegria, da paz. Com efeito, o discernimento não é simplesmente sobre o bem, nem sobre o máximo bem possível, mas sobre o que é um bem para mim aqui e agora: é nisto que sou chamado a crescer, colocando limites a outras propostas, atraentes, mas irreais, para não ser enganado na busca do verdadeiro bem.
Irmãos e irmãs, é preciso entender, ir em frente na compreensão do que acontece no meu coração. E por isso é necessário o exame de consciência, para ver o que aconteceu hoje. “Hoje zanguei-me ali, não fiz aquilo…”: mas porquê? Ir além do porquê é procurar a raiz destes erros. “Mas, hoje fui feliz, porém estava aborrecido porque devia ajudar aquelas pessoas, mas no final senti-me satisfeito, satisfeita com aquela ajuda”: e há o Espírito Santo. Aprender a ler no livro do nosso coração o que aconteceu durante o dia. Fazei isto, apenas dois minutos, far-vos-á bem, vo-lo garanto.
Papa Francisco
Catequese na audiência geral 30.11.22
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Catequeses sobre o discernimento 9. A consolação
Continuemos as catequeses sobre o discernimento do espírito: como discernir o que acontece no nosso coração, na nossa alma. E depois de ter considerado alguns aspetos da desolação – aquela escuridão da alma - falemos hoje sobre a consolação, que seria a luz da alma, e que é outro elemento importante para o discernimento, e que não se deve dar por certo, pois pode prestar-se a equívocos. Devemos compreender o que é a consolação, como procurámos entender bem o que é a desolação.
O que é a consolação espiritual? É uma experiência de alegria interior, que permite ver a presença de Deus em tudo; ela revigora a fé e a esperança, assim como a capacidade de fazer o bem. A pessoa que vive a consolação não se rende diante das dificuldades, pois experimenta uma paz mais forte do que a provação. Portanto, trata-se de um grande dom para a vida espiritual e para a vida no seu conjunto. E viver esta alegria interior.
A consolação é um movimento íntimo, que toca o fundo de nós próprios. Não é vistosa, mas suave, delicada, como uma gota de água sobre uma esponja (cf. Santo Inácio de Loyola, Exercícios espirituais, 335): a pessoa sente-se abraçada pela presença de Deus, de uma maneira sempre respeitosa da própria liberdade. Nunca é algo desafinado, que procura forçar a nossa vontade, mas também não é uma euforia passageira: pelo contrário, como vimos, até a dor - por exemplo, por causa dos próprios pecados - pode tornar-se motivo de consolação.
Pensemos na experiência de Santo Agostinho, quando fala com a mãe Mónica sobre a beleza da vida eterna; ou na perfeita alegria de São Francisco – de resto associada a situações muito difíceis de suportar; e pensemos em tantos santos e santas que souberam fazer maravilhas, não porque se julgavam hábeis e capazes, mas porque foram conquistados pela docilidade pacificadora do amor de Deus. Trata-se da paz, que Santo Inácio sentia em si com admiração quando lia a vida dos santos. Ser consolado é estar em paz com Deus, sentir que tudo está arrumado em paz, tudo é harmónico dentro de nós. Trata-se da paz que Edith Stein experimenta após a conversão; um ano depois de ter recebido o Batismo, escreve – assim diz Edith Stein: «Na medida em que me abandono a este sentimento, pouco a pouco uma nova vida começa a preencher-me e - sem tensão alguma da minha vontade - a impelir-me rumo a novas realizações. Este fluxo vital parece brotar de uma atividade e de uma força que não são minhas e que, sem fazer qualquer violência às minhas, se tornam ativas em mim» (Psicologia e scienze dello spirito, Città Nuova, 1996, 116). Ou seja, uma paz genuína, uma paz que faz brotar os bons sentimentos em nós.
A consolação refere-se, acima de tudo, à esperança, propende para o futuro, põe a caminho, permite tomar iniciativas até àquele momento adiadas, ou nem sequer imaginadas, como o Batismo para Edith Stein.
A consolação é uma paz deste como esta mas não para permanecer sentados ali, gozando-a, não; ela dá-te a paz e atrai-te para o Senhor e põe-te a caminho para realizar, fazer coisas boas. Em tempo de consolação, quando estamos consolados, vem-nos vontade de praticar tanto bem, sempre. Ao contrário, quando há um momento de desolação, vem-nos vontade de nos fecharmos em nós mesmos e de não fazer nada. A consolação impele-nos para a frente, para o serviço aos outros, da sociedade, das pessoas. A consolação espiritual não é “pilotável” – não podes dizer agora que venha a consolação, não, não é pilotável - não é programável a bel-prazer, é uma dádiva do Espírito Santo: permite uma familiaridade com Deus, que parece anular as distâncias. Santa Teresa do Menino Jesus, visitando com 14 anos a basílica de Santa Cruz de Jerusalém, em Roma, procura tocar o prego ali venerado, um daqueles com que Jesus foi crucificado. Teresa sente esta sua ousadia como um transporte de amor e de confidência. E em seguida escreve: «Fui verdadeiramente demasiado audaz. Mas o Senhor vê o fundo do coração, sabe que a minha intenção era pura [...]. Agi com Ele como uma criança, que acredita que tudo lhe é permitido, e considera os tesouros do Pai como seus» (Manuscrito autobiográfico, 183). A consolação é espontânea, leva-te a fazer tudo espontaneamente, como se fôssemos crianças. As crianças são espontâneas, e a consolação leva-te a ser espontâneo com uma doçura, com uma paz muito grande. Uma jovem de 14 anos oferece-nos uma maravilhosa descrição da consolação espiritual: temos uma sensação de ternura em relação a Deus, que nos torna audazes no desejo de participar na sua própria vida, de fazer o que lhe agrada, porque nos familiares d’Ele, sentimos que a sua casa é a nossa, sentimo-nos acolhidos, amados, restabelecidos. Com esta consolação, não nos rendemos diante das dificuldades: com efeito, com a mesma audácia, Teresa pedirá ao Papa a autorização para entrar no Carmelo, não obstante fosse demasiado jovem, e será atendida. O que significa isto? Quer dizer que a consolação nos torna audazes: quando vivemos tempos obscuros, de desolação, e pensamos: “Não sou capaz de fazer isto”. A desolação põe-te abaixo, faz-te ver tudo escuro: “Não, não posso fazer, não o farei”. Ao contrário, em tempo de consolação, vês as mesmas coisas de maneira diferente e dizes: “Não, vou em frente, consigo”. “mas, tens a certeza”. “Sinto a força de Deus e vou em frente”. E assim a consolação impele-te a ir em frente e a fazer coisas que em tempo de desolação não serias capaz; impele-te a dar o primeiro passo. Este é o aspeto bonito da consolação.
Mas, estejamos atentos. Devemos distinguir bem a consolação que vem de Deus das falsas consolações. Na vida espiritual ocorre algo semelhante ao que acontece nas produções humanas: há originais e há imitações. Se a consolação autêntica for como uma gota sobre uma esponja, será suave e íntima; as suas imitações serão mais barulhentas e vistosas, são mero entusiasmo, são fogos de palha, sem consistência, levam a fechar-se em si mesmas, e a não se preocupar com os outros. No final, a falsa consolação deixa-nos vazios, distantes do centro da nossa existência. Por isso, quando nos sentimos felizes, em paz, somos capazes de fazer qualquer coisa. Mas não confundamos aquela paz com um entusiasmo passageiro, pois há o entusiasmo hoje, depois diminui e deixa de haver.
Por isso, é necessário fazer discernimento, até quando nos sentimos consolados. Pois a falsa consolação pode tornar-se um perigo, se a procurarmos como um fim em si mesma, de modo obsessivo, e esquecermos o Senhor. Como diria São Bernardo, procuram-se as consolações de Deus, não se procura o Deus das consolações. Devemos procurar o Senhor e, com a sua presença, o Senhor consola-nos, faz-nos ir em frente. E não procurar Deus que nos traga consolações: não; não está bem, não devemos estar interessados nisto. É a dinâmica da criança de que falamos na última vez, que só procura os pais para obter algo deles, mas não por eles próprios: vão por interesse. “Pai, mãe”. E as crianças sabem fazer isto, sabem jogar e quando a família é dividida, e têm este hábito de procurar aqui e ali, isto não faz bem, não é consolação, é interesse. Também nós corremos o risco de viver a relação com Deus de maneira infantil, procurando o nosso interesse, procurando reduzir Deus a um objeto para nosso uso e consumo, perdendo o dom mais belo, que é Ele próprio. Assim, vamos em frente na nossa vida, que procede entre as consolações de Deus e as desolações do pecado do mundo, mas sabendo distinguir quando é uma consolação de Deus, que te dá paz até ao fundo da alma, de quando é um entusiasmo passageiro que não é negativo, mas não é a consolação de Deus.
Papa Francisco
Catequese na audiência geral 23.11.22
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Catequeses sobre o discernimento 8. Por que estamos desolados?
Estimados irmãos e irmãs, bom dia, bem-vindos!
Retomemos hoje as catequeses sobre o tema do discernimento. Vimos como é importante ler o que se move dentro de nós, para não tomar decisões apressadas, na onda da emoção do momento, para depois nos arrependermos, quando já é demasiado tarde. Isto é, ler o que acontece e depois tomar as decisões.
Neste sentido, também o estado espiritual a que chamamos desolação, quando no coração é tudo escuro, triste, este estado de desolação pode ser ocasião de crescimento. Com efeito, se não houver um pouco de insatisfação, um pouco de tristeza saudável, uma capacidade salutar de habitar na solidão, de estar connosco próprios sem fugir, corremos o risco de permanecer sempre na superfície das coisas, sem nunca entrar em contacto com o centro da nossa existência. A desolação provoca uma “trepidação da alma”, quando alguém está triste é como se a alma tremesse; mantém-nos alerta, favorece a vigilância e a humildade, protegendo-nos contra os ventos do capricho. São condições indispensáveis para o progresso na vida e, portanto, inclusive na vida espiritual. Uma serenidade perfeita mas “assética”, sem sentimentos, quando é o critério de escolhas e comportamentos, torna-nos desumanos. Nós não podemos deixar de fazer caso aos sentimentos: somos humanos e o sentimento é uma parte da nossa humanidade; sem entender os sentimentos seríamos desumanos, sem viver os sentimentos seríamos também indiferentes ao sofrimento dos outros e incapazes de aceitar o nosso. Sem considerar que esta “serenidade perfeita” não se alcança por este caminho da indiferença. Esta distância assética: “Não me intrometo nas coisas, afasto-me”: esta não é vida, é como se vivêssemos num laboratório, fechados, para não apanhar micróbios, doenças. Para muitos santos e santas, a inquietação foi um ímpeto decisivo para fazer uma mudança na própria vida. Não é boa esta serenidade artificial, mas é boa a saudável inquietude, o coração inquieto, o coração que procura encontrar caminhos. É o caso, por exemplo, de Agostinho de Hipona, ou de Edith Stein, ou de José Benedito Cottolengo ou de Charles de Foucauld. As escolhas importantes têm um preço que a vida apresenta, um preço acessível a todos: ou seja, as escolhas importantes não se vencem com a lotaria, não; têm um preço e deves pagar aquele preço. É um preço que deves pagar com o teu coração, é um preço da decisão, um preço de levar adiante um pouco de esforço. Não é grátis, mas é um preço ao alcance de todos. Todos nós devemos pagar esta decisão para sair do estado de indiferença, que nos entristece, sempre.
A desolação é também um convite à gratuidade, a não agir sempre e unicamente em vista de uma gratificação emocional. Estar desolados oferece-nos a possibilidade de crescer, de começar uma relação mais madura, mais bela, com o Senhor e com os entes queridos, uma relação que não se reduza a uma mera troca de dar e receber. Pensemos na nossa infância, por exemplo, pensemos: quando se é criança, procura-se com frequência os pais para obter algo deles, um brinquedo, dinheiro para comprar um gelado, uma autorização... E assim procuramo-los não por eles próprios, mas por um interesse. E no entanto, o maior dom são eles, os pais, e compreendemo-lo na medida em que crescemos.
Até muitas das nossas orações são um pouco deste tipo, são pedidos de favores dirigidos ao Senhor, sem um verdadeiro interesse por Ele. Vamos pedir, pedir, pedir ao Senhor. O Evangelho observa que Jesus vivia frequentemente circundado por muitas pessoas que o procuravam para obter algo, curas, ajudas materiais, mas não simplesmente para estar com Ele. Era pressionado pelas multidões, e, contudo, estava sozinho. Alguns santos, e até certos artistas, meditaram sobre esta condição de Jesus. Poderia parecer estranho, irreal, perguntar ao Senhor: “Como estás?”. E, no entanto, é um modo muito bonito de entrar numa relação verdadeira, sincera, com a sua humanidade, com o seu sofrimento, até com a sua singular solidão. Com Ele, com o Senhor, que quis partilhar até ao fim a sua vida connosco.
Faz-nos muito bem aprender a estar com Ele, a estar com o Senhor sem outro objetivo, exatamente como nos acontece com as pessoas de quem gostamos: desejamos conhecê-las cada vez mais, porque é bom estar com elas.
Caros irmãos e irmãs, a vida espiritual não é uma técnica à nossa disposição, não é um programa de “bem-estar” interior que nos compete planificar. Não! A vida espiritual é a relação com o Vivente, com Deus, o Vivente, irredutível às nossas categorias. Então, a desolação é a resposta mais clara à objeção de que a experiência de Deus constitui uma forma de sugestão, uma simples projeção dos nossos desejos. A desolação consiste em não sentir nada, tudo escuro: mas tu procuras Deus na desolação. Em tal caso, se pensarmos que é uma projeção dos nossos desejos, seríamos sempre nós a programá-la, estaríamos sempre felizes e satisfeitos, como um disco que repete a mesma música. Ao contrário, quem reza observa que os resultados são imprevisíveis: experiências e passagens da Bíblia que muitas vezes nos entusiasmaram, hoje, estranhamente, não suscitam emoção alguma. E, igualmente de modo inesperado, experiências, encontros e leituras a que nunca se prestara atenção ou que se preferiria evitar - como a experiência da Cruz - trazem uma paz imensa. Não temais a desolação, levai-a avante com perseverança, não escapeis. E na desolação procurai encontrar o coração de Cristo, encontrar o Senhor. E a resposta chega, sempre.
Portanto, diante das dificuldades nunca devemos desanimar, por favor, mas enfrentar a provação com decisão, com a ajuda da graça de Deus que nunca nos falta. E se ouvirmos dentro de nós uma voz insistente, que nos quer distrair da oração, aprendamos a desmascará-la como a voz do tentador; e não nos deixemos impressionar: façamos simplesmente o contrário do que ela nos diz! Obrigado.
Papa Francisco
Catequese na audiência geral 16.11.22
Imagem: site do Vaticano
Catequeses sobre o discernimento 7. A matéria do discernimento. A desolação
Como vimos nas catequeses anteriores, o discernimento não é principalmente um procedimento lógico; ele incide sobre as ações, e as ações têm uma conotação também afetiva, que deve ser reconhecida, porque Deus fala ao coração. Então, abordemos a primeira modalidade afetiva, objeto do discernimento: isto é, a desolação. De que se trata?
A desolação foi definida assim: «Obscuridade da alma, perturbação interior, impulso para coisas baixas e terrenas, inquietação devida a várias agitações e tentações: assim a alma inclina-se para a desconfiança, fica sem esperança e sem amor, torna-se indolente, tíbia, triste e como que separada do seu Criador e Senhor» (Santo Inácio de Loyola, Exercícios espirituais, 317). Todos nós temos esta experiência. Acredito que, de um modo ou de outro, vivemos esta experiência da desolação. O problema é como poder lê-la, pois também ela tem algo importante para nos dizer, e se tivermos pressa de nos livrar dela, correremos o risco de a perder.
