Catequeses. Os vícios e as virtudes. 9. A inveja e a vanglória
Hoje vamos analisar dois vícios capitais que encontramos nos grandes elencos que a tradição espiritual nos deixou: a inveja e a vanglória.
Comecemos pela inveja. Se lermos a Sagrada Escritura (cf. Gn 4), ela apresenta-se-nos como um dos vícios mais antigos: o ódio de Caim em relação a Abel desencadeia-se quando ele se dá conta de que os sacrifícios do seu irmão são agradáveis a Deus. Caim era o primogénito de Adão e Eva, tinha recebido a parte mais importante da herança do pai; no entanto, é suficiente que Abel, o irmão mais novo, alcance um pequeno sucesso, para que Caim se indigne. O rosto do invejoso é sempre triste: o olhar é cabisbaixo, parece que perscruta continuamente o terreno, mas na realidade não vê nada, porque a mente está mergulhada em pensamentos cheios de maldade. A inveja, se não for controlada, leva ao ódio pelo outro. Abel será morto pelas mãos de Caim, que não era capaz de suportar a felicidade do irmão.
A inveja é um mal investigado não apenas no âmbito cristão: chamou a atenção de filósofos e sábios de todas as culturas. Na sua base existe uma relação de ódio e de amor: quer-se o mal do outro, mas secretamente deseja-se ser como ele. O outro é a epifania daquilo que gostaríamos de ser e que, na realidade, não somos. A sua sorte parece-nos uma injustiça: certamente - pensamos - teríamos merecido muito mais os seus sucessos ou a sua boa sorte!
Na raiz deste vício há uma falsa ideia de Deus: não aceitamos que Deus tenha a sua “matemática”, diferente da nossa. Por exemplo, na parábola de Jesus sobre os trabalhadores chamados pelo patrão para ir à vinha em diferentes horas do dia, os da primeira hora julgam ter direito a um salário mais elevado do que aqueles que chegaram por último; mas o patrão dá a todos o mesmo salário, dizendo: «Não posso fazer das minhas coisas o que quero? Ou tendes inveja porque sou bom?» (Mt 20,15). Gostaríamos de impor a Deus a nossa lógica egoísta, mas a lógica de Deus é o amor. Os bens que Ele nos concede devem ser compartilhados. Por isso, São Paulo exorta os cristãos: «Amai-vos uns aos outros com afeto fraterno, concorrendo na estima recíproca» (Rm 12,10). Eis o remédio para a inveja!
E vejamos o segundo vício que hoje examinamos: a vanglória. Ela anda de mãos dadas com o demónio da inveja e, juntos, estes dois vícios são caraterísticos de uma pessoa que aspira a ser o centro do mundo, livre de explorar tudo e todos, objeto de todo o louvor e amor. A vanglória é uma autoestima inflada e sem fundamento. O orgulhoso possui um “eu” despropositado: não tem empatia e não se dá conta de que há outras pessoas no mundo para além dele. As suas relações são sempre instrumentais, determinadas pelo predomínio sobre o outro. A sua pessoa, as suas conquistas, os seus sucessos devem ser exibidos a todos: é um perene mendigo de atenção. E se, às vezes, as suas qualidades não são reconhecidas, então zanga-se ferozmente. Os outros são injustos, não compreendem, não estão à altura. Nos seus escritos, Evágrio Pôntico descreve a amarga vicissitude de alguns monges acometidos pela vanglória. Acontece que, após os primeiros êxitos na vida espiritual, ele sente que já está realizado e então precipita-se no mundo para receber os seus elogios. Mas não compreende que está apenas no início do caminho espiritual, e que a tentação está à espreita e não tardará a abatê-lo.
Para curar o vaidoso, os mestres espirituais não sugerem muitos remédios. Porque, afinal de contas, o mal da vaidade tem o seu remédio em si mesmo: os elogios que o vaidoso esperava receber do mundo depressa se voltarão contra ele. E quantas pessoas, iludidas por uma falsa imagem de si próprias, caíram depois em pecados de que rapidamente se envergonhariam!
A melhor instrução para vencer a vanglória encontra-se no testemunho de São Paulo. O Apóstolo sempre se confrontou com um defeito que nunca conseguiu superar. Por três vezes, pediu ao Senhor que o libertasse desse suplício, mas no fim Jesus respondeu-lhe: «Basta-te a minha graça, porque a força se manifesta plenamente na fraqueza». A partir daquele dia, Paulo foi libertado. E a sua conclusão deveria tornar-se também a nossa: «Por isso, é de bom grado que me orgulharei das minhas fraquezas, para que o poder de Cristo permaneça em mim» (2 Cor 12, 9).
Papa Francisco
Audiência Geral 28/02/2024
Catequeses. Os vícios e as virtudes. 8. A acídia
Entre todos os vícios capitais, há um que muitas vezes passa em silêncio, talvez por causa do seu nome, que para muitos é pouco compreensível: refiro-me à acédia. Por isso, no catálogo dos vícios, o termo acédia é muitas vezes substituído por outro, de uso muito mais comum: a preguiça. Na realidade, a preguiça é mais um efeito do que uma causa. Quando uma pessoa está inativa, indolente, apática, dizemos que é preguiçosa. Mas, como ensina a sabedoria dos antigos Padres do deserto, muitas vezes a raiz de tal preguiça é a acédia, que do grego significa literalmente “falta de cuidado”.
Trata-se de uma tentação muito perigosa, com a qual não se deve brincar. As suas vítimas são como que esmagadas por um desejo de morte: sentem aversão por tudo; a sua relação com Deus torna-se tediosa; e até os atos mais santos, que no passado lhes aqueciam o coração, agora parecem-lhes totalmente inúteis. A pessoa começa a lamentar a passagem do tempo e a juventude que ficou irremediavelmente para trás.
A acédia é definida como o “demónio do meio-dia”: apanha-nos no meio do dia, quando o cansaço está no seu auge e as horas que se seguem nos parecem monótonas, impossíveis de viver. Numa descrição célebre, o monge Evágrio representa esta tentação do seguinte modo: «O olho do preguiçoso está continuamente fixo nas janelas, e na sua mente imagina visitantes [...] Quando lê, o preguiçoso boceja muitas vezes e é facilmente vencido pelo sono, esfrega os olhos e as mãos e, afastando o olhar do livro, fixa a parede; depois, volta a olhar para o livro, lê mais um pouco [...]; por fim, inclinando a cabeça, põe o livro debaixo dela, adormece num sono leve, até que a fome o desperte e o obrigue a atender às suas necessidades»; concluindo, «o preguiçoso não realiza a obra de Deus com solicitude» [1].
Os leitores contemporâneos vislumbram nestas descrições algo que lembra muito o mal da depressão, tanto do ponto de vista psicológico como filosófico. Com efeito, para quem é apanhado pela acédia, a vida perde o significado, rezar é tedioso, cada batalha parece insensata. Se alimentamos paixões na nossa juventude, agora elas parecem ilógicas, sonhos que não nos tornaram felizes. Então, deixamo-nos levar e a distração, o não-pensar, parecem ser a única saída: gostaríamos de ficar atordoados, ter a mente completamente vazia... É um pouco como morrer antecipadamente, e é horrível!
Perante este vício, que nos damos conta que é muito perigoso, os mestres da espiritualidade preveem vários remédios. Gostaria de salientar o que me parece ser o mais importante, e que chamaria a paciência da fé. Se, sob o açoite da acédia, o desejo do homem é estar “noutro lugar”, fugir da realidade, é preciso ter a coragem de permanecer e de acolher a presença de Deus no meu “aqui e agora”, na minha situação tal como ela é. Os monges dizem que, para eles, a cela é a melhor mestra de vida, pois é o lugar que nos fala concreta e quotidianamente da nossa história de amor com o Senhor. O demónio da acédia quer destruir precisamente esta alegria simples do aqui e agora, o temor grato da realidade; quer fazer-nos acreditar que tudo é vão, que nada tem sentido, que não vale a pena preocupar-nos com nada e com ninguém. Na vida encontramos pessoas “preguiçosas”, pessoas de quem dizemos: “Mas ele é tedioso!” e não gostamos de estar com ele; pessoas que têm também uma atitude de aborrecimento que contagia. A acédia é assim!
Quantas pessoas, dominadas pela acédia, movidas por uma inquietação sem rosto, abandonaram insensatamente o caminho do bem que tinham empreendido! A acédia é uma batalha decisiva, que deve ser vencida custe o que custar. E é uma batalha que não poupou nem sequer os santos, pois em muitos dos seus diários há várias páginas que confidenciam momentos tremendos, de verdadeiras noites da fé, onde tudo parecia obscuro. Estes santos e santas ensinam-nos a atravessar a noite com paciência, aceitando a pobreza da fé. Recomendam que, sob a opressão da acédia, nos empenhemos menos, fixemos objetivos mais ao alcance, mas ao mesmo tempo, que suportemos e perseveremos, apoiando-nos em Jesus, que nunca abandona na tentação.
A fé, atormentada pela prova da acédia, não perde o seu valor. Pelo contrário, é a verdadeira fé, a fé deveras humana, que apesar de tudo, não obstante as trevas que a cegam, continua a acreditar humildemente. É esta fé que permanece no coração, como as brasas sob as cinzas. Permanecem sempre. E se algum de nós cair neste vício ou na tentação da acédia, procure olhar para dentro de si e conservar as brasas da fé: é assim que se vai em frente!
papa Francisco
Audiência geral 14.02.2024
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[1] Evágrio Pôntico, Os oito espíritos da maldade, 14
Catequeses. Os vícios e as virtudes. 7. A tristeza
No nosso itinerário de catequeses sobre os vícios e as virtudes, hoje meditamos sobre um vício bastante negativo, a tristeza, entendida como um abatimento da alma, uma aflição constante que impede o homem de sentir alegria pela sua existência.
Em primeiro lugar, é preciso observar que, no que diz respeito à tristeza, os Padres elaboraram uma distinção importante. Com efeito, existe uma tristeza que convém à vida cristã e que, com a graça de Deus, se transforma em alegria: evidentemente, ela não deve ser rejeitada e faz parte do caminho de conversão. Mas existe também uma segunda figura de tristeza, que se insinua na alma, prostrando-a num estado de desânimo: é este segundo tipo de tristeza que deve ser combatido com determinação e com toda a força, porque deriva do Maligno. Encontramos esta distinção também em São Paulo que, escrevendo aos Coríntios, diz: «A tristeza segundo Deus produz um arrependimento irrevogável que leva à salvação, enquanto a tristeza do mundo produz a morte» (2 Cor 7, 10).
Portanto, existe uma tristeza amiga, que nos conduz à salvação. Pensemos no filho pródigo da parábola: quando toca o fundo da sua degeneração, sente grande amargura, que o leva a recuperar a razão e a decidir regressar para a casa do pai (cf. Lc 15, 11-20). É uma graça gemer sobre os próprios pecados, recordar o estado de graça do qual caímos, chorar porque perdemos a pureza com que Deus nos sonhou.
Mas há uma segunda tristeza que, ao contrário, é uma doença da alma. Nasce no coração do homem, quando se esvaece um desejo ou uma esperança. Aqui podemos referir-nos à narração dos discípulos de Emaús. Aqueles dois discípulos partem de Jerusalém com o coração desiludido e, ao desconhecido que os acompanha, a uma certa altura confidenciam: «Esperávamos que ele - isto é, Jesus – haveria de libertar Israel» (Lc 24, 21). A dinâmica da tristeza está ligada à experiência da perda. No coração do homem nascem esperanças que, às vezes, são frustradas. Pode ser o desejo de possuir algo que, ao contrário, não se consegue obter; mas também algo importante, como a perda de um afeto. Quando isto acontece, é como se o coração do homem caísse num precipício, e os sentimentos que experimenta são desânimo, fraqueza de espírito, depressão, angústia. Todos passamos por provações que geram tristeza em nós, porque a vida nos faz conceber sonhos que depois se desfazem. Nesta situação alguns, depois de um período de turbulência, confiam na esperança; mas outros mergulham na melancolia, deixando que ela apodreça o coração. Sente-se prazer com isto? Reparai: a tristeza é como o prazer do não-prazer; é como pegar num doce amargo, sem açúcar, mau e comer este doce. A tristeza é um prazer do não-prazer.
O monge Evágrio conta que todos os vícios visam um prazer, por mais efémero que possa ser, ao passo que a tristeza goza do oposto: embalar-se numa dor sem fim. Certos lutos prolongados, em que a pessoa continua a ampliar o vazio de quem já não está presente, não são próprios da vida no Espírito. Certas amarguras rancorosas, em que a pessoa tem sempre em mente uma reivindicação que a faz assumir o papel de vítima, não produzem em nós uma vida sadia, e muito menos cristã. Há algo no passado de todos que deve ser curado. A tristeza, de uma emoção natural, pode transformar-se num estado de espírito maligno.
A tristeza é um demónio perverso. Os Padres do deserto descrevem-no como um verme do coração, que corrói e esvazia o hóspede. Esta imagem é bonita, faz-nos compreender. Então, o que devo fazer quando estou triste? Parar e pensar: é uma tristeza boa? Não é uma tristeza boa? E reagir de acordo com a natureza da tristeza. Não vos esqueçais que a tristeza pode ser algo muito mau, que nos leva ao pessimismo, que nos conduz a um egoísmo dificilmente curável.
