Catequeses. Os vícios e as virtudes. 3. A gula
Neste nosso caminho de catequeses que percorremos sobre os vícios e as virtudes, hoje meditemos sobre o vício da gula .
O que nos diz o Evangelho a tal respeito? Olhemos para Jesus. O seu primeiro milagre, nas bodas de Caná, revela a sua simpatia pelas alegrias humanas: preocupa-se por que a festa acabe bem, oferecendo aos noivos uma grande quantidade de vinho excelente. Ao longo do seu ministério, Jesus manifesta-se como um profeta muito diferente do Batista: se João é recordado pela sua ascese — comia o que encontrava no deserto — Jesus é, ao contrário, o Messias que vemos muitas vezes à mesa. O seu comportamento suscita o escândalo de alguns, pois não só é benevolente para com os pecadores, comendo até com eles; e este gesto demonstrava a sua vontade de comunhão e de proximidade em relação a todos.
Mas há algo mais. Se a atitude de Jesus em relação aos preceitos judaicos nos revela a sua total submissão à Lei, Ele mostra-se, no entanto, compreensível com os seus discípulos: quando estes são apanhados em flagrante, porque têm fome e colhem espigas de trigo em dia de sábado, Ele justifica-os, lembrando-lhes que até o rei David e os seus companheiros, quando estavam em necessidade, comeram os pães sagrados (cf. Mc 2, 23-26). E Jesus afirma um novo princípio: os convidados para as bodas não podem jejuar quando o noivo está com eles; jejuarão quando o noivo lhes for tirado. Agora tudo está em relação com Jesus. Quando Ele está no meio de nós, não podemos estar em luto; mas na hora da sua paixão, então sim, jejuamos (cf. Mc 2, 18-20). Jesus quer que estejamos alegres em sua companhia — Ele é o Esposo da Igreja — mas quer igualmente que compartilhemos os seus sofrimentos, que são também os padecimentos dos pequeninos e dos pobres.
Outro aspeto importante. Jesus põe fim à distinção entre alimentos puros e impuros , que era uma distinção feita pela lei judaica. Na realidade — ensina Jesus — não é o que entra no homem que o contamina, mas o que sai do seu coração. E dizendo isto, «tornava puros todos os alimentos» (Mc 7, 19). Por isso, o cristianismo não contempla alimentos impuros. Mas a atenção que devemos ter é interior: portanto, não sobre o alimento em si, mas sobre a nossa relação com ele . E sobre isto Jesus diz claramente que o que faz a bondade ou a maldade, digamos assim, de um alimento, não é o alimento em si, mas a relação que tivermos com ele. E vemos isto quando uma pessoa tem uma relação desordenada com a comida, olhamos para a forma como ela come, come à pressa, como se tivesse vontade de se saciar e nunca se sacia, não tem uma boa relação com o alimento, é escrava da comida.
Esta relação serena que Jesus estabeleceu com a alimentação deveria ser redescoberta e valorizada, especialmente nas sociedades do chamado bem-estar, onde se manifestam muitos desequilíbrios e patologias . Come-se demais ou de demasiado pouco. Come-se muitas vezes em solidão. Os distúrbios alimentares alastram-se: anorexia, bulimia, obesidade... E a medicina e a psicologia procuram abordar a má relação com a comida. A má relação com a comida produz todas estas enfermidades.
Trata-se de doenças, frequentemente muito dolorosas, ligadas sobretudo aos tormentos da psique e da alma. A alimentação é a manifestação de algo interior: a predisposição para o equilíbrio, ou para o exagero; a capacidade de dar graças, ou a arrogante pretensão de autonomia; a empatia de quem sabe partilhar a comida com os necessitados, ou o egoísmo de quem acumula tudo para si. Esta questão é muito importante: diz-me como comes e dir-te-ei que alma tens. No modo de comer revela-se a nossa interioridade, os nossos hábitos, as nossas atitudes psíquicas.
Os antigos Padres designavam o vício da gula com o nome de “gastrimargia”, termo que se pode traduzir por “loucura do ventre”. A gula é uma “loucura do ventre”. E há também este provérbio: devemos comer para viver, não viver para comer. A gula é um vício que se insere precisamente numa das nossas necessidades vitais, como a alimentação. Tomemos cuidado com isto!
Se a virmos de um ponto de vista social , talvez a gula seja o vício mais perigoso, que mata o planeta . Pois o pecado de quem cede diante de uma fatia de bolo, considerando bem, não causa grandes danos, mas a voracidade com que nos desencadeamos, desde há alguns séculos, sobre os bens do planeta compromete o futuro de todos. Apoderamo-nos de tudo, para nos tornarmos donos de tudo, quando tudo estava entregue à nossa preservação, não à nossa exploração! Eis, pois, o grande pecado, a fúria do ventre: abjuramos o nome de homens, para assumir outro, “consumidores”. E hoje diz-se assim na vida social: “consumidores”. Nem sequer nos damos conta de que alguém começou a chamar-nos assim. Fomos feitos para ser homens e mulheres “eucarísticos”, capazes de dar graças, discretos no uso da terra e, ao contrário, o perigo é de nos transformarmos em predadores, e agora damo-nos conta de que esta forma de “gula” fez muito mal ao mundo. Peçamos ao Senhor que nos ajude no caminho da sobriedade e que os vários tipos de gula não se apoderem da nossa vida.
papa Francisco
Audiência geral 10.01.2024
Ciclo de catequeses. Os vícios e as virtudes. 2. O combate espiritual
Na semana passada introduzimo-nos no tema dos vícios e das virtudes. Ele recorda a luta espiritual do cristão. Com efeito, a vida espiritual do cristão não é pacífica, linear, sem desafios; pelo contrário, a vida cristã exige um combate constante: o combate cristão para conservar a fé, para enriquecer os dons da fé em nós. Não é por acaso que a primeira unção que cada cristão recebe no sacramento do Batismo - a unção catecumenal - é sem perfume algum e anuncia simbolicamente que a vida é uma luta. Sim, na antiguidade os lutadores eram completamente ungidos antes da competição, quer para tonificar os músculos, quer para tornar o corpo esquivo às garras do adversário. A unção dos catecúmenos torna imediatamente claro que ao cristão não é poupada a luta, que o cristão deve lutar: também a sua existência, como a de todos, deverá descer à arena, pois a vida é uma sucessão de provações e tentações.
Uma célebre frase atribuída a Abade António, o primeiro grande padre do monaquismo, reza assim: “Tira as tentações e ninguém se salvará”. Os santos não são homens aos quais foi poupada a tentação, mas pessoas bem conscientes de que as seduções do mal aparecem repetidamente na vida, para ser desmascaradas e rejeitadas. Todos nós experimentamos isto, todos nós: ter um mau pensamento, o desejo de fazer isto ou de falar mal do outro... Todos, todos nós somos tentados, e devemos lutar para não cair nessas tentações. Se algum de vós não tem tentações, que o diga, pois isto seria algo extraordinário! Todos nós temos tentações, e todos devemos aprender a comportar-nos em tais situações.
Há muitas pessoas que são egocêntricas, que pensam que estão “bem” – “Não, eu sou bom, sou boa, não tenho estes problemas”. Mas nenhum de nós está bem; se alguém se sente bem, sonha; cada um de nós tem muitas coisas a corrigir, e também devemos estar vigilantes. E às vezes acontece que vamos ao Sacramento da Reconciliação e dizemos, com sinceridade: “Padre, não me lembro, não sei se cometi pecados...”. Mas isto é falta de conhecimento do que acontece no coração. Somos pecadores, todos nós! E um pequeno exame de consciência, um pequeno olhar interior far-nos-á bem. Caso contrário, correremos o risco de viver nas trevas, porque nos habituamos às trevas e já não conseguimos distinguir o bem do mal. Isaac de Nínive dizia que, na Igreja, quem conhece os seus pecados e chora por eles é maior do que aquele que ressuscita um morto. Todos nós devemos pedir a Deus a graça de nos reconhecermos pobres pecadores, necessitados de conversão, guardando no coração a confiança de que nenhum pecado é demasiado grande para a misericórdia infinita de Deus Pai. Esta é a lição inaugural que Jesus nos dá!
Vemo-lo logo nas primeiras páginas dos Evangelhos, em primeiro lugar quando nos falam do batismo do Messias nas águas do rio Jordão. O episódio tem em si algo de desconcertante: por que se submete Jesus a este rito de purificação? Ele é Deus, é perfeito! De que pecado se deve arrepender Jesus? De nenhum! Até o Batista fica escandalizado, a ponto de o texto dizer: João queria impedi-lo, dizendo: «Eu é que tenho necessidade de ser batizado por ti. E tu vens a mim?». Mas Jesus é um Messias muito diferente do que João o tinha apresentado e do modo como as pessoas o imaginavam: não encarna o Deus irado, não convoca para o julgamento mas, pelo contrário, põe-se na fila com os pecadores. Como? Sim, Jesus caminha connosco, com todos nós, pecadores. Não é um pecador, mas está entre nós. E isto é bom! “Padre, cometi tantos pecados!” – “Mas Jesus está contigo: fala deles, Ele ajuda-te a abandoná-los”. Jesus nunca nos deixa sozinhos, nunca! Pensai bem nisto. “Oh, Padre, cometi coisas graves!” – “Mas Jesus compreende-te e acompanha-te: entende o teu pecado e perdoa-o”. Nunca esqueçamos isto! Nos piores momentos, nos momentos em que escorregamos nos pecados, Jesus está ao nosso lado para nos ajudar a levantar. Isto dá-nos consolação. Não podemos perder esta certeza: Jesus está ao nosso lado para nos ajudar, para nos proteger, até para nos levantar depois do pecado. “Mas Padre, é verdade que Jesus perdoa tudo?” – “Tudo. Ele veio para perdoar, para salvar. Mas Jesus quer o teu coração aberto”. Nunca se esquece de perdoar: somos nós, muitas vezes, que perdemos a capacidade de pedir perdão. Recuperemos a capacidade de pedir perdão. Cada um de nós tem muitas coisas das quais pedir perdão: cada um de nós pense nisso dentro de si, e hoje fale com Jesus sobre isto. Fale com Jesus sobre isto: “Senhor, não sei se é verdade ou não, mas tenho a certeza de que Tu não te afastas de mim. Tenho a certeza de que me perdoas. Senhor, sou pecador, pecadora, mas por favor não te afastes”. Esta seria uma bonita oração a Jesus hoje: “Senhor, não te afastes de mim”.