Ninguém gostaria de se sentir desolado, triste: isto é verdade. Todos gostaríamos de uma vida sempre jubilosa, alegre e realizada. E, no entanto, isto, além de não ser possível – pois não é possível – também não seria bom para nós. Com efeito, a mudança de uma vida orientada para o vício pode começar a partir de uma situação de tristeza, de remorso pelo que se fez. É deveras bonita a etimologia desta palavra, “remorso”: o remorso da consciência, todos conhecemos isto. Remorso: literalmente, é a consciência que morde, que não dá paz. Alessandro Manzoni, em Os noivos, ofereceu-nos uma maravilhosa descrição do remorso, como ocasião para mudar de vida. Trata-se do célebre diálogo entre o cardeal Federico Borromeo e o Inominado que, depois de uma noite terrível, se apresenta transtornado ao cardeal, que se dirige a ele com palavras surpreendentes: «“Tem uma boa notícia para me dar, e faz-me suspirar tanto?”. “Boa notícia, eu? – disse o outro - Tenho o inferno no coração [...]. Diga-me, se o souber, qual é esta boa notícia?”. “Que Deus tocou o seu coração e quer fazê-lo seu”, retorquiu pacatamente o cardeal» (cap. XXIII). Deus toca o coração e vem-te algo dentro, a tristeza, o remorso por alguma coisa, e é um convite a iniciar um caminho. O homem de Deus sabe observar profundamente o que se move no coração.
É importante aprender a ler a tristeza. Todos sabemos o que é a tristeza: todos. Mas sabemos lê-la? Sabemos compreender o que ela significa para mim hoje? No nosso tempo – a tristeza – é considerada sobretudo negativamente, como um mal a evitar custe o que custar, e ao contrário pode ser um indispensável sinal de alarme para a vida, convidando-nos a explorar paisagens mais ricas e férteis que a fugacidade e a evasão não permitem. S. Tomás define a tristeza como uma dor da alma: como os nervos para o corpo, ela desperta a atenção diante de um possível perigo, ou de um bem ignorado (cf. Summa Th. I-II, q. 36, a. 1). Por isso, é indispensável para a nossa saúde, protege-nos para não nos ferirmos a nós próprios e aos outros. Seria muito mais grave e perigoso não ter este sentimento e ir em frente. A tristeza às vezes age como semáforo: “Pare, pare! Está vermelho, aqui. Pare”.
Ao contrário, para quem tem o desejo de praticar o bem, a tristeza é um obstáculo com que o tentador quer desencorajar-nos. Neste caso, deve-se agir exatamente ao contrário em relação ao que é sugerido, determinado a continuar o que se tinha proposto cumprir (cf. Exercícios espirituais, 318). Pensemos no trabalho, no estudo, na oração, num compromisso assumido: se os deixássemos, assim que sentíssemos tédio ou tristeza, nunca realizaríamos nada. Também esta é uma experiência comum à vida espiritual: o caminho para o bem, recorda o Evangelho, é estreito e íngreme, requer um combate, uma vitória de si mesmo. Começo a rezar ou dedico-me a uma boa obra e, é estranho, precisamente nesse momento vêm-me à mente coisas urgentes a fazer – para não rezar e não fazer as coisas boas. Todos temos esta experiência. Para quem quer servir o Senhor, é importante não se deixar enganar pela desolação. E isto que… “Mas não, não tenho vontade, isto é aborrecedor…”: estai atentos. Infelizmente, alguns decidem abandonar a vida de oração, ou a escolha feita, o matrimónio ou a vida religiosa, impelidos pela desolação, sem primeiro fazer uma pausa para considerar este estado de espírito, e sobretudo sem a ajuda de um guia. Uma regra sábia diz para não fazer mudanças quando se está desolado. O tempo seguinte, e não o humor do momento, mostrará a bondade ou não das nossas escolhas.
É interessante observar, no Evangelho, que Jesus afasta as tentações com uma atitude de firme determinação (cf. Mt 3, 14-15; 4, 1-11; 16, 21-23). As situações de provação advêm-lhe de várias partes, mas sempre, encontrando n’Ele esta firmeza decidida a cumprir a vontade do Pai, esmorecem e deixam de impedir o caminho. Na vida espiritual, a provação é um momento importante, como a Bíblia recorda explicitamente, diz assim: «Se quiseres servir a Deus, prepara a tua alma para a provação» (Eclo 2, 1). Se quiseres ir pelo bom caminho, prepara-te: há obstáculos, tentações, momentos de tristeza. É como quando um professor examina o estudante: quando vê que conhece os pontos essenciais da matéria, não insiste: passou a prova! Mas deve superar a prova.
Se soubermos atravessar a solidão e a desolação com abertura e consciência, poderemos sair revigorados sob os aspetos humano e espiritual. Nenhuma prova está fora do nosso alcance; nenhuma prova será superior ao que nós podemos fazer. Mas não fujamos das provas: verificar o que significa esta prova, o que significa que estou triste: por que estou triste? O que significa que neste momento sinto desolação? O que quer dizer que estou em desolação e não posso ir em frente? São Paulo lembra que ninguém é tentado além das próprias possibilidades, pois o Senhor nunca nos abandona e, tendo Ele perto, poderemos vencer todas as tentações (cf. 1 Cor 10, 13). E se não a vencermos hoje, erguemo-nos outra vez, caminhamos e vencê-la-emos amanhã. Mas não permaneçamos mortos – digamos assim – não permaneçamos vencidos por um momento de tristeza, de desolação: vamos em frente! Que o Senhor vos abençoe neste caminho – corajoso! – da vida espiritual, que é sempre caminhar.
Papa Francisco
Catequese na audiência geral
26.10.22
Catequeses sobre o discernimento 6. Os elementos do discernimento. O livro da própria vida
Nas catequeses destas semanas insistimos sobre os pressupostos para fazer um bom discernimento. Na vida devemos tomar decisões, sempre, e para tomar decisões devemos percorrer um caminho, uma estrada de discernimento. Cada atividade importante tem as suas “instruções” a seguir, que devem ser conhecidas para que possam produzir os efeitos necessários. Hoje meditemos sobre outro ingrediente indispensável para o discernimento: a própria história de vida. Conhecer a própria história de vida é um ingrediente – digamos assim – indispensável para o discernimento.
A nossa vida é o “livro” mais precioso que nos foi confiado, um livro que muitos infelizmente não leem, ou que o fazem demasiado tarde, antes de morrer. No entanto, é precisamente nesse livro que se encontra aquilo que se procura inutilmente por outros caminhos. Santo Agostinho, um grande investigador da verdade, compreendeu-o exatamente relendo a sua vida, observando nela os passos silenciosos e discretos, mas incisivos, da presença do Senhor. No final deste percurso, anotará com admiração: «Tu estavas dentro de mim, e eu fora. Lá, eu procurava-te. Deformado, lançava-me sobre as belas formas das tuas criaturas. Tu estavas comigo, mas eu não estava contigo» (Confissões X, 27.38). Daqui deriva o seu convite a cultivar a vida interior, para encontrar o que se procura: «Volta para ti mesmo. No homem interior habita a verdade» (A verdadeira religião, XXXIX, 72). Este é um convite que faria a todos vós, inclusive a mim mesmo: “Entra em ti mesmo. Lê a tua vida. Lê dentro de ti, como foi o teu percurso. Com serenidade. Entra em ti mesmo”.
Muitas vezes, também nós vivemos a experiência de Agostinho, de nos encontrarmos presos em pensamentos que nos afastam de nós mesmos, mensagens estereotipadas que nos ferem: por exemplo, “Nada valho” – e desanimas; “tudo corre mal comigo”, e deprimes-te; “nunca farei nada de bom”, e desencorajas-te; e assim é a vida. Estas frases pessimistas que te desanimam! Ler a própria história significa também reconhecer a presença destes elementos “tóxicos”, mas para depois ampliar a trama da nossa narração, aprendendo a observar outras coisas, tornando-a mais rica, mais respeitadora da complexidade, conseguindo até captar os modos discretos como Deus age na nossa vida. Certa vez conheci uma pessoa da qual havia quem dissesse que merecia o prémio Nobel da negatividade: tudo era terrível, tudo, e procurava sempre motivos para desanimar. Era uma pessoa amargurada e no entanto possuía muitas qualidades. Depois, esta pessoa encontrou outra pessoa que a ajudou muito e cada vez que se lamentava de algo, esta última dizia: “Agora, para compensar, diz alguma coisa positiva de ti”. E ele: “Ah, sim... tenho também esta qualidade”, e pouco a pouco ajudou-o a ir em frente, a ler bem a própria vida, quer nos aspetos negativos quer nos positivos. Devemos ler a nossa vida, e assim vemos o que não é positivo e também as coisas boas que Deus semeia em nós.
Vimos que o discernimento tem uma abordagem narrativa: não se limita à ação pontual; insere-a num contexto: de onde vem este pensamento? O que sinto agora, de onde vem? Para onde me leva o que estou a pensar agora? Quando tive a ocasião de o encontrar precedentemente? É algo novo que sinto agora, ou que já senti outras vezes? Porquê é mais insistente do que outros? O que me quer dizer a vida com isto?
A narração das vicissitudes da nossa vida permite também compreender matizes e detalhes importantes, que podem revelar-se ajudas valiosas até então ocultas. Por exemplo, uma leitura, um serviço, um encontro, à primeira vista considerados de pouca importância, sucessivamente transmitem uma paz interior, transmitem a alegria de viver e sugerem outras iniciativas de bem. Deter-se e reconhecer que isto é indispensável para o discernimento. Parar é reconhecer: é importante para o discernimento, é uma obra de recolha daquelas pérolas preciosas e escondidas que o Senhor disseminou no nosso terreno.
O bem está escondido, sempre, pois o bem tem pudor e esconde-se: o bem está escondido; é silencioso, requer uma escavação lenta e contínua. Pois o estilo de Deus é discreto: a Deus apraz o escondimento, a discrição, não se impõe; é como o ar que respiramos, não o vemos, mas faz-nos viver, e só nos damos conta dele quando nos falta.
Habituar-se a reler a própria vida educa o olhar, aguça-o, permite notar os pequenos milagres que o bom Deus realiza para nós todos os dias. Quando prestamos atenção, observamos outros rumos possíveis que revigoram o gosto interior, a paz e a criatividade. Acima de tudo, torna-nos mais livres dos estereótipos tóxicos. Diz-se sabiamente que o homem que não conhece o seu passado está condenado a repeti-lo. É curioso: se não conhecermos a estrada percorrida, o passado, repetimo-lo sempre, somos circulares. A pessoa que caminha circularmente nunca vai em frente, não há caminho, é como o cão que se morde a cauda, sempre vai assim, e repete as ações.
Podemos perguntar-nos: já contei a alguém a minha vida? Esta é uma bonita experiência dos namorados, que quando a relação é séria contam a vida um ao outro... Trata-se de uma das formas de comunicação mais belas e íntimas, narrar a própria vida. Ela permite-nos descobrir coisas até então desconhecidas, pequenas e simples, mas, como diz o Evangelho, é precisamente das pequenas coisas que nascem as grandes (cf. Lc 16, 10).
Também a vida dos santos constitui uma ajuda preciosa para reconhecer o estilo de Deus na própria vida: permite familiarizar com o seu modo de agir. O comportamento de alguns santos interpela-nos, mostrando-nos novos significados e oportunidades. Foi o que aconteceu, por exemplo, a Santo Inácio de Loyola. Quando descreve a descoberta fundamental da sua vida, acrescenta uma importante observação: «Por experiência, deduziu que alguns pensamentos o deixaram triste e outros, alegre; e pouco a pouco aprendeu a conhecer a diversidade dos pensamentos, a diversidade dos espíritos que nele se agitavam» (Autob., n. 8). Conhecer o que acontece dentro de nós, conhecer, estar atentos.
O discernimento é a leitura narrativa dos momentos bons e dos momentos escuros, das consolações e desolações que experimentamos ao longo da nossa vida. No discernimento é o coração que nos fala de Deus, e nós devemos aprender a compreender a sua linguagem. Perguntemo-nos, no final do dia, por exemplo: o que aconteceu hoje no meu coração? Alguns pensam que fazer este exame de consciência é fazer a contabilidade dos pecados que cometemos – e cometemos muitos – mas é também perguntar-se “o que aconteceu dentro de mim, tive alegrias? O que me causou alegria? Fiquei triste? Qual o motivo da tristeza? E assim aprender a discernir o que acontece dentro de nós.
Papa Francisco
Catequese na audiência geral de 19.10.22
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Catequeses sobre o discernimento 5. Os elementos do discernimento. O desejo
Estimados irmãos e irmãs, bom dia!
Nestas catequeses, revemos os elementos do discernimento. Depois da oração e do conhecimento de si, isto é, rezar e conhecer-se a si mesmo, hoje gostaria de falar sobre outro “ingrediente”, por assim dizer, indispensável: hoje gostaria de falar sobre o desejo. Com efeito, o discernimento é uma forma de busca, e a busca deriva sempre de algo que nos falta, mas que de certo modo, conhecemos, intuímos.
De que tipo é este conhecimento? Os mestres espirituais indicam-no com o termo “desejo” que, na raiz, é uma nostalgia de plenitude que nunca encontra realização total, e é o sinal da presença de Deus em nós. O desejo não é a vontade do momento, não. A palavra italiana vem de um termo latino muito bonito, isto é curioso: de-sidus, literalmente “a falta da estrela”, desejo é uma falta da estrela, falta do ponto de referência que orienta o caminho da vida; ela evoca um sofrimento, uma carência e, ao mesmo tempo, uma tensão para alcançar o bem que nos falta. Então, o desejo é a bússola para compreender onde estou e para onde vou, aliás é a bússola para compreender se estou parado ou a caminhar, uma pessoa que nunca deseja é uma pessoa parada, talvez doente, quase morta. É a bússola que indica se estou a caminhar ou parado. E como é possível reconhecê-lo?
Pensemos, um desejo sincero sabe tocar profundamente as cordas do nosso ser, e por isso não se extingue perante as dificuldades ou contratempos. É como quando estamos com sede: se não encontramos algo para beber, não renunciamos; pelo contrário, a busca ocupa cada vez mais os nossos pensamentos e ações, até nos dispormos a fazer qualquer sacrifício para a poder saciar, quase obcecados. Obstáculos e fracassos não sufocam o desejo, não; pelo contrário, tornam-no ainda mais vivo em nós.
Ao contrário da vontade ou da emoção do momento, o desejo dura no tempo, até por muito tempo, e tende a concretizar-se. Se, por exemplo, um jovem desejar tornar-se médico, deverá empreender um percurso de estudos e de trabalho que ocupará vários anos da sua vida e, consequentemente, deverá estabelecer limites, dizer “não”, em primeiro lugar a outros percursos de estudos, mas também a possíveis lazeres e distrações, especialmente nos momentos mais intensos de estudo. No entanto, o desejo de dar um rumo à sua vida e de alcançar aquela meta – chegar a ser médico era o exemplo - permite-lhe superar tais dificuldades. O desejo torna-te forte, corajoso, faz com que vás em frente sempre porque queres chegar àquilo: “Eu desejo aquilo”.
Com efeito, um valor torna-se belo e mais facilmente realizável quando é atraente. Como alguém disse, «mais do que ser bom é importante ter o desejo de se tornar bom». Ser bom é atraente, todos queremos ser bons, mas temos a vontade de nos tornarmos bons?