Irmãos e irmãs, devemos prestar atenção a esta tristeza e pensar que Jesus nos traz a alegria da ressurreição. Por mais que a vida possa ser cheia de contradições, de desejos derrotados, de sonhos não realizados, de amizades perdidas, graças à ressurreição de Jesus podemos acreditar que tudo será salvo. Jesus não ressuscitou só para si mesmo, mas também para nós, a fim de resgatar toda a felicidade que na nossa vida ficou incompleta. A fé expulsa o medo, e a ressurreição de Cristo remove a tristeza como a pedra do sepulcro. Cada dia do cristão é um exercício de ressurreição. No seu famoso romance Diário de um pároco de aldeia, Georges Bernanos faz com que o pároco de Torcy diga o seguinte: «A Igreja dispõe da alegria, de toda a alegria que está reservada a este mundo triste. O que fizestes contra ela, fizestes contra a alegria». E outro escritor francês, León Bloy, deixou-nos esta frase maravilhosa: «Só há uma tristeza [...] a de não ser santo!». Que o Espírito de Jesus ressuscitado nos ajude a vencer a tristeza com a santidade.
Papa Francisco
07.02.2024
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Catequeses. Os vícios e as virtudes. 6. A ira
Nestas semanas abordamos o tema dos vícios e das virtudes, e hoje refletimos sobre o vício da ira. Trata-se de um vício particularmente tenebroso, e talvez seja o mais simples de identificar do ponto de vista físico. A pessoa dominada pela ira tem dificuldade de esconder este ímpeto: reconhecemo-lo pelos movimentos do seu corpo, pela agressividade, pela respiração ofegante, pelo olhar sombrio e carrancudo.
Na sua manifestação mais penetrante, a ira é um vício que não dá tréguas. Se nasce de uma injustiça sofrida (ou assim considerada), muitas vezes não se desencadeia contra o culpado, mas contra o primeiro desventurado. Há homens que reprimem a ira no lugar de trabalho, demonstrando-se calmos e tranquilos, mas, quando chegam a casa, tornam-se insuportáveis para a esposa e os filhos. A ira é um vício alastrante: é capaz de tirar o sono e de nos levar a tramar em continuação na mente, sem conseguir encontrar uma barreira aos raciocínios e aos pensamentos.
A ira é um vício destrutivo das relações humanas. Exprime a incapacidade de aceitar a diversidade do outro, especialmente quando as suas escolhas de vida divergem das nossas. Não se limita aos comportamentos errados de uma pessoa, mas lança tudo no caldeirão: é o outro, o outro tal como ele é, o outro enquanto tal que provoca a raiva e o ressentimento. Começa-se a detestar o tom da sua voz, os gestos banais do dia a dia, os seus modos de raciocinar e de sentir.
Quando a relação chega a este nível de degeneração, já se perdeu a lucidez. A ira faz perder a lucidez. Pois às vezes uma das caraterísticas da ira é a de não conseguir atenuar-se com o tempo. Nestes casos, até a distância e o silêncio, em vez de acalmar o peso dos desentendimentos, aumentam-no. É por este motivo que o apóstolo Paulo – como ouvimos – recomenda aos seus cristãos que enfrentem imediatamente o problema e busquem a reconciliação: «Que o sol não se ponha sobre a vossa ira» (Ef 4, 26). É importante que tudo se dissolva imediatamente, antes que o sol se ponha. Se durante o dia pode surgir algum desentendimento, e duas pessoas já não conseguirem compreender-se, sentindo-se repentinamente distantes, a noite não deve ser confiada ao diabo. O vício manter-nos-ia acordados na escuridão, a remoer as nossas razões e os erros indescritíveis, que nunca são nossos, sempre do outro. É assim: quando uma pessoa é dominada pela ira, diz sempre que o problema é do outro; nunca é capaz de reconhecer os próprios defeitos, as próprias falhas.
No “Pai-Nosso”, Jesus faz-nos rezar pelas nossas relações humanas, que são um terreno minado: um plano que nunca está em perfeito equilíbrio. Na vida lidamos com devedores que estão em falta para connosco; assim como nós certamente nem sempre amamos todos na medida certa. A alguém não restituímos o amor que lhe era devido. Somos todos pecadores, todos, e todos temos a conta no vermelho: não o esqueçamos! Por isso, todos devemos aprender a perdoar para ser perdoados. Os homens não permanecem juntos, se não se exercitarem também na arte do perdão, na medida do que for humanamente possível. O que impede a ira é a benevolência, a abertura de coração, a mansidão, a paciência.
Mas, a propósito da ira, há uma última coisa a dizer. É um vício terrível, dizia-se, está na origem de guerras e violências. O prefácio da Ilíada descreve “a ira de Aquiles”, que será causa de “lutos infinitos”. Porém, nem tudo o que nasce da ira está errado. Os antigos estavam bem conscientes de que em nós subsiste uma parte irascível, que não pode nem deve ser negada. As paixões são, em certa medida, inconscientes: acontecem, são experiências da vida. Não somos responsáveis pelo nascimento da ira, mas sempre pelo seu desenvolvimento. E às vezes é bom que a ira seja desabafada de maneira correta. Se uma pessoa nunca se irasse, se não se indignasse diante de uma injustiça, se perante a opressão de uma pessoa frágil não sentisse tremer algo nas suas entranhas, então isto significaria que aquela pessoa não é humana, e muito menos cristã.
Existe a santa indignação, que não é a ira, mas sim um movimento interior, a santa indignação. Jesus conheceu-a várias vezes na sua vida (cf. Mc 3, 5): nunca respondeu ao mal com o mal, mas na sua alma teve este sentimento e, no caso dos mercadores do Templo, realizou uma ação forte e profética, ditada não pela ira, mas pelo zelo pela casa do Senhor (cf. Mt21, 12-13). Devemos distinguir bem: uma coisa é o zelo, a santa indignação; outra é a ira, que é má.
Compete a nós, com a ajuda do Espírito Santo, encontrar a medida certa das paixões, educá-las adequadamente, a fim de que se voltem para o bem, não para o mal. Obrigado!
Papa Francisco
Audiência geral 31.01.24
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Catequeses. Os vícios e as virtudes. 5. A avareza
Dando continuidade às catequeses sobre os vícios e as virtudes, hoje falamos da avareza, ou seja, daquela forma de apego ao dinheiro que impede que o homem seja generoso.
Não é um pecado que diz respeito unicamente às pessoas que possuem grandes bens, mas é um vício transversal, que muitas vezes não tem nada a ver com o saldo da conta corrente. É uma doença do coração, não da carteira.
As análises que os padres do deserto fizeram sobre este mal demonstraram como a avareza podia apoderar-se até de monges que, depois de ter renunciado a enormes heranças, na solidão da sua cela apegaram-se a objetos de pouco valor: não os emprestavam, não os compartilhavam e muito menos estavam dispostos a dá-los. Um apego a coisas pequenas, que tira a liberdade. Aqueles objetos tornaram-se para eles uma espécie de fetiche, do qual era impossível desligar-se. Uma espécie de regressão à idade das crianças, que se agarram ao brinquedo, repetindo: “É meu, é meu!”. Nesta reivindicação aninha-se uma relação doentia com a realidade, que pode levar a formas de apropriação compulsiva ou de acumulação patológica.
Para curar esta doença, os monges propunham um método drástico, mas deveras eficaz: a meditação sobre a morte. Por mais que uma pessoa acumule bens neste mundo, de uma coisa estamos absolutamente certos: que eles não caberão no caixão. Não podemos levar os bens connosco! Eis que se revela a insensatez deste vício. O vínculo de posse que construímos com as coisas é apenas aparente, pois não somos donos do mundo: na verdade, esta terra que amamos não é nossa, e movemo-nos nela como forasteiros e peregrinos (cf. Lv 25, 23).
Estas simples considerações levam-nos a intuir a loucura da avareza, mas também a sua razão mais recôndita. Ela é uma tentativa de exorcizar o medo da morte: procura seguranças que na realidade se desfazem no exato momento em que nos agarramos a elas. Recordais a parábola daquele homem insensato, cujo campo tinha oferecido uma colheita deveras abundante e que, por isso, se deixa embalar por pensamentos sobre o modo como ampliar o seu armazém para aí colocar toda a safra. Aquele homem calculou tudo, programou o futuro. No entanto, não teve em consideração a variável mais segura da vida: a morte. «Insensato - diz o Evangelho - esta mesma noite ser-te-á pedida a vida. E o que acumulaste, de quem será?» (Lc 12, 20).
Noutros casos, são os ladrões que nos prestam este serviço. Inclusive nos Evangelhos eles são citados várias vezes e, embora as suas ações sejam censuráveis, podem tornar-se uma admoestação salutar. Assim prega Jesus no sermão da montanha: «Não acumuleis tesouros na terra, onde a traça e a ferrugem os corroem e os ladrões arrombam os muros a fim de os roubar. Acumulai tesouros no céu, onde nem a traça nem a ferrugem os corroem, nem os ladrões arrombam os muros, a fim de os roubar» (Mt 6, 19-20). Ainda nas narrações dos padres do deserto, conta-se a vicissitude de um ladrão que surpreende o monge durante o sono, roubando-lhe os poucos bens que guardava na cela. Quando acorda, sem se perturbar com o que tinha acontecido, o monge põe-se no encalço do ladrão e, quando o encontra, em vez de reclamar os bens roubados, entrega-lhe as poucas coisas que lhe restam, dizendo: “Esqueceste de pegar nisto!”.
Irmãos e irmãs, podemos ser senhores dos bens que possuímos, mas muitas vezes acontece o contrário: são eles que acabam por nos possuir. Alguns ricos já não são livres, nem sequer têm tempo para descansar, devem estar atentos porque a acumulação de bens também exige a sua guarda. Estão sempre ansiosos, porque um património se constrói com muito suor, mas pode desaparecer num instante. Esquecem-se da pregação evangélica, que não afirma que as riquezas em si são um pecado, mas certamente constituem uma responsabilidade. Deus não é pobre: é o Senhor de tudo, mas - escreve São Paulo - «de rico que era, fez-se pobre por vós, para que vos tornásseis ricos pela sua pobreza» (2 Cor 8, 9).
É isto que o avarento não compreende. Podia ser motivo de bênção para muitos, mas ao contrário acabou no beco sem saída da infelicidade. E a vida do avarento é terrível. Lembro-me do caso de um senhor que conheci na outra diocese, um homem muito rico, que tinha a mãe doente. Era casado. Um de cada vez, os irmãos tomavam conta da mãe, e de manhã a mãe comia um iogurte. Aquele senhor dava-lhe metade de manhã, para lhe dar a outra metade à tarde e poupar meio iogurte. É assim a avareza, é assim o apego aos bens. Depois, aquele senhor morreu e o comentário das pessoas que foram ao velório foi este: “Mas vê-se que este homem não leva nada consigo, deixou tudo”. E depois, com um pouco de troça, diziam: “Não, não, não podiam fechar o caixão porque queria levar tudo consigo”. É isto que, da avareza, leva os outros a rir: que no fim devemos dar o nosso corpo e a nossa alma ao Senhor, deixando tudo. Tenhamos cuidado! E sejamos generosos, generosos com todos e generosos com aqueles que mais precisam de nós. Obrigado!
Papa Francisco
24.01.24
Audiência geral
Catequeses. Os vícios e as virtudes. 4. A luxúria
Hoje ouçamos bem a catequese, porque depois teremos o circo que fará algo para nos divertir.
Continuemos o nosso itinerário sobre os vícios e as virtudes; e os antigos Padres ensinam-nos que, após a gula, o segundo “demónio”, ou seja, vício, que está sempre agachado à porta do coração é a luxúria. Enquanto a gula é a voracidade em relação à comida, este segundo vício é uma espécie de “voracidade” para com outra pessoa, isto é, a ligação envenenada que os seres humanos têm uns com os outros, especialmente na esfera da sexualidade.
Prestemos atenção: no cristianismo não há condenação do instinto sexual. Um livro da Bíblia, o Cântico dos Cânticos, é um maravilhoso poema de amor entre dois noivos. No entanto, esta dimensão tão bonita da nossa humanidade, a dimensão sexual, a dimensão do amor, não está isenta de perigos, de tal modo que já São Paulo deve abordar esta questão na primeira Carta aos Coríntios. Assim escreve: «De todas as partes ouvimos falar de imoralidade entre vós, de uma imoralidade que não se encontra nem sequer entre os gentios» (5, 1). A repreensão do Apóstolo diz respeito precisamente a uma gestão malsã da sexualidade por parte de certos cristãos.
Mas olhemos para a experiência humana, a experiência do enamoramento. Aqui há tantos recém-casados, vós podeis falar disto! Porque este mistério acontece, e porque é uma experiência tão devastadora na vida das pessoas, nenhum de nós sabe. Uma pessoa apaixona-se por outra, o enamoramento ocorre. É uma das realidades mais surpreendentes da existência. Boa parte das canções que ouvimos na rádio referem-se a isto: amores que se iluminam, amores sempre procurados e nunca alcançados, amores cheios de alegria ou que atormentam até às lágrimas.
Quando não é poluído pelo vício, o enamoramento é um dos sentimentos mais puros. Uma pessoa apaixonada torna-se generosa, gosta de dar presentes, escreve cartas e poesias. Deixa de pensar em si própria, projetando-se completamente para o outro, e isto é bonito! E se perguntarmos a uma pessoa apaixonada “por que motivo amas?”, ela não terá uma resposta: sob muitos aspetos, o seu amor é incondicional, sem qualquer razão. Paciência se aquele amor, tão poderoso, é também um pouco ingénuo: o apaixonado não conhece verdadeiramente o rosto do outro, tende a idealizá-lo, está pronto a fazer promessas cuja relevância não compreende imediatamente. No entanto, este “jardim” onde se multiplicam maravilhas não está ao abrigo do mal. Ele é deturpado pelo demónio da luxúria e este vício é particularmente odioso, pelo menos por dois motivos.