E logo após o episódio do batismo, os Evangelhos narram que Jesus se retira para o deserto, onde é tentado por Satanás. Também aqui se põe a questão: por que o Filho de Deus deve conhecer a tentação? Também neste caso, Jesus se mostra solidário com a nossa frágil natureza humana e torna-se o nosso grande exemplum: as tentações que atravessa e vence no meio das pedras áridas do deserto são a primeira instrução que dá à nossa vida de discípulos. Ele experimentou o que também nós devemos sempre preparar-nos para enfrentar: a vida é feita de desafios, provações, encruzilhadas, visões opostas, seduções ocultas, vozes contraditórias. Algumas vozes são até persuasivas, a ponto que Satanás tenta Jesus recorrendo às palavras da Escritura. Devemos preservar a lucidez interior para escolher o caminho que nos conduz verdadeiramente à felicidade e depois esforçar-nos para não parar ao longo do caminho.
Lembremo-nos de que estamos sempre divididos entre extremos opostos: a soberba desafia a humildade; o ódio opõe-se à caridade; a tristeza impede a verdadeira alegria do Espírito; o empedernimento do coração rejeita a misericórdia. Os cristãos caminham constantemente sobre estes cumes. Por isso é importante refletir sobre os vícios e as virtudes: ajuda-nos a superar a cultura niilista em que os contornos entre o bem e o mal permanecem matizados e, ao mesmo tempo, recorda-nos que o ser humano, ao contrário de qualquer outra criatura, pode sempre transcender-se a si mesmo, abrindo-se a Deus e caminhando rumo à santidade.
Portanto, o combate espiritual leva-nos a olhar mais de perto os vícios que nos agrilhoam e a caminhar, com a graça de Deus, para as virtudes que podem florescer em nós, trazendo a primavera do Espírito à nossa vida.
Papa Francisco
Audiência geral 04.01.23
Ciclo de catequeses. Os vícios e as virtudes. 1. Introdução: custodiar o coração
Hoje gostaria de introduzir um ciclo de catequeses sobre o tema dos vícios e das virtudes. E podemos começar precisamente pelo início da Bíblia, onde o livro do Génesis, através da narração dos progenitores, apresenta a dinâmica do mal e da tentação. Pensemos no Paraíso terrestre. No quadro idílico representado pelo jardim do Éden, aparece uma personagem que se torna o símbolo da tentação: a serpente, a personagem que seduz. A serpente é um animal insidioso: move-se lentamente, rastejando no chão, e às vezes a sua presença nem sequer se nota - é silenciosa - pois consegue camuflar-se bem com o seu ambiente e sobretudo isto é perigoso.
Quando começa a conversar com Adão e Eva, demonstra ser também um dialético requintado. Começa como se faz numa má bisbilhotice, com uma pergunta maliciosa: «É verdade que Deus disse: não comerás de nenhuma árvore do jardim?» (Gn 3, 1). A frase é falsa: na realidade, Deus ofereceu ao homem e à mulher todos os frutos do jardim, exceto os de uma árvore específica: a árvore da ciência do bem e do mal. Esta proibição não tem por objetivo impedir ao homem o uso da razão, como às vezes é mal interpretado, mas é uma medida de sabedoria. Como se dissesse: reconhece o limite, não te sintas senhor de tudo, pois a soberba é o princípio de todos os males. E assim, a história diz-nos que Deus coloca os progenitores como senhores e guardiães da criação, mas quer preservá-los da presunção da omnipotência, de se fazerem senhores do bem e do mal, que é uma tentação, uma péssima tentação até hoje. Esta é a insídia mais perigosa para o coração humano.
Como sabemos, Adão e Eva não conseguiram opor-se à tentação da serpente. A ideia de um Deus não realmente bom, que queria mantê-los submissos, insinuou-se na sua mente: eis o desabamento de tudo.
Com estas narrações, a Bíblia explica-nos que o mal não começa no homem de modo ruidoso, quando um ato já se manifestou, mas o mal tem início muito antes, quando começamos a entreter-nos com ele, a embalá-lo na imaginação, nos pensamentos, acabando por ser enganados pelas suas lisonjas. O homicídio de Abel não começou com uma pedra lançada, mas com o rancor que Caim guardou desventuradamente, levando-o a tornar-se um monstro dentro de si. Também neste caso, de nada servem as recomendações de Deus.
Prezados irmãos e irmãs, com o diabo não se dialoga. Nunca! Nunca se deve discutir. Jesus nunca dialogou com o diabo; expulsou-o. E no deserto, durante as tentações, não respondeu com o diálogo; retorquiu simplesmente com as palavras da Sagrada Escritura, com a Palavra de Deus. Atenção: o diabo é um sedutor. Nunca dialoguemos com ele, porque ele é mais esperto do que todos nós e far-nos-á pagar. Quando tiveres uma tentação, nunca dialogues. Fecha a porta, fecha a janela, fecha o coração. E assim, defendemo-nos desta sedução, porque o diabo é astuto, é inteligente. Procurou tentar Jesus com citações bíblicas, apresentando-se como grande teólogo. Atenção! Com o diabo não se dialoga, e com a tentação não devemos entreter-nos, não se dialoga. A tentação vem: fechemos a porta, guardemos o coração!
É preciso ser guardiões do próprio coração. Por isso não dialoguemos com o diabo. É a recomendação – preservar o coração - que encontramos em vários padres, nos santos. E devemos pedir esta graça de aprender a velar sobre o coração. É uma sabedoria conseguir guardar o coração. Que o Senhor nos ajude neste trabalho. Mas quem guarda o próprio coração, conserva um tesouro. Irmãos e irmãs, aprendamos a preservar o coração.
Papa Francisco
Audiência geral 27.12.23
«O recenseamento de toda a terra» (Lc 2, 1): este é o contexto em que nasce Jesus e no qual se detém o Evangelho. Podia limitar-se a uma rápida alusão, mas ao contrário delonga-se cuidadosamente nele. E assim faz surgir um grande contraste: enquanto o imperador conta os habitantes do mundo, Deus entra nele quase às escondidas; enquanto quem manda procura colocar-se entre os grandes da história, o Rei da história escolhe o caminho da pequenez. Nenhum dos poderosos se dá conta d’Ele; apenas alguns pastores, postos à margem da vida social.
Mas o recenseamento diz-nos mais outra coisa. Na Bíblia, não deixara boas recordações. O rei David, cedendo à tentação dos grandes números e a uma malsã pretensão de autossuficiência, cometera um grave pecado precisamente fazendo o recenseamento do povo. Queria saber a sua força recebendo, cerca de nove meses depois, o número de todos os que podiam manejar a espada (cf. 2 Sam 24, 1-9). O Senhor indignou-se e um flagelo feriu o povo. Diversamente nesta noite, o «Filho de David», Jesus, depois de passar nove meses no ventre de Maria, nasce em Belém, a cidade de David, e não pune o recenseamento, mas deixa-se humildemente registar: um, no meio de tantos. Não vemos um Deus irado que castiga, mas o Deus misericordioso que encarna, que entra, frágil, no mundo, precedido pelo anúncio «paz na terra aos homens» (Lc 2, 14). E, nesta noite, o nosso coração está em Belém, onde o Príncipe da paz continua a ser rejeitado pela lógica perdedora da guerra, com o estrondo das armas que ainda hoje O impede de encontrar alojamento no mundo (cf. Lc 2, 7).
Em suma, o recenseamento de toda a terra manifesta, por um lado, a trama demasiado humana que atravessa a história: a trama dum mundo que procura o poder e a força, a fama e a glória, onde tudo se mede através dos sucessos e dos resultados, dos cálculos e dos números. É a obsessão das façanhas. Mas ao mesmo tempo, no recenseamento, sobressai o caminho de Jesus, que vem procurar-nos através da encarnação. Não é o deus das façanhas, mas o Deus da encarnação. Não subverte do alto as injustiças com a força, mas de baixo com o amor; não irrompe com um poder sem limites, mas desce até aos nossos limites; não evita as nossas fragilidades, mas adota-as.
Nesta noite, irmãos e irmãs, podemos perguntar-nos: Em que Deus acreditamos? No Deus da encarnação ou no das façanhas? Sim, porque há o risco de viver o Natal tendo na cabeça uma ideia pagã de Deus, como se fosse um patrão poderoso que está no céu; um deus que se alia com o poder, o sucesso mundano e a idolatria do consumismo. Sempre volta a imagem falsa dum deus alheado e melindroso, que se comporta bem com os bons e se irrita com os maus; um deus feito à nossa imagem, útil apenas para nos resolver os problemas e preservar dos males. Mas o Deus Menino não usa a varinha mágica, não é o deus comercial do «tudo e já»; não nos salva carregando num botão, mas faz-Se próximo para mudar a realidade a partir de dentro. E todavia como está radicada em nós a ideia mundana dum deus distante e controlador, rígido e poderoso, que ajuda os seus a prevalecerem contra os outros! Muitas vezes, trazemos radicada em nós esta imagem; mas não é assim: Ele nasceu para todos, durante o recenseamento de toda a terra.
Olhemos, pois, para o «Deus vivo e verdadeiro» (1 Tes 1, 9): Ele que está para além de todo o cálculo humano e, no entanto, deixa-Se recensear pelos nossos registos; Ele que revoluciona a história, habitando nela; Ele que nos respeita até ao ponto de nos permitir rejeitá-Lo; Ele que apaga o pecado assumindo a responsabilidade pelo mesmo, que não tira a dor, mas transforma-a, que não nos tira os problemas da vida, mas dá às nossas vidas uma esperança maior do que os problemas. Deseja tanto abraçar as nossas existências que, sendo infinito, por nós Se faz finito; grande, faz-Se pequeno; sendo justo, habita as nossas injustiças. Irmãos e irmãs, aqui está a maravilha do Natal: não uma mistura de sentimentos adocicados e confortos mundanos, mas a inaudita ternura de Deus que salva o mundo encarnando-Se. Fixemos o Menino, olhemos para a sua manjedoura, para o presépio, que os anjos chamam «o sinal» (Lc 2, 12): realmente constitui o sinal revelador do rosto de Deus, que é compaixão e misericórdia, omnipotente sempre e só no amor. Avizinha-Se, torna-Se próximo, terno e compassivo… Este é o modo de ser de Deus: proximidade, compaixão, ternura.