É impressionante que Jesus, antes de realizar um milagre, frequentemente questione a pessoa sobre o seu desejo: “Queres ser curado?”. E às vezes esta pergunta parece inoportuna, mas vê-se que está doente! Por exemplo, quando encontra o paralítico na piscina de Betesda, que já estava ali havia muitos anos e nunca conseguia encontrar o momento certo para entrar na água. Jesus pergunta-lhe: «Queres ser curado?» (Jo 5, 6). Porquê? Na realidade, a resposta do paralítico revela uma série de estranhas resistências à cura, que não dizem respeito somente a ele. A pergunta de Jesus era um convite a esclarecer o seu coração, para acolher um possível salto de qualidade: deixar de pensar em si próprio e na sua vida “de paralítico”, transportado por outros. Mas o homem na maca não parece estar tão convencido disto. Dialogando com o Senhor, aprendemos a compreender o que verdadeiramente queremos da nossa vida. Aquele paralítico é o exemplo típico das pessoas: “Sim, sim, quero, quero”, mas não quero, não quero, não faço nada. O querer fazer torna-se como uma ilusão e não se dá o passo para o fazer. As pessoas que querem e não querem. Isto é terrível, e aquele doente de 38 anos, sempre com lamentações: “Não, sabes Senhor, mas sabes que quando as águas se movem – que é o momento do milagre – tu sabes, vem alguém mais forte do que eu, entra e eu chego atrasado”, e lamenta-se e lamenta-se. Mas estai atentos que as lamentações são um veneno, um veneno para a alma, um veneno para a vida pois não te fazem crescer o desejo de ir em frente. Estai atentos com as lamentações. Quando se lamentam em família, lamentam-se os cônjuges, lamentam-se uns dos outros, os filhos dos pais ou os sacerdotes do bispo ou os bispos de muitas outras coisas… Não, se vos encontrardes no meio de lamentações, estai atentos, é quase pecado, pois não deixa crescer o desejo.
Muitas vezes, é precisamente o desejo que faz a diferença entre um projeto de sucesso, coerente e duradouro, e os milhares de veleidades e tantos bons propósitos com que, como se diz, “é pavimentado o inferno”: “Sim, eu queria, queria, queria…” mas nada faz. A época em que vivemos parece favorecer a máxima liberdade de escolha, mas ao mesmo tempo atrofia o desejo – queres satisfazer-te continuamente - reduzido principalmente à vontade do momento. E devemos estar atentos a não atrofiar o desejo. Somos bombardeados por mil propostas, projetos e possibilidades, que correm o risco de nos distrair e de não nos permitir avaliar com calma o que realmente queremos. Muitas vezes, encontramos pessoas – pensemos nos jovens por exemplo – com o telemóvel na mão e procuram, olham… “Mas tu paras para pensar?” – “Não”. Sempre extroverso, para com o outro. Assim o desejo não pode crescer, tu vives o momento, saciado no momento e o desejo não cresce.
Muitas pessoas sofrem porque não sabem o que querem da própria vida; provavelmente nunca entraram em contacto com o seu desejo mais profundo, nunca souberam: “O que queres da tua vida?” – “não sei”. Daqui deriva o risco de passar a existência entre tentativas e expedientes de vários tipos, sem nunca chegar a lado algum, desperdiçando oportunidades preciosas. E assim certas mudanças, embora desejadas em teoria, quando se apresenta a ocasião, nunca são postas em prática, falta o desejo forte de levar algo adiante.
Se hoje, por exemplo, a qualquer um de nós, o Senhor nos dirigisse a pergunta que fez ao cego de Jericó: «Que queres que te faça?» (Mc 10, 51) – imaginemos que o Senhor pergunte hoje a cada um de nós: “que queres que eu faça por ti” - como responderíamos? Talvez finalmente pudéssemos pedir-lhe que nos ajude a conhecer o profundo desejo d’Ele que o próprio Deus colocou no nosso coração: “Senhor, que eu conheça os meus desejos, que eu seja uma mulher, um homem de grandes desejos” talvez o Senhor nos conceda a força para o realizar. É uma graça imensa, na base de todas as outras: permitir que o Senhor, como no Evangelho, faça milagres para nós: “Concedei-nos o desejo e fazei-o crescer, Senhor”.
Porque também Ele tem um grande desejo em relação a nós: tornar-nos partícipes da sua plenitude de vida. Obrigado.
Papa Francisco
Catequese na audiência geral em 12.10.22
Catequeses sobre o discernimento 4. Os elementos do discernimento. Conhecer-se a si mesmo.
Prezados irmãos e irmãs, bom dia!
Continuamos a abordar o tema do discernimento. Na semana passada considerámos como seu elemento indispensável o da oração, entendida como familiaridade e confidência com Deus. Oração, não como os papagaios, mas como familiaridade e confidência com Deus; oração dos filhos ao Pai; oração com o coração aberto. Vimos isto na última Catequese. Hoje gostaria de salientar, de maneira quase complementar, que o bom discernimento exige também o conhecimento de si. Conhecer a si mesmo. E isto não é fácil. Com efeito, o discernimento envolve as nossas faculdades humanas: a memória, o intelecto, a vontade, os afetos. Muitas vezes não sabemos discernir porque não nos conhecemos de modo suficiente, e assim não sabemos o que realmente queremos. Ouvistes muitas vezes: “Mas aquela pessoa, por que não se ocupa da sua vida? Nunca soube o que quer…”. Sem chegar àquele extremo, mas também a nós acontece que não sabemos bem o que queremos, não nos conhecemos bem.
Na base de dúvidas espirituais e crises vocacionais encontra-se não raro um diálogo insuficiente entre a vida religiosa e a nossa dimensão humana, cognitiva e afetiva. Um autor de espiritualidade observava que muitas dificuldades a respeito do tema do discernimento remetem para problemas de outro tipo, que devem ser reconhecidos e explorados. Assim escreve este autor: «Cheguei à convicção de que o maior obstáculo para o verdadeiro discernimento (e para o verdadeiro crescimento na oração) não é a natureza intangível de Deus, mas a constatação de que não nos conhecemos suficientemente a nós próprios, e de que nem sequer queremos conhecer-nos como verdadeiramente somos. Quase todos nos escondemos por detrás de uma máscara, não só perante os outros, mas também quando nos olhamos ao espelho» (Th. Green, Il grano e la zizzania, Roma, 1992, 25). Todos temos a tentação de usar máscaras inclusive diante de nós mesmos.
O esquecimento da presença de Deus na nossa vida anda de mãos dadas com a ignorância sobre nós mesmos – ignorar Deus e ignorar-nos – ignorância sobre as caraterísticas da nossa personalidade e sobre os nossos desejos mais profundos.
Conhecer-se a si próprio não é difícil, mas é cansativo: exige um paciente trabalho de escavação interior. Requer a capacidade de parar, de “desativar o piloto automático”, de tomar consciência da nossa maneira de agir, dos sentimentos que nos habitam, dos pensamentos recorrentes que nos condicionam, e muitas vezes sem que saibamos. Exige também que se distinga entre as emoções e as faculdades espirituais. “Sinto” não é a mesma coisa que “estou convencido”; “apetece-me” não é a mesma coisa que “desejo”. Assim chegamos a reconhecer que a visão que temos de nós próprios e da realidade é às vezes um pouco deturpada. Compreender isto é uma graça! Com efeito, muitas vezes pode acontecer que convicções erradas sobre a realidade, baseadas nas experiências do passado, nos influenciem fortemente, limitando a nossa liberdade de apostar naquilo que realmente conta na nossa vida.
Vivendo na era da informática, sabemos como é importante conhecer as passwords para poder entrar nos programas em que se encontram as informações mais pessoais e preciosas. Mas até a vida espiritual tem as suas “passwords”: há palavras que tocam o coração, porque remetem para aquilo a que somos mais sensíveis. O tentador, isto é o diabo, conhece bem estas palavras-chave, e é importante que também nós as conheçamos, para não nos encontrarmos onde não gostaríamos. A tentação não sugere necessariamente coisas más, mas muitas vezes coisas desordenadas, apresentadas com importância excessiva. Deste modo, hipnotiza-nos com a atratividade que tais coisas suscitam em nós, coisas bonitas, mas ilusórias, que não podem cumprir o que prometem, e assim no final deixam-nos uma sensação de vazio e de tristeza. Aquela sensação de vazio e tristeza é um sinal de que empreendemos uma estrada que não era correta, que nos desorientou. Por exemplo, podem ser o título de estudos, a carreira, os relacionamentos, tudo em si louvável, mas em reação ao que, se não formos livres, corremos o risco de alimentar expetativas irreais, como por exemplo a confirmação do nosso valor. Por exemplo, tu quando pensas num estudo que estás a fazer, pensas nele apenas para te promover a ti mesmo, para o teu interesse, ou também para servir a comunidade? Nisto pode-se ver qual é a intencionalidade de cada um de nós. Deste mal-entendido derivam com frequência os maiores sofrimentos, dado que nada disto pode ser a garantia da nossa dignidade.
Por isso, estimados irmãos e irmãs, é importante conhecer-se, conhecer as passwords do nosso coração, aquilo a que somos mais sensíveis, para nos protegermos de quem se apresenta com palavras persuasivas para nos manipular, mas também para reconhecer o que é realmente importante para nós, distinguindo-o das modas do momento ou de slogans vistosos e superficiais. Muitas vezes o que se diz num programa de televisão, nalguma publicidade que se faz, comove-nos o coração e faz-nos ir numa direção sem liberdade. Estai atentos a isto: sou livre ou deixo-me influenciar pelos sentimentos do momento, ou pelas provocações do momento?
Uma ajuda para isso é o exame de consciência, mas não falo do exame de consciência que todos fazemos quando vamos à confissão, não. Isto é: “Mas cometi este pecado, aquile…”. Não. Exame de consciência geral do dia: o que aconteceu no meu coração neste dia? “Aconteceram muitas coisas…”. Quais? Porquê? Quais traços deixaram no coração? Fazer exame de consciência, ou seja, o bom hábito de reler com calma o que acontece no nosso dia, aprendendo a observar nas avaliações e escolhas aquilo a que damos mais importância, o que procuramos e porquê, e o que afinal encontramos. Aprendendo sobretudo a reconhecer o que sacia o meu coração. Pois somente o Senhor nos pode dar a confirmação de quanto valemos. Diz-nos isto todos os dias da cruz: morreu por nós, para nos mostrar quão preciosos somos aos seus olhos. Não há obstáculo nem fracasso que possa impedir o seu terno abraço. O exame de consciência ajuda muito, pois assim vemos que o nosso coração não é uma estrada onde acontece de tudo sem que nós o saibamos. Não. Ver: o que ocorreu hoje? O que aconteceu? O que me fez reagir? O que me entristeceu? O que me alegrou? O que foi desagradável e se pratiquei algum mal aos outros. Trata-se de ver o percurso dos sentimentos, das atrações no meu coração durante o dia. Não vos esqueçais! Na semana passada falámos sobre a oração; hoje falámos da consciência de si mesmo.
A oração e o conhecimento de nós mesmos permitem-nos crescer na liberdade. Eis, é para crescer na liberdade! São elementos básicos da existência cristã, elementos preciosos para encontrar o próprio lugar na vida. Obrigado.
Papa Francisco
05.10.22
Catequese na audiência geral
Catequeses sobre o discernimento 3. Os elementos do discernimento. A familiaridade com o Senhor
Estimados irmãos e irmãs, bom dia!
Retomemos as catequeses sobre o tema do discernimento, pois é muito importante o tema do discernimento para saber o que acontece dentro de nós; dos sentimentos e das ideias, devemos discernir de onde veem, para onde me levam, para qual decisão - e hoje concentremo-nos no primeiro dos seus elementos constitutivos, isto é a oração. Para discernir é preciso estar num ambiente, num estado de oração.
A oração é uma ajuda indispensável para o discernimento espiritual, sobretudo quando envolve os afetos, permitindo que nos dirijamos a Deus com simplicidade e familiaridade, como se fala com um amigo. É saber ir além dos pensamentos, entrar em intimidade com o Senhor, com uma espontaneidade afetuosa. O segredo da vida dos santos é a familiaridade e a confidência com Deus, que cresce neles e torna cada vez mais fácil reconhecer o que Lhe agrada. A oração verdadeira é familiaridade e confidência com Deus. Não é recitar orações como um papagaio, blá-blá-blá, não. A verdadeira oração é aquela espontaneidade e afeto com o Senhor. Esta familiaridade supera o medo ou a dúvida de que a sua vontade não é para o nosso bem, uma tentação que às vezes atravessa os nossos pensamentos, tornando o coração inquieto e incerto ou até amargo.
O discernimento não pretende uma certeza absoluta – não é quimicamente um puro método, não, pretende uma certeza absoluta porque diz respeito à vida, e a vida nem sempre é lógica, apresenta muitos aspetos que não se deixam encerrar numa única categoria de pensamento. Gostaríamos de saber exatamente o que se deveria fazer, e, no entanto, até quando acontece, nem por isso agimos sempre em conformidade. Quantas vezes também nós vivemos a experiência descrita pelo apóstolo Paulo, que diz assim: «Não faço o bem que quero, mas o mal que não quero» (Rm 7, 19). Não somos apenas razão, não somos máquinas, não é suficiente receber instruções para as pôr em prática: os obstáculos, assim como as ajudas, a decidir-se pelo Senhor são acima de tudo afetivos, do coração.
É significativo que o primeiro milagre realizado por Jesus no Evangelho de Marcos seja um exorcismo (cf. 1, 21-28). Na sinagoga de Cafarnaum, liberta um homem do demónio, livrando-o da falsa imagem de Deus que Satanás sugere desde as origens: a de um Deus que não quer a nossa felicidade. O endemoninhado daquele trecho de Evangelho, sabe que Jesus é Deus, mas isto não o leva a acreditar n’Ele. Com efeito, diz: «Vieste arruinar-nos» (v. 24).
Muitas pessoas, inclusive cristãos, pensam a mesma coisa: que Jesus pode até ser o Filho de Deus, mas duvidam que Ele quer a nossa felicidade; aliás, alguns temem que levar a sério a sua proposta, o que Jesus nos propõe, signifique arruinar a vida, mortificar os nossos desejos, as nossas aspirações mais fortes. Às vezes surgem dentro de nós estes pensamentos: que Deus nos pede demasiado, temos medo de que Deus nos peça demasiado, que não nos ame verdadeiramente. Ao contrário, na nossa primeira audiência vimos que o sinal de um encontro com o Senhor é a alegria. Quando me encontro com o Senhor na oração, fico alegre. Cada um de nós torna-se jubiloso, algo bonito. Por outro lado, a tristeza ou o medo são sinais de distância de Deus: «Se quiseres entrar na vida, observa os mandamentos», diz Jesus ao jovem rico (Mt 19, 17). Infelizmente para aquele jovem, alguns obstáculos não lhe permitiram satisfazer o desejo que tinha no coração, de seguir mais de perto o “bom mestre”. Era um jovem interessado, empreendedor, tinha tomado a iniciativa de se encontrar com Jesus, mas vivia também muito dividido nos afetos; para ele as riquezas eram demasiado importantes. Jesus não o obriga a decidir, mas o texto observa que o jovem se afasta de Jesus «contristado» (v. 22). Quem se afasta do Senhor nunca se sente satisfeito, mesmo que tenha à sua disposição uma grande abundância de bens e possibilidades. Jesus nunca obriga a segui-lo, nunca. Jesus faz-te conhecer a sua vontade, de coração faz com que saibas as coisas, mas deixa-te livre. E isto é o aspeto mais bonito da oração com Jesus: a liberdade que Ele nos deixa. Ao contrário, quando nos afastamos do Senhor permanecemos com alguma coisa triste, algo negativo no coração.
Discernir o que acontece dentro de nós não é fácil, porque as aparências enganam, mas a familiaridade com Deus pode dissipar delicadamente dúvidas e temores, tornando a nossa vida cada vez mais recetiva à sua «luz suave», de acordo com a bonita expressão de São John Henry Newman. Os santos brilham com luz refletida, mostrando nos gestos simples do seu dia a presença amorosa de Deus, que torna possível o impossível. Diz-se que dois cônjuges que viveram juntos durante muito tempo, amando-se, acabam por se assemelhar um ao outro. Algo análogo pode-se dizer da oração afetiva: de modo gradual, mas eficaz, torna-nos cada vez mais capazes de reconhecer o que conta por conaturalidade, como algo que brota das profundezas do nosso ser. Estar em oração não significa pronunciar palavras, palavras, não; estar em oração significa abrir o coração a Jesus, aproximar-se de Jesus, deixar que Jesus entre no meu coração e nos faça sentir a sua presença. E nisto podemos discernir quando é Jesus e quando somos nós com os nossos pensamentos, muitas vezes distantes daquilo que Jesus quer.