Em primeiro lugar, porque devasta as relações entre as pessoas. Para documentar uma realidade como esta, infelizmente bastam as notícias de todos os dias. Quantas relações iniciadas da melhor maneira se transformaram depois em relações tóxicas, de posse do outro, desprovidas de respeito e de sentido do limite? São amores em que faltou a castidade: virtude que não se pode confundir com a abstinência sexual - a castidade é mais do que a abstinência sexual - mas que está ligada à vontade de nunca possuir o outro. Amar é respeitar o outro, procurar a sua felicidade, cultivar a empatia pelos seus sentimentos, dispor-se ao conhecimento de um corpo, de uma psicologia e de uma alma que não são nossos e que devem ser contemplados pela beleza de que são portadores. Amar é isso, e o amor é belo! A luxúria, pelo contrário, ridiculariza tudo isto: a luxúria saqueia, rouba, consome tudo apressadamente, não quer ouvir o outro, mas somente a própria necessidade e prazer; a luxúria considera tedioso qualquer namoro, não procura a síntese entre razão, impulso e sentimento, que nos ajudaria a conduzir a existência com sabedoria. O luxurioso só procura atalhos: não compreende que o caminho para o amor deve ser percorrido com lentidão, e esta paciência, longe de ser sinónimo de aborrecimento, permite tornar felizes as nossas relações amorosas.
Mas há uma segunda razão pela qual a luxúria é um vício perigoso. Entre todos os prazeres do homem, a sexualidade tem uma voz poderosa. Envolve todos os sentidos, habita tanto no corpo como na psique, e isso é muito bom, mas se não for disciplinada com paciência, se não estiver inscrita numa relação e numa história em que dois indivíduos a transformam em dança amorosa, torna-se uma cadeia que priva o homem da liberdade. O prazer sexual, um dom de Deus, é minado pela pornografia: satisfação sem relação, que pode gerar formas de dependência. Devemos defender o amor, o amor do coração, da mente, do corpo, o amor puro na entrega de si mesmo ao outro. E esta é a beleza da relação sexual.
Vencer a batalha contra a luxúria, contra a “coisificação” do outro, pode ser um empreendimento para toda a vida. Mas a recompensa desta batalha é a mais importante de todas, pois se trata de preservar aquela beleza que Deus inscreveu na sua criação quando imaginou o amor entre o homem e a mulher, que não consiste em servir-se um do outro, mas em amar-se. Esta beleza, que nos faz acreditar que construir uma história juntos é melhor do que partir em busca de aventuras - há tantos casanovas! - cultivar a ternura é melhor do que curvar-se ao demónio da posse - o verdadeiro amor não possui, entrega-se - servir é melhor do que conquistar. Pois quando não há amor, a vida é triste, é triste solidão. Obrigado!
Papa Francisco
audiência geral 17.01.24
Catequeses. Os vícios e as virtudes. 3. A gula
Neste nosso caminho de catequeses que percorremos sobre os vícios e as virtudes, hoje meditemos sobre o vício da gula .
O que nos diz o Evangelho a tal respeito? Olhemos para Jesus. O seu primeiro milagre, nas bodas de Caná, revela a sua simpatia pelas alegrias humanas: preocupa-se por que a festa acabe bem, oferecendo aos noivos uma grande quantidade de vinho excelente. Ao longo do seu ministério, Jesus manifesta-se como um profeta muito diferente do Batista: se João é recordado pela sua ascese — comia o que encontrava no deserto — Jesus é, ao contrário, o Messias que vemos muitas vezes à mesa. O seu comportamento suscita o escândalo de alguns, pois não só é benevolente para com os pecadores, comendo até com eles; e este gesto demonstrava a sua vontade de comunhão e de proximidade em relação a todos.
Mas há algo mais. Se a atitude de Jesus em relação aos preceitos judaicos nos revela a sua total submissão à Lei, Ele mostra-se, no entanto, compreensível com os seus discípulos: quando estes são apanhados em flagrante, porque têm fome e colhem espigas de trigo em dia de sábado, Ele justifica-os, lembrando-lhes que até o rei David e os seus companheiros, quando estavam em necessidade, comeram os pães sagrados (cf. Mc 2, 23-26). E Jesus afirma um novo princípio: os convidados para as bodas não podem jejuar quando o noivo está com eles; jejuarão quando o noivo lhes for tirado. Agora tudo está em relação com Jesus. Quando Ele está no meio de nós, não podemos estar em luto; mas na hora da sua paixão, então sim, jejuamos (cf. Mc 2, 18-20). Jesus quer que estejamos alegres em sua companhia — Ele é o Esposo da Igreja — mas quer igualmente que compartilhemos os seus sofrimentos, que são também os padecimentos dos pequeninos e dos pobres.
Outro aspeto importante. Jesus põe fim à distinção entre alimentos puros e impuros , que era uma distinção feita pela lei judaica. Na realidade — ensina Jesus — não é o que entra no homem que o contamina, mas o que sai do seu coração. E dizendo isto, «tornava puros todos os alimentos» (Mc 7, 19). Por isso, o cristianismo não contempla alimentos impuros. Mas a atenção que devemos ter é interior: portanto, não sobre o alimento em si, mas sobre a nossa relação com ele . E sobre isto Jesus diz claramente que o que faz a bondade ou a maldade, digamos assim, de um alimento, não é o alimento em si, mas a relação que tivermos com ele. E vemos isto quando uma pessoa tem uma relação desordenada com a comida, olhamos para a forma como ela come, come à pressa, como se tivesse vontade de se saciar e nunca se sacia, não tem uma boa relação com o alimento, é escrava da comida.
Esta relação serena que Jesus estabeleceu com a alimentação deveria ser redescoberta e valorizada, especialmente nas sociedades do chamado bem-estar, onde se manifestam muitos desequilíbrios e patologias . Come-se demais ou de demasiado pouco. Come-se muitas vezes em solidão. Os distúrbios alimentares alastram-se: anorexia, bulimia, obesidade... E a medicina e a psicologia procuram abordar a má relação com a comida. A má relação com a comida produz todas estas enfermidades.
Trata-se de doenças, frequentemente muito dolorosas, ligadas sobretudo aos tormentos da psique e da alma. A alimentação é a manifestação de algo interior: a predisposição para o equilíbrio, ou para o exagero; a capacidade de dar graças, ou a arrogante pretensão de autonomia; a empatia de quem sabe partilhar a comida com os necessitados, ou o egoísmo de quem acumula tudo para si. Esta questão é muito importante: diz-me como comes e dir-te-ei que alma tens. No modo de comer revela-se a nossa interioridade, os nossos hábitos, as nossas atitudes psíquicas.
Os antigos Padres designavam o vício da gula com o nome de “gastrimargia”, termo que se pode traduzir por “loucura do ventre”. A gula é uma “loucura do ventre”. E há também este provérbio: devemos comer para viver, não viver para comer. A gula é um vício que se insere precisamente numa das nossas necessidades vitais, como a alimentação. Tomemos cuidado com isto!
Se a virmos de um ponto de vista social , talvez a gula seja o vício mais perigoso, que mata o planeta . Pois o pecado de quem cede diante de uma fatia de bolo, considerando bem, não causa grandes danos, mas a voracidade com que nos desencadeamos, desde há alguns séculos, sobre os bens do planeta compromete o futuro de todos. Apoderamo-nos de tudo, para nos tornarmos donos de tudo, quando tudo estava entregue à nossa preservação, não à nossa exploração! Eis, pois, o grande pecado, a fúria do ventre: abjuramos o nome de homens, para assumir outro, “consumidores”. E hoje diz-se assim na vida social: “consumidores”. Nem sequer nos damos conta de que alguém começou a chamar-nos assim. Fomos feitos para ser homens e mulheres “eucarísticos”, capazes de dar graças, discretos no uso da terra e, ao contrário, o perigo é de nos transformarmos em predadores, e agora damo-nos conta de que esta forma de “gula” fez muito mal ao mundo. Peçamos ao Senhor que nos ajude no caminho da sobriedade e que os vários tipos de gula não se apoderem da nossa vida.
papa Francisco
Audiência geral 10.01.2024
Ciclo de catequeses. Os vícios e as virtudes. 2. O combate espiritual
Na semana passada introduzimo-nos no tema dos vícios e das virtudes. Ele recorda a luta espiritual do cristão. Com efeito, a vida espiritual do cristão não é pacífica, linear, sem desafios; pelo contrário, a vida cristã exige um combate constante: o combate cristão para conservar a fé, para enriquecer os dons da fé em nós. Não é por acaso que a primeira unção que cada cristão recebe no sacramento do Batismo - a unção catecumenal - é sem perfume algum e anuncia simbolicamente que a vida é uma luta. Sim, na antiguidade os lutadores eram completamente ungidos antes da competição, quer para tonificar os músculos, quer para tornar o corpo esquivo às garras do adversário. A unção dos catecúmenos torna imediatamente claro que ao cristão não é poupada a luta, que o cristão deve lutar: também a sua existência, como a de todos, deverá descer à arena, pois a vida é uma sucessão de provações e tentações.
Uma célebre frase atribuída a Abade António, o primeiro grande padre do monaquismo, reza assim: “Tira as tentações e ninguém se salvará”. Os santos não são homens aos quais foi poupada a tentação, mas pessoas bem conscientes de que as seduções do mal aparecem repetidamente na vida, para ser desmascaradas e rejeitadas. Todos nós experimentamos isto, todos nós: ter um mau pensamento, o desejo de fazer isto ou de falar mal do outro... Todos, todos nós somos tentados, e devemos lutar para não cair nessas tentações. Se algum de vós não tem tentações, que o diga, pois isto seria algo extraordinário! Todos nós temos tentações, e todos devemos aprender a comportar-nos em tais situações.
Há muitas pessoas que são egocêntricas, que pensam que estão “bem” – “Não, eu sou bom, sou boa, não tenho estes problemas”. Mas nenhum de nós está bem; se alguém se sente bem, sonha; cada um de nós tem muitas coisas a corrigir, e também devemos estar vigilantes. E às vezes acontece que vamos ao Sacramento da Reconciliação e dizemos, com sinceridade: “Padre, não me lembro, não sei se cometi pecados...”. Mas isto é falta de conhecimento do que acontece no coração. Somos pecadores, todos nós! E um pequeno exame de consciência, um pequeno olhar interior far-nos-á bem. Caso contrário, correremos o risco de viver nas trevas, porque nos habituamos às trevas e já não conseguimos distinguir o bem do mal. Isaac de Nínive dizia que, na Igreja, quem conhece os seus pecados e chora por eles é maior do que aquele que ressuscita um morto. Todos nós devemos pedir a Deus a graça de nos reconhecermos pobres pecadores, necessitados de conversão, guardando no coração a confiança de que nenhum pecado é demasiado grande para a misericórdia infinita de Deus Pai. Esta é a lição inaugural que Jesus nos dá!
Vemo-lo logo nas primeiras páginas dos Evangelhos, em primeiro lugar quando nos falam do batismo do Messias nas águas do rio Jordão. O episódio tem em si algo de desconcertante: por que se submete Jesus a este rito de purificação? Ele é Deus, é perfeito! De que pecado se deve arrepender Jesus? De nenhum! Até o Batista fica escandalizado, a ponto de o texto dizer: João queria impedi-lo, dizendo: «Eu é que tenho necessidade de ser batizado por ti. E tu vens a mim?». Mas Jesus é um Messias muito diferente do que João o tinha apresentado e do modo como as pessoas o imaginavam: não encarna o Deus irado, não convoca para o julgamento mas, pelo contrário, põe-se na fila com os pecadores. Como? Sim, Jesus caminha connosco, com todos nós, pecadores. Não é um pecador, mas está entre nós. E isto é bom! “Padre, cometi tantos pecados!” – “Mas Jesus está contigo: fala deles, Ele ajuda-te a abandoná-los”. Jesus nunca nos deixa sozinhos, nunca! Pensai bem nisto. “Oh, Padre, cometi coisas graves!” – “Mas Jesus compreende-te e acompanha-te: entende o teu pecado e perdoa-o”. Nunca esqueçamos isto! Nos piores momentos, nos momentos em que escorregamos nos pecados, Jesus está ao nosso lado para nos ajudar a levantar. Isto dá-nos consolação. Não podemos perder esta certeza: Jesus está ao nosso lado para nos ajudar, para nos proteger, até para nos levantar depois do pecado. “Mas Padre, é verdade que Jesus perdoa tudo?” – “Tudo. Ele veio para perdoar, para salvar. Mas Jesus quer o teu coração aberto”. Nunca se esquece de perdoar: somos nós, muitas vezes, que perdemos a capacidade de pedir perdão. Recuperemos a capacidade de pedir perdão. Cada um de nós tem muitas coisas das quais pedir perdão: cada um de nós pense nisso dentro de si, e hoje fale com Jesus sobre isto. Fale com Jesus sobre isto: “Senhor, não sei se é verdade ou não, mas tenho a certeza de que Tu não te afastas de mim. Tenho a certeza de que me perdoas. Senhor, sou pecador, pecadora, mas por favor não te afastes”. Esta seria uma bonita oração a Jesus hoje: “Senhor, não te afastes de mim”.