Irmãs, irmãos, deixemo-nos surpreender por Ele Se ter feito carne (cf. Jo 1, 14). Carne! Uma palavra que evoca a nossa fragilidade e que o Evangelho utiliza para nos dizer como Deus entrou profundamente na nossa condição humana. Por que motivo foi Ele tão longe? – perguntamo-nos. Porque Lhe interessa tudo o que nos diz respeito, porque nos ama até ao ponto de nos considerar mais preciosos do que qualquer outra coisa. Irmão, irmã, para Deus, que mudou a história durante o recenseamento, tu não és um número, mas um rosto; o teu nome está escrito no seu coração. Entretanto, se olhares para o teu coração, para as façanhas que não sentes à altura, para o mundo que julga e não perdoa, poderás talvez viver mal este Natal, pensando que não caminhas justamente, provando um sentimento de inadequação e insatisfação pelas tuas fragilidades, quedas e problemas e pelos teus pecados. Mas hoje, por favor, deixa a iniciativa a Jesus, que te diz: «Por ti fiz-Me carne, por ti fiz-Me como tu». Por que motivo continuas na prisão das tuas tristezas? Como os pastores que deixaram os seus rebanhos, deixa o recinto das tuas melancolias e abraça a ternura do Deus Menino. Fá-lo sem máscaras, sem couraças, confia-Lhe as tuas canseiras, e Ele cuidará de ti (cf. Sal 55, 23): Ele, que Se fez carne, espera, não as tuas façanhas de sucesso, mas o teu coração aberto e confiado. E n’Ele descobrirás quem és: um filho amado de Deus, uma filha amada de Deus. Agora podes acreditar nisto, porque, nesta noite, o Senhor nasceu para iluminar a tua vida, e os olhos d’Ele cintilam de amor por ti. Sentimos dificuldade em crer nisto: que os olhos de Deus cintilam de amor por nós.
Sim, Cristo não olha para os números, mas para os rostos. E contudo quem é que olha para Ele, por entre as inúmeras coisas e as corridas loucas dum mundo sempre agitado e indiferente? Quem olha para Ele? Em Belém, enquanto muitas pessoas, preocupadas com o recenseamento, iam e vinham, enchiam as hospedarias e pousadas falando de tudo e de nada, houve alguns que estiveram junto de Jesus: Maria e José, os pastores e depois os magos. Aprendamos com eles. Ei-los com o olhar fixo em Jesus, com o coração voltado para Ele; não falam, mas adoram. Esta noite, irmãos e irmãs, é o tempo da adoração… Adorar.
A adoração é a forma de acolher a encarnação, porque é no silêncio que Jesus, Palavra do Pai, Se faz carne nas nossas vidas. Façamos nós também como se fez em Belém, que significa «casa do pão»: permaneçamos diante d’Ele, Pão de vida. Redescubramos a adoração, porque adorar não é perder tempo, mas permitir a Deus que habite o nosso tempo; é fazer florescer em nós a semente da encarnação, é colaborar na obra do Senhor, que, como o fermento, muda o mundo. Adorar é interceder, reparar, consentir a Deus que endireite a história. Um grande narrador de feitos épicos assim escrevia ao seu filho: «Ofereço-te a única coisa grande que se deve amar sobre a terra: o Santíssimo Sacramento. Lá encontrarás encanto, glória, honra, fidelidade e o verdadeiro caminho de todos os teus amores na terra» (J.R.R. Tolkien, Carta 43, março de 1941).
Irmãos e irmãs, nesta noite, o amor muda a história. Fazei, Senhor, que acreditemos no poder do vosso amor, tão diverso do poder do mundo. Senhor, fazei que, à semelhança de Maria, José, os pastores e os magos, nos estreitemos ao vosso redor para Vos adorar. Feitos por Vós mais semelhantes a Vós, poderemos testemunhar ao mundo a beleza do vosso rosto.
Catequeses. O presépio de Greccio, escola de sobriedade e de alegria
Há 800 anos, no Natal de 1223, São Francisco realizou um presépio vivo em Greccio. Enquanto se prepara ou se completa o presépio nas casas e em muitos outros lugares, é bom redescobrirmos as suas origens.
Como nasceu o presépio? Qual era a intenção de São Francisco? Ele dizia assim: «Gostaria de representar o Menino nascido em Belém e, de certo modo, ver com os olhos do corpo as dificuldades em que se encontrou por falta das coisas necessárias para um recém-nascido, como foi colocado numa manjedoura e como se deitava sobre o feno entre o boi e o pequeno burro» (TOMÁS DE CELANO, Vita prima, XXX, 84: FF 468). Francisco não quer realizar uma bela obra de arte, mas suscitar, através do presépio, a admiração pela extrema humildade do Senhor, pelas dificuldades que padeceu, por amor a nós, na pobre gruta de Belém. Com efeito, o biógrafo do Santo de Assis observa: «Naquela cena comovedora resplandece a simplicidade evangélica, louva-se a pobreza, recomenda-se a humildade. Greccio tornou-se como uma nova Belém» (ibid., 85: FF 46). Frisei uma palavra: admiração. E isto é importante. Se nós, cristãos, fitarmos o presépio como uma coisa bonita, como algo histórico, até religioso, e rezarmos, não é suficiente. Perante o mistério da encarnação do Verbo, diante do nascimento de Jesus, precisamos desta atitude religiosa da admiração. Se face aos mistérios eu não tiver esta admiração, a minha fé será simplesmente superficial; uma fé “informática”. Não o esqueçais!
E uma caraterística do presépio é que nasce como escola de sobriedade. E isto tem muito a dizer-nos. Com efeito, hoje o risco de perder o que conta na vida é grande e, paradoxalmente, aumenta precisamente no Natal - a mentalidade do Natal altera-se - imersos num consumismo que corrói o seu significado. O consumismo do Natal. É verdade, é bom desejar oferecer presentes, é um modo, mas esse frenesim de ir fazer compras chama a atenção para outro lado e não há aquela sobriedade do Natal. Olhemos para o presépio: o enlevo diante do presépio. Às vezes, não há espaço interior para a admiração, mas apenas para organizar as festividades, para fazer festa.
E o presépio nasce para nos restituir ao que conta: a Deus que vem habitar no meio de nós. Por isso é importante olhar para o presépio, porque nos ajuda a compreender o que conta e também as relações sociais de Jesus naquele momento, a família, José e Maria, e os entes queridos, os pastores. As pessoas antes das coisas. E muitas vezes colocamos as coisas à frente das pessoas. Isto não funciona!
Mas o presépio de Greccio, para além da sobriedade que manifesta, fala também da alegria, pois a alegria é algo diferente da diversão. Mas divertir-se não é mau, se for feito pelos bons caminhos; não é mau, é algo humano. Mas a alegria é ainda mais profunda, mais humana. E, às vezes, há a tentação de se divertir sem alegria; de se divertir fazendo barulho, mas sem alegria. É um pouco como a figura do palhaço, que ri, ri, faz rir, mas o coração está triste. A alegria é a raiz de uma boa diversão para o Natal. E sobre a alegria, as notícias daquela época dizem: «E chega o dia do júbilo, o tempo da exultação! [...] Francisco [...] está radiante [...]. O povo aflui e rejubila com uma alegria nunca antes experimentada [...]. Todos voltaram para casa cheios de uma alegria inefável» (Vita prima, XXX, 85-86: FF 469-470). A sobriedade, o assombro, leva-nos à alegria, à verdadeira alegria, não à alegria artificial.
Mas de onde derivava esta alegria natalícia? Não era certamente de ter trazido presentes para casa ou de ter vivido celebrações pomposas. Não, era a alegria que transborda do coração, quando se toca com a mão a proximidade de Jesus, a ternura de Deus, que não deixa sozinho, mas consola. Proximidade, ternura e compaixão: eis as três atitudes de Deus. E olhando para o presépio, rezando diante do presépio, poderemos sentir estas coisas do Senhor, que nos ajudam na vida de todos os dias.
Amados irmãos e irmãs, o presépio é como um pequeno poço do qual haurir a proximidade de Deus, nascente de esperança e de alegria. O presépio é como um Evangelho vivo, um Evangelho doméstico. É como o poço na Bíblia, é o lugar do encontro, onde apresentar a Jesus, como fizeram os pastores de Belém e os habitantes de Greccio, as expetativas e as preocupações da vida. Apresentar a Jesus as expetativas e as preocupações da vida. Se, diante do presépio, confiarmos a Jesus o que temos no coração, também nós experimentaremos «uma alegria imensa» (Mt 2, 10), uma alegria que vem precisamente da contemplação, do espírito de enlevo com que vou contemplar estes mistérios. Aproximemo-nos do presépio. Que cada um contemple e que o coração sinta algo.
Papa Francisco
Audiência geral 20.12.23
Imagem: papa Francisco em Greccio em 2016. Foto L'Osservatore Romano
Catequeses. A paixão pela evangelização: o zelo apostólico do crente. 30. Effatà, abre-te Igreja!
Hoje concluímos o ciclo dedicado ao zelo apostólico, no qual nos deixamos inspirar pela Palavra de Deus para ajudar a cultivar a paixão pelo anúncio do Evangelho. E isto diz respeito a cada cristão. Pensemos no Batismo, quando o celebrante diz, tocando os ouvidos e os lábios do batizado: «O Senhor Jesus, que fez ouvir os surdos e falar os mudos, te conceda ouvir depressa a sua palavra e professar a tua fé».
E ouvimos o prodígio de Jesus. O evangelista Marcos descreve minuciosamente o lugar onde ele ocorreu: «Rumo ao mar da Galileia...» (7, 31). O que têm em comum estes territórios? São habitados predominantemente por pagãos. Não eram territórios habitados por judeus, mas sobretudo por pagãos. Os discípulos saíram com Jesus, que é capaz de abrir os ouvidos e a boca, ou seja, o fenómeno da mudez e da surdez, que na Bíblia é também metafórico e designa o fechamento às exortações de Deus. Existe uma surdez física, mas na Bíblia quem é surdo à palavra de Deus é mudo, não comunica a palavra de Deus.
Há também outro sinal indicativo: o Evangelho cita a palavra decisiva de Jesus em aramaico, effatá, que significa “abre-te”, que se abram os ouvidos, que se abra a língua, é um convite dirigido não tanto ao surdo-mudo, que não podia ouvi-lo, mas precisamente aos discípulos daquela época e de todos os tempos. Também nós, que recebemos o effatá do Espírito no Batismo, somos chamados a abrir-nos. “Abre-te”, diz Jesus a cada crente e à sua Igreja: abre-te porque a mensagem do Evangelho precisa de ti para ser testemunhado e anunciado! E isto faz-nos pensar também na atitude do cristão: o cristão deve estar aberto à Palavra de Deus e ao serviço do próximo. Os cristãos fechados acabam mal, sempre, porque não são cristãos, são ideólogos, ideólogos do fechamento. O cristão deve estar aberto ao anúncio da Palavra, ao acolhimento dos irmãos e irmãs. E por isso, este effatá, este “abre-te”, é um convite a todos nós para nos abrirmos.