Peçamos esta graça: viver uma relação de amizade com o Senhor, como um amigo fala com o amigo (cf. Santo Inácio de Loyola, Exercícios espirituais, 53). Conheci um irmão religioso idoso que era o porteiro de um colégio e cada vez que podia ele aproximava-se da capela, olhava para o altar, e dizia: “olá”, porque tinha proximidade com Jesus. Ele não precisava de dizer blá-blá-blá, não: “olá, estou perto de ti e tu estás perto de mim”. Esta é a relação que devemos ter na oração: proximidade, proximidade afetiva, como irmãos, proximidade com Jesus. Um sorriso, um simples gesto e não recitar palavras que não chegam ao coração. Como eu dizia, falar com Jesus como um amigo fala a outro amigo. É uma graça que devemos pedir uns pelos outros: ver Jesus como o nosso amigo, o nosso maior amigo, o nosso amigo fiel, que não chantageia, sobretudo que nunca nos abandona, nem sequer quando nos afastamos d’Ele. Ele permanece à porta do coração. “Não, não quero saber de nada de ti”, dizemos. E Ele permanece calado, fica ali ao alcance das mãos, ao alcance do coração porque Ele é sempre fiel. Vamos em frente com esta oração, recitamos a prece do “olá”, a oração de saudar o Senhor com o coração, a oração do afeto, a oração da proximidade, com poucas palavras, mas com gestos e com boas obras. Obrigado.
Papa Francisco
Catequese na audiência geral 28.09.22
Catequeses sobre o discernimento 2. Um exemplo: Inácio de Loyola
Estimados irmãos e irmãs, bom dia!
Continuemos a nossa reflexão sobre o discernimento - neste período falaremos todas as quartas-feiras sobre o discernimento espiritual - e fazer referência a um testemunho concreto pode ajudar-nos nisto.
Um dos exemplos mais instrutivos é-nos oferecido por Santo Inácio de Loyola, com um episódio decisivo da sua vida. Inácio está convalescente em casa, depois de ter sido ferido numa perna em batalha. Para se livrar do tédio, pede algo para ler. Gostava de contos de cavalaria, mas infelizmente em casa só havia vida de santos. Adapta-se um pouco de má vontade, mas durante a leitura começa a descobrir outro mundo, um mundo que o conquista e parece competir com o dos cavaleiros. Fica fascinado com as figuras de São Francisco e São Domingos, e sente o desejo de os imitar. Mas também o mundo cavaleiresco continua a exercer o seu fascínio sobre ele. E assim sente dentro de si aquela alternância de pensamentos, os cavaleirescos e os dos santos, que parecem equivaler-se.
No entanto, Inácio começa também a notar diferenças. Na sua Autobiografia - na terceira pessoa – escreve assim: «Pensando nas coisas do mundo - e nas coisas cavaleirescas, entende-se - sentia muito prazer, mas quando, por cansaço, as abandonava, sentia-se vazio e desiludido. Ao contrário, ir descalço a Jerusalém, alimentar-se unicamente de ervas, praticar todas as austeridades que tinha conhecido como habituais para os santos, eram pensamentos que não só o consolavam quando meditava sobre eles, mas até depois de os abandonar o deixavam satisfeito e cheio de alegria» (n. 8); deixavam-lhe um traço de alegria.
Nesta experiência, podemos notar sobretudo dois aspetos. O primeiro é o tempo: ou seja, os pensamentos do mundo no início são atraentes, mas depois perdem brilho e deixam vazio, insatisfeito, deixam-te assim, uma coisa vazia. Os pensamentos de Deus, ao contrário, primeiro suscitam uma certa resistência – “Mas não vou ler esta coisa tediosa sobre os santos” - mas quando são aceites trazem uma paz desconhecida, que dura muito tempo.
Eis, pois, o outro aspeto: o ponto de chegada dos pensamentos. No início, a situação não parece tão clara. Há um desenvolvimento do discernimento: por exemplo, compreendemos o que é bom para nós, não de modo abstrato e geral, mas no percurso da nossa vida. Nas regras para o discernimento, fruto desta experiência fundamental, Inácio determina uma premissa importante, que ajuda a entender este processo: «Àqueles que passam de um pecado mortal para outro, o diabo geralmente costuma propor prazeres aparentes, tranquilizá-los de que tudo está bem, levando-os a imaginar delícias e prazeres sensuais, para melhor os manter e fazê-los crescer nos seus vícios e pecados. Com eles, o espírito bom usa o método oposto, estimulando a sua consciência ao remorso mediante o juízo da razão» (Exercícios Espirituais, 314); Mas isto não é bom!
Há uma história que precede quem discerne, uma história que é indispensável conhecer, pois o discernimento não é uma espécie de oráculo ou de fatalismo, nem uma coisa de laboratório, como tirar a sorte sobre duas possibilidades. As grandes interrogações surgem quando, na vida, já percorremos um trecho do caminho, e é àquele percurso que devemos regressar para compreender o que procuramos. Se na vida se percorre um pouco do caminho, assim: “Mas por que vou nesta direção, o que procuro?”, e ali faz-se o discernimento. Quando se encontrava ferido na casa paterna, Inácio não pensava de modo algum em Deus, nem em como reformar a sua vida, não. Ele faz a sua primeira experiência de Deus, ouvindo o próprio coração, que lhe mostra uma inversão curiosa: as coisas à primeira vista atraentes deixam-no desiludido, e noutras, menos brilhantes, sente uma paz que perdura no tempo. Também nós vivemos esta experiência, muitas vezes começamos a pensar em algo e ficamos ali, e depois sentimo-nos desiludidos. Ao contrário, fazemos uma obra de caridade, fazemos algo bom e sentimos um pouco de felicidade, vem-te um bom pensamento, vem-te a felicidade, um pouco de alegria, é uma experiência totalmente nossa. Ele, Inácio, vive a sua primeira experiência de Deus, ouvindo o próprio coração, que lhe mostra uma curiosa inversão. É isto que devemos aprender: ouvir o próprio coração para saber o que acontece, que decisão tomar, formular um juízo sobre uma situação, é preciso ouvir o próprio coração. Ouvimos a televisão, a rádio, o telemóvel, somos mestres da escuta, mas pergunto-te: sabes ouvir o teu coração? Paras para dizer: “Mas como está o meu coração? Está satisfeito, está triste, está à procura de algo?”. Para tomar boas decisões, é preciso ouvir o próprio coração.
Por isso, Inácio sugerirá a leitura da vida dos santos, pois eles mostram de modo narrativo e compreensível o estilo de Deus na vida das pessoas não muito diferentes de nós, porque os santos eram de carne e osso, como nós. As suas ações falam com as nossas, ajudando-nos a compreender o seu significado.
Naquele famoso episódio dos dois sentimentos que Inácio tinha, um quando lia as coisas dos cavaleiros e o outro quando lia a vida dos santos, podemos reconhecer outro aspeto importante do discernimento, já mencionado na semana passada. Há uma casualidade aparente nos acontecimentos da vida: tudo parece nascer de um banal contratempo: não havia livros de cavaleiros, mas apenas vidas de santos. Um transtorno que, no entanto, encerra em si uma possível mudança. E só depois de um certo tempo Inácio se dará conta disto, e é nessa altura que lhe dedicará toda a sua atenção. Escutai bem: Deus trabalha através de eventos não programáveis por acaso, mas isto aconteceu comigo por acaso, por acaso conheci esta pessoa, por acaso vi este filme, não foi programado, mas Deus trabalha através de eventos não programáveis, e também nos contratempos: “Mas eu devia ir dar um passeio e tive um problema nos pés, não posso...”. Contratempo: o que te diz Deus? O que te diz a vida ali? Vimo-lo inclusive num trecho do Evangelho de Mateus: um homem que lavra um campo depara-se acidentalmente com um tesouro enterrado. Uma situação totalmente inesperada. Mas o importante é que o reconhece como o golpe de sorte da sua vida e decide consequentemente: vende tudo e compra aquele campo (cf. 13, 44). Dou-vos um conselho, prestai atenção às coisas inesperadas. Quem diz: “Mas eu não esperava isto por acaso”. Ali é a vida que te fala, é o Senhor que te fala ou é o diabo que te fala? Alguém. Mas há algo para discernir, como reajo perante as coisas inesperadas. Mas eu estava tão tranquilo em casa e “toque-toque” vem a sogra, e come reages à sogra? É amor ou é algo dentro? E fazes o discernimento. Enquanto eu trabalhava bem no escritório, um colega vem dizer-me que precisa de dinheiro, e como reagiste? Ver algo acontecer, quando vivemos algo que não esperamos, e ali aprendemos a conhecer como o nosso coração se move.
O discernimento é a ajuda para reconhecer os sinais com que o Senhor se deixa encontrar nas situações inesperadas, até desagradáveis, como foi para Inácio a ferida na perna. Delas pode nascer um encontro que muda a vida para sempre, como no caso de Inácio. Pode nascer algo que te faz melhorar ou piorar no caminho, não sei, mas permanecer atento e o fio condutor mais bonito é dado pelas coisas inesperadas: “Como me comporto diante disto?”. O Senhor nos ajude a sentir o nosso coração e a ver quando é Ele que age e quando não é Ele mas outras coisa.
Papa Francisco
07.09.22
Catequese na audiência geral
Catequeses sobre o discernimento 1. O que significa discernir?
Prezados irmãos e irmãs, bom dia!
Hoje iniciamos um novo ciclo de catequeses: terminámos as catequeses sobre a velhice, agora começamos um novo ciclo sobre o tema do discernimento. Discernir é um ato importante que se refere a todos, pois as escolhas constituem uma parte essencial da vida. Discernir as escolhas. Escolhe-se uma comida, uma roupa, um percurso de estudos, um emprego, uma relação. Em tudo isto realiza-se um projeto de vida, e também se concretiza a nossa relação com Deus.
No Evangelho, Jesus fala do discernimento com imagens tiradas da vida comum; por exemplo, descreve os pescadores que selecionam os peixes bons e descartam os maus; ou o comerciante que sabe identificar, entre muitas pérolas, a de maior valor. Ou aquele que, lavrando um campo, se depara com algo que se revela um tesouro (cf. Mt 13, 44-48).
À luz destes exemplos, o discernimento apresenta-se como um exercício de inteligência, também de perícia e inclusive de vontade, para reconhecer o momento favorável: são estas as condições para fazer uma boa escolha. É preciso inteligência, perícia e também vontade para fazer uma boa escolha. E há ainda um custo necessário para que o discernimento se torne viável. Para desempenhar a sua profissão da melhor forma, o pescador tem em consideração o cansaço, as longas noites passadas no mar, e além disso descarta uma parte da pesca, aceitando uma perda do lucro para o bem daqueles a quem se destina. O mercador de pérolas não hesita em gastar tudo para comprar aquela pérola; e o homem que se deparou com um tesouro faz o mesmo. Situações inesperadas, não programadas, onde é fundamental reconhecer a importância e urgência de uma decisão a tomar. Cada um deve tomar decisões; não há ninguém que as tome por nós. Numa certa altura os adultos, livres, podem pedir conselhos, pensar, mas a decisão é pessoal; não se pode dizer: “Perdi isto, porque o meu marido decidiu, a minha esposa decidiu, o meu irmão decidiu”: não! Tu deves decidir, cada um de nós deve decidir, e por isso é importante saber discernir: para decidir bem, é necessário saber discernir.
O Evangelho sugere outro aspeto importante do discernimento: ele envolve os afetos. Quem encontrou o tesouro não tem dificuldade de vender tudo, tão grande é a sua alegria (cf. Mt 13, 44). O termo usado pelo evangelista Mateus indica uma alegria totalmente especial, que nenhuma realidade humana pode dar; e com efeito, repete-se em pouquíssimas outras passagens do Evangelho, todas elas relativas ao encontro com Deus. É a alegria dos Magos quando, depois de uma viagem longa e árdua, veem de novo a estrela (cf. Mt 2, 10); a alegria, é a alegria das mulheres que regressam do sepulcro vazio, depois de ter ouvido o anúncio da ressurreição, feito pelo anjo (cf. Mt 28, 8). É a alegria de quem encontrou o Senhor! Tomar uma boa decisão, uma decisão certa, leva-te sempre àquela alegria final; talvez ao longo do caminho tenhamos que sofrer um pouco de incerteza, pensar, procurar, mas no final a decisão certa beneficia-te com a alegria.
No juízo final Deus fará um discernimento – um grande discernimento – em relação a nós. As imagens do camponês, do pescador e do comerciante são exemplos do que acontece no Reino dos céus, um Reino que se manifesta nas ações comuns da vida, que exigem uma tomada de posição. Por isso é muito importante saber discernir: as grandes escolhas podem surgir de circunstâncias à primeira vista secundárias, mas que se revelam decisivas. Por exemplo, pensemos no primeiro encontro de André e João com Jesus, um encontro que nasce de uma simples pergunta: “Rabi, onde moras?” – “Vinde ver!” (cf. Jo 1, 38-39), diz Jesus. Um diálogo muito breve, mas é o início de uma mudança que, passo a passo, marcará a vida inteira. Anos mais tarde, o Evangelista continuará a lembrar-se daquele encontro que o mudou para sempre, recordando-se até da hora: «Eram cerca das quatro horas da tarde» (v. 39). Foi a hora em que o tempo e o eterno se encontraram na sua vida. E, numa decisão boa, certa, encontra-se a vontade de Deus com a nossa vontade; encontra-se o caminho atual com o eterno. Tomar uma decisão certa, depois de um caminho de discernimento, significa fazer este encontro: o tempo com o eterno.
Portanto: conhecimento, experiência, afetos, vontade: eis alguns elementos indispensáveis para o discernimento. No decurso destas catequeses veremos outros, igualmente importantes.
O discernimento - como eu dizia – exige esforço. Segundo a Bíblia, não encontramos diante de nós, já embalada, a vida que devemos viver: não! Devemos decidi-la continuamente, de acordo com as realidades que se apresentam. Deus convida-nos a avaliar e a escolher: Criou-nos livres e quer que exerçamos a nossa liberdade. Por isso, discernir é difícil.
Vivemos frequentemente esta experiência: escolher algo que nos parecia bom e, no entanto, não o era. Ou saber qual era o nosso verdadeiro bem e deixar de o escolher. O homem, diversamente dos animais, pode errar, pode não desejar escolher de modo correto. A Bíblia mostra-o a partir das suas primeiras páginas. Deus dá ao homem uma instrução exata: se quiseres viver, se quiseres desfrutar da vida, lembra-te que és criatura, que não és o critério do bem e do mal, e que as escolhas que fizeres terão uma consequência para ti, para os outros e para o mundo (cf. Gn 2, 16-17); podes fazer da terra um jardim magnífico, ou podes transformá-la num deserto de morte. Um ensinamento fundamental: não é por acaso que se trata do primeiro diálogo entre Deus e o homem. O diálogo é: o Senhor dá a missão, é preciso fazer isto e aquilo; e o homem, a cada passo que dá, deve discernir qual é a decisão a tomar. O discernimento é aquela reflexão da mente, do coração que devemos fazer antes de tomar uma decisão.
O discernimento é árduo, mas indispensável para viver. Requer que eu me conheça, que saiba o que é bom para mim aqui e agora. Exige sobretudo uma relação filial com Deus. Deus é Pai e não nos deixa sozinhos, está sempre disposto a aconselhar-nos, a encorajar-nos, a acolher-nos. Mas nunca impõe a sua vontade. Porquê? Porque quer ser amado, não temido. E Deus também quer que sejamos filhos, não escravos: filhos livres. E o amor só pode ser vivido na liberdade. Para aprender a viver é preciso aprender a amar, e por isso é necessário discernir: o que posso fazer agora, diante desta alternativa? Que seja um sinal de mais amor, de mais maturidade no amor. Peçamos que o Espírito Santo nos guie! Invoquemo-lo todos os dias, especialmente quando devemos fazer escolhas. Obrigado!