E logo após o episódio do batismo, os Evangelhos narram que Jesus se retira para o deserto, onde é tentado por Satanás. Também aqui se põe a questão: por que o Filho de Deus deve conhecer a tentação? Também neste caso, Jesus se mostra solidário com a nossa frágil natureza humana e torna-se o nosso grande exemplum: as tentações que atravessa e vence no meio das pedras áridas do deserto são a primeira instrução que dá à nossa vida de discípulos. Ele experimentou o que também nós devemos sempre preparar-nos para enfrentar: a vida é feita de desafios, provações, encruzilhadas, visões opostas, seduções ocultas, vozes contraditórias. Algumas vozes são até persuasivas, a ponto que Satanás tenta Jesus recorrendo às palavras da Escritura. Devemos preservar a lucidez interior para escolher o caminho que nos conduz verdadeiramente à felicidade e depois esforçar-nos para não parar ao longo do caminho.
Lembremo-nos de que estamos sempre divididos entre extremos opostos: a soberba desafia a humildade; o ódio opõe-se à caridade; a tristeza impede a verdadeira alegria do Espírito; o empedernimento do coração rejeita a misericórdia. Os cristãos caminham constantemente sobre estes cumes. Por isso é importante refletir sobre os vícios e as virtudes: ajuda-nos a superar a cultura niilista em que os contornos entre o bem e o mal permanecem matizados e, ao mesmo tempo, recorda-nos que o ser humano, ao contrário de qualquer outra criatura, pode sempre transcender-se a si mesmo, abrindo-se a Deus e caminhando rumo à santidade.
Portanto, o combate espiritual leva-nos a olhar mais de perto os vícios que nos agrilhoam e a caminhar, com a graça de Deus, para as virtudes que podem florescer em nós, trazendo a primavera do Espírito à nossa vida.
Papa Francisco
Audiência geral 04.01.23
Ciclo de catequeses. Os vícios e as virtudes. 1. Introdução: custodiar o coração
Hoje gostaria de introduzir um ciclo de catequeses sobre o tema dos vícios e das virtudes. E podemos começar precisamente pelo início da Bíblia, onde o livro do Génesis, através da narração dos progenitores, apresenta a dinâmica do mal e da tentação. Pensemos no Paraíso terrestre. No quadro idílico representado pelo jardim do Éden, aparece uma personagem que se torna o símbolo da tentação: a serpente, a personagem que seduz. A serpente é um animal insidioso: move-se lentamente, rastejando no chão, e às vezes a sua presença nem sequer se nota - é silenciosa - pois consegue camuflar-se bem com o seu ambiente e sobretudo isto é perigoso.
Quando começa a conversar com Adão e Eva, demonstra ser também um dialético requintado. Começa como se faz numa má bisbilhotice, com uma pergunta maliciosa: «É verdade que Deus disse: não comerás de nenhuma árvore do jardim?» (Gn 3, 1). A frase é falsa: na realidade, Deus ofereceu ao homem e à mulher todos os frutos do jardim, exceto os de uma árvore específica: a árvore da ciência do bem e do mal. Esta proibição não tem por objetivo impedir ao homem o uso da razão, como às vezes é mal interpretado, mas é uma medida de sabedoria. Como se dissesse: reconhece o limite, não te sintas senhor de tudo, pois a soberba é o princípio de todos os males. E assim, a história diz-nos que Deus coloca os progenitores como senhores e guardiães da criação, mas quer preservá-los da presunção da omnipotência, de se fazerem senhores do bem e do mal, que é uma tentação, uma péssima tentação até hoje. Esta é a insídia mais perigosa para o coração humano.
Como sabemos, Adão e Eva não conseguiram opor-se à tentação da serpente. A ideia de um Deus não realmente bom, que queria mantê-los submissos, insinuou-se na sua mente: eis o desabamento de tudo.
Com estas narrações, a Bíblia explica-nos que o mal não começa no homem de modo ruidoso, quando um ato já se manifestou, mas o mal tem início muito antes, quando começamos a entreter-nos com ele, a embalá-lo na imaginação, nos pensamentos, acabando por ser enganados pelas suas lisonjas. O homicídio de Abel não começou com uma pedra lançada, mas com o rancor que Caim guardou desventuradamente, levando-o a tornar-se um monstro dentro de si. Também neste caso, de nada servem as recomendações de Deus.
Prezados irmãos e irmãs, com o diabo não se dialoga. Nunca! Nunca se deve discutir. Jesus nunca dialogou com o diabo; expulsou-o. E no deserto, durante as tentações, não respondeu com o diálogo; retorquiu simplesmente com as palavras da Sagrada Escritura, com a Palavra de Deus. Atenção: o diabo é um sedutor. Nunca dialoguemos com ele, porque ele é mais esperto do que todos nós e far-nos-á pagar. Quando tiveres uma tentação, nunca dialogues. Fecha a porta, fecha a janela, fecha o coração. E assim, defendemo-nos desta sedução, porque o diabo é astuto, é inteligente. Procurou tentar Jesus com citações bíblicas, apresentando-se como grande teólogo. Atenção! Com o diabo não se dialoga, e com a tentação não devemos entreter-nos, não se dialoga. A tentação vem: fechemos a porta, guardemos o coração!
É preciso ser guardiões do próprio coração. Por isso não dialoguemos com o diabo. É a recomendação – preservar o coração - que encontramos em vários padres, nos santos. E devemos pedir esta graça de aprender a velar sobre o coração. É uma sabedoria conseguir guardar o coração. Que o Senhor nos ajude neste trabalho. Mas quem guarda o próprio coração, conserva um tesouro. Irmãos e irmãs, aprendamos a preservar o coração.
Papa Francisco
Audiência geral 27.12.23
«O recenseamento de toda a terra» (Lc 2, 1): este é o contexto em que nasce Jesus e no qual se detém o Evangelho. Podia limitar-se a uma rápida alusão, mas ao contrário delonga-se cuidadosamente nele. E assim faz surgir um grande contraste: enquanto o imperador conta os habitantes do mundo, Deus entra nele quase às escondidas; enquanto quem manda procura colocar-se entre os grandes da história, o Rei da história escolhe o caminho da pequenez. Nenhum dos poderosos se dá conta d’Ele; apenas alguns pastores, postos à margem da vida social.
Mas o recenseamento diz-nos mais outra coisa. Na Bíblia, não deixara boas recordações. O rei David, cedendo à tentação dos grandes números e a uma malsã pretensão de autossuficiência, cometera um grave pecado precisamente fazendo o recenseamento do povo. Queria saber a sua força recebendo, cerca de nove meses depois, o número de todos os que podiam manejar a espada (cf. 2 Sam 24, 1-9). O Senhor indignou-se e um flagelo feriu o povo. Diversamente nesta noite, o «Filho de David», Jesus, depois de passar nove meses no ventre de Maria, nasce em Belém, a cidade de David, e não pune o recenseamento, mas deixa-se humildemente registar: um, no meio de tantos. Não vemos um Deus irado que castiga, mas o Deus misericordioso que encarna, que entra, frágil, no mundo, precedido pelo anúncio «paz na terra aos homens» (Lc 2, 14). E, nesta noite, o nosso coração está em Belém, onde o Príncipe da paz continua a ser rejeitado pela lógica perdedora da guerra, com o estrondo das armas que ainda hoje O impede de encontrar alojamento no mundo (cf. Lc 2, 7).
Em suma, o recenseamento de toda a terra manifesta, por um lado, a trama demasiado humana que atravessa a história: a trama dum mundo que procura o poder e a força, a fama e a glória, onde tudo se mede através dos sucessos e dos resultados, dos cálculos e dos números. É a obsessão das façanhas. Mas ao mesmo tempo, no recenseamento, sobressai o caminho de Jesus, que vem procurar-nos através da encarnação. Não é o deus das façanhas, mas o Deus da encarnação. Não subverte do alto as injustiças com a força, mas de baixo com o amor; não irrompe com um poder sem limites, mas desce até aos nossos limites; não evita as nossas fragilidades, mas adota-as.
Nesta noite, irmãos e irmãs, podemos perguntar-nos: Em que Deus acreditamos? No Deus da encarnação ou no das façanhas? Sim, porque há o risco de viver o Natal tendo na cabeça uma ideia pagã de Deus, como se fosse um patrão poderoso que está no céu; um deus que se alia com o poder, o sucesso mundano e a idolatria do consumismo. Sempre volta a imagem falsa dum deus alheado e melindroso, que se comporta bem com os bons e se irrita com os maus; um deus feito à nossa imagem, útil apenas para nos resolver os problemas e preservar dos males. Mas o Deus Menino não usa a varinha mágica, não é o deus comercial do «tudo e já»; não nos salva carregando num botão, mas faz-Se próximo para mudar a realidade a partir de dentro. E todavia como está radicada em nós a ideia mundana dum deus distante e controlador, rígido e poderoso, que ajuda os seus a prevalecerem contra os outros! Muitas vezes, trazemos radicada em nós esta imagem; mas não é assim: Ele nasceu para todos, durante o recenseamento de toda a terra.
Olhemos, pois, para o «Deus vivo e verdadeiro» (1 Tes 1, 9): Ele que está para além de todo o cálculo humano e, no entanto, deixa-Se recensear pelos nossos registos; Ele que revoluciona a história, habitando nela; Ele que nos respeita até ao ponto de nos permitir rejeitá-Lo; Ele que apaga o pecado assumindo a responsabilidade pelo mesmo, que não tira a dor, mas transforma-a, que não nos tira os problemas da vida, mas dá às nossas vidas uma esperança maior do que os problemas. Deseja tanto abraçar as nossas existências que, sendo infinito, por nós Se faz finito; grande, faz-Se pequeno; sendo justo, habita as nossas injustiças. Irmãos e irmãs, aqui está a maravilha do Natal: não uma mistura de sentimentos adocicados e confortos mundanos, mas a inaudita ternura de Deus que salva o mundo encarnando-Se. Fixemos o Menino, olhemos para a sua manjedoura, para o presépio, que os anjos chamam «o sinal» (Lc 2, 12): realmente constitui o sinal revelador do rosto de Deus, que é compaixão e misericórdia, omnipotente sempre e só no amor. Avizinha-Se, torna-Se próximo, terno e compassivo… Este é o modo de ser de Deus: proximidade, compaixão, ternura.
Irmãs, irmãos, deixemo-nos surpreender por Ele Se ter feito carne (cf. Jo 1, 14). Carne! Uma palavra que evoca a nossa fragilidade e que o Evangelho utiliza para nos dizer como Deus entrou profundamente na nossa condição humana. Por que motivo foi Ele tão longe? – perguntamo-nos. Porque Lhe interessa tudo o que nos diz respeito, porque nos ama até ao ponto de nos considerar mais preciosos do que qualquer outra coisa. Irmão, irmã, para Deus, que mudou a história durante o recenseamento, tu não és um número, mas um rosto; o teu nome está escrito no seu coração. Entretanto, se olhares para o teu coração, para as façanhas que não sentes à altura, para o mundo que julga e não perdoa, poderás talvez viver mal este Natal, pensando que não caminhas justamente, provando um sentimento de inadequação e insatisfação pelas tuas fragilidades, quedas e problemas e pelos teus pecados. Mas hoje, por favor, deixa a iniciativa a Jesus, que te diz: «Por ti fiz-Me carne, por ti fiz-Me como tu». Por que motivo continuas na prisão das tuas tristezas? Como os pastores que deixaram os seus rebanhos, deixa o recinto das tuas melancolias e abraça a ternura do Deus Menino. Fá-lo sem máscaras, sem couraças, confia-Lhe as tuas canseiras, e Ele cuidará de ti (cf. Sal 55, 23): Ele, que Se fez carne, espera, não as tuas façanhas de sucesso, mas o teu coração aberto e confiado. E n’Ele descobrirás quem és: um filho amado de Deus, uma filha amada de Deus. Agora podes acreditar nisto, porque, nesta noite, o Senhor nasceu para iluminar a tua vida, e os olhos d’Ele cintilam de amor por ti. Sentimos dificuldade em crer nisto: que os olhos de Deus cintilam de amor por nós.
Sim, Cristo não olha para os números, mas para os rostos. E contudo quem é que olha para Ele, por entre as inúmeras coisas e as corridas loucas dum mundo sempre agitado e indiferente? Quem olha para Ele? Em Belém, enquanto muitas pessoas, preocupadas com o recenseamento, iam e vinham, enchiam as hospedarias e pousadas falando de tudo e de nada, houve alguns que estiveram junto de Jesus: Maria e José, os pastores e depois os magos. Aprendamos com eles. Ei-los com o olhar fixo em Jesus, com o coração voltado para Ele; não falam, mas adoram. Esta noite, irmãos e irmãs, é o tempo da adoração… Adorar.
A adoração é a forma de acolher a encarnação, porque é no silêncio que Jesus, Palavra do Pai, Se faz carne nas nossas vidas. Façamos nós também como se fez em Belém, que significa «casa do pão»: permaneçamos diante d’Ele, Pão de vida. Redescubramos a adoração, porque adorar não é perder tempo, mas permitir a Deus que habite o nosso tempo; é fazer florescer em nós a semente da encarnação, é colaborar na obra do Senhor, que, como o fermento, muda o mundo. Adorar é interceder, reparar, consentir a Deus que endireite a história. Um grande narrador de feitos épicos assim escrevia ao seu filho: «Ofereço-te a única coisa grande que se deve amar sobre a terra: o Santíssimo Sacramento. Lá encontrarás encanto, glória, honra, fidelidade e o verdadeiro caminho de todos os teus amores na terra» (J.R.R. Tolkien, Carta 43, março de 1941).
Irmãos e irmãs, nesta noite, o amor muda a história. Fazei, Senhor, que acreditemos no poder do vosso amor, tão diverso do poder do mundo. Senhor, fazei que, à semelhança de Maria, José, os pastores e os magos, nos estreitemos ao vosso redor para Vos adorar. Feitos por Vós mais semelhantes a Vós, poderemos testemunhar ao mundo a beleza do vosso rosto.