Já no final dos Evangelhos, Jesus recomenda-nos o seu desejo missionário: ide além, ide apascentar, ide anunciar o Evangelho.
Irmãos, irmãs, como batizados, sintamo-nos todos chamados a testemunhar e a anunciar Jesus. E, como Igreja, peçamos a graça de ser capazes de realizar uma conversão pastoral e missionária. Nas margens do mar da Galileia, o Senhor perguntou a Pedro se o amava e depois pediu-lhe para apascentar as suas ovelhas (cf. vv. 15-17). Interroguemo-nos também nós, que cada um de nós faça esta pergunta, questionemo-nos: amo verdadeiramente o Senhor, a ponto de o querer anunciar? Desejo tornar-me sua testemunha ou contento-me com ser seu discípulo? Tomo a peito as pessoas que encontro, levo-as a Jesus na oração? Desejo fazer algo para que a alegria do Evangelho, que transformou a minha vida, torne a vida deles mais bela? Pensemos nisto, reflitamos sobre estas perguntas e vamos em frente com o nosso testemunho.
Papa Francisco
Audiência Geral 13.12.23
Catequeses. A paixão pela evangelização: o zelo apostólico do crente. 29. O anuncio está no Espírito Santo
Nas catequeses passadas vimos que o anúncio do Evangelho é alegria, é para todos e deve visar o hoje. Agora descubramos uma última caraterística essencial: é preciso que o anúncio seja feito no Espírito Santo. Com efeito, para “comunicar Deus” não são suficientes a jubilosa credibilidade do testemunho, a universalidade do anúncio e a atualidade da mensagem. Sem o Espírito Santo, todo o zelo é vão e falsamente apostólico: seria apenas nosso, não daria fruto.
Na Evangelii gaudium recordei que «Jesus é o primeiro e o maior evangelizador»; que «em qualquer forma de evangelização o primado é sempre de Deus», que «quis chamar-nos a colaborar com Ele e estimular-nos com a força do seu Espírito» (n. 12). Eis o primado do Espírito Santo! Por isso, o Senhor compara o dinamismo do Reino de Deus com «um homem que lança a semente na terra; quer durma quer esteja acordado, de noite ou de dia, a semente germina e cresce; como, ele próprio não sabe» (Mc 4, 26-27). O Espírito é o protagonista, precede sempre os missionários e faz germinar o fruto. Esta consciência consola-nos muito! E ajuda-nos a determinar outra, igualmente decisiva: ou seja, que no seu zelo apostólico a Igreja não anuncia a si mesma, mas uma graça, um dom, e o Espírito Santo é precisamente o Dom de Deus, como disse Jesus à samaritana (cf. Jo 4, 10).
No entanto, o primado do Espírito não deve induzir-nos à indolência. A confiança não justifica o desinteresse. A vitalidade da semente que cresce por si só não autoriza os agricultores a descuidar o campo. Ao dar as últimas recomendações, antes de subir ao céu, Jesus disse: «Recebereis a força do Espírito Santo, que descerá sobre vós e sereis minhas testemunhas [...] até aos confins da terra» (At 1, 8). O Senhor não nos deixou dispensas de teologia, nem um manual de pastoral a aplicar, mas o Espírito Santo, que suscita a missão. E o empreendimento corajoso que o Espírito infunde leva-nos a imitar o seu estilo, que tem sempre duas caraterísticas: criatividade e simplicidade.
Criatividade, para anunciar Jesus com alegria, a todos e hoje. Nesta nossa época, que não ajuda a ter um olhar religioso sobre a vida, e na qual em vários lugares o anúncio se tornou mais difícil, cansativo e aparentemente infrutífero, pode surgir a tentação de desistir do serviço pastoral. Talvez nos refugiemos em zonas de segurança, como a repetição habitual de coisas que sempre fazemos, ou nos apelos aliciadores de uma espiritualidade intimista, ou ainda num sentido mal compreendido da centralidade da liturgia. São tentações que se disfarçam de fidelidade à tradição, mas muitas vezes, mais do que respostas ao Espírito, são reações às insatisfações pessoais. Pelo contrário, a criatividade pastoral, a audácia no Espírito, o ardor do seu fogo missionário, é prova de fidelidade a Ele. Por isso, escrevi que «Jesus Cristo pode também romper os esquemas tediosos em que pretendemos aprisioná-lo e surpreende-nos com a sua constante criatividade divina. Sempre que procuramos voltar à fonte e recuperar o frescor original do Evangelho, surgem novos caminhos, métodos criativos, outras formas de expressão, sinais mais eloquentes, palavras repletas de renovado significado para o mundo atual» (Evangelii gaudium, 11).
Portanto, criatividade; e depois simplicidade, precisamente porque o Espírito nos leva à fonte, ao “primeiro anúncio”. Com efeito, é «o fogo do Espírito que [...] nos faz acreditar em Jesus Cristo que, com a sua morte e ressurreição, nos revela e comunica a misericórdia infinita do Pai» (ibid., 164). Este é o primeiro anúncio, que «deve ocupar o centro da atividade evangelizadora e de todas as intenções de renovação eclesial»; para repetir: «Jesus Cristo ama-te, deu a sua vida para te salvar e agora está vivo ao teu lado todos os dias, para te iluminar, fortalecer e libertar» (ibid.).
Irmãos e irmãs, deixemo-nos conquistar pelo Espírito, invocando-o todos os dias: que Ele seja o princípio do nosso ser e do nosso agir; que Ele esteja no início de cada atividade, encontro, reunião e anúncio. Ele vivifica e rejuvenesce a Igreja: com Ele não devemos ter medo, porque Ele, que é harmonia, mantém sempre unidas a criatividade e a simplicidade, suscita a comunhão e envia em missão, abre à diversidade e reconduz à unidade. Ele é a nossa força, o sopro do nosso anúncio, a nascente do zelo apostólico. Vinde, Espírito Santo!
Papa Francisco
Audiência geral 6.12.23
Catequeses. A paixão pela evangelização: o zelo apostólico do crente. 28. O anuncio é para hoje
Da última vez vimos que o anúncio cristão é alegria e é para todos; hoje vejamos um terceiro aspeto: é para hoje.
Quase sempre se ouve falar mal do dia de hoje. Certamente, com as guerras, as mudanças climáticas, a injustiça planetária e as migrações, as crises da família e da esperança, não faltam motivos de preocupação. De modo geral, a atualidade parece ser habitada por uma cultura que coloca o indivíduo acima de tudo e a tecnologia no centro de tudo, com a sua capacidade de resolver muitos problemas e os seus gigantescos avanços em tantos contextos. Mas, ao mesmo tempo, esta cultura do progresso técnico-individual leva à afirmação de uma liberdade que não quer dar limites a si própria e é indiferente aos que ficam para trás. E assim entrega as grandes aspirações humanas à lógica muitas vezes voraz da economia, com uma visão da vida que descarta os que não produzem e se esforça por olhar para além do imanente. Poderíamos até dizer que nos encontramos na primeira civilização da história que procura organizar globalmente uma sociedade humana sem a presença de Deus, concentrando-se nas grandes cidades que permanecem horizontais, mesmo com arranha-céus vertiginosos.
Vem-nos à mente a história da cidade de Babel e da sua torre (cf. Gn 11, 1-9). Nela, narra-se um projeto social que sacrifica toda a individualidade à eficácia do coletivo. A humanidade fala uma só língua - poderíamos dizer que tem um “pensamento único” - é como se estivesse envolvida numa espécie de feitiço geral que absorve a singularidade de cada um numa bolha de uniformidade. Então Deus confunde as línguas, ou seja, restabelece as diferenças, recria as condições para que a singularidade se desenvolva, reaviva o múltiplo onde a ideologia gostaria de impor o único. O Senhor também distrai a humanidade do seu delírio de omnipotência: «Criemos um nome para nós», dizem os exaltados habitantes de Babel (v. 4), que querem chegar ao céu, para se colocar no lugar de Deus. Mas estas são ambições perigosas, alienantes, destrutivas, e o Senhor, confundindo estas expetativas, protege a humanidade, impedindo uma catástrofe anunciada. Esta história parece realmente atual: ainda hoje, a coesão, em vez da fraternidade e da paz, assenta muitas vezes na ambição, no nacionalismo, na homologação e nas estruturas técnico-económicas que inculcam a persuasão de que Deus é insignificante e inútil: não tanto porque se procura mais conhecimento, mas sobretudo porque se quer mais poder. É uma tentação que permeia os grandes desafios da cultura atual.
Na Evangelii gaudium procurei descrever alguns deles (cf. nn. 52-75), mas sobretudo pedi «uma evangelização que ilumine novas formas de relacionamento com Deus, com os outros, com o ambiente e que suscite valores fundamentais. É preciso chegar onde se formam as novas narrativas e paradigmas, atingir os núcleos mais profundos da alma das cidades com a Palavra de Jesus» (n. 74). Em síntese, só se pode anunciar Jesus habitando a cultura do próprio tempo; e tendo sempre no coração as palavras do apóstolo Paulo sobre o hoje: «Eis, pois, o tempo favorável, eis agora o dia da salvação!» (2 Cor 6, 2). Por isso, não é necessário contrastar o hoje com visões alternativas do passado. Também não basta reafirmar convicções religiosas adquiridas que, embora verdadeiras, se tornam abstratas com o passar do tempo. Uma verdade não se torna mais credível porque se eleva a voz ao dizê-la, mas porque é testemunhada com a vida.
O zelo apostólico nunca é a mera repetição de um estilo adquirido, mas o testemunho de que o Evangelho está vivo para nós hoje. Conscientes disto, olhemos, pois, para a nossa época e para a nossa cultura como dom. São nossas, e evangelizá-las não significa julgá-las de longe, nem sequer estar na varanda a gritar o nome de Jesus, mas sair para as ruas, ir aos lugares onde as pessoas vivem, frequentar os espaços onde as pessoas sofrem, trabalham, estudam e refletem, habitar as encruzilhadas onde os seres humanos partilham o que faz sentido para a sua vida. Significa ser, como Igreja, «fermento de diálogo, de encontro, de unidade. Afinal, as nossas próprias formulações de fé são o resultado de um diálogo e de um encontro entre culturas, comunidades e instâncias diferentes. Não devemos ter medo do diálogo: pelo contrário, é precisamente o confronto e a crítica que nos ajudam a evitar que a teologia se transforme em ideologia» (Discurso na V Conferência nacional da Igreja italiana, Florença, 10 de novembro de 2015).