Papa Francisco
31.08.22
Catequese na audiência geral
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Catequese sobre a Velhice 18. As dores da criação. A história da criatura como mistério de gestação
Estimados irmãos e irmãs, bom dia!
Há pouco celebramos a Assunção da Mãe de Jesus no Céu. Este mistério ilumina o cumprimento da graça que plasmou o destino de Maria e ilumina também o nosso. O destino é o céu. Com esta imagem da Virgem que subiu ao Céu, gostaria de concluir o ciclo de catequeses sobre a velhice. No Ocidente contemplamo-la elevada ao Céu, envolta em luz gloriosa; no Oriente Ela é representada adormecida, circundada pelos Apóstolos em oração, enquanto o Senhor Ressuscitado a segura pela mão como uma menina.
A teologia sempre refletiu sobre a relação desta singular “assunção” com a morte, que o dogma não define. Penso que seria ainda mais importante tornar explícita a relação deste mistério com a ressurreição do Filho, que abre a todos nós o caminho da geração à vida. No ato divino do encontro de Maria com Cristo Ressuscitado, não é simplesmente superada a normal corrupção corporal da morte humana, não só isto, mas é antecipada a assunção corporal da vida de Deus. Com efeito, o destino da ressurreição que nos diz respeito é antecipado: pois de acordo com a fé cristã, o Ressuscitado é o primogénito de muitos irmãos e irmãs. O Senhor Ressuscitado é Aquele que partiu antes, que ressuscitou antes de todos, depois iremos nós: este é o nosso destino: ressuscitar.
Poderíamos dizer - segundo as palavras de Jesus a Nicodemos - que é um pouco como um segundo nascimento (cf. Jo 3, 3-8). Se o primeiro foi um nascimento na terra, o segundo é o nascimento no céu. Não é por acaso que o Apóstolo Paulo, no texto lido no início, fala de dores de parto (cf. Rm 8, 22). Do mesmo modo que, quando saímos do ventre da nossa mãe, somos sempre nós, o mesmo ser humano que estava no ventre, assim, após a morte, nascemos no céu, no espaço de Deus, e ainda somos os mesmos que caminhávamos nesta terra. Analogamente a quanto aconteceu com Jesus: o Ressuscitado é sempre Jesus, Ele não perde a sua humanidade, aquilo que viveu, nem sequer a sua corporeidade, não, porque sem ela já não seria Ele, não seria Jesus: isto é, com a sua humanidade, com aquilo que viveu.
É o que nos diz a experiência dos discípulos, aos quais Ele aparece durante quarenta dias depois da ressurreição. O Senhor mostra-lhes as feridas que selaram o seu sacrifício; mas já não são a fealdade do aviltamento dolorosamente sofrido, agora são a prova indelével do seu amor fiel até ao fim. Jesus Ressuscitado vive com o seu corpo na intimidade trinitária de Deus! E nela não perde a memória, não abandona a própria história, não dissolve as relações nas quais viveu na terra. Aos seus amigos prometeu: «E quando Eu tiver ido e vos tiver preparado um lugar, virei outra vez e levar-vos-ei comigo para que onde Eu estiver, estejais vós também» (Jo 14, 3). Ele partiu a fim de preparar o lugar para todos nós e depois de ter preparado um lugar voltará. Não virá somente no final para todos, virá cada vez para cada um de nós. Virá procurar-nos para nos levar com Ele. Neste sentido a morte é um pouco como o passo ao encontro de Jesus que está à minha espera para me levar com Ele.
O Ressuscitado vive no mundo de Deus, onde existe um lugar para todos, onde se forma uma nova terra e onde se constrói a cidade celestial, morada definitiva do homem. Não podemos imaginar esta transfiguração da nossa corporeidade mortal, mas estamos certos de que ela manterá os nossos rostos reconhecíveis e nos consentirá permanecer humanos no céu de Deus. Permitir-nos-á participar, com sublime emoção, na infinita e feliz exuberância do ato criador de Deus, cujas intermináveis aventuras experimentaremos pessoalmente.
Quando Jesus fala do Reino de Deus, descreve-o como um banquete de núpcias, como uma festa com amigos, como o trabalho que torna a casa perfeita: é a surpresa que torna a colheita mais rica do que a sementeira. Levar a sério as palavras do Evangelho sobre o Reino permite à nossa sensibilidade desfrutar do amor ativo e criativo de Deus, colocando-nos em sintonia com o destino inaudito da vida que semeamos. Queridas e queridos coetâneos, e falo aos “velhinhos” e às “velhinhas”, na nossa velhice a importância dos numerosos “detalhes” de que a vida é feita - uma carícia, um sorriso, um gesto, um trabalho apreciado, uma surpresa inesperada, uma alegria hospitaleira, um laço fiel - torna-se mais sentida. O essencial da vida, que nos é mais caro quando nos aproximamos do nosso adeus, torna-se definitivamente claro para nós. Eis, pois, que esta sabedoria da velhice é o lugar da nossa gestação, que ilumina a vida das crianças, dos jovens, dos adultos e de toda a comunidade. Nós, “velhinhos”, deveríamos ser isto para os outros: luz para todos. Toda a nossa vida se manifesta como uma semente que deverá ser enterrada a fim de que nasçam a sua flor e o seu fruto. Ela brotará, juntamente com todo o resto do mundo. Não sem os trabalhos de parto, não sem dores, mas brotará (cf. Jo 16, 21-23). E a vida do corpo ressuscitado será cem, mil vezes mais viva do que a experimentamos nesta terra (cf. Mc 10, 28-31).
Não é por acaso que o Senhor Ressuscitado, enquanto espera os Apóstolos na margem do lago, assa alguns peixes (cf. Jo 21, 9) e depois lhos oferece. Este gesto de amor atencioso dá-nos um vislumbre do que nos aguarda quando atravessarmos para a outra margem. Sim, caros irmãos e irmãs, especialmente vós, idosos, o melhor da vida ainda deve vir; “Mas somos velhos, o que mais devemos ver?”. O melhor, pois o melhor da vida ainda está por vir. Aguardemos esta plenitude de vida que nos espera a todos, quando o Senhor nos chamar. Que a Mãe do Senhor e nossa Mãe, que nos precedeu no Paraíso, nos restitua a trepidação da expetativa, pois não é uma espera anestesiada, não é uma espera entediada, não, é uma espera com trepidação: “Quando virá o meu Senhor? Quando poderei estar com Ele?”. Há um pouco de medo porque não sei o que significa esta passagem e cruzar aquela porta provoca um pouco de temor, mas há sempre a mão do Senhor que nos leva em frente e, após a travessia da porta vem a festa. Estejamos atentos, vós queridos “velhinhos” e queridas “velhinhas”, coetâneos, estejamos atentos, Ele espera por nós, apenas uma passagem e depois a festa.
Papa Francisco
24.08.22
Catequese na audiência geral
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Catequese sobre a Velhice 17. O «Antigo de dias». A velhice tranquiliza sobre o destino para a vida que já não morre
Estimados irmãos e irmãs, bom dia!
As palavras do sonho de Daniel, que ouvimos, evocam uma visão de Deus que é misteriosa e ao mesmo tempo resplandecente. São repetidas no início do livro do Apocalipse e referem-se a Jesus Ressuscitado, que aparece ao Vidente como Messias, Sacerdote e Rei, eterno, omnisciente e imutável (1, 12-15). Ele põe a sua mão sobre o ombro do Vidente e tranquiliza-o: «Não temas! Eu sou o Primeiro e o Último, o que vive. Conheci a morte, mas eis-me aqui vivo pelos séculos dos séculos» (vv. 17-18). Assim, desaparece a última barreira de medo e angústia que a teofania sempre suscitou: o Vivente tranquiliza-nos, dá-nos segurança. Ele também morreu, mas agora ocupa o lugar que lhe está destinado: o do Primeiro e do Último.
Neste entrelaçamento de símbolos - aqui há muitos símbolos - há um aspeto que talvez nos ajude a compreender melhor a ligação desta teofania, esta manifestação de Deus com o ciclo da vida, o tempo da história, o senhorio de Deus sobre o mundo criado. E este aspeto tem a ver precisamente com a velhice. O que tem a ver com isto? Vejamos.
A visão transmite uma impressão de vigor e força, de nobreza, de beleza e de encanto. A roupa, os olhos, a voz, os pés, tudo é esplêndido nesta visão: trata-se de uma visão! O seu cabelo, porém, é cândido: como a lã, como a neve. Como a de um homem idoso. O termo bíblico mais comum para indicar o idoso é “zaqen”: de “zaqan”, que significa “barba”. O cabelo branco é o símbolo antigo de um tempo muito longo, de um passado imemorável, de uma existência eterna. Não devemos desmitificar tudo com as crianças: a imagem de um Deus ancião com cabelo branco não é um símbolo tolo, é uma imagem bíblica, uma imagem nobre e também terna. A Figura que no Apocalipse está entre os castiçais de ouro sobrepõe-se à do “Ancião de dias” da profecia de Daniel. É velho como a humanidade inteira, mas ainda mais. É antigo e novo como a eternidade de Deus. Porque a eternidade de Deus é assim, antiga e nova, pois Deus surpreende-nos sempre com a sua novidade, vem sempre até nós, todos os dias de modo especial, para aquele momento, para nós. Renova-se sempre: Deus é eterno, é desde sempre, podemos dizer que há como que uma velhice em Deus, não é assim, mas é eterno, renova-se.
Nas Igrejas orientais, a festa do Encontro com o Senhor, que se celebra a 2 de fevereiro, é uma das doze grandes festas do ano litúrgico. Salienta o encontro de Jesus com o ancião Simeão no Templo, que evidencia o encontro da humanidade, representada pelos anciãos Simeão e Ana, com Cristo Senhor pequenino, Filho eterno de Deus feito homem. Um bonito ícone dele pode ser admirado em Roma, nos mosaicos de Santa Maria “in Trastevere”.
A liturgia bizantina reza com Simeão: «Este é Aquele que nasceu da Virgem: é o Verbo, Deus de Deus, Aquele que se fez carne por nós e salvou o homem». E continua: «Que se abra hoje a porta do céu, o Verbo eterno do Pai, tendo assumido um princípio temporal, sem deixar a sua divindade, é apresentado pela sua vontade no templo da Lei pela Virgem Mãe, e o ancião toma-o no colo». Estas palavras expressam a profissão de fé dos primeiros quatro Concílios ecuménicos, que são sagrados para todas as Igrejas. Mas o gesto de Simeão é também o ícone mais bonito para a especial vocação da velhice: olhando para Simeão, contemplamos o ícone mais belo da velhice: apresentar as crianças que vêm ao mundo como um dom ininterrupto de Deus, sabendo que um deles é o Filho gerado na própria intimidade de Deus, antes de todos os séculos.
A velhice, encaminhada rumo a um mundo onde poderá finalmente irradiar sem obstáculos o amor que Deus colocou na Criação, deve realizar este gesto de Simeão e Ana, antes da sua despedida. A velhice deve dar testemunho –para mim este é o núcleo, o mais central da velhice - a velhice deve dar testemunho às crianças da sua bênção: consiste na sua iniciação - bela e difícil - no mistério de um destino para a vida que ninguém pode aniquilar. Nem sequer a morte. Dar testemunho de fé perante uma criança é semear esta vida; dar testemunho de humanidade e de fé é também a vocação dos idosos. Para transmitir às crianças a realidade que experimentaram como testemunhas, dar o testemunho. Nós, idosos, somos chamados a isto, a dar testemunho, para que elas o levem adiante.
O testemunho dos idosos é credível para as crianças: os jovens e os adultos não são capazes de o tornar tão autêntico, tão terno, tão pungente como o podem os idosos, os avós. Quando o idoso abençoa a vida que vem ao seu encontro, pondo de lado todo o ressentimento pela vida que está prestes a acabar, é irresistível. Não está amargurado porque o tempo passa e ele vai-se embora: não! É com aquela alegria do bom vinho, do vinho que se tornou bom ao longo dos anos. O testemunho dos idosos une as idades da vida e as próprias dimensões do tempo: passado, presente e futuro, porque eles não são apenas a memória, são o presente e também a promessa. É doloroso - e prejudicial - ver que as idades da vida são concebidas como mundos separados e competitivos, cada um procurando viver à custa do outro: não está bem. A humanidade é antiga, muito antiga, se olharmos para o tempo do relógio. Mas o Filho de Deus, que nasceu de mulher, é o Primeiro e o Último de todos os tempos. Significa que ninguém fica fora da sua eterna geração, fora da sua maravilhosa força, fora da sua amorosa proximidade.
A aliança - e digo aliança – a aliança dos idosos e das crianças salvará a família humana. Onde as crianças, onde os jovens falam com os velhos há futuro; se não houver este diálogo entre idosos e jovens, o futuro não se verá claramente. A aliança dos idosos e das crianças salvará a família humana. Poderíamos por favor restituir às crianças, que devem aprender a nascer, o terno testemunho de idosos que possuem a sabedoria de morrer? Poderá esta humanidade, que com todo o seu progresso nos parece um adolescente que nasceu ontem, ser capaz de recuperar a graça de uma velhice que mantém firme o horizonte do nosso destino? A morte é certamente uma passagem difícil da vida, para todos nós: é uma passagem difícil. Todos temos de chegar lá, mas não é fácil. Contudo, a morte é também a passagem que fecha o tempo da incerteza e abandona o relógio: é difícil, porque ele é a passagem da morte. Porque a beleza da vida, que já não tem prazo, começa precisamente naquele momento. Mas começa com a sabedoria daquele homem e daquela mulher, idosos, que são capazes de dar testemunho aos jovens. Pensemos no diálogo, na aliança dos idosos e das crianças, dos anciãos com os jovens, e asseguremos que este vínculo não seja rompido. Que os idosos tenham a alegria de falar, de se expressar com os jovens, e que os jovens procurem os idosos para aprender com eles a sabedoria da vida.
Papa Francisco
17.08.22
Catequese na audiência geral
imagem: site do vaticano
Catequese sobre a Velhice 16. «Vou preparar-vos um lugar» (cf. Jo 14, 2). A velhice, um tempo projetado para o cumprimento
Prezados irmãos e irmãs, bom dia!
Já estamos nas últimas catequeses dedicadas à velhice. Hoje entramos na comovedora intimidade da despedida de Jesus dos seus, amplamente narrada no Evangelho de João. O discurso de despedida começa com palavras de consolação e promessa: «Não se turbe o vosso coração» (14, 1); «Quando Eu tiver ido e vos tiver preparado um lugar, virei novamente e levar-vos-ei comigo, para que onde Eu estiver estejais vós também» (14, 3). Como são bonitas estas palavras do Senhor!
Pouco antes, Jesus disse a Pedro: «Seguir-me-ás mais tarde» (13, 36), recordando-lhe a passagem através da fragilidade da sua fé. O tempo de vida que resta para os discípulos será, inevitavelmente, uma passagem pela fragilidade do testemunho e pelos desafios da fraternidade. Mas será também uma passagem através das emocionantes bênçãos da fé: «Quem acreditar em mim fará também as obras que Eu faço e fará obras ainda maiores do que estas» (14, 12). Pensai na promessa que isto é! Não sei se pensamos até ao fundo, se acreditamos plenamente nisto! Não sei, às vezes penso que não...
A velhice é o tempo propício para o testemunho comovedor e jubiloso desta expetativa. O idoso e a idosa permanecem à espera, à espera de um encontro. Na velhice, as obras da fé que nos aproximam, a nós e aos outros, do reino de Deus, já estão para além do poder das energias, palavras e impulsos da juventude e da maturidade. Mas tornam ainda mais transparente a promessa do verdadeiro destino da vida. E qual é o verdadeiro destino da vida? Um lugar à mesa com Deus, no mundo de Deus. Seria interessante ver se nas Igrejas locais existe alguma referência específica, destinada a revitalizar este ministério especial da expetativa do Senhor – é um ministério, o ministério da expetativa do Senhor – encorajando os carismas individuais e as qualidades comunitárias da pessoa idosa.