Catequeses. O presépio de Greccio, escola de sobriedade e de alegria
Há 800 anos, no Natal de 1223, São Francisco realizou um presépio vivo em Greccio. Enquanto se prepara ou se completa o presépio nas casas e em muitos outros lugares, é bom redescobrirmos as suas origens.
Como nasceu o presépio? Qual era a intenção de São Francisco? Ele dizia assim: «Gostaria de representar o Menino nascido em Belém e, de certo modo, ver com os olhos do corpo as dificuldades em que se encontrou por falta das coisas necessárias para um recém-nascido, como foi colocado numa manjedoura e como se deitava sobre o feno entre o boi e o pequeno burro» (TOMÁS DE CELANO, Vita prima, XXX, 84: FF 468). Francisco não quer realizar uma bela obra de arte, mas suscitar, através do presépio, a admiração pela extrema humildade do Senhor, pelas dificuldades que padeceu, por amor a nós, na pobre gruta de Belém. Com efeito, o biógrafo do Santo de Assis observa: «Naquela cena comovedora resplandece a simplicidade evangélica, louva-se a pobreza, recomenda-se a humildade. Greccio tornou-se como uma nova Belém» (ibid., 85: FF 46). Frisei uma palavra: admiração. E isto é importante. Se nós, cristãos, fitarmos o presépio como uma coisa bonita, como algo histórico, até religioso, e rezarmos, não é suficiente. Perante o mistério da encarnação do Verbo, diante do nascimento de Jesus, precisamos desta atitude religiosa da admiração. Se face aos mistérios eu não tiver esta admiração, a minha fé será simplesmente superficial; uma fé “informática”. Não o esqueçais!
E uma caraterística do presépio é que nasce como escola de sobriedade. E isto tem muito a dizer-nos. Com efeito, hoje o risco de perder o que conta na vida é grande e, paradoxalmente, aumenta precisamente no Natal - a mentalidade do Natal altera-se - imersos num consumismo que corrói o seu significado. O consumismo do Natal. É verdade, é bom desejar oferecer presentes, é um modo, mas esse frenesim de ir fazer compras chama a atenção para outro lado e não há aquela sobriedade do Natal. Olhemos para o presépio: o enlevo diante do presépio. Às vezes, não há espaço interior para a admiração, mas apenas para organizar as festividades, para fazer festa.
E o presépio nasce para nos restituir ao que conta: a Deus que vem habitar no meio de nós. Por isso é importante olhar para o presépio, porque nos ajuda a compreender o que conta e também as relações sociais de Jesus naquele momento, a família, José e Maria, e os entes queridos, os pastores. As pessoas antes das coisas. E muitas vezes colocamos as coisas à frente das pessoas. Isto não funciona!
Mas o presépio de Greccio, para além da sobriedade que manifesta, fala também da alegria, pois a alegria é algo diferente da diversão. Mas divertir-se não é mau, se for feito pelos bons caminhos; não é mau, é algo humano. Mas a alegria é ainda mais profunda, mais humana. E, às vezes, há a tentação de se divertir sem alegria; de se divertir fazendo barulho, mas sem alegria. É um pouco como a figura do palhaço, que ri, ri, faz rir, mas o coração está triste. A alegria é a raiz de uma boa diversão para o Natal. E sobre a alegria, as notícias daquela época dizem: «E chega o dia do júbilo, o tempo da exultação! [...] Francisco [...] está radiante [...]. O povo aflui e rejubila com uma alegria nunca antes experimentada [...]. Todos voltaram para casa cheios de uma alegria inefável» (Vita prima, XXX, 85-86: FF 469-470). A sobriedade, o assombro, leva-nos à alegria, à verdadeira alegria, não à alegria artificial.
Mas de onde derivava esta alegria natalícia? Não era certamente de ter trazido presentes para casa ou de ter vivido celebrações pomposas. Não, era a alegria que transborda do coração, quando se toca com a mão a proximidade de Jesus, a ternura de Deus, que não deixa sozinho, mas consola. Proximidade, ternura e compaixão: eis as três atitudes de Deus. E olhando para o presépio, rezando diante do presépio, poderemos sentir estas coisas do Senhor, que nos ajudam na vida de todos os dias.
Amados irmãos e irmãs, o presépio é como um pequeno poço do qual haurir a proximidade de Deus, nascente de esperança e de alegria. O presépio é como um Evangelho vivo, um Evangelho doméstico. É como o poço na Bíblia, é o lugar do encontro, onde apresentar a Jesus, como fizeram os pastores de Belém e os habitantes de Greccio, as expetativas e as preocupações da vida. Apresentar a Jesus as expetativas e as preocupações da vida. Se, diante do presépio, confiarmos a Jesus o que temos no coração, também nós experimentaremos «uma alegria imensa» (Mt 2, 10), uma alegria que vem precisamente da contemplação, do espírito de enlevo com que vou contemplar estes mistérios. Aproximemo-nos do presépio. Que cada um contemple e que o coração sinta algo.
Papa Francisco
Audiência geral 20.12.23
Imagem: papa Francisco em Greccio em 2016. Foto L'Osservatore Romano
Catequeses. A paixão pela evangelização: o zelo apostólico do crente. 30. Effatà, abre-te Igreja!
Hoje concluímos o ciclo dedicado ao zelo apostólico, no qual nos deixamos inspirar pela Palavra de Deus para ajudar a cultivar a paixão pelo anúncio do Evangelho. E isto diz respeito a cada cristão. Pensemos no Batismo, quando o celebrante diz, tocando os ouvidos e os lábios do batizado: «O Senhor Jesus, que fez ouvir os surdos e falar os mudos, te conceda ouvir depressa a sua palavra e professar a tua fé».
E ouvimos o prodígio de Jesus. O evangelista Marcos descreve minuciosamente o lugar onde ele ocorreu: «Rumo ao mar da Galileia...» (7, 31). O que têm em comum estes territórios? São habitados predominantemente por pagãos. Não eram territórios habitados por judeus, mas sobretudo por pagãos. Os discípulos saíram com Jesus, que é capaz de abrir os ouvidos e a boca, ou seja, o fenómeno da mudez e da surdez, que na Bíblia é também metafórico e designa o fechamento às exortações de Deus. Existe uma surdez física, mas na Bíblia quem é surdo à palavra de Deus é mudo, não comunica a palavra de Deus.
Há também outro sinal indicativo: o Evangelho cita a palavra decisiva de Jesus em aramaico, effatá, que significa “abre-te”, que se abram os ouvidos, que se abra a língua, é um convite dirigido não tanto ao surdo-mudo, que não podia ouvi-lo, mas precisamente aos discípulos daquela época e de todos os tempos. Também nós, que recebemos o effatá do Espírito no Batismo, somos chamados a abrir-nos. “Abre-te”, diz Jesus a cada crente e à sua Igreja: abre-te porque a mensagem do Evangelho precisa de ti para ser testemunhado e anunciado! E isto faz-nos pensar também na atitude do cristão: o cristão deve estar aberto à Palavra de Deus e ao serviço do próximo. Os cristãos fechados acabam mal, sempre, porque não são cristãos, são ideólogos, ideólogos do fechamento. O cristão deve estar aberto ao anúncio da Palavra, ao acolhimento dos irmãos e irmãs. E por isso, este effatá, este “abre-te”, é um convite a todos nós para nos abrirmos.
Já no final dos Evangelhos, Jesus recomenda-nos o seu desejo missionário: ide além, ide apascentar, ide anunciar o Evangelho.
Irmãos, irmãs, como batizados, sintamo-nos todos chamados a testemunhar e a anunciar Jesus. E, como Igreja, peçamos a graça de ser capazes de realizar uma conversão pastoral e missionária. Nas margens do mar da Galileia, o Senhor perguntou a Pedro se o amava e depois pediu-lhe para apascentar as suas ovelhas (cf. vv. 15-17). Interroguemo-nos também nós, que cada um de nós faça esta pergunta, questionemo-nos: amo verdadeiramente o Senhor, a ponto de o querer anunciar? Desejo tornar-me sua testemunha ou contento-me com ser seu discípulo? Tomo a peito as pessoas que encontro, levo-as a Jesus na oração? Desejo fazer algo para que a alegria do Evangelho, que transformou a minha vida, torne a vida deles mais bela? Pensemos nisto, reflitamos sobre estas perguntas e vamos em frente com o nosso testemunho.
Papa Francisco
Audiência Geral 13.12.23
Catequeses. A paixão pela evangelização: o zelo apostólico do crente. 29. O anuncio está no Espírito Santo
Nas catequeses passadas vimos que o anúncio do Evangelho é alegria, é para todos e deve visar o hoje. Agora descubramos uma última caraterística essencial: é preciso que o anúncio seja feito no Espírito Santo. Com efeito, para “comunicar Deus” não são suficientes a jubilosa credibilidade do testemunho, a universalidade do anúncio e a atualidade da mensagem. Sem o Espírito Santo, todo o zelo é vão e falsamente apostólico: seria apenas nosso, não daria fruto.
Na Evangelii gaudium recordei que «Jesus é o primeiro e o maior evangelizador»; que «em qualquer forma de evangelização o primado é sempre de Deus», que «quis chamar-nos a colaborar com Ele e estimular-nos com a força do seu Espírito» (n. 12). Eis o primado do Espírito Santo! Por isso, o Senhor compara o dinamismo do Reino de Deus com «um homem que lança a semente na terra; quer durma quer esteja acordado, de noite ou de dia, a semente germina e cresce; como, ele próprio não sabe» (Mc 4, 26-27). O Espírito é o protagonista, precede sempre os missionários e faz germinar o fruto. Esta consciência consola-nos muito! E ajuda-nos a determinar outra, igualmente decisiva: ou seja, que no seu zelo apostólico a Igreja não anuncia a si mesma, mas uma graça, um dom, e o Espírito Santo é precisamente o Dom de Deus, como disse Jesus à samaritana (cf. Jo 4, 10).
No entanto, o primado do Espírito não deve induzir-nos à indolência. A confiança não justifica o desinteresse. A vitalidade da semente que cresce por si só não autoriza os agricultores a descuidar o campo. Ao dar as últimas recomendações, antes de subir ao céu, Jesus disse: «Recebereis a força do Espírito Santo, que descerá sobre vós e sereis minhas testemunhas [...] até aos confins da terra» (At 1, 8). O Senhor não nos deixou dispensas de teologia, nem um manual de pastoral a aplicar, mas o Espírito Santo, que suscita a missão. E o empreendimento corajoso que o Espírito infunde leva-nos a imitar o seu estilo, que tem sempre duas caraterísticas: criatividade e simplicidade.
Criatividade, para anunciar Jesus com alegria, a todos e hoje. Nesta nossa época, que não ajuda a ter um olhar religioso sobre a vida, e na qual em vários lugares o anúncio se tornou mais difícil, cansativo e aparentemente infrutífero, pode surgir a tentação de desistir do serviço pastoral. Talvez nos refugiemos em zonas de segurança, como a repetição habitual de coisas que sempre fazemos, ou nos apelos aliciadores de uma espiritualidade intimista, ou ainda num sentido mal compreendido da centralidade da liturgia. São tentações que se disfarçam de fidelidade à tradição, mas muitas vezes, mais do que respostas ao Espírito, são reações às insatisfações pessoais. Pelo contrário, a criatividade pastoral, a audácia no Espírito, o ardor do seu fogo missionário, é prova de fidelidade a Ele. Por isso, escrevi que «Jesus Cristo pode também romper os esquemas tediosos em que pretendemos aprisioná-lo e surpreende-nos com a sua constante criatividade divina. Sempre que procuramos voltar à fonte e recuperar o frescor original do Evangelho, surgem novos caminhos, métodos criativos, outras formas de expressão, sinais mais eloquentes, palavras repletas de renovado significado para o mundo atual» (Evangelii gaudium, 11).
Portanto, criatividade; e depois simplicidade, precisamente porque o Espírito nos leva à fonte, ao “primeiro anúncio”. Com efeito, é «o fogo do Espírito que [...] nos faz acreditar em Jesus Cristo que, com a sua morte e ressurreição, nos revela e comunica a misericórdia infinita do Pai» (ibid., 164). Este é o primeiro anúncio, que «deve ocupar o centro da atividade evangelizadora e de todas as intenções de renovação eclesial»; para repetir: «Jesus Cristo ama-te, deu a sua vida para te salvar e agora está vivo ao teu lado todos os dias, para te iluminar, fortalecer e libertar» (ibid.).
Irmãos e irmãs, deixemo-nos conquistar pelo Espírito, invocando-o todos os dias: que Ele seja o princípio do nosso ser e do nosso agir; que Ele esteja no início de cada atividade, encontro, reunião e anúncio. Ele vivifica e rejuvenesce a Igreja: com Ele não devemos ter medo, porque Ele, que é harmonia, mantém sempre unidas a criatividade e a simplicidade, suscita a comunhão e envia em missão, abre à diversidade e reconduz à unidade. Ele é a nossa força, o sopro do nosso anúncio, a nascente do zelo apostólico. Vinde, Espírito Santo!
Papa Francisco
Audiência geral 6.12.23
Catequeses. A paixão pela evangelização: o zelo apostólico do crente. 28. O anuncio é para hoje
Da última vez vimos que o anúncio cristão é alegria e é para todos; hoje vejamos um terceiro aspeto: é para hoje.