É necessário estar nas encruzilhadas do hoje. Abandoná-las empobreceria o Evangelho e reduziria a Igreja a uma seita. Frequentá-las, pelo contrário, ajuda-nos, a nós cristãos, a compreender de forma renovada as razões da nossa esperança, a extrair e a partilhar do tesouro da fé «coisas novas e coisas velhas» (Mt 13, 52). Em suma, mais do que querer converter o mundo de hoje, é preciso converter a pastoral para que ela encarne melhor o Evangelho no hoje (cf. Evangelii gaudium, 25). Façamos nosso o desejo de Jesus: ajudar os companheiros de viagem a não perder o desejo de Deus, a abrir-lhe o coração e a encontrar o Único que, hoje e sempre, dá a paz e a alegria ao homem.
Papa Francisco
Audiência geralk 01.12.23
Catequeses. A paixão pela evangelização: o zelo apostólico do crente. 27. O anuncio é para todos
Depois de ter visto, na última vez, que o anúncio cristão é alegria, meditemos hoje sobre um segundo aspeto: é para todos, o anúncio cristão é alegria para todos! Quando nos encontramos verdadeiramente com o Senhor Jesus, a maravilha deste encontro invade a nossa vida e pede para ser levada além de nós mesmos. É isso que Ele deseja, que o seu Evangelho seja para todos. Com efeito, nele existe um “poder humanizador”, um cumprimento de vida destinada a cada homem e mulher, porque Cristo nasceu, morreu e ressuscitou para todos. Para todos: sem excluir ninguém!
Na Evangelii gaudium lê-se: «Todos têm o direito de receber o Evangelho. Os cristãos têm o dever de o anunciar, sem excluir ninguém, e não como quem impõe uma nova obrigação, mas como quem partilha uma alegria, indica um horizonte estupendo, oferece um banquete apetecível. A Igreja não cresce por proselitismo, mas “por atração”» (n. 14). Irmãos e irmãs, sintamo-nos ao serviço do destino universal do Evangelho, que é para todos; e distingamo-nos pela capacidade de sair de nós próprios - para ser verdadeiro, o anúncio deve sair do próprio egoísmo - e ter também a capacidade de superar todos os confins. Os cristãos reúnem-se mais no adro do que na sacristia, e vão «pelas praças e pelas ruas da cidade» (Lc 14, 21). Devem ser abertos e expansivos, os cristãos devem ser “extrovertidos”, e este seu caráter vem de Jesus, que fez da sua presença no mundo um caminho contínuo, em vista de alcançar todos, até aprendendo de alguns dos seus encontros.
Neste sentido, o Evangelho narra o encontro surpreendente de Jesus com uma mulher estrangeira, cananeia, que lhe suplica que cure a filha doente (cf. Mt 15, 21-28). Jesus recusa, dizendo que só foi enviado «às ovelhas tresmalhadas da casa de Israel» e que «não é bom pegar no pão dos filhos e atirá-lo aos cachorrinhos» (vv. 24.26). Mas a mulher, com a insistência típica dos simples, responde que até «os cachorrinhos comem as migalhas que caem da mesa dos seus donos» (v. 27). Jesus fica impressionado e diz-lhe: «Mulher, grande é a tua fé! Faça-se como desejas» (v. 28). O encontro com esta mulher tem algo de único. Não só alguém faz com que Jesus mude de ideia, mas trata-se de uma mulher estrangeira e pagã; mas o próprio Senhor encontra a confirmação de que a sua pregação não se deve limitar ao povo a que pertence, mas abrir-se a todos.
A Bíblia mostra-nos que quando Deus chama uma pessoa e faz uma aliança com alguns, o critério é sempre este: escolhe alguém para alcançar outros, este é o critério de Deus, da chamada de Deus. Todos os amigos do Senhor experimentaram a beleza, mas também a responsabilidade e o peso de ser “escolhidos” por Ele. E todos sentiram o desânimo perante as próprias debilidades ou a perda das suas seguranças. Mas talvez a maior tentação consista em considerar a chamada recebida um privilégio, por favor, não, a chamada não é um privilégio, nunca! Não podemos dizer que somos privilegiados em relação aos outros, não! A chamada é para um serviço. E Deus escolhe alguém para amar todos, para ir ao encontro de todos!
Também para evitar a tentação de identificar o cristianismo com uma cultura, com uma etnia, com um sistema. Mas deste modo perde a sua natureza verdadeiramente católica, isto é, para todos, universal: não é um grupinho de eleitos de primeira classe. Não nos esqueçamos: Deus escolhe alguns para amar todos. Este horizonte de universalidade. O Evangelho não é só para mim, é para todos, não o esqueçamos. Obrigado!
Papa Francisco
22.11.23
Audiência geral
Catequeses. A paixão pela evangelização: o zelo apostólico do crente. 26. O anuncio é alegria
Depois de ter encontrado várias testemunhas do anúncio do Evangelho, proponho-me resumir este ciclo de catequeses sobre o zelo apostólico em quatro pontos, inspirados na Exortação apostólica Evangelii gaudium, que este mês completa dez anos. O primeiro ponto que hoje analisamos, o primeiro dos quatro, não pode deixar de se referir à atitude de que depende a substância do gesto evangelizador: a alegria. Como ouvimos nas palavras que o anjo dirigiu aos pastores, a mensagem cristã é o anúncio de «uma grande alegria» (Lc 2, 10). E a razão? Uma boa notícia, uma surpresa, um acontecimento agradável? Muito mais, uma Pessoa: Jesus! Jesus é a alegria! Ele é o Deus que se fez homem e que veio ao nosso encontro! Portanto, estimados irmãos e irmãs, a questão não é se o anunciar, mas como o anunciar, e este “como” é a alegria. Ou anunciamos Jesus com alegria, ou não o anunciamos, porque outra maneira de o anunciar não é capaz de comunicar a verdadeira realidade de Jesus.
Eis porque o cristão descontente, o cristão triste, o cristão insatisfeito ou, pior ainda, ressentido e rancoroso não é credível. Falará de Jesus, mas ninguém acreditará nele! Uma pessoa disse-me certa vez, falando destes cristãos: “Mas são cristãos com cara de bacalhau!”, ou seja, não exprimem nada, são assim, e a alegria é essencial. É essencial vigiar sobre os nossos sentimentos. A evangelização atua a gratuidade, porque vem da plenitude, não da pressão. E quando se pratica a evangelização - quer-se fazê-la, mas não assim - com base em ideologias, isso não é evangelizar, isso não é o Evangelho. O Evangelho não é uma ideologia: o Evangelho é um anúncio, um anúncio de alegria. As ideologias são frias, todas. O Evangelho tem o calor da alegria. As ideologias não sabem sorrir, o Evangelho é um sorriso, faz-nos sorrir porque toca a nossa alma com a Boa Nova.
O nascimento de Jesus, tanto na história como na vida, é o princípio da alegria: pensemos no que aconteceu aos discípulos de Emaús, era tanta a alegria que não podiam acreditar, e aos outros, depois, aos discípulos todos juntos, quando Jesus vai ao Cenáculo, era tanta a alegria que não podiam acreditar (cf. Lc 24, 13-35). A alegria de ter Jesus ressuscitado. O encontro com Jesus traz-nos sempre alegria, e se isto não nos acontece, não é um verdadeiro encontro com Jesus.
E aquilo que Jesus faz com os discípulos diz-nos que os primeiros que devem ser evangelizados são os discípulos, os primeiros que devem ser evangelizados somos nós, cristãos: somos nós. E isto é muito importante!
Com efeito, imersos no clima frenético e confuso de hoje, também nós poderíamos encontrar-nos a viver a fé com um leve sentido de renúncia, persuadidos de que para o Evangelho já não há escuta e que não vale mais a pena esforçar-se para o anunciar. Poderíamos até ser tentados pela ideia de deixar que “os outros” sigam o próprio caminho. Pelo contrário, precisamente este é o momento de voltar ao Evangelho para descobrir que Cristo «é sempre jovem e fonte constante de novidades» (Evangelii gaudium, 11).
Assim, como os dois de Emaús, volta-se à vida de todos os dias com o ímpeto de quem encontrou um tesouro: aqueles dois eram jubilosos, porque tinham encontrado Jesus, e isto mudou a vida deles. E descobre-se que a humanidade está repleta de irmãos e irmãs que aguardam uma palavra de esperança. O Evangelho é esperado até hoje: o homem de hoje é como o homem de todos os tempos, precisa dele, inclusive a civilização da incredulidade programada e da secularidade institucionalizada; aliás, sobretudo a sociedade que deixa vazios os espaços do sentido religioso, precisa de Jesus. Este é o momento favorável para o anúncio de Jesus. Por isso, gostaria de dizer novamente a todos: «A alegria do Evangelho enche o coração e a vida inteira daqueles que se encontram com Jesus. Quantos se deixam salvar por Ele são libertados do pecado, da tristeza, do vazio interior, do isolamento. Com Jesus Cristo, a alegria nasce e renasce sem cessar» (ibid., 1). Não nos esqueçamos disto. E se algum de nós não sentir esta alegria, que se pergunte se encontrou Jesus. Uma alegria interior! O Evangelho vai pelo caminho da alegria, sempre, é o grande anúncio. Convido cada cristão, em qualquer lugar e situação em que esteja, a renovar hoje o seu encontro com Jesus Cristo. Que cada um de nós, hoje, dedique um pouco de tempo para pensar: “Jesus, Tu estás dentro de mim: quero encontrar-te todos os dias. Tu és uma Pessoa, não uma ideia. Tu és um companheiro de caminho, não um programa. Tu és o Amor que resolve tantos problemas. Tu és o início da evangelização. Tu, Jesus, és a fonte da alegria”. Amém!
Papa Francisco
Audiência geral 15.11.23
Catequeses. A paixão pela evangelização: o zelo apostólico do crente. 25. Madeleine Delbrêl. A alegria da fé entre os não crentes.
Entre as numerosas testemunhas da paixão pelo anúncio do Evangelho, aqueles evangelizadores apaixonados, apresento hoje a figura de uma francesa do século XX, a venerável serva de Deus Madeleine Delbrêl. Nascida em 1904 e falecida em 1964, foi assistente social, escritora e mística, e viveu por mais de trinta anos na periferia pobre e operária de Paris. Deslumbrada pelo encontro com o Senhor, escreveu: «Uma vez que conhecemos a palavra de Deus, não temos o direito de não a receber; quando a recebemos, não temos o direito de não a deixar encarnar-se em nós; quando se encarna em nós, não temos o direito de a conservar para nós: a partir daquele momento, pertencemos àqueles que a esperam» (La santità della gente comune, Milão 2020, 71). É bonito: é bonito o que ela escreveu...