Uma velhice consumida no desalento pelas oportunidades perdidas causa desânimo a si próprio e a todos. Ao contrário, a velhice vivida com docilidade, vivida com respeito pela vida real dissolve definitivamente o equívoco de um poder que deve ser suficiente para si mesmo e para o próprio sucesso. Dissolve até o equívoco de uma Igreja que se adapta à condição do mundo, pensando assim que governa definitivamente a sua perfeição e realização. Quando nos libertamos desta presunção, o tempo do envelhecimento que Deus nos concede já é em si mesmo uma daquelas obras “maiores” de que Jesus fala. Com efeito, trata-se de uma obra que a Jesus não foi concedido fazer: a sua morte, ressurreição e ascensão ao Céu tornaram-na possível para nós! Recordemos que “o tempo é superior ao espaço”. É a lei da iniciação. A nossa vida não se destina a fechar-se em si mesma, numa imaginária perfeição terrestre: está destinada a ir além, através da passagem da morte, visto que a morte é uma passagem. Na verdade, o nosso lugar estável, o nosso ponto de chegada não é aqui, é ao lado do Senhor, onde Ele habita para sempre.
Aqui na terra começa o processo do nosso “noviciado”: somos aprendizes da vida – no meio de mil dificuldades – aprendemos a apreciar o dom de Deus, honramos a responsabilidade de o partilhar e de o fazer frutificar para todos. O tempo da vida na terra é a graça desta passagem. A presunção de parar o tempo – desejar a juventude eterna, a riqueza ilimitada, o poder absoluto – não só é impossível, mas delirante.
A nossa existência na terra é o tempo da iniciação à vida: é vida, mas que te leva em frente para uma existência mais plena, a iniciação daquela mais plena; uma vida que somente em Deus encontra o cumprimento. Somos imperfeitos desde o início e continuamos imperfeitos até ao fim. No cumprimento da promessa de Deus, a relação inverte-se: o espaço de Deus, que Jesus nos prepara com todo o cuidado, é superior ao tempo da nossa vida mortal. Eis: a velhice aproxima a esperança deste cumprimento. A velhice conhece definitivamente o significado do tempo e as limitações do lugar em que vivemos a nossa iniciação. É por isso que a velhice é sábia: é por isso que os idosos são sábios. Portanto, ela é credível quando convida a rejubilar com o passar do tempo: não é uma ameaça, é uma promessa. A velhice é nobre, não tem necessidade de se pintar para mostrar a sua nobreza. Talvez haja pintura quando falta a nobreza. A velhice é credível quando convida a rejubilar com o passar do tempo: mas o tempo passa e isto não é uma ameaça, é uma promessa. A velhice que redescobre a profundidade do olhar da fé não é conservadora por sua natureza, como se costuma dizer! O mundo de Deus é um espaço infinito, sobre o qual a passagem do tempo já não tem influência alguma. E foi precisamente na última Ceia que Jesus se projetou para esta meta, quando disse aos discípulos: «De agora em diante já não bebereis deste fruto da vinha, até ao dia em que Eu o voltar a beber convosco no reino do meu Pai» (Mt 26, 29). Foi além! Na nossa pregação, o Paraíso é muitas vezes, com razão, repleto de bem-aventurança, luz e amor. Talvez lhe falte um pouco de vida. Nas parábolas, Jesus falava do reino de Deus, instilando-lhe mais vida. Será que já não somos capazes disto, quando falamos sobre a vida que continua?
Amados irmãos e irmãs, a velhice vivida na expetativa do Senhor pode tornar-se a “apologia” completa da fé, que a todos dá a razão da nossa esperança (cf. 1 Pd 3, 15). Pois a velhice torna transparente a promessa de Jesus, projetando-se para a Cidade santa, da qual fala o livro do Apocalipse (caps. 21-22). A velhice é a fase da vida mais adequada para propagar a boa notícia de que a vida é uma iniciação para um cumprimento definitivo. Os idosos constituem uma promessa, um testemunho de promessa. E o melhor ainda há de vir. O melhor ainda há de vir: é como a mensagem do idoso e da idosa crentes, o melhor ainda há de vir. Deus conceda a todos nós uma velhice capaz disto!
Papa Francisco
10.08.22
Catequese na audiência geral
imagem: site do Vaticano
Catequese sobre a Velhice 15. Pedro e João
Estimados irmãos e irmãs, bem-vindos e bom dia!
No nosso percurso de catequeses sobre a velhice, hoje meditemos sobre o diálogo entre Jesus ressuscitado e Pedro, na conclusão do Evangelho de João (21, 15-23). É um diálogo comovedor, do qual transparecem todo o amor de Jesus pelos seus discípulos e também a sublime humanidade da sua relação com eles, em particular com Pedro: uma relação terna, mas não insípida, direta, forte, livre, aberta. Uma relação de homens na verdade. Assim o Evangelho de João, tão espiritual, tão excelso, fecha-se com um pungente pedido e oferta de amor entre Jesus e Pedro, que se entrelaça de modo totalmente natural com um debate entre eles. O Evangelista adverte-nos: ele dá testemunho da verdade dos acontecimentos (cf. Jo 21, 24). E é neles que se deve procurar a verdade.
Podemos perguntar-nos: somos capazes de preservar o teor desta relação de Jesus com os discípulos, de acordo com aquele seu estilo tão aberto, tão franco, tão direto, tão humanamente real? Como é a nossa relação com Jesus? É como aquela dos apóstolos com Ele? Não somos, ao contrário, muitas vezes tentados a encerrar o testemunho do Evangelho no casulo de uma revelação “adocicada”, à qual acrescentar a nossa veneração de circunstância? Esta atitude, que parece respeito, afasta-nos realmente do verdadeiro Jesus e torna-se até ocasião para um caminho de fé muito abstrato, muito autorreferencial, muito mundano, que não é o caminho de Jesus. Jesus é o Verbo de Deus que se fez homem, e Ele comporta-se como homem, fala como homem, Deus-homem. Com ternura, amizade, proximidade. Jesus não é como aquela imagem adocicada dos santinhos, não: Jesus está à mão, está próximo de nós.
Durante o debate de Jesus com Pedro, encontramos duas passagens que tratam precisamente da velhice e da duração do tempo: o tempo do testemunho, o tempo da vida. A primeira passagem é a admoestação de Jesus a Pedro: quando eras jovem, eras autossuficiente, quando fores velho já não serás tão senhor de ti mesmo e da tua vida. Dizei-o a mim que devo estar na cadeira de rodas! Mas é assim, a vida é assim: com a velhice vêm-te todas estas doenças e devemos aceitá-las como são, não é verdade? Não temos a força dos jovens! E até o teu testemunho – diz Jesus – e será acompanhado por esta debilidade. Deves ser testemunha de Jesus até na debilidade, na doença e na morte. Há um texto bonito de Santo Inácio de Loyola que reza: “Assim como na vida, também na morte devemos dar testemunho como discípulos de Jesus”. O fim da vida deve ser um fim de vida como discípulos: discípulos de Jesus, pois o Senhor nos fala sempre segundo a idade que temos. O Evangelista acrescenta o seu comentário, explicando que Jesus aludia ao testemunho extremo, do martírio e da morte. Mas podemos compreender de modo mais genérico o sentido desta admoestação: o teu seguimento deverá aprender a deixar-se instruir e plasmar pela tua fragilidade, pela tua impotência, pela tua dependência de outros, até para te vestires, para caminhar. Mas tu, «segue-me» (v. 19). O seguimento de Jesus continua com boa saúde, sem boa saúde, com autossuficiência, sem autossuficiência física, mas o seguimento de Jesus é importante: seguir Jesus sempre, a pé, de corrida, lentamente, de cadeira de rodas, mas segui-lo sempre. A sabedoria do seguimento deve encontrar o caminho para permanecer na sua profissão de fé – assim responde Pedro: «Senhor, Tu sabes que te amo» (vv. 15.16.17) – até nas condições limitadas da fraqueza e da velhice. Gosto de falar com os idosos, fitando os seus olhos: têm olhos brilhantes, que te falam mais do que palavras, o testemunho de uma vida. E isto é bonito, devemos conservá-lo até ao fim. Seguir Jesus deste modo, cheios de vida!
Esta conversa entre Jesus e Pedro contém um ensinamento precioso para todos os discípulos, para todos nós, crentes. E também para todos os idosos. Aprender da nossa fragilidade a expressar a coerência do nosso testemunho de vida nas condições de uma existência amplamente confiada a outros, em grande parte dependente da iniciativa de outros. Com a doença, com a velhice, a dependência aumenta e já não somos autossuficientes como antes; aumenta a dependência dos outros e também ali amadurece a fé, também ali Jesus está connosco. Também ali brota aquela riqueza da fé bem vivida durante o percurso da vida.
Mas devemos interrogar-nos mais uma vez: será que dispomos de uma espiritualidade realmente capaz de interpretar a fase – já longa e generalizada - deste tempo da nossa fraqueza confiada a outros, mais do que ao poder da nossa autonomia? Como permanecer fiéis ao seguimento vivido, ao amor prometido, à justiça procurada no tempo da nossa capacidade de iniciativa, no tempo da fragilidade, no tempo da dependência, da despedida, no tempo de se afastar do protagonismo da nossa vida? Não é fácil afastar-se do ser protagonista, não é fácil!
Sem dúvida, esta nova época é também um tempo de provação. Começando pela tentação - muito humana, indubitavelmente, mas também muito insidiosa - de preservar o nosso protagonismo. E às vezes o protagonista deve diminuir, deve abaixar-se, aceitar que a velhice te abaixe como protagonista. Mas terás outro modo de te exprimires, outra maneira de participar na família, na sociedade, no grupo de amigos. E é a curiosidade que Pedro sente: “E ele?”, diz Pedro, vendo o discípulo amado que os seguia (cf. vv. 20-21). Meter o nariz na vida dos outros. E não: Jesus diz: “Cala-te”. Deve realmente estar no “meu” seguimento? Deve porventura ocupar o “meu” espaço? Será o “meu” sucessor? São perguntas que não são úteis, que não ajudam. Deverá durar mais do que eu e ocupar o meu lugar? E a resposta de Jesus é franca e até rude: «Que te importa? Segue-me!» (v. 22). Como se dissesse: ocupa-te da tua vida, da tua situação atual e não metas o nariz na vida dos outros. Tu, segue-me. Isto sim, é importante: o seguimento de Jesus, seguir Jesus na vida e na morte, na saúde e na doença, na vida quando é próspera com tantos sucessos e também na vida difícil, com muitos momentos negativos de queda. E quando queremos intrometer-nos na vida dos outros, Jesus responde: “Que te importa? Segue-me”. Muito bem! Nós, idosos, não deveríamos ter inveja dos jovens que percorrem o seu caminho, que ocupam o nosso lugar, que duram mais do que nós. A honra da nossa fidelidade ao amor jurado, a fidelidade ao seguimento da fé que acreditamos, até nas condições que nos aproximam mais da despedida da vida, são o nosso título de admiração pelas gerações vindouras e de reconhecimento grato da parte do Senhor. Aprender a despedir-se: esta é a sabedoria dos idosos. Mas despedir-se bem, com o sorriso; aprender a despedir-se na sociedade, a despedir-se com os outros. A vida do ancião é uma despedida lenta, lenta, mas uma despedida jubilosa: vivi a vida, conservei a minha fé. Isto é bonito, quando um idoso pode dizer assim: “Vivi a vida, esta é a minha família; vivi a vida, fui pecador, mas também pratiquei o bem”. E a paz que nasce é a despedida do idoso.
Até o seguimento forçosamente inativo, feito de contemplação emocionada e de escuta arrebatada da palavra do Senhor - como a de Maria, irmã de Lázaro – será a melhor parte da sua vida, da nossa vida de idosos. Que esta parte nunca nos seja tirada, nunca (cf. Lc 10, 42). Olhemos para os idosos, olhemos para eles e ajudemo-los a fim de que possam viver e exprimir a sua sabedoria de vida, que possam dar-nos o que têm de mais bonito e bom. Olhemos para eles, escutemo-los. E nós, idosos, olhemos para os jovens sempre com um sorriso: eles seguirão o caminho, levarão em diante o que semeamos, inclusive o que não semeamos, porque não tivemos a coragem nem a oportunidade: eles levá-lo-ão em frente. Mas sempre esta relação de reciprocidade: um idoso não pode ser feliz sem olhar para os jovens e os jovens não podem ir em frente na vida sem olhar para os idosos. Obrigado!
Papa Francisco
22.06.22
Catequese na audiência geral
Imagem: site do vaticano
Catequese sobre a Velhice 14. O alegre serviço de fé que se aprende na gratidão (cfr. Mc 1, 29-31)
Ouvimos o simples e comovedor relato da cura da sogra de Simão - que ainda não se chama Pedro - na versão do Evangelho de Marcos. O breve episódio é também relatado, com ligeiras, mas sugestivas variações, nos outros dois evangelhos sinópticos. «A sogra de Simão estava de cama com febre», escreve Marcos. Não sabemos se se tratava de uma leve indisposição, mas na velhice até uma simples febre pode ser perigosa. Na velhice já não se controla o próprio corpo. É preciso aprender a escolher o que fazer e o que não fazer. O vigor do físico falha e abandona-nos, embora o nosso coração não deixe de desejar. Deve-se então aprender a purificar o desejo: ter paciência, escolher o que pedir ao corpo, e à vida. Quando somos velhos, não podemos fazer o mesmo que fazíamos quando éramos jovens: o corpo tem outro ritmo, e devemos ouvir o corpo e aceitar alguns limites. Todos os temos. Também eu agora tenho de caminhar com a bengala.
A doença pesa sobre o idoso de um modo diverso e novo do que quando se é jovem ou adulto. É como um golpe duro que se abate num momento já difícil. A doença do idoso parece apressar a morte e, contudo, diminuir aquele tempo de vida que já consideramos curto. Insinuam-se dúvidas de que não nos recuperaremos, que “desta vez será a última que adoeço…”, e assim por diante: estas ideias vêm-me à mente... Não se pode sonhar com uma esperança num futuro que agora parece inexistente. Um famoso escritor italiano, Italo Calvino, notava a amargura dos anciãos que sofrem a perda das coisas do passado, em vez de gozar a vinda das novas. Mas a cena evangélica que acabamos de ouvir ajuda-nos a ter esperança e oferece-nos já um primeiro ensinamento: Jesus não visita sozinho aquela idosa doente, vai com os seus discípulos. E isto faz-nos pensar um pouco.
É precisamente a comunidade cristã que deve cuidar dos idosos: parentes e amigos, mas também a comunidade. A visita aos idosos deve ser feita por muitos, em conjunto e frequentemente. Nunca deveríamos esquecer estas três linhas do Evangelho. Hoje, sobretudo que o número de idosos cresceu consideravelmente, inclusive em proporção aos jovens, pois estamos neste inverno demográfico, nascem menos crianças e há muitos idosos e poucos jovens. Devemos sentir a responsabilidade de visitar os idosos que muitas vezes estão sozinhos e apresentá-los ao Senhor com a nossa oração. O próprio Jesus ensinar-nos-á como os amar. «Uma sociedade é deveras acolhedora em relação à vida quando reconhece que ela é preciosa também na terceira idade, na deficiência, na doença grave e até quando está a esmorecer» (Mensagem à Pontifícia Academia para a Vida, 19 de fevereiro de 2014). A vida é sempre preciosa. Jesus, quando vê a idosa doente, pega nela pela mão e cura-a: o mesmo gesto que faz para ressuscitar aquela jovem morta: pega na sua mão e fá-la levantar-se, cura-a pondo-a de novo de pé. Jesus, com este terno gesto de amor, dá a primeira lição aos discípulos: ou seja, a salvação anuncia-se ou, melhor, comunica-se através da atenção àquela pessoa doente; e a fé daquela mulher resplandece na gratidão pela ternura de Deus que se inclina sobre ela. Volto a um tema que tenho repetido nestas catequeses: a cultura do descarte parece aniquilar os idosos. Sim, não os mata, mas socialmente cancela-os, como se fossem um fardo a ser transportado: é melhor escondê-los. Isto é uma traição à própria humanidade, é horrível, significa selecionar a vida de acordo com a utilidade, segundo a juventude e não com a vida como ela é, com a sabedoria dos idosos, com os limites dos anciãos. Os velhinhos têm tanto para nos dar: há a sabedoria da vida. Tanto para nos ensinar: por isso devemos ensinar também as crianças a cuidar dos avós e a ir ter com os avós. O diálogo entre jovens e avós, crianças e avós é fundamental para a sociedade, é fundamental para a Igreja, é fundamental para a saúde da vida. Onde não há diálogo entre jovens e idosos, falta algo e cresce uma geração sem passado, isto é, sem raízes.