Quase sempre se ouve falar mal do dia de hoje. Certamente, com as guerras, as mudanças climáticas, a injustiça planetária e as migrações, as crises da família e da esperança, não faltam motivos de preocupação. De modo geral, a atualidade parece ser habitada por uma cultura que coloca o indivíduo acima de tudo e a tecnologia no centro de tudo, com a sua capacidade de resolver muitos problemas e os seus gigantescos avanços em tantos contextos. Mas, ao mesmo tempo, esta cultura do progresso técnico-individual leva à afirmação de uma liberdade que não quer dar limites a si própria e é indiferente aos que ficam para trás. E assim entrega as grandes aspirações humanas à lógica muitas vezes voraz da economia, com uma visão da vida que descarta os que não produzem e se esforça por olhar para além do imanente. Poderíamos até dizer que nos encontramos na primeira civilização da história que procura organizar globalmente uma sociedade humana sem a presença de Deus, concentrando-se nas grandes cidades que permanecem horizontais, mesmo com arranha-céus vertiginosos.
Vem-nos à mente a história da cidade de Babel e da sua torre (cf. Gn 11, 1-9). Nela, narra-se um projeto social que sacrifica toda a individualidade à eficácia do coletivo. A humanidade fala uma só língua - poderíamos dizer que tem um “pensamento único” - é como se estivesse envolvida numa espécie de feitiço geral que absorve a singularidade de cada um numa bolha de uniformidade. Então Deus confunde as línguas, ou seja, restabelece as diferenças, recria as condições para que a singularidade se desenvolva, reaviva o múltiplo onde a ideologia gostaria de impor o único. O Senhor também distrai a humanidade do seu delírio de omnipotência: «Criemos um nome para nós», dizem os exaltados habitantes de Babel (v. 4), que querem chegar ao céu, para se colocar no lugar de Deus. Mas estas são ambições perigosas, alienantes, destrutivas, e o Senhor, confundindo estas expetativas, protege a humanidade, impedindo uma catástrofe anunciada. Esta história parece realmente atual: ainda hoje, a coesão, em vez da fraternidade e da paz, assenta muitas vezes na ambição, no nacionalismo, na homologação e nas estruturas técnico-económicas que inculcam a persuasão de que Deus é insignificante e inútil: não tanto porque se procura mais conhecimento, mas sobretudo porque se quer mais poder. É uma tentação que permeia os grandes desafios da cultura atual.
Na Evangelii gaudium procurei descrever alguns deles (cf. nn. 52-75), mas sobretudo pedi «uma evangelização que ilumine novas formas de relacionamento com Deus, com os outros, com o ambiente e que suscite valores fundamentais. É preciso chegar onde se formam as novas narrativas e paradigmas, atingir os núcleos mais profundos da alma das cidades com a Palavra de Jesus» (n. 74). Em síntese, só se pode anunciar Jesus habitando a cultura do próprio tempo; e tendo sempre no coração as palavras do apóstolo Paulo sobre o hoje: «Eis, pois, o tempo favorável, eis agora o dia da salvação!» (2 Cor 6, 2). Por isso, não é necessário contrastar o hoje com visões alternativas do passado. Também não basta reafirmar convicções religiosas adquiridas que, embora verdadeiras, se tornam abstratas com o passar do tempo. Uma verdade não se torna mais credível porque se eleva a voz ao dizê-la, mas porque é testemunhada com a vida.
O zelo apostólico nunca é a mera repetição de um estilo adquirido, mas o testemunho de que o Evangelho está vivo para nós hoje. Conscientes disto, olhemos, pois, para a nossa época e para a nossa cultura como dom. São nossas, e evangelizá-las não significa julgá-las de longe, nem sequer estar na varanda a gritar o nome de Jesus, mas sair para as ruas, ir aos lugares onde as pessoas vivem, frequentar os espaços onde as pessoas sofrem, trabalham, estudam e refletem, habitar as encruzilhadas onde os seres humanos partilham o que faz sentido para a sua vida. Significa ser, como Igreja, «fermento de diálogo, de encontro, de unidade. Afinal, as nossas próprias formulações de fé são o resultado de um diálogo e de um encontro entre culturas, comunidades e instâncias diferentes. Não devemos ter medo do diálogo: pelo contrário, é precisamente o confronto e a crítica que nos ajudam a evitar que a teologia se transforme em ideologia» (Discurso na V Conferência nacional da Igreja italiana, Florença, 10 de novembro de 2015).
É necessário estar nas encruzilhadas do hoje. Abandoná-las empobreceria o Evangelho e reduziria a Igreja a uma seita. Frequentá-las, pelo contrário, ajuda-nos, a nós cristãos, a compreender de forma renovada as razões da nossa esperança, a extrair e a partilhar do tesouro da fé «coisas novas e coisas velhas» (Mt 13, 52). Em suma, mais do que querer converter o mundo de hoje, é preciso converter a pastoral para que ela encarne melhor o Evangelho no hoje (cf. Evangelii gaudium, 25). Façamos nosso o desejo de Jesus: ajudar os companheiros de viagem a não perder o desejo de Deus, a abrir-lhe o coração e a encontrar o Único que, hoje e sempre, dá a paz e a alegria ao homem.
Papa Francisco
Audiência geralk 01.12.23
Catequeses. A paixão pela evangelização: o zelo apostólico do crente. 27. O anuncio é para todos
Depois de ter visto, na última vez, que o anúncio cristão é alegria, meditemos hoje sobre um segundo aspeto: é para todos, o anúncio cristão é alegria para todos! Quando nos encontramos verdadeiramente com o Senhor Jesus, a maravilha deste encontro invade a nossa vida e pede para ser levada além de nós mesmos. É isso que Ele deseja, que o seu Evangelho seja para todos. Com efeito, nele existe um “poder humanizador”, um cumprimento de vida destinada a cada homem e mulher, porque Cristo nasceu, morreu e ressuscitou para todos. Para todos: sem excluir ninguém!
Na Evangelii gaudium lê-se: «Todos têm o direito de receber o Evangelho. Os cristãos têm o dever de o anunciar, sem excluir ninguém, e não como quem impõe uma nova obrigação, mas como quem partilha uma alegria, indica um horizonte estupendo, oferece um banquete apetecível. A Igreja não cresce por proselitismo, mas “por atração”» (n. 14). Irmãos e irmãs, sintamo-nos ao serviço do destino universal do Evangelho, que é para todos; e distingamo-nos pela capacidade de sair de nós próprios - para ser verdadeiro, o anúncio deve sair do próprio egoísmo - e ter também a capacidade de superar todos os confins. Os cristãos reúnem-se mais no adro do que na sacristia, e vão «pelas praças e pelas ruas da cidade» (Lc 14, 21). Devem ser abertos e expansivos, os cristãos devem ser “extrovertidos”, e este seu caráter vem de Jesus, que fez da sua presença no mundo um caminho contínuo, em vista de alcançar todos, até aprendendo de alguns dos seus encontros.
Neste sentido, o Evangelho narra o encontro surpreendente de Jesus com uma mulher estrangeira, cananeia, que lhe suplica que cure a filha doente (cf. Mt 15, 21-28). Jesus recusa, dizendo que só foi enviado «às ovelhas tresmalhadas da casa de Israel» e que «não é bom pegar no pão dos filhos e atirá-lo aos cachorrinhos» (vv. 24.26). Mas a mulher, com a insistência típica dos simples, responde que até «os cachorrinhos comem as migalhas que caem da mesa dos seus donos» (v. 27). Jesus fica impressionado e diz-lhe: «Mulher, grande é a tua fé! Faça-se como desejas» (v. 28). O encontro com esta mulher tem algo de único. Não só alguém faz com que Jesus mude de ideia, mas trata-se de uma mulher estrangeira e pagã; mas o próprio Senhor encontra a confirmação de que a sua pregação não se deve limitar ao povo a que pertence, mas abrir-se a todos.
A Bíblia mostra-nos que quando Deus chama uma pessoa e faz uma aliança com alguns, o critério é sempre este: escolhe alguém para alcançar outros, este é o critério de Deus, da chamada de Deus. Todos os amigos do Senhor experimentaram a beleza, mas também a responsabilidade e o peso de ser “escolhidos” por Ele. E todos sentiram o desânimo perante as próprias debilidades ou a perda das suas seguranças. Mas talvez a maior tentação consista em considerar a chamada recebida um privilégio, por favor, não, a chamada não é um privilégio, nunca! Não podemos dizer que somos privilegiados em relação aos outros, não! A chamada é para um serviço. E Deus escolhe alguém para amar todos, para ir ao encontro de todos!
Também para evitar a tentação de identificar o cristianismo com uma cultura, com uma etnia, com um sistema. Mas deste modo perde a sua natureza verdadeiramente católica, isto é, para todos, universal: não é um grupinho de eleitos de primeira classe. Não nos esqueçamos: Deus escolhe alguns para amar todos. Este horizonte de universalidade. O Evangelho não é só para mim, é para todos, não o esqueçamos. Obrigado!
Papa Francisco
22.11.23
Audiência geral
Catequeses. A paixão pela evangelização: o zelo apostólico do crente. 26. O anuncio é alegria
Depois de ter encontrado várias testemunhas do anúncio do Evangelho, proponho-me resumir este ciclo de catequeses sobre o zelo apostólico em quatro pontos, inspirados na Exortação apostólica Evangelii gaudium, que este mês completa dez anos. O primeiro ponto que hoje analisamos, o primeiro dos quatro, não pode deixar de se referir à atitude de que depende a substância do gesto evangelizador: a alegria. Como ouvimos nas palavras que o anjo dirigiu aos pastores, a mensagem cristã é o anúncio de «uma grande alegria» (Lc 2, 10). E a razão? Uma boa notícia, uma surpresa, um acontecimento agradável? Muito mais, uma Pessoa: Jesus! Jesus é a alegria! Ele é o Deus que se fez homem e que veio ao nosso encontro! Portanto, estimados irmãos e irmãs, a questão não é se o anunciar, mas como o anunciar, e este “como” é a alegria. Ou anunciamos Jesus com alegria, ou não o anunciamos, porque outra maneira de o anunciar não é capaz de comunicar a verdadeira realidade de Jesus.
Eis porque o cristão descontente, o cristão triste, o cristão insatisfeito ou, pior ainda, ressentido e rancoroso não é credível. Falará de Jesus, mas ninguém acreditará nele! Uma pessoa disse-me certa vez, falando destes cristãos: “Mas são cristãos com cara de bacalhau!”, ou seja, não exprimem nada, são assim, e a alegria é essencial. É essencial vigiar sobre os nossos sentimentos. A evangelização atua a gratuidade, porque vem da plenitude, não da pressão. E quando se pratica a evangelização - quer-se fazê-la, mas não assim - com base em ideologias, isso não é evangelizar, isso não é o Evangelho. O Evangelho não é uma ideologia: o Evangelho é um anúncio, um anúncio de alegria. As ideologias são frias, todas. O Evangelho tem o calor da alegria. As ideologias não sabem sorrir, o Evangelho é um sorriso, faz-nos sorrir porque toca a nossa alma com a Boa Nova.
O nascimento de Jesus, tanto na história como na vida, é o princípio da alegria: pensemos no que aconteceu aos discípulos de Emaús, era tanta a alegria que não podiam acreditar, e aos outros, depois, aos discípulos todos juntos, quando Jesus vai ao Cenáculo, era tanta a alegria que não podiam acreditar (cf. Lc 24, 13-35). A alegria de ter Jesus ressuscitado. O encontro com Jesus traz-nos sempre alegria, e se isto não nos acontece, não é um verdadeiro encontro com Jesus.
E aquilo que Jesus faz com os discípulos diz-nos que os primeiros que devem ser evangelizados são os discípulos, os primeiros que devem ser evangelizados somos nós, cristãos: somos nós. E isto é muito importante!
Com efeito, imersos no clima frenético e confuso de hoje, também nós poderíamos encontrar-nos a viver a fé com um leve sentido de renúncia, persuadidos de que para o Evangelho já não há escuta e que não vale mais a pena esforçar-se para o anunciar. Poderíamos até ser tentados pela ideia de deixar que “os outros” sigam o próprio caminho. Pelo contrário, precisamente este é o momento de voltar ao Evangelho para descobrir que Cristo «é sempre jovem e fonte constante de novidades» (Evangelii gaudium, 11).
Assim, como os dois de Emaús, volta-se à vida de todos os dias com o ímpeto de quem encontrou um tesouro: aqueles dois eram jubilosos, porque tinham encontrado Jesus, e isto mudou a vida deles. E descobre-se que a humanidade está repleta de irmãos e irmãs que aguardam uma palavra de esperança. O Evangelho é esperado até hoje: o homem de hoje é como o homem de todos os tempos, precisa dele, inclusive a civilização da incredulidade programada e da secularidade institucionalizada; aliás, sobretudo a sociedade que deixa vazios os espaços do sentido religioso, precisa de Jesus. Este é o momento favorável para o anúncio de Jesus. Por isso, gostaria de dizer novamente a todos: «A alegria do Evangelho enche o coração e a vida inteira daqueles que se encontram com Jesus. Quantos se deixam salvar por Ele são libertados do pecado, da tristeza, do vazio interior, do isolamento. Com Jesus Cristo, a alegria nasce e renasce sem cessar» (ibid., 1). Não nos esqueçamos disto. E se algum de nós não sentir esta alegria, que se pergunte se encontrou Jesus. Uma alegria interior! O Evangelho vai pelo caminho da alegria, sempre, é o grande anúncio. Convido cada cristão, em qualquer lugar e situação em que esteja, a renovar hoje o seu encontro com Jesus Cristo. Que cada um de nós, hoje, dedique um pouco de tempo para pensar: “Jesus, Tu estás dentro de mim: quero encontrar-te todos os dias. Tu és uma Pessoa, não uma ideia. Tu és um companheiro de caminho, não um programa. Tu és o Amor que resolve tantos problemas. Tu és o início da evangelização. Tu, Jesus, és a fonte da alegria”. Amém!