Depois de uma adolescência vivida no agnosticismo – não acreditava em nada – com cerca de 20 anos Madeleine encontra o Senhor, impressionada pelo testemunho de alguns amigos crentes. Então põe-se à procura de Deus, dando voz a uma sede profunda que sentia dentro de si, e chega a compreender que o «vazio que nela gritava a sua angústia» era Deus que a procurava (Abbagliata da Dio. Corrispondenza 1910-1941, Milão 2007, 96). A alegria da fé leva-a a amadurecer uma opção de vida inteiramente dedicada a Deus, no coração da Igreja e no coração do mundo, simplesmente compartilhando em fraternidade a vida das “pessoas de rua”. Poeticamente, assim se dirigia a Jesus: «Para estar contigo no teu caminho, é preciso ir, até quando a nossa preguiça nos suplica que fiquemos. Escolheste-nos para estar num estranho equilíbrio, um equilíbrio que só pode ser estabelecido e mantido em movimento, só num impulso. Um pouco como uma bicicleta, que não consegue ficar de pé sem estar em movimento [...] Só podemos estar de pé avançando, movendo-nos, num ímpeto de caridade». É aquilo a que ela chama a “espiritualidade da bicicleta” (Umorismo nell’Amore. Meditazioni e poesie, Milão 2011, 56). Só a caminho, correndo, vivemos no equilíbrio da fé, que é um desequilíbrio, mas é assim: como a bicicleta. Se pararmos, ela não fica em pé.
Madeleine tinha o coração continuamente em saída e deixava-se interpelar pelo clamor dos pobres. Sentia que o Deus vivo do Evangelho devia arder dentro de nós, até levarmos o seu nome àqueles que ainda não o encontraram. Neste espírito, diante das agitações do mundo e do clamor dos pobres, Madeleine sente-se chamada a «viver o amor de Jesus inteiramente e ao pé da letra, desde o óleo do bom Samaritano até ao vinagre do Calvário, oferecendo-lhe assim amor por amor [...] para que, amando-o sem reservas e deixando-se amar até ao fim, os dois grandes mandamentos da caridade se encarnem em nós, tornando-se um só» (La vocation de la charité, 1, Œuvres complètes XIII, Bruyères-le-Châtel, 138-139).
No final, Madeleine ensina-nos mais uma coisa: que evangelizando somos evangelizados: evangelizando, somos evangelizados. Por isso, inspirando-se em São Paulo, dizia: «Ai de mim, se a evangelização não me evangelizar!». Evangelizando, evangelizamo-nos a nós próprios. E esta é uma boa doutrina!
Olhando para esta testemunha do Evangelho, também nós aprendemos que, em cada situação e circunstância pessoal ou social da nossa vida, o Senhor está presente e chama-nos a habitar o nosso tempo, a compartilhar a vida dos outros, a misturar-nos com as alegrias e as dores do mundo. Em particular, ensina-nos que até os ambientes secularizados nos são úteis para a conversão, pois a interação com os não-crentes estimula o crente a uma contínua revisão do seu modo de crer e a redescobrir a fé na sua essencialidade (cf. Noi delle strade, Milão 1988, 268 s.).
Que Madeleine Delbrêl nos ensine a viver esta fé “em movimento”, por assim dizer, esta fé fecunda que faz de cada ato de fé um ato de caridade no anúncio do Evangelho. Obrigado!
Papa Francisco
Audiência geral 8.11.23
Catequeses. A paixão pela evangelização: o zelo apostólico do crente. 24. Os Santos Cirilo e Metódio, apóstolos dos Eslavos
Hoje falar-vos-ei de dois irmãos muito famosos no Oriente, a ponto de serem chamados “os apóstolos dos Eslavos”: os Santos Cirilo e Metódio. Nascidos na Grécia no século IX, numa família aristocrática, renunciam à carreira política para se dedicar à vida monástica. Mas o seu sonho de uma existência retirada dura pouco. São enviados como missionários para a Grande Morávia, que naquela época abrangia vários povos, já parcialmente evangelizados, mas entre os quais subsistiam muitos costumes e tradições pagãs. O seu príncipe pediu um mestre que explicasse a fé cristã na língua deles.
Portanto, a primeira tarefa de Cirilo e Metódio consiste em aprofundar o estudo da cultura daqueles povos. Sempre aquele refrão: a fé deve ser inculturada e a cultura deve ser evangelizada. Inculturação da fé, evangelização da cultura, sempre! Cirilo pergunta se têm um alfabeto; dizem-lhe que não. E ele responde: “Quem pode escrever um discurso sobre a água?”. Com efeito, para anunciar o Evangelho e para pregar, era necessário um instrumento próprio, adequado, específico. Assim, inventa o alfabeto glagolítico. Traduz a Bíblia e os textos litúrgicos. As pessoas sentem que aquela fé cristã já não é “estrangeira”, mas torna-se a fé delas, falada na língua materna. Pensai: dois monges gregos que oferecem um alfabeto aos Eslavos. Foi esta abertura de coração que enraizou o Evangelho entre eles. Estes dois não tinham medo, eram corajosos!
No entanto, depressa surgem oposições de alguns Latinos, que se veem privados do monopólio da pregação entre os Eslavos, aquela luta dentro da Igreja, sempre assim! A sua objeção é religiosa, mas apenas na aparência: Deus só pode ser louvado – dizem – nas três línguas escritas na cruz, o hebraico, o grego e o latim. Tinham a mentalidade fechada para defender a própria autonomia. Mas Cirilo responde com veemência: Deus quer que cada povo o louve na própria língua. Com o irmão Metódio, dirige um apelo ao Papa, que aprova os seus textos litúrgicos em língua eslava, manda colocá-los sobre o altar da igreja de Santa Maria Maior e, com eles, canta os louvores do Senhor segundo aqueles livros. Cirilo falece poucos dias depois, e as suas relíquias ainda são veneradas aqui em Roma, na Basílica de São Clemente. Metódio, ao contrário, é ordenado bispo e enviado para os territórios dos Eslavos. Aqui deverá sofrer muito, até será preso, mas irmãos e irmãs, sabemos que a Palavra de Deus não é acorrentada e que se propaga entre aqueles povos.
Olhando para o testemunho destes dois evangelizadores, que São João Paulo II quis como copadroeiros da Europa e sobre os quais escreveu a Encíclica Slavorum Apostoli, vejamos três aspetos importantes.
Em primeiro lugar, a unidade: os Gregos, o Papa, os Eslavos: naquela época na Europa havia uma cristandade não dividida, que colaborava para evangelizar.
Um segundo aspeto importante é a inculturação, sobre a qual eu já disse algo antes: evangelizar a cultura, e a inculturação mostra que evangelização e cultura estão intimamente ligadas. Não se pode pregar um Evangelho de modo abstrato, destilado, não: o Evangelho deve ser inculturado e é também expressão da cultura.
Um último aspeto, a liberdade. Na pregação, é necessária a liberdade, mas a liberdade precisa sempre da coragem; uma pessoa é livre quando é mais corajosa e não se deixa acorrentar por tantas coisas que lhe tiram a liberdade!
Irmãos e irmãs, peçamos aos Santos Cirilo e Metódio, apóstolos dos Eslavos, para ser instrumentos de “liberdade na caridade” para os outros. Ser criativos, constantes e humildes, com a oração e com o serviço.
Papa Francisco
Audiência geral 25.10.23
Catequeses. A paixão pela evangelização: o zelo apostólico do crente. 23. São Charles de Foucauld, coração pulsante de caridade na vida oculta
Prossigamos o nosso encontro com alguns cristãos, testemunhas ricas de zelo no anúncio do Evangelho. O zelo apostólico, o zelo pelo anúncio: passamos em revista alguns cristãos que foram exemplos deste zelo apostólico. Hoje gostaria de vos falar de um homem que fez de Jesus e dos irmãos mais pobres a paixão da própria vida. Refiro-me a São Carlos de Foucauld que, «partindo da sua intensa experiência de Deus, percorreu um caminho de transformação até se sentir irmão de todos» (Carta Encíclica Fratelli tutti, 286).
E qual era o “segredo” de Carlos de Foucauld, da sua vida? Depois de ter vivido uma juventude longe de Deus, sem acreditar em nada, a não ser na busca desordenada do prazer, ele confia-o a um amigo não crente, a quem, depois de se ter convertido aceitando a graça do perdão de Deus na Confissão, revela a razão da sua vida. Escreve: «Perdi o meu coração por Jesus de Nazaré».1 Assim, o irmão Carlos recorda-nos que o primeiro passo para evangelizar é ter Jesus dentro do coração, é “perder a cabeça” por Ele. Se isso não acontecer, dificilmente conseguiremos mostrá-lo com a vida. Ao contrário, corremos o risco de falar de nós próprios, do nosso grupo de pertença, de uma moral ou, pior ainda, de um conjunto de regras, mas não de Jesus, do seu amor, da sua misericórdia. Vejo isto nalguns movimentos novos que surgem: falam da sua visão da humanidade, falam da sua espiritualidade e sentem-se um caminho novo... Mas por que não falais de Jesus? Falam de muitas coisas, de organização, de caminhos espirituais, mas não sabem falar de Jesus. Penso que hoje seria bom que cada um de nós se perguntasse: tenho Jesus no centro do coração? Perdi um pouco a cabeça por Jesus?
Carlos sim, a ponto de passar da atração por Jesus à imitação de Jesus. Aconselhado pelo seu confessor, vai à Terra Santa para visitar os lugares onde o Senhor viveu e para caminhar onde o Mestre caminhou. Em particular, em Nazaré compreende que deve formar-se na escola de Cristo. Vive uma relação intensa com o Senhor, passa longas horas a ler os Evangelhos e sente-se como o seu irmão mais novo. E, conhecendo Jesus, brota nele o desejo de o dar a conhecer. Acontece sempre assim: à medida que cada um de nós conhece mais Jesus, nasce o desejo de o dar a conhecer, de compartilhar este tesouro. Comentando a narração da visita de Nossa Senhora a Santa Isabel, leva-o a dizer: «Ofereci-me ao mundo... levai-me ao mundo!». Sim, mas como o fazer? Como Maria, no mistério da Visitação: «Em silêncio, com o exemplo, com a vida».[2] Com a vida, porque «toda a nossa existência, escreve o irmão Carlos, deve gritar o Evangelho».[3] E muitas vezes a nossa existência grita mundanidade, grita tantas coisas estúpidas, coisas estranhas, e ele diz: “Não, toda a nossa existência deve gritar o Evangelho”.