Se a primeira lição foi dada por Jesus, a segunda é-nos dada pela idosa, que “se levantou e começou a servi-los”. Com efeito, também como idosos pode-se servir a comunidade. É bom que os idosos cultivem a responsabilidade de servir, superando a tentação de ficar de lado. O Senhor não os descarta, pelo contrário, dá-lhes a força para servir. E gosto de notar que não há uma ênfase especial no relato por parte dos evangelistas: é a normalidade do seguimento, que os discípulos aprenderão, em toda a sua extensão, ao longo do caminho de formação do qual farão experiência na escola de Jesus. Os anciãos que conservam a disposição para a cura, a consolação, a intercessão pelos seus irmãos e irmãs – quer sejam discípulos, centuriões, pessoas perturbadas por espíritos malignos, ou pessoas descartadas... - são talvez o mais alto testemunho da pureza desta gratidão que acompanha a fé. Se os idosos, em vez de serem descartados e afastados da cena dos acontecimentos que marcam a vida da comunidade, fossem colocados no centro da atenção coletiva, seriam encorajados a exercer o precioso ministério da gratidão a Deus, que não se esquece de ninguém. A gratidão dos idosos pelos dons recebidos de Deus na sua vida, como nos ensina a sogra de Pedro, restitui à comunidade a alegria de viver juntos, e dá aos discípulos a fé no a característica principal do seu destino.
Mas devemos aprender bem que o espírito de intercessão e de serviço, que Jesus prescreve para todos os seus discípulos, não é simplesmente um assunto de mulheres: não há sombra desta limitação nas palavras e gestos de Jesus. O serviço evangélico da gratidão pela ternura de Deus não está de forma alguma escrito na gramática do senhor e da serva. Isto, no entanto, não diminui o facto de que as mulheres, sobre gratidão e ternura de fé, podem ensinar aos homens coisas que eles têm mais dificuldade de compreender. A sogra de Pedro, antes dos Apóstolos lá chegarem, ao longo do caminho do seguimento de Jesus, mostrou o caminho também a eles. E a doçura especial de Jesus, que lhe “tocou a mão” e “se inclinou suavemente” sobre ela, deixou clara, desde o início, a sua sensibilidade especial para com os débeis e os doentes, que o Filho de Deus certamente tinha aprendido com a sua Mãe. Por favor, asseguremo-nos de que os idosos, os avós, as avós estejam próximos das crianças, dos jovens para transmitir esta memória da vida, para transmitir esta experiência da vida, esta sabedoria da vida. Na medida em que fizermos com que os jovens e os idosos tenham uma ligação, nessa medida haverá mais esperança para o futuro da nossa sociedade.
Papa Francisco
Catequese na audiência geral 15.06.22
Catequese sobre a Velhice 13. Nicodemos. "Como pode um homem nascer, sendo já velho?" (Jo 3,4)
Entre as figuras idosas mais relevantes dos Evangelhos está Nicodemos – um dos chefes dos judeus – o qual querendo conhecer Jesus, mas foi secretamente ter com ele de noite (cf. Jo 3, 1-21). Na conversa de Jesus com Nicodemos, emerge o coração da revelação de Jesus e da sua missão redentora, quando diz: «Porque Deus amou de tal modo o mundo que lhe deu o seu Filho único, para que todo aquele que nele crê não pereça, mas tenha a vida eterna» (v. 16).
Jesus diz a Nicodemos que para “ver o reino de Deus” é preciso “nascer do alto” (cf. v. 3). Não se trata de nascer de novo, de repetir a nossa vinda ao mundo, esperando que uma nova reencarnação reabra a nossa possibilidade de uma vida melhor. Esta repetição não tem qualquer significado. Aliás, esvaziaria a vida que vivemos de todo o significado, apagando-a como se fosse uma experiência falhada, um valor caducado, um descarte. Não, não é isto, este nascer de novo do qual fala Jesus: é outra coisa. Esta vida é preciosa aos olhos de Deus: ela identifica-nos como criaturas ternamente amadas por Ele. O “nascimento do alto”, que nos permite “entrar” no reino de Deus, é uma geração no Espírito, uma passagem através das águas para a terra prometida de uma criação reconciliada com o amor de Deus. É um renascimento do alto, com a graça de Deus. Não é um renascer fisicamente outra vez.
Nicodemos interpreta mal este nascimento, e questiona a velhice como evidência da sua impossibilidade: o ser humano envelhece inevitavelmente, o sonho da eterna juventude afasta-se definitivamente, o desgaste é o ponde de chegada de qualquer nascimento no tempo. Como se pode imaginar um destino que tem a forma de nascimento? Nicodemos pensa assim e não encontra o modo de compreender as palavras de Jesus. O que é este renascimento?
A objeção de Nicodemos é muito instrutiva para nós. Com efeito, podemos inverter, à luz da palavra de Jesus, a descoberta de uma missão própria da velhice. De facto, ser idoso não só não é obstáculo ao nascimento do alto do qual Jesus fala, mas torna-se o momento oportuno para o iluminar, libertando-o do equívoco de uma esperança perdida. A nossa época e a nossa cultura, que mostram uma tendência preocupante para considerar o nascimento de um filho como uma simples questão de produção e reprodução biológica do ser humano, cultivam então o mito da juventude eterna como a obsessão - desesperada – de uma carne incorruptível. Por que é a velhice - de muitos modos - desprezada? Porque traz a prova irrefutável do abandono deste mito, que nos faria regressar ao ventre da mãe, para sermos eternamente jovens no corpo.
A técnica deixa-se atrair por este mito de todos os modos: à espera de derrotar a morte, podemos manter o corpo vivo com medicamentos e cosméticos, que abrandam, escondem, removem a velhice. É claro que o bem-estar é uma coisa, a alimentação do mito é outra. Não se pode negar, contudo, que a confusão entre os dois aspetos nos está a causar confusão mental. Confundir o bem-estar com a alimentação do mito da juventude eterna. Faz-se tanto para recuperar esta juventude: muitas maquiagens, tantas cirurgias para parecer jovem. Vêm-me à mente as palavras de uma sábia atriz italiana, Anna Magnani, quando lhe disseram que deveriam tirar-lhe as rugas, e ela respondeu: “Não, não as toqueis! Foram necessários tantos anos para as ter: não as toqueis”. É isto: as rugas são um símbolo da experiência, um símbolo da vida, um símbolo da maturidade, um símbolo de ter percorrido um caminho. Não as toqueis para vos tornardes jovens, mas jovens de rosto: o que importa é toda a personalidade, o que interessa é o coração, e o coração permanece com aquela juventude do vinho bom, que quanto mais envelhece, melhor é.
A vida em carne mortal é uma lindíssima obra “incompleta”: como certas obras de arte que precisamente na sua incompletude têm um encanto único. Porque a vida aqui em baixo é “iniciação”, não conclusão: viemos ao mundo assim mesmo, como pessoas reais, como pessoas que progridem na idade, mas são reais para sempre. Mas a vida na carne mortal é um espaço e um tempo demasiado pequeno para se manter intacta e levar à conclusão a parte mais preciosa da nossa existência no tempo do mundo. A fé, que acolhe o anúncio evangélico do Reino de Deus ao qual estamos destinados, tem um extraordinário primeiro efeito, diz Jesus. Permite-nos “ver” o reino de Deus. Tornamo-nos verdadeiramente capazes de ver os muitos sinais de aproximação da nossa esperança de cumprimento por aquilo que, na nossa vida, traz a marca do destino para a eternidade de Deus.
Os sinais são os do amor evangélico, em muitos aspetos iluminados por Jesus. E se pudermos “vê-los”, podemos também “entrar” no reino, com a passagem do Espírito através da água que regenera.
A velhice é a condição, concedida a muitos de nós, na qual o milagre deste nascimento do alto pode ser intimamente assimilado e tornado credível para a comunidade humana: não comunica nostalgia do nascimento no tempo, mas amor pelo destino final. Nesta perspectiva, a velhice tem uma beleza única: caminhamos rumo ao Eterno. Ninguém pode voltar a entrar no ventre da mãe, nem sequer no seu substituto tecnológico e consumista. Isto não dá sabedoria, não dá caminho percorrido, isto é artificial. Seria triste, mesmo que fosse possível. O velho caminha para a frente, o idoso caminha em direção ao destino, rumo ao céu de Deus, o idoso caminha com a sua sabedoria vivida durante a existência. A velhice, por conseguinte, é um tempo especial para dissolver o futuro da ilusão tecnocrática de uma sobrevivência biológica e robótica, mas sobretudo porque se abre à ternura do útero criador e gerador de Deus. Aqui, gostaria de sublinhar esta palavra: a ternura dos idosos. Observai como um avô ou avó olha para os netos, como acaricia os netos: aquela ternura, livre de todas as provas humanas, que superou as provações humanas e capaz de oferecer gratuitamente o amor, a proximidade amorosa de uns aos outros. Esta ternura abre a porta para compreender a ternura de Deus. Não nos esqueçamos que o Espírito de Deus é proximidade, compaixão e ternura. Deus é assim, sabe acariciar. E a velhice ajuda-nos a compreender esta dimensão de Deus que é ternura. A velhice é o tempo especial para dissolver o futuro da ilusão tecnocrática, é o tempo da ternura de Deus que cria, cria um caminho para todos nós. Que o Espírito nos conceda a reabertura desta missão espiritual - e cultural - da velhice, que nos reconcilia com o nascimento do alto. Quando pensamos na velhice desta maneira, dizemos depois: por que então a cultura do descarte decide pôr de lado os idosos, considerando-os não úteis? Os idosos são mensageiros do futuro, os velhinhos são mensageiros da ternura, são mensageiros da sabedoria de uma existência vivida. Vamos em frente e olhemos para os idosos.
Papa Francisco
Catequese na audiência geral 08.06.22
Imagem: pexel.com/italomelo
Catequese sobre a Velhice 12. "Não me abandones quando meu vigor se extingue!" (Sal 71,9)
A bonita prece do idoso que encontramos no Salmo 71 (70), que acabamos de ouvir, encoraja-nos a meditar sobre a forte tensão que habita a condição da velhice, quando a memória das dificuldades superadas e das bênçãos recebidas é posta à prova da fé e da esperança.
A provação apresenta-se com a fraqueza que acompanha a passagem através da fragilidade e da vulnerabilidade da idade avançada. E o salmista – um idoso que se dirige ao Senhor – menciona explicitamente que este processo se torna ocasião de abandono, engano, prevaricação e arrogância, que às vezes recaem sobre os idosos. Uma forma de mesquinhez em que estamos a especializar-nos nesta nossa sociedade. É verdade! Nesta sociedade do descarte, nesta cultura do descarte, os idosos são postos de lado e sofrem estas situações. Com efeito, não faltam aqueles que se aproveitam da idade do idoso para o enganar, para o intimidar de mil maneiras. Lemos frequentemente nos jornais ou ouvimos notícias de pessoas idosas que são enganadas sem escrúpulos, a fim de se apoderar das suas poupanças; ou que são deixadas desprotegidas e abandonadas sem cuidados; ou que são ofendidas por formas de desprezo e intimidadas a renunciar aos seus direitos. Tais crueldades também acontecem nas famílias – e isto é grave, mas acontece inclusive nas famílias. Os idosos descartados, abandonados nas casas de repouso, sem que os filhos os visitem, ou quando vão, fazem-no poucas vezes por ano. O idoso posto precisamente num canto da existência. E isto acontece: acontece hoje, acontece nas famílias, acontece sempre. Devemos refletir sobre isto.
A sociedade como um todo deve apressar-se a cuidar dos seus idosos – são o tesouro! – cada vez mais numerosos, e com frequência também mais abandonados. Quando ouvimos dizer que os idosos são despojados da própria autonomia, da sua segurança, até das suas casas, compreendemos que a ambivalência da sociedade atual em relação aos idosos não é um problema de emergências ocasionais, mas um traço da cultura do descarte que envenena o mundo em que vivemos. O idoso do salmo confia o seu desânimo a Deus: «Os meus inimigos já dizem de mim, e os que espiam a minha vida conspiram dizendo: “Deus abandonou-o”. Persegui-o, prendei-o porque não há ninguém para o salvar» (vv. 10-11). As consequências são fatais. A velhice não só perde a sua dignidade, como até se duvida que mereça continuar. Assim, todos somos tentados a esconder a nossa vulnerabilidade, a esconder a nossa doença, a nossa idade, a nossa velhice, porque tememos que sejam a antecâmara da nossa perda de dignidade. Perguntemo-nos: é humano induzir a este sentimento? Como pode a civilização moderna, tão avançada e eficiente, sentir tanta dificuldade diante da doença e da velhice, esconder a doença, esconder a velhice? E como pode a política, que se mostra tão empenhada em definir os limites de uma sobrevivência digna, ser ao mesmo tempo insensível à dignidade de uma convivência amorosa com os velhos e os doentes?
O ancião do salmo que ouvimos, o idoso que vê a sua velhice como uma derrota, redescobre a confiança no Senhor. Sente a necessidade de ser ajudado. E dirige-se a Deus. Comentando este salmo, Santo Agostinho exorta o idoso: «Não temas ser abandonado na tua velhice. [...] Por que temes que [o Senhor] te abandone, que Ele te rejeite na velhice, quando faltarem as tuas forças? Aliás, só então a sua força estará em ti, quando faltar a tua» (PL 36, 881-882). E o salmista idoso invoca: «Pela vossa justiça, livrai-me, libertai-me; inclinai para mim os vossos ouvidos e salvai-me. Sede para mim rocha protetora, cidadela forte para me salvar, sim, vós sois o meu rochedo e a minha fortaleza!» (vv. 2-3). A invocação testemunha a fidelidade de Deus e põe em questão a sua capacidade de despertar a consciência desviada pela insensibilidade à parábola da vida mortal, que deve ser preservada na sua integridade. Reza ainda assim: «Ó Deus, não vos afasteis de mim. Meu Deus, apressai-vos em me socorrer. Sejam confundidos e pereçam os que atentam contra a minha vida, sejam cobertos de vergonha e confusão os que procuram a minha desgraça» (vv. 12-13).
Com efeito, a vergonha deve recair sobre aqueles que se aproveitam da fraqueza da doença e da velhice. A oração renova no coração da pessoa idosa a promessa da fidelidade e bênção de Deus. O idoso redescobre a oração e dá testemunho da sua força. Nos Evangelhos, Jesus nunca rejeita a oração das pessoas que necessitam de ajuda. Devido à sua fraqueza, os idosos podem ensinar àqueles que se encontram noutras idades da vida que todos nós devemos abandonar-nos ao Senhor, para invocar a sua ajuda. Neste sentido, todos devemos aprender com a velhice: sim, há um dom em ser idoso, entendido como abandonar-se aos cuidados dos outros, a começar pelo próprio Deus.