Papa Francisco
Audiência geral 15.11.23
Catequeses. A paixão pela evangelização: o zelo apostólico do crente. 25. Madeleine Delbrêl. A alegria da fé entre os não crentes.
Entre as numerosas testemunhas da paixão pelo anúncio do Evangelho, aqueles evangelizadores apaixonados, apresento hoje a figura de uma francesa do século XX, a venerável serva de Deus Madeleine Delbrêl. Nascida em 1904 e falecida em 1964, foi assistente social, escritora e mística, e viveu por mais de trinta anos na periferia pobre e operária de Paris. Deslumbrada pelo encontro com o Senhor, escreveu: «Uma vez que conhecemos a palavra de Deus, não temos o direito de não a receber; quando a recebemos, não temos o direito de não a deixar encarnar-se em nós; quando se encarna em nós, não temos o direito de a conservar para nós: a partir daquele momento, pertencemos àqueles que a esperam» (La santità della gente comune, Milão 2020, 71). É bonito: é bonito o que ela escreveu...
Depois de uma adolescência vivida no agnosticismo – não acreditava em nada – com cerca de 20 anos Madeleine encontra o Senhor, impressionada pelo testemunho de alguns amigos crentes. Então põe-se à procura de Deus, dando voz a uma sede profunda que sentia dentro de si, e chega a compreender que o «vazio que nela gritava a sua angústia» era Deus que a procurava (Abbagliata da Dio. Corrispondenza 1910-1941, Milão 2007, 96). A alegria da fé leva-a a amadurecer uma opção de vida inteiramente dedicada a Deus, no coração da Igreja e no coração do mundo, simplesmente compartilhando em fraternidade a vida das “pessoas de rua”. Poeticamente, assim se dirigia a Jesus: «Para estar contigo no teu caminho, é preciso ir, até quando a nossa preguiça nos suplica que fiquemos. Escolheste-nos para estar num estranho equilíbrio, um equilíbrio que só pode ser estabelecido e mantido em movimento, só num impulso. Um pouco como uma bicicleta, que não consegue ficar de pé sem estar em movimento [...] Só podemos estar de pé avançando, movendo-nos, num ímpeto de caridade». É aquilo a que ela chama a “espiritualidade da bicicleta” (Umorismo nell’Amore. Meditazioni e poesie, Milão 2011, 56). Só a caminho, correndo, vivemos no equilíbrio da fé, que é um desequilíbrio, mas é assim: como a bicicleta. Se pararmos, ela não fica em pé.
Madeleine tinha o coração continuamente em saída e deixava-se interpelar pelo clamor dos pobres. Sentia que o Deus vivo do Evangelho devia arder dentro de nós, até levarmos o seu nome àqueles que ainda não o encontraram. Neste espírito, diante das agitações do mundo e do clamor dos pobres, Madeleine sente-se chamada a «viver o amor de Jesus inteiramente e ao pé da letra, desde o óleo do bom Samaritano até ao vinagre do Calvário, oferecendo-lhe assim amor por amor [...] para que, amando-o sem reservas e deixando-se amar até ao fim, os dois grandes mandamentos da caridade se encarnem em nós, tornando-se um só» (La vocation de la charité, 1, Œuvres complètes XIII, Bruyères-le-Châtel, 138-139).
No final, Madeleine ensina-nos mais uma coisa: que evangelizando somos evangelizados: evangelizando, somos evangelizados. Por isso, inspirando-se em São Paulo, dizia: «Ai de mim, se a evangelização não me evangelizar!». Evangelizando, evangelizamo-nos a nós próprios. E esta é uma boa doutrina!
Olhando para esta testemunha do Evangelho, também nós aprendemos que, em cada situação e circunstância pessoal ou social da nossa vida, o Senhor está presente e chama-nos a habitar o nosso tempo, a compartilhar a vida dos outros, a misturar-nos com as alegrias e as dores do mundo. Em particular, ensina-nos que até os ambientes secularizados nos são úteis para a conversão, pois a interação com os não-crentes estimula o crente a uma contínua revisão do seu modo de crer e a redescobrir a fé na sua essencialidade (cf. Noi delle strade, Milão 1988, 268 s.).
Que Madeleine Delbrêl nos ensine a viver esta fé “em movimento”, por assim dizer, esta fé fecunda que faz de cada ato de fé um ato de caridade no anúncio do Evangelho. Obrigado!
Papa Francisco
Audiência geral 8.11.23
Catequeses. A paixão pela evangelização: o zelo apostólico do crente. 24. Os Santos Cirilo e Metódio, apóstolos dos Eslavos
Hoje falar-vos-ei de dois irmãos muito famosos no Oriente, a ponto de serem chamados “os apóstolos dos Eslavos”: os Santos Cirilo e Metódio. Nascidos na Grécia no século IX, numa família aristocrática, renunciam à carreira política para se dedicar à vida monástica. Mas o seu sonho de uma existência retirada dura pouco. São enviados como missionários para a Grande Morávia, que naquela época abrangia vários povos, já parcialmente evangelizados, mas entre os quais subsistiam muitos costumes e tradições pagãs. O seu príncipe pediu um mestre que explicasse a fé cristã na língua deles.
Portanto, a primeira tarefa de Cirilo e Metódio consiste em aprofundar o estudo da cultura daqueles povos. Sempre aquele refrão: a fé deve ser inculturada e a cultura deve ser evangelizada. Inculturação da fé, evangelização da cultura, sempre! Cirilo pergunta se têm um alfabeto; dizem-lhe que não. E ele responde: “Quem pode escrever um discurso sobre a água?”. Com efeito, para anunciar o Evangelho e para pregar, era necessário um instrumento próprio, adequado, específico. Assim, inventa o alfabeto glagolítico. Traduz a Bíblia e os textos litúrgicos. As pessoas sentem que aquela fé cristã já não é “estrangeira”, mas torna-se a fé delas, falada na língua materna. Pensai: dois monges gregos que oferecem um alfabeto aos Eslavos. Foi esta abertura de coração que enraizou o Evangelho entre eles. Estes dois não tinham medo, eram corajosos!
No entanto, depressa surgem oposições de alguns Latinos, que se veem privados do monopólio da pregação entre os Eslavos, aquela luta dentro da Igreja, sempre assim! A sua objeção é religiosa, mas apenas na aparência: Deus só pode ser louvado – dizem – nas três línguas escritas na cruz, o hebraico, o grego e o latim. Tinham a mentalidade fechada para defender a própria autonomia. Mas Cirilo responde com veemência: Deus quer que cada povo o louve na própria língua. Com o irmão Metódio, dirige um apelo ao Papa, que aprova os seus textos litúrgicos em língua eslava, manda colocá-los sobre o altar da igreja de Santa Maria Maior e, com eles, canta os louvores do Senhor segundo aqueles livros. Cirilo falece poucos dias depois, e as suas relíquias ainda são veneradas aqui em Roma, na Basílica de São Clemente. Metódio, ao contrário, é ordenado bispo e enviado para os territórios dos Eslavos. Aqui deverá sofrer muito, até será preso, mas irmãos e irmãs, sabemos que a Palavra de Deus não é acorrentada e que se propaga entre aqueles povos.
Olhando para o testemunho destes dois evangelizadores, que São João Paulo II quis como copadroeiros da Europa e sobre os quais escreveu a Encíclica Slavorum Apostoli, vejamos três aspetos importantes.
Em primeiro lugar, a unidade: os Gregos, o Papa, os Eslavos: naquela época na Europa havia uma cristandade não dividida, que colaborava para evangelizar.
Um segundo aspeto importante é a inculturação, sobre a qual eu já disse algo antes: evangelizar a cultura, e a inculturação mostra que evangelização e cultura estão intimamente ligadas. Não se pode pregar um Evangelho de modo abstrato, destilado, não: o Evangelho deve ser inculturado e é também expressão da cultura.
Um último aspeto, a liberdade. Na pregação, é necessária a liberdade, mas a liberdade precisa sempre da coragem; uma pessoa é livre quando é mais corajosa e não se deixa acorrentar por tantas coisas que lhe tiram a liberdade!
Irmãos e irmãs, peçamos aos Santos Cirilo e Metódio, apóstolos dos Eslavos, para ser instrumentos de “liberdade na caridade” para os outros. Ser criativos, constantes e humildes, com a oração e com o serviço.
Papa Francisco
Audiência geral 25.10.23
Catequeses. A paixão pela evangelização: o zelo apostólico do crente. 23. São Charles de Foucauld, coração pulsante de caridade na vida oculta
Prossigamos o nosso encontro com alguns cristãos, testemunhas ricas de zelo no anúncio do Evangelho. O zelo apostólico, o zelo pelo anúncio: passamos em revista alguns cristãos que foram exemplos deste zelo apostólico. Hoje gostaria de vos falar de um homem que fez de Jesus e dos irmãos mais pobres a paixão da própria vida. Refiro-me a São Carlos de Foucauld que, «partindo da sua intensa experiência de Deus, percorreu um caminho de transformação até se sentir irmão de todos» (Carta Encíclica Fratelli tutti, 286).
E qual era o “segredo” de Carlos de Foucauld, da sua vida? Depois de ter vivido uma juventude longe de Deus, sem acreditar em nada, a não ser na busca desordenada do prazer, ele confia-o a um amigo não crente, a quem, depois de se ter convertido aceitando a graça do perdão de Deus na Confissão, revela a razão da sua vida. Escreve: «Perdi o meu coração por Jesus de Nazaré».1 Assim, o irmão Carlos recorda-nos que o primeiro passo para evangelizar é ter Jesus dentro do coração, é “perder a cabeça” por Ele. Se isso não acontecer, dificilmente conseguiremos mostrá-lo com a vida. Ao contrário, corremos o risco de falar de nós próprios, do nosso grupo de pertença, de uma moral ou, pior ainda, de um conjunto de regras, mas não de Jesus, do seu amor, da sua misericórdia. Vejo isto nalguns movimentos novos que surgem: falam da sua visão da humanidade, falam da sua espiritualidade e sentem-se um caminho novo... Mas por que não falais de Jesus? Falam de muitas coisas, de organização, de caminhos espirituais, mas não sabem falar de Jesus. Penso que hoje seria bom que cada um de nós se perguntasse: tenho Jesus no centro do coração? Perdi um pouco a cabeça por Jesus?
Carlos sim, a ponto de passar da atração por Jesus à imitação de Jesus. Aconselhado pelo seu confessor, vai à Terra Santa para visitar os lugares onde o Senhor viveu e para caminhar onde o Mestre caminhou. Em particular, em Nazaré compreende que deve formar-se na escola de Cristo. Vive uma relação intensa com o Senhor, passa longas horas a ler os Evangelhos e sente-se como o seu irmão mais novo. E, conhecendo Jesus, brota nele o desejo de o dar a conhecer. Acontece sempre assim: à medida que cada um de nós conhece mais Jesus, nasce o desejo de o dar a conhecer, de compartilhar este tesouro. Comentando a narração da visita de Nossa Senhora a Santa Isabel, leva-o a dizer: «Ofereci-me ao mundo... levai-me ao mundo!». Sim, mas como o fazer? Como Maria, no mistério da Visitação: «Em silêncio, com o exemplo, com a vida».[2] Com a vida, porque «toda a nossa existência, escreve o irmão Carlos, deve gritar o Evangelho».[3] E muitas vezes a nossa existência grita mundanidade, grita tantas coisas estúpidas, coisas estranhas, e ele diz: “Não, toda a nossa existência deve gritar o Evangelho”.
Então, ele decide estabelecer-se em regiões longínquas para gritar o Evangelho no silêncio, vivendo no espírito de Nazaré, em pobreza e escondimento. Vai para o deserto do Sahara, entre os não-cristãos, e chega lá como amigo e irmão, levando a mansidão de Jesus-Eucaristia. Carlos deixa Jesus agir silenciosamente, convencido de que a “vida eucarística” evangeliza. Sim, acredita que Cristo é o primeiro evangelizador. Assim, permanece em oração aos pés de Jesus, diante do tabernáculo, aproximadamente dez horas por dia, convicto de que aí reside a força evangelizadora e sentindo que Jesus o aproxima de numerosos irmãos distantes. E nós, pergunto-me, acreditamos na força da Eucaristia? O nosso ir ao encontro dos outros, o nosso serviço, encontra aí, na adoração, o seu início e o seu cumprimento? Estou convencido de que perdemos o sentido da adoração; devemos recuperá-lo, a começar por nós, consagrados, bispos, sacerdotes, religiosas e todos os consagrados. “Perder” tempo diante do tabernáculo, recuperar o sentido da adoração.
Carlos de Foucauld escreveu: «Cada cristão é apóstolo»,[4] recordando a um amigo que «ao lado dos sacerdotes, são necessários leigos que vejam o que o presbítero não vê, que evangelizem com proximidade de caridade, com bondade para com todos, com afeto sempre pronto a entregar-se».[5] Leigos santos, não carreiristas. E aqueles leigos, aquele leigo, aquela leiga que se apaixonaram por Jesus levam o sacerdote a compreender que não é um funcionário, que ele é um mediador, um sacerdote. Quanto precisamos nós, sacerdotes, de ter ao nosso lado estes leigos que acreditam seriamente e que, com o seu testemunho, nos ensinam o caminho. Com esta experiência, Carlos de Foucauld antecipa os tempos do Concílio Vaticano II, intui a importância dos leigos e compreende que o anúncio do Evangelho compete a todo o povo de Deus. Mas como podemos aumentar esta participação? Como fez Carlos de Foucauld: pondo-nos de joelhos e aceitando a ação do Espírito, que suscita sempre novos modos de participação, encontro, escuta e diálogo, sempre em colaboração e confiança, sempre em comunhão com a Igreja e com os pastores.