Então, ele decide estabelecer-se em regiões longínquas para gritar o Evangelho no silêncio, vivendo no espírito de Nazaré, em pobreza e escondimento. Vai para o deserto do Sahara, entre os não-cristãos, e chega lá como amigo e irmão, levando a mansidão de Jesus-Eucaristia. Carlos deixa Jesus agir silenciosamente, convencido de que a “vida eucarística” evangeliza. Sim, acredita que Cristo é o primeiro evangelizador. Assim, permanece em oração aos pés de Jesus, diante do tabernáculo, aproximadamente dez horas por dia, convicto de que aí reside a força evangelizadora e sentindo que Jesus o aproxima de numerosos irmãos distantes. E nós, pergunto-me, acreditamos na força da Eucaristia? O nosso ir ao encontro dos outros, o nosso serviço, encontra aí, na adoração, o seu início e o seu cumprimento? Estou convencido de que perdemos o sentido da adoração; devemos recuperá-lo, a começar por nós, consagrados, bispos, sacerdotes, religiosas e todos os consagrados. “Perder” tempo diante do tabernáculo, recuperar o sentido da adoração.
Carlos de Foucauld escreveu: «Cada cristão é apóstolo»,[4] recordando a um amigo que «ao lado dos sacerdotes, são necessários leigos que vejam o que o presbítero não vê, que evangelizem com proximidade de caridade, com bondade para com todos, com afeto sempre pronto a entregar-se».[5] Leigos santos, não carreiristas. E aqueles leigos, aquele leigo, aquela leiga que se apaixonaram por Jesus levam o sacerdote a compreender que não é um funcionário, que ele é um mediador, um sacerdote. Quanto precisamos nós, sacerdotes, de ter ao nosso lado estes leigos que acreditam seriamente e que, com o seu testemunho, nos ensinam o caminho. Com esta experiência, Carlos de Foucauld antecipa os tempos do Concílio Vaticano II, intui a importância dos leigos e compreende que o anúncio do Evangelho compete a todo o povo de Deus. Mas como podemos aumentar esta participação? Como fez Carlos de Foucauld: pondo-nos de joelhos e aceitando a ação do Espírito, que suscita sempre novos modos de participação, encontro, escuta e diálogo, sempre em colaboração e confiança, sempre em comunhão com a Igreja e com os pastores.
São Carlos de Foucauld, figura que é profecia para o nosso tempo, deu testemunho da beleza de comunicar o Evangelho através do apostolado da mansidão: ele, que se sentia “irmão universal” e acolhia todos, mostra-nos a força evangelizadora da mansidão, da ternura. Não esqueçamos que o estilo de Deus reside em três palavras: proximidade, compaixão e ternura. Deus está sempre próximo, é sempre compassivo, sempre terno. E o testemunho cristão deve seguir este caminho: de proximidade, de compaixão, de ternura. E ele era assim, manso e terno. Desejava que quantos o encontrassem vissem, através da sua bondade, a bondade de Jesus. Com efeito, dizia que era «servo de alguém que é muito melhor do que eu».[6] Viver a bondade de Jesus levava-o a criar laços fraternos de amizade com os pobres, com os Tuaregues, com os mais distantes da sua mentalidade. Aos poucos, esses vínculos geravam fraternidade, inclusão, valorização da cultura do outro. A bondade é simples e pede que sejamos pessoas simples, sem medo de oferecer um sorriso. E com o sorriso, com a sua simplicidade, o irmão Carlos dava testemunho do Evangelho. Nunca proselitismo, nunca: testemunho. A evangelização não se faz por proselitismo, mas por testemunho, por atração. Concluindo, perguntemo-nos então se trazemos em nós e levamos aos outros a alegria cristã, a mansidão cristã, a ternura cristã, a compaixão cristã, a proximidade cristã. Obrigado!
Papa Francisco
Audiência Geral 18.10.23
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[1] Lettres à un ami de lycée. Correspondance avec Gabriel Tourdes (1874-1915), Paris 2010, 161.
[2] Crier l’Evangile, Montrouge 2004, 49.
[3] M/314 in C. de Foucauld, La bonté de Dieu. Méditations sur les Saints Evangiles (1), Montrouge 2002, 285.
[4] Lettre à Joseph Hours, in Correspondances lyonnaises (1904-1916), Paris 2005, 92.
[5] Ivi, 90.
[6] Carnets de Tamanrasset (1905-1916), Paris 1986, 188.
Catequeses. A paixão pela evangelização: o zelo apostólico do crente. 22. Santa Josefina Bakhita: testemunha da força transformadora do perdão de Cristo
No caminho de catequeses sobre o zelo apostólico – refletimos sobre o zelo apostólico – hoje deixemo-nos inspirar pelo testemunho de Santa Josefina Bakhita, uma santa sudanesa. Infelizmente, há meses que o Sudão é dilacerado por um terrível conflito armado, do qual pouco se fala hoje; oremos pelo povo sudanês, para que possa viver em paz! Mas a fama de Santa Bakhita ultrapassou todas as fronteiras e chegou a todos aqueles a quem é negada a identidade e a dignidade.
Nascida no Darfur - o martirizado Darfur! - em 1869, foi raptada da sua família com sete anos e feita escrava. Os seus raptores chamavam-lhe “Bakhita”, que significa “felizarda”. Teve oito donos, um vendia-a a outro. Os sofrimentos físicos e morais que padeceu na infância deixaram-na sem identidade. Sofreu maldades e violências: no seu corpo trazia mais de cem cicatrizes. Mas ela própria testemunhou: “Como escrava, nunca desesperei, porque sentia uma força misteriosa que me sustentava”.
Diante disto, pergunto-me: qual é o segredo de Santa Bakhita? Sabemos que muitas vezes a pessoa ferida, por sua vez, fere; o oprimido torna-se facilmente opressor. No entanto, a vocação dos oprimidos é libertar-se a si próprios e aos seus opressores, tornando-se restauradores de humanidade. Só na debilidade dos oprimidos se pode revelar a força do amor de Deus, que liberta ambos. Santa Bakhita exprime muito bem esta verdade. Um dia, o seu tutor dá-lhe um pequeno crucifixo, e ela, que nunca tinha possuído nada, conserva-o ciosamente como um tesouro. Fitando-o, experimenta uma libertação interior, porque se sente compreendida e amada e, portanto, capaz de compreender e amar: este é o início. Sente-se compreendida, sente-se amada e, por conseguinte, capaz de compreender e amar os outros. Com efeito, dirá: “O amor de Deus sempre me acompanhou de modo misterioso... O Senhor amou-me tanto: é preciso amar todos... É preciso compadecer-se!”. Esta é a alma de Bakhita! Na verdade, com-padecer significa tanto padecer com as vítimas de tanta desumanidade presente no mundo, como também compadecer-se de quem comete erros e injustiças, não justificando, mas humanizando. Esta é a carícia que ela nos ensina: humanizar! Quando entramos na lógica da luta, da divisão entre nós, dos maus sentimentos, uns contra os outros, perdemos a humanidade. E muitas vezes pensamos que precisamos de humanidade, que devemos ser mais humanos. E esta é a tarefa que Santa Bakhita nos ensina: humanizar, humanizar-nos a nós mesmos e humanizar os outros.
Santa Bakhita, que se tornou cristã, é transformada pelas palavras de Cristo, que meditava diariamente: «Pai, perdoa-lhes, porque não sabem o que fazem!» (Lc 23, 34). Por isso, dizia: “Se Judas tivesse pedido perdão a Jesus, também ele teria encontrado misericórdia”. Podemos dizer que a vida de Santa Bakhita se tornou uma parábola existencial do perdão. Como é bom dizer de uma pessoa: “Foi capaz, foi sempre capaz de perdoar”. E ela foi sempre capaz de o fazer, aliás: a sua vida é uma parábola existencial do perdão. Perdoar, porque assim seremos perdoados. Não vos esqueçais disto: o perdão, que é a carícia de Deus para todos nós!
O perdão libertou-a. O perdão recebido, primeiro através do amor misericordioso de Deus, e depois o perdão oferecido, fizeram dela uma mulher livre, alegre, capaz de amar.
Bakhita pôde viver o serviço não como escravatura, mas como expressão do dom livre de si. E isto é muito importante: fez-se voluntariamente serva – foi vendida como escrava – e em seguida escolheu livremente fazer-se serva, carregar sobre os seus ombros os fardos dos outros!
Com o seu exemplo, Santa Josefina Bakhita indica-nos o caminho para nos libertarmos finalmente das nossas escravidões e medos. Ajuda-nos a desmascarar as nossas hipocrisias e egoísmos, a superar ressentimentos e conflitos. E encoraja-nos sempre.
Caros irmãos e irmãs, o perdão não tira nada, mas acrescenta – o que acrescenta o perdão? Dignidade: o perdão não te tira nada, mas acrescenta dignidade à pessoa, faz-nos afastar o olhar de nós mesmos e fitar os outros, para os ver frágeis como nós, mas sempre irmãos e irmãs no Senhor. Irmãos e irmãs, o perdão é a nascente de um zelo que se torna misericórdia e chama a uma santidade humilde e jubilosa, como a de Santa Bakhita.
Papa Francisco
Audiência Geral 11.10.23
Catequeses. A paixão pela evangelização: o zelo apostólico do crente. 21. São Daniel Comboni, apóstolo de África e profeta da missão
No caminho de catequeses sobre a paixão evangelizadora, ou seja, o zelo apostólico, meditemos hoje sobre o testemunho de São Daniel Comboni. Ele foi um apóstolo cheio de zelo pela África. Sobre aqueles povos, escreveu: «Apoderaram-se do meu coração, que só vive para eles» (Escritos, 941), «morrerei com a África nos meus lábios» (Escritos, 1441). É bonito... E a eles dirigia-se assim: «O mais feliz dos meus dias será quando eu puder dar a vida por vós» (Escritos, 3159). Trata-se da expressão de uma pessoa apaixonada por Deus e pelos irmãos que servia em missão, a propósito dos quais não se cansava de recordar que «Jesus Cristo sofreu e morreu também por eles» (Escritos, 2499; 4801).
Afirmava-o num contexto caraterizado pelo horror da escravatura, de que foi testemunha. A escravatura “coisifica” o homem, cujo valor se reduz a ser útil a alguém ou a algo. Mas Jesus, Deus que se fez homem, elevou a dignidade de cada ser humano, desmascarando a falsidade de qualquer escravatura. À luz de Cristo, Comboni adquiriu consciência do mal da escravatura; além disso, compreendeu que a escravatura social se arraiga numa escravatura mais profunda, a do coração, do pecado, da qual o Senhor nos liberta. Portanto, como cristãos, somos chamados a lutar contra todas as formas de escravatura. Mas infelizmente a escravatura, assim como o colonialismo, não é uma recordação do passado, infelizmente! Na África tão amada por Comboni, hoje dilacerada por numerosos conflitos, «depois daquele político, desencadeou-se (...) um “colonialismo económico”, igualmente escravizante (...). É um drama perante o qual o mundo economicamente mais avançado muitas vezes fecha os olhos, os ouvidos e a boca». Por isso, renovo o meu apelo: «Deixai de sufocar a África: ela não é uma mina a explorar, nem um solo a saquear» (Encontro com as Autoridades, Kinshasa, 31 de janeiro de 2023).