Então, existe um “magistério da fragilidade”, não escondamos as fragilidades, não! São verdadeiras, há uma realidade e um magistério da fragilidade, que a velhice é capaz de nos lembrar de forma credível durante todo o período da vida humana. Não escondamos a velhice, não escondamos as fragilidades da velhice. Este é um ensinamento para todos nós. Este magistério abre um horizonte decisivo para a reforma da nossa civilização. Uma reforma indispensável para o benefício da convivência de todos. A marginalização dos idosos, quer conceitual quer prática, corrompe todas as fases da vida, e não apenas a da velhice. Cada um de nós pode pensar hoje nos idosos da família: como me relaciono com eles, recordo-me deles, visito-os? Procuro fazer com que nada lhes falte? Respeito-os? Os anciãos que fazem parte da minha família, mãe, pai, avô, avó, tios, amigos, cancelei-os da minha vida? Ou vou ter com eles para aprender a sabedoria, a sabedoria da vida? Lembra-te que também tu serás idoso ou idosa. A velhice chega para todos. E assim como gostarias de ser tratado ou tratada no momento da velhice, trata tu os idosos hoje. Eles são a memória da família, a memória da humanidade, a memória do país. Preservai os idosos, que são sabedoria. O Senhor conceda aos idosos que fazem parte da Igreja a generosidade desta invocação e desta provocação. Que esta confiança no Senhor nos contagie. E isto, para o bem de todos, deles, de nós e dos nossos filhos.
Papa Francisco
Catequese na audiência geral 01.06.22
Catequese sobre a Velhice 11. Qohélet: a noite incerta do sentido e das coisas da vida
Estimados irmãos e irmãs, bom dia!
Na nossa reflexão sobre a velhice – continuamos a refletir sobre a velhice – hoje confrontamo-nos com o Livro do Eclesiastes, outra joia encastoada na Bíblia. Numa primeira leitura, este pequeno livro surpreende e desorienta pelo seu célebre refrão: «Tudo é vaidade», tudo é vaidade: o refrão que vai e vem; tudo é vaidade, tudo é “neblina”, tudo é “fumaça”, tudo é “vazio”. É surpreendente encontrar estas expressões, que questionam o significado da existência, dentro da Sagrada Escritura. Na realidade, a oscilação contínua do Eclesiastes entre o sentido e o não-sentido é a representação irónica de um conhecimento da vida que se desprende da paixão pela justiça, da qual é garante o juízo de Deus. E a conclusão do Livro indica a saída da provação: «Teme a Deus e observa os seus preceitos, porque este é o dever de todo o homem» (12, 13). Este é o conselho para resolver este problema.
Face a uma realidade que, em certos momentos, parece que acomoda todos os opostos, reservando para eles o mesmo destino, que é acabar no nada, o caminho da indiferença pode parecer-nos também o único remédio para uma desilusão dolorosa. Surgem em nós perguntas como estas: Porventura os nossos esforços mudaram o mundo? Porventura alguém será capaz de impor a diferença entre o justo e o injusto? Parece que tudo isto é inútil: por que fazer tantos esforços?
É uma espécie de intuição negativa que pode surgir em qualquer época da vida, mas não há dúvida de que a velhice torna este encontro com o desencanto quase inevitável. Na velhice o desencanto vem. E assim a resistência da velhice aos efeitos desmoralizantes deste desencanto é decisiva: se os idosos, que já viram tudo, conservam intacta a sua paixão pela justiça, então há esperança para o amor, e também para a fé. E para o mundo contemporâneo, tornou-se crucial a passagem através desta crise, crise saudável, porquê? Porque uma cultura que presume medir tudo e manipular tudo também acaba por produzir uma desmoralização coletiva do sentido, uma desmoralização do amor, uma desmoralização até do bem.
Esta desmoralização tira-nos a vontade de fazer. Uma suposta “verdade”, que se limita a registar o mundo, também regista a sua indiferença para com os opostos e remete-os, sem redenção, para o fluxo do tempo e para o destino do nada. Nesta sua forma – camuflada em cientificidade, mas também muito insensível e muito amoral – a moderna busca da verdade tem sido tentada a abandonar por completo a sua paixão pela justiça. Já não acredita no seu destino, na sua promessa, na sua redenção.
Para a nossa cultura moderna, que gostaria de entregar praticamente tudo ao conhecimento exato das coisas, o aparecimento desta nova razão cínica – que soma conhecimento e irresponsabilidade – é uma reação duríssima. De facto, o conhecimento que nos isenta da moralidade parece, no início, uma fonte de liberdade, de energia, mas depressa se transforma numa paralisia da alma.
Eclesiastes, com a sua ironia, já desmascara esta tentação fatal de uma omnipotência de conhecimento – um “delírio de omnisciência” – que gera uma impotência da vontade. Os monges da mais antiga tradição cristã identificaram com exatidão esta doença da alma, que improvisamente descobre a vaidade do conhecimento sem fé e sem moral, a ilusão da verdade sem justiça. Chamavam-na “acedia”. E esta é uma das tentações de todos, também dos idosos, de todos. Não é simplesmente preguiça: não, é mais do que isso. Não se trata apenas de depressão: não. Pelo contrário, a acedia é a rendição ao conhecimento do mundo, sem mais paixão pela justiça e pela consequente ação.
O vazio de sentido e força aberto por este saber, que rejeita toda a responsabilidade ética e todo o afeto pelo bem real, não é inócuo. Não se limita a retirar as forças da vontade do bem: por reação, abre a porta à agressividade das forças do mal. São as forças de uma razão enlouquecida, tornada cínica por um excesso de ideologia. Na verdade, com todo o nosso progresso, e com todo o nosso bem-estar, tornámo-nos deveras uma “sociedade do cansaço”. Pensai nisto: somos a sociedade do cansaço! Devíamos produzir uma prosperidade generalizada e toleramos um mercado cientificamente seletivo da saúde. Devíamos colocar um limite intransponível à paz, e vemos uma série de guerras cada vez mais impiedosas contra pessoas indefesas. A ciência avança, naturalmente, e é um bem. Mas a sabedoria da vida é outra coisa completamente diferente, e parece estar num impasse.
Por fim, esta razão inafetiva e irresponsável tira sentido e energias também ao conhecimento da verdade. Não é por acaso que a nossa é a época das fake news, das superstições coletivas e das verdades pseudocientíficas. É curioso: nesta cultura do saber, do conhecimento de todas as coisas, inclusive da exatidão do saber, difundiram-se muitas feitiçarias, mas feitiçarias cultas. É bruxaria com uma certa cultura, que nos leva a uma vida de superstição: por um lado, para ir em frente com inteligência no conhecimento das coisas até às raízes; por outro lado, a alma que precisa de algo mais e empreende o caminho das superstições e acaba em bruxarias. A velhice pode aprender com a sabedoria irónica do Eclesiastes a arte de trazer à luz o engano escondido no delírio de uma verdade da mente desprovida de afeto pela justiça. Os idosos ricos de sabedoria e de humorismo fazem tanto bem aos jovens! Salvam-nos da tentação de um conhecimento do mundo triste e sem sabedoria da vida. E também, estes anciãos trazem os jovens de volta à promessa de Jesus: «Bem-aventurados os que têm fome e sede de justiça, porque serão saciados» (Mt 5, 6). Serão eles que semeiam fome e sede de justiça nos jovens. Coragem, todos nós, idosos: coragem e avante! Temos uma missão muito grande no mundo. Mas, por favor, não devemos procurar refúgio neste idealismo um pouco não concreto, não real, sem raízes – digamo-lo claramente: nas bruxarias da vida.
Papa Francisco
25.05.22
Catequese na audiência geral
Catequese sobre a Velhice 10. Jó. A prova da fé, a bênção da espera
O trecho bíblico que ouvimos encerra o Livro de Jó, um ápice da literatura universal. Encontramo-nos com Jó no nosso caminho de catequeses sobre a velhice: encontramo-lo como uma testemunha de fé que não aceita uma “caricatura” de Deus, mas grita o seu protesto perante o mal, até que Deus responda e revele o seu rosto. E Deus por fim responde, como sempre de um modo surpreendente: mostra a Jó a sua glória, mas sem o esmagar, pelo contrário, com soberana ternura, como faz Deus, sempre, com ternura. Devemos ler bem as páginas deste livro, sem preconceitos, sem lugares-comuns, para compreender a força do grito de Jó. Far-nos-á bem colocarmo-nos na sua escola, para superar a tentação do moralismo perante a exasperação e o desânimo pela dor de ter perdido tudo.
Neste excerto conclusivo do livro – recordamos a história, Jó que perde tudo na vida, perde as riquezas, perde a família, perde o filho e também a saúde e permanece lá, ferido, em diálogo com três amigos, depois chega o quarto, que vêm cumprimenta-lo: esta é a história – e neste trecho de hoje, é a conclusão do livro, quando Deus finalmente toma a palavra (e este diálogo de Jó com os seus amigos é como uma estrada para chegar ao momento que Deus dá a sua palavra) Jó é elogiado porque compreendeu o mistério da ternura de Deus escondida por detrás do seu silêncio. Deus repreende os amigos de Job que presumiam saber tudo, saber de Deus e da dor, e, vindos consolar Job, tinham acabado por o julgar com os seus esquemas preconcebidos. Deus nos preserve deste hipócrita e presunçoso pietismo! Deus nos proteja daquela religiosidade moralista e daquela religiosidade de preceitos que nos dá uma certa presunção e leva ao farisaísmo e à hipocrisia.
Eis como o Senhor se expressa em relação a eles. Assim diz o Senhor: «Estou irado contra [vós] […] porque não falastes corretamente de mim, como Jó, meu servo. […]»: isto é o que o Senhor diz aos amigos de Job. «O meu servo Job intercederá por vós. É em consideração a ele que não vos infligirei ignomínias por não terdes falado bem de mim, como Jó, o meu servo» (42, 7-8). A declaração de Deus surpreende-nos, pois lemos as páginas ardentes do protesto de Jó, que nos deixou consternados. No entanto – diz o Senhor – Jó falou bem, inclusive quando estava irado e também raivoso contra Deus, mas falou bem, porque se recusou a aceitar que Deus seja um “Perseguidor”. Deus é outra coisa. E como recompensa, Deus restitui a Jó o dobro de todos os seus bens, depois de lhe ter pedido para rezar pelos seus maus amigos.
O ponto de viragem da conversão da fé ocorre precisamente no ápice do desabafo de Job, onde ele diz: «Porque eu seu que o meu Redentor vive e aparecerá, finalmente, sobre a terral; e depois que a minha pele se desprenda da minha carne, na minha própria carne verei a Deus. Eu mesmo o contemplarei, os meus olhos vê-lo-ão e não os olhos de outrem» (19, 25-27). Este excerto é belíssimo. Vem-me à mente o final daquele oratório genial de Haendel, o Messias, depois daquela festa do Aleluia lentamente a soprano canta este trecho: “Eu sei que o meu Redentor vive”, com paz. E assim, depois de toda a dor e a alegria de Jó, a voz do Senhor é outra coisa. “Eu sei que o meu Redentor vive”: é algo belíssimo. Podemos interpretá-lo assim: “Meu Deus, sei que Tu não és o Perseguidor. O meu Deus virá e far-me-á justiça”. É a fé simples na ressurreição de Deus, a fé simples em Jesus Cristo, a fé simples que o Senhor sempre nos espera e virá.
A parábola no livro de Jó representa dramática e exemplarmente o que na realidade acontece na vida. Ou seja, que sobre uma pessoa, uma família ou um povo recaem provações demasiado pesadas, provações desproporcionadas em relação à pequenez e à fragilidade humanas. Na vida frequentemente, como se costuma dizer, “chove no molhado”. E algumas pessoas são esmagadas por uma soma de males que parece verdadeiramente excessiva e injusta. E muitas pessoas são assim.
Todos nós conhecemos pessoas assim. Ficámos impressionados com o seu grito, mas também muitas vezes nos admiramos com a firmeza da sua fé e do seu amor no seu silêncio. Penso nos pais de crianças com deficiências graves, ou naqueles que vivem com uma enfermidade permanente ou no familiar que está ao lado... Situações muitas vezes agravadas pela escassez de recursos económicos. Em certos momentos da história, estes acúmulos de fardos parece que chegam todos juntos. Isto foi o que aconteceu nos últimos anos com a pandemia da Covid-19 e o que está a acontecer agora com a guerra na Ucrânia.
Podemos justificar estes “excessos” como uma racionalidade superior da natureza e da história? Podemos abençoá-los religiosamente como uma resposta justificada à culpa das vítimas, que os mereceram? Não, não podemos. Existe uma espécie de direito da vítima ao protesto, face ao mistério do mal, um direito que Deus concede a todos, afinal é Ele próprio que inspira. Às vezes, encontro-me com pessoas que se aproximam e dizem: “Mas, padre, protestei contra Deus porque tenho este problema, aqueloutro…”. Mas, sabes, caro, que o protesto é um modo de oração, quando se faz assim. Quando as crianças, os jovens protestam contra os pais, é uma forma para chamar a atenção e pedir que se ocupem deles. Se tens alguma chaga no coração, alguma dor e te vem vontade de protestar, protesta também contra Deus, Deus ouve-te, Deus é Pai, Deus não se assusta com a nossa oração de protesto, não! Deus compreende. Mas sê livre, sê livre na tua prece, não aprisiones a tua oração nos esquemas preconcebidos! A Oração deve ser assim, espontânea, como aquela de um filho com o pai, que lhe diz tudo o que lhe vem à mente porque sabe que o pai o entende. O “silêncio” de Deus no primeiro momento do drama significa isto. Deus não se afasta do confronto, mas no início deixa a Jó o desabafo do seu protesto, e Deus escuta. Talvez, por vezes, devêssemos aprender de Deus este respeito e ternura. E Deus não gosta daquela enciclopédia – chamamo-la assim – de explicações, de reflexões que fazem os amigos de Jó. Aquilo é sumo de língua, que não é justo: é aquela religiosidade que explica tudo, mas o coração permanece frio. Deus não gosta disto. Gosta mais do protesto de Jó ou do silêncio de Jó.
A profissão de fé de Jó – que emerge precisamente do seu incessante apelo a Deus, a uma justiça suprema – no final completa-se com a experiência quase mística, diria, que o faz dizer: «Os meus ouvidos tinham ouvido falar de Ti, mas, agora, viram-Te os meus próprios olhos» (42, 5). Quantas pessoas, quantos de nós depois de uma experiência um pouco negativa, um pouco obscura, dá o passo e conhece melhor Deus do que antes! E podemos dizer, como Job: “Os meus ouvidos tinham ouvido falar de Ti, mas, agora, viram-Te os meus próprios olhos”. Este testemunho é particularmente credível se a velhice o assumir, na sua progressiva fragilidade e perda. Os idosos viram muitas coisas na vida! E também viram a inconsistência das promessas dos homens. Homens de leis, homens de ciência, também homens de religião, que confundem o perseguidor com a vítima, imputando a esta toda a responsabilidade pela sua dor. Erram!
Os idosos que encontram o caminho deste testemunho, que converte o ressentimento pela perda na tenacidade pela expetativa da promessa de Deus – há uma mudança, do ressentimento pela perda para uma tenacidade em seguir a promessa de Deus – estes idosos são uma defesa insubstituível para que a comunidade enfrente o excesso do mal. O olhar dos crentes que se dirige para o Crucificado aprende precisamente isto. Que o aprendamos também, de tantos avôs e avós, de tantos idosos que, como Maria, unem as suas orações, por vezes comovedoras, à do Filho de Deus que na cruz se entrega ao Pai. Olhemos para os idosos, olhemos para as pessoas mais velhas, os idosos, as avozinhas; olhemos para eles com amor, olhemos para a sua experiência pessoal. Eles sofreram muito na vida, aprenderam tanto na vida, passaram por muitas coisas, mas no final alcançaram esta paz, uma paz – diria – quase mística, isto é, a paz do encontro com Deus, a ponto de poder dizer “Os meus ouvidos tinham ouvido falar de Ti, mas, agora, viram-Te os meus próprios olhos”. Estes idosos assemelham-se àquela paz do filho de Deus que se entrega ao Pai na cruz.
Papa Francisco
Catequese na audiência geral 18.05.22
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