São Carlos de Foucauld, figura que é profecia para o nosso tempo, deu testemunho da beleza de comunicar o Evangelho através do apostolado da mansidão: ele, que se sentia “irmão universal” e acolhia todos, mostra-nos a força evangelizadora da mansidão, da ternura. Não esqueçamos que o estilo de Deus reside em três palavras: proximidade, compaixão e ternura. Deus está sempre próximo, é sempre compassivo, sempre terno. E o testemunho cristão deve seguir este caminho: de proximidade, de compaixão, de ternura. E ele era assim, manso e terno. Desejava que quantos o encontrassem vissem, através da sua bondade, a bondade de Jesus. Com efeito, dizia que era «servo de alguém que é muito melhor do que eu».[6] Viver a bondade de Jesus levava-o a criar laços fraternos de amizade com os pobres, com os Tuaregues, com os mais distantes da sua mentalidade. Aos poucos, esses vínculos geravam fraternidade, inclusão, valorização da cultura do outro. A bondade é simples e pede que sejamos pessoas simples, sem medo de oferecer um sorriso. E com o sorriso, com a sua simplicidade, o irmão Carlos dava testemunho do Evangelho. Nunca proselitismo, nunca: testemunho. A evangelização não se faz por proselitismo, mas por testemunho, por atração. Concluindo, perguntemo-nos então se trazemos em nós e levamos aos outros a alegria cristã, a mansidão cristã, a ternura cristã, a compaixão cristã, a proximidade cristã. Obrigado!
Papa Francisco
Audiência Geral 18.10.23
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[1] Lettres à un ami de lycée. Correspondance avec Gabriel Tourdes (1874-1915), Paris 2010, 161.
[2] Crier l’Evangile, Montrouge 2004, 49.
[3] M/314 in C. de Foucauld, La bonté de Dieu. Méditations sur les Saints Evangiles (1), Montrouge 2002, 285.
[4] Lettre à Joseph Hours, in Correspondances lyonnaises (1904-1916), Paris 2005, 92.
[5] Ivi, 90.
[6] Carnets de Tamanrasset (1905-1916), Paris 1986, 188.
Catequeses. A paixão pela evangelização: o zelo apostólico do crente. 22. Santa Josefina Bakhita: testemunha da força transformadora do perdão de Cristo
No caminho de catequeses sobre o zelo apostólico – refletimos sobre o zelo apostólico – hoje deixemo-nos inspirar pelo testemunho de Santa Josefina Bakhita, uma santa sudanesa. Infelizmente, há meses que o Sudão é dilacerado por um terrível conflito armado, do qual pouco se fala hoje; oremos pelo povo sudanês, para que possa viver em paz! Mas a fama de Santa Bakhita ultrapassou todas as fronteiras e chegou a todos aqueles a quem é negada a identidade e a dignidade.
Nascida no Darfur - o martirizado Darfur! - em 1869, foi raptada da sua família com sete anos e feita escrava. Os seus raptores chamavam-lhe “Bakhita”, que significa “felizarda”. Teve oito donos, um vendia-a a outro. Os sofrimentos físicos e morais que padeceu na infância deixaram-na sem identidade. Sofreu maldades e violências: no seu corpo trazia mais de cem cicatrizes. Mas ela própria testemunhou: “Como escrava, nunca desesperei, porque sentia uma força misteriosa que me sustentava”.
Diante disto, pergunto-me: qual é o segredo de Santa Bakhita? Sabemos que muitas vezes a pessoa ferida, por sua vez, fere; o oprimido torna-se facilmente opressor. No entanto, a vocação dos oprimidos é libertar-se a si próprios e aos seus opressores, tornando-se restauradores de humanidade. Só na debilidade dos oprimidos se pode revelar a força do amor de Deus, que liberta ambos. Santa Bakhita exprime muito bem esta verdade. Um dia, o seu tutor dá-lhe um pequeno crucifixo, e ela, que nunca tinha possuído nada, conserva-o ciosamente como um tesouro. Fitando-o, experimenta uma libertação interior, porque se sente compreendida e amada e, portanto, capaz de compreender e amar: este é o início. Sente-se compreendida, sente-se amada e, por conseguinte, capaz de compreender e amar os outros. Com efeito, dirá: “O amor de Deus sempre me acompanhou de modo misterioso... O Senhor amou-me tanto: é preciso amar todos... É preciso compadecer-se!”. Esta é a alma de Bakhita! Na verdade, com-padecer significa tanto padecer com as vítimas de tanta desumanidade presente no mundo, como também compadecer-se de quem comete erros e injustiças, não justificando, mas humanizando. Esta é a carícia que ela nos ensina: humanizar! Quando entramos na lógica da luta, da divisão entre nós, dos maus sentimentos, uns contra os outros, perdemos a humanidade. E muitas vezes pensamos que precisamos de humanidade, que devemos ser mais humanos. E esta é a tarefa que Santa Bakhita nos ensina: humanizar, humanizar-nos a nós mesmos e humanizar os outros.
Santa Bakhita, que se tornou cristã, é transformada pelas palavras de Cristo, que meditava diariamente: «Pai, perdoa-lhes, porque não sabem o que fazem!» (Lc 23, 34). Por isso, dizia: “Se Judas tivesse pedido perdão a Jesus, também ele teria encontrado misericórdia”. Podemos dizer que a vida de Santa Bakhita se tornou uma parábola existencial do perdão. Como é bom dizer de uma pessoa: “Foi capaz, foi sempre capaz de perdoar”. E ela foi sempre capaz de o fazer, aliás: a sua vida é uma parábola existencial do perdão. Perdoar, porque assim seremos perdoados. Não vos esqueçais disto: o perdão, que é a carícia de Deus para todos nós!
O perdão libertou-a. O perdão recebido, primeiro através do amor misericordioso de Deus, e depois o perdão oferecido, fizeram dela uma mulher livre, alegre, capaz de amar.
Bakhita pôde viver o serviço não como escravatura, mas como expressão do dom livre de si. E isto é muito importante: fez-se voluntariamente serva – foi vendida como escrava – e em seguida escolheu livremente fazer-se serva, carregar sobre os seus ombros os fardos dos outros!
Com o seu exemplo, Santa Josefina Bakhita indica-nos o caminho para nos libertarmos finalmente das nossas escravidões e medos. Ajuda-nos a desmascarar as nossas hipocrisias e egoísmos, a superar ressentimentos e conflitos. E encoraja-nos sempre.
Caros irmãos e irmãs, o perdão não tira nada, mas acrescenta – o que acrescenta o perdão? Dignidade: o perdão não te tira nada, mas acrescenta dignidade à pessoa, faz-nos afastar o olhar de nós mesmos e fitar os outros, para os ver frágeis como nós, mas sempre irmãos e irmãs no Senhor. Irmãos e irmãs, o perdão é a nascente de um zelo que se torna misericórdia e chama a uma santidade humilde e jubilosa, como a de Santa Bakhita.
Papa Francisco
Audiência Geral 11.10.23
Catequeses. A paixão pela evangelização: o zelo apostólico do crente. 21. São Daniel Comboni, apóstolo de África e profeta da missão
No caminho de catequeses sobre a paixão evangelizadora, ou seja, o zelo apostólico, meditemos hoje sobre o testemunho de São Daniel Comboni. Ele foi um apóstolo cheio de zelo pela África. Sobre aqueles povos, escreveu: «Apoderaram-se do meu coração, que só vive para eles» (Escritos, 941), «morrerei com a África nos meus lábios» (Escritos, 1441). É bonito... E a eles dirigia-se assim: «O mais feliz dos meus dias será quando eu puder dar a vida por vós» (Escritos, 3159). Trata-se da expressão de uma pessoa apaixonada por Deus e pelos irmãos que servia em missão, a propósito dos quais não se cansava de recordar que «Jesus Cristo sofreu e morreu também por eles» (Escritos, 2499; 4801).
Afirmava-o num contexto caraterizado pelo horror da escravatura, de que foi testemunha. A escravatura “coisifica” o homem, cujo valor se reduz a ser útil a alguém ou a algo. Mas Jesus, Deus que se fez homem, elevou a dignidade de cada ser humano, desmascarando a falsidade de qualquer escravatura. À luz de Cristo, Comboni adquiriu consciência do mal da escravatura; além disso, compreendeu que a escravatura social se arraiga numa escravatura mais profunda, a do coração, do pecado, da qual o Senhor nos liberta. Portanto, como cristãos, somos chamados a lutar contra todas as formas de escravatura. Mas infelizmente a escravatura, assim como o colonialismo, não é uma recordação do passado, infelizmente! Na África tão amada por Comboni, hoje dilacerada por numerosos conflitos, «depois daquele político, desencadeou-se (...) um “colonialismo económico”, igualmente escravizante (...). É um drama perante o qual o mundo economicamente mais avançado muitas vezes fecha os olhos, os ouvidos e a boca». Por isso, renovo o meu apelo: «Deixai de sufocar a África: ela não é uma mina a explorar, nem um solo a saquear» (Encontro com as Autoridades, Kinshasa, 31 de janeiro de 2023).
Voltemos à vicissitude de São Daniel. Depois de ter passado um primeiro período na África, teve que abandonar a missão por motivos de saúde. Demasiados missionários tinham morrido por ter contraído doenças, devido ao escasso conhecimento da realidade local. Mas se outros abandonavam a África, Comboni não. Após um período de discernimento, sentiu que o Senhor lhe inspirava um novo caminho de evangelização, que ele resumiu com as seguintes palavras: «Salvar a África com a África» (Escritos, 2741 s.). Trata-se de uma intuição poderosa, não há colonialismo algum nisto: é uma intuição poderosa que contribuiu para renovar o compromisso missionário: as pessoas evangelizadas não eram apenas “objetos”, mas “sujeitos” da missão. E São Daniel Comboni desejava tornar todos os cristãos protagonistas da ação evangelizadora. E com este espírito, pensou e agiu de modo integral, envolvendo o clero local e promovendo o serviço laical dos catequistas. Os catequistas são um tesouro da Igreja: os catequistas são aqueles que vão em frente na evangelização. Assim concebia também o desenvolvimento humano, interessando-se pelas artes e profissões, favorecendo o papel da família e da mulher na transformação da cultura e da sociedade. E como é importante, ainda hoje, fazer progredir a fé e o desenvolvimento humano a partir do interior dos contextos de missão, em vez de neles transplantar modelos externos, ou limitar-se a um assistencialismo estéril! Nem modelos externos, nem assistencialismo. Haurir da cultura dos povos o caminho para fazer a evangelização. Evangelizar a cultura e inculturar o Evangelho: caminham juntos!
No entanto, a grande paixão missionária de Comboni não foi principalmente fruto do esforço humano: ele não era impelido pela sua coragem, nem motivado apenas por valores importantes, como a liberdade, a justiça e a paz; o seu zelo nascia da alegria do Evangelho, alimentava-se do amor de Cristo e levava ao amor a Cristo! São Daniel escreveu: «Uma missão tão árdua e laboriosa como a nossa não pode viver de aparências, de sujeitos de pescoço torto, cheios de egoísmo e de si próprios, que não se preocupam, como deviam, com a saúde e a conversão das almas». Este é o drama do clericalismo, que leva os cristãos, até os leigos, a clericalizar-se e a transformá-los - como se diz aqui - em sujeitos de pescoço torto, cheios de egoísmo. Esta é a chaga do clericalismo. E acrescentava: «É preciso fazê-los arder de caridade, com a sua fonte em Deus e no amor de Cristo; e quando se ama verdadeiramente a Cristo, então as privações, os padecimentos e o martírio são docilidades» (Escritos, 6656). O seu desejo era ver missionários fervorosos, alegres, comprometidos: missionários - escrevia - «santos e capazes. [...] Primeiro: santos, isto é, alheios ao pecado e humildes. Mas não basta: é necessária a caridade para tornar os sujeitos capazes» (Escritos, 6655). Portanto, para Comboni a fonte da capacidade missionária é a caridade, em particular o zelo de fazer seus os sofrimentos dos outros.
De resto, a sua paixão evangelizadora nunca o levou a agir como solista, mas sempre em comunhão, na Igreja. «Só tenho a vida para consagrar à saúde daquelas almas», escreveu, «gostaria de ter mil para as consumir com este objetivo» (Escritos, 2271).
Irmãos e irmãs, São Daniel dá testemunho do amor do bom Pastor, que vai em busca de quem se perdeu e dá a vida pelo rebanho. O seu zelo foi enérgico e profético, opondo-se à indiferença e à exclusão. Nas cartas recordava com entusiasmo a sua amada Igreja, que durante demasiado tempo tinha esquecido a África. O sonho de Comboni é uma Igreja que faça causa comum com os crucificados da história, para experimentar com eles a ressurreição. Neste momento, dou-vos uma sugestão. Pensai nos crucificados da história de hoje: homens, mulheres, crianças, idosos que são crucificados por histórias de injustiça e de domínio. Pensemos neles e oremos! O seu testemunho parece reiterar a todos nós, homens e mulheres de Igreja: “Não esqueçais os pobres, amai-os, pois neles está presente Jesus crucificado, à espera de ressuscitar”. Não vos esqueçais dos pobres: antes de vir aqui, tive um encontro com legisladores brasileiros que trabalham a favor dos pobres, que procuram promover os pobres com a assistência e a justiça social. E eles não se esquecem dos pobres: trabalham pelos pobres. Digo-vos: não vos esqueçais dos pobres, pois são eles que vos abrirão a porta do Céu.
Papa Francisco
Audiência geral 20.09.23
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