Voltemos à vicissitude de São Daniel. Depois de ter passado um primeiro período na África, teve que abandonar a missão por motivos de saúde. Demasiados missionários tinham morrido por ter contraído doenças, devido ao escasso conhecimento da realidade local. Mas se outros abandonavam a África, Comboni não. Após um período de discernimento, sentiu que o Senhor lhe inspirava um novo caminho de evangelização, que ele resumiu com as seguintes palavras: «Salvar a África com a África» (Escritos, 2741 s.). Trata-se de uma intuição poderosa, não há colonialismo algum nisto: é uma intuição poderosa que contribuiu para renovar o compromisso missionário: as pessoas evangelizadas não eram apenas “objetos”, mas “sujeitos” da missão. E São Daniel Comboni desejava tornar todos os cristãos protagonistas da ação evangelizadora. E com este espírito, pensou e agiu de modo integral, envolvendo o clero local e promovendo o serviço laical dos catequistas. Os catequistas são um tesouro da Igreja: os catequistas são aqueles que vão em frente na evangelização. Assim concebia também o desenvolvimento humano, interessando-se pelas artes e profissões, favorecendo o papel da família e da mulher na transformação da cultura e da sociedade. E como é importante, ainda hoje, fazer progredir a fé e o desenvolvimento humano a partir do interior dos contextos de missão, em vez de neles transplantar modelos externos, ou limitar-se a um assistencialismo estéril! Nem modelos externos, nem assistencialismo. Haurir da cultura dos povos o caminho para fazer a evangelização. Evangelizar a cultura e inculturar o Evangelho: caminham juntos!
No entanto, a grande paixão missionária de Comboni não foi principalmente fruto do esforço humano: ele não era impelido pela sua coragem, nem motivado apenas por valores importantes, como a liberdade, a justiça e a paz; o seu zelo nascia da alegria do Evangelho, alimentava-se do amor de Cristo e levava ao amor a Cristo! São Daniel escreveu: «Uma missão tão árdua e laboriosa como a nossa não pode viver de aparências, de sujeitos de pescoço torto, cheios de egoísmo e de si próprios, que não se preocupam, como deviam, com a saúde e a conversão das almas». Este é o drama do clericalismo, que leva os cristãos, até os leigos, a clericalizar-se e a transformá-los - como se diz aqui - em sujeitos de pescoço torto, cheios de egoísmo. Esta é a chaga do clericalismo. E acrescentava: «É preciso fazê-los arder de caridade, com a sua fonte em Deus e no amor de Cristo; e quando se ama verdadeiramente a Cristo, então as privações, os padecimentos e o martírio são docilidades» (Escritos, 6656). O seu desejo era ver missionários fervorosos, alegres, comprometidos: missionários - escrevia - «santos e capazes. [...] Primeiro: santos, isto é, alheios ao pecado e humildes. Mas não basta: é necessária a caridade para tornar os sujeitos capazes» (Escritos, 6655). Portanto, para Comboni a fonte da capacidade missionária é a caridade, em particular o zelo de fazer seus os sofrimentos dos outros.
De resto, a sua paixão evangelizadora nunca o levou a agir como solista, mas sempre em comunhão, na Igreja. «Só tenho a vida para consagrar à saúde daquelas almas», escreveu, «gostaria de ter mil para as consumir com este objetivo» (Escritos, 2271).
Irmãos e irmãs, São Daniel dá testemunho do amor do bom Pastor, que vai em busca de quem se perdeu e dá a vida pelo rebanho. O seu zelo foi enérgico e profético, opondo-se à indiferença e à exclusão. Nas cartas recordava com entusiasmo a sua amada Igreja, que durante demasiado tempo tinha esquecido a África. O sonho de Comboni é uma Igreja que faça causa comum com os crucificados da história, para experimentar com eles a ressurreição. Neste momento, dou-vos uma sugestão. Pensai nos crucificados da história de hoje: homens, mulheres, crianças, idosos que são crucificados por histórias de injustiça e de domínio. Pensemos neles e oremos! O seu testemunho parece reiterar a todos nós, homens e mulheres de Igreja: “Não esqueçais os pobres, amai-os, pois neles está presente Jesus crucificado, à espera de ressuscitar”. Não vos esqueçais dos pobres: antes de vir aqui, tive um encontro com legisladores brasileiros que trabalham a favor dos pobres, que procuram promover os pobres com a assistência e a justiça social. E eles não se esquecem dos pobres: trabalham pelos pobres. Digo-vos: não vos esqueçais dos pobres, pois são eles que vos abrirão a porta do Céu.
Papa Francisco
Audiência geral 20.09.23
Catequeses. A paixão pela evangelização: o zelo apostólico do crente. 20.
O Beato José Gregório Hernández Cisneros, médico dos pobres e apóstolo de paz
Nas nossas catequeses, continuamos a encontrar testemunhas apaixonadas pelo anúncio do Evangelho. Recordemos que se trata de uma série de catequeses sobre o zelo apostólico, a vontade e também o ardor interior para anunciar o Evangelho. Hoje vamos à América Latina, precisamente à Venezuela, para conhecer a figura de um leigo, o Beato José Gregório Hernández Cisneros. Nasceu em 1864 e aprendeu a fé sobretudo com a mãe, como ele disse: «A minha mãe ensinou-me a virtude desde o berço, fez-me crescer no conhecimento de Deus e deu-me a caridade como guia». Prestemos atenção: são as mães que transmitem a fé. A fé transmite-se em dialeto, ou seja, com a linguagem das mães, aquele dialeto que as mães sabem falar com os filhos. E a vós, mães: tende o cuidado de transmitir a fé no dialeto materno.
Verdadeiramente, a caridade foi a estrela polar que orientou a existência do Beato José Gregório: pessoa bondosa e solar, de temperamento alegre, era dotado de notável inteligência; tornou-se médico, professor universitário e cientista. Mas foi sobretudo um doutor próximo dos mais frágeis, a ponto de ser conhecido na pátria como “o médico dos pobres”. Cuidava dos pobres, sempre. À riqueza do dinheiro preferiu a do Evangelho, despendendo a existência para socorrer os necessitados. Nos pobres, nos doentes, nos migrantes, em quantos sofrem, José Gregório via Jesus. E o sucesso que nunca procurou no mundo, recebeu-o, e continua a recebê-lo, das pessoas, que lhe chamam “santo do povo”, “apóstolo da caridade”, “missionário da esperança”. Lindos nomes: “Santo do povo”, “apóstolo da caridade”, “missionário da esperança”.
José Gregório era um homem humilde, um homem gentil e disponível. Mas, ao mesmo tempo, era movido por um fogo interior, pelo desejo de viver ao serviço de Deus e do próximo. Impelido por este ardor, várias vezes procurou tornar-se religioso e sacerdote, mas diversos problemas de saúde impediram-no de o fazer. No entanto, a fragilidade física não o levou a fechar-se em si mesmo, mas a tornar-se um médico ainda mais sensível às necessidades dos outros; apegou-se à Providência e, forjado na alma, foi mais ao essencial. Eis o zelo apostólico: não segue as próprias aspirações, mas a disponibilidade aos desígnios de Deus. E assim o Beato compreendeu que, mediante o cuidado dos doentes, colocaria em prática a vontade de Deus, socorrendo quantos sofrem, dando esperança aos pobres, testemunhando a fé não com palavras, mas com o exemplo. Assim chegou – por este caminho interior – a aceitar a medicina como um sacerdócio: “O sacerdócio da dor humana” (M. YABER, José Gregório Hernández: Médico de los Pobres, Apóstolo de la Justicia Social, Misionero de las Esperanzas, 2004, 107). Como é importante não sofrer as coisas passivamente, mas como diz a Escritura, fazer tudo com boa vontade, para servir o Senhor (cf. Cl 3, 23).
Mas perguntemo-nos: de onde hauria José Gregório todo este entusiasmo, todo este zelo? De uma certeza e de uma força. A certeza era a graça de Deus. Ele escreveu que «se no mundo há bons e maus, os maus existem porque eles próprios se tornaram maus: mas os bons são tais com a ajuda de Deus» (27 de maio de 1914). E ele foi o primeiro que se sentiu necessitado da graça, que mendigava nas ruas e tinha extrema necessidade do amor. Eis a força da qual hauria: a intimidade com Deus. Era um homem de oração – há a graça de Deus e a intimidade com o Senhor – era um homem de oração que participava na Missa.
E, em sintonia com Jesus, que se oferece no altar por todos, José Gregório sentiu-se chamado aoferecer a sua vida pela paz. Estava a decorrer a primeira guerra mundial. Assim chegamos ao dia 29 de junho de 1919: um amigo visita-o e encontra-o muito feliz. Sim, José Gregório soube que fora assinado o tratado que punha fim à guerra. A sua oferta foi aceite e é como se pressentisse que a sua tarefa na terra tinha acabado. Nessa manhã, como de costume, foi à Missa e agora sai à rua para levar um remédio a um doente. Mas, enquanto atravessa a rua, é atropelado por um veículo; levado para o hospital, falece pronunciando o nome de Nossa Senhora. O seu caminho terreno conclui-se assim, numa rua, enquanto realiza uma obra de misericórdia, e num hospital, onde fizera do seu trabalho uma obra-prima como médico.
Irmãos e irmãs, perante este testemunho, perguntemo-nos: eu, diante de Deus presente nos pobres perto de mim, diante daqueles que mais sofrem no mundo, como reajo? E de que maneira me diz respeito o exemplo de José Gregório? Ele estimula-nos a um compromisso perante as grandes questões sociais, económicas e políticas de hoje. Muitos comentam isto, tantos falam mal, muitos criticam e dizem que tudo corre mal. Contudo, o cristão não é chamado a isto, mas a enfrentar as questões, a sujar as mãos: em primeiro lugar, como nos disse São Paulo, a rezar (cf. 1 Tm 2, 1-4), e depois a comprometer-se não em tagarelices – a bisbilhotice é uma chaga – mas na promoção do bem e na construção da paz e da justiça na verdade. Também isto é zelo apostólico, é anúncio do Evangelho, e isto é bem-aventurança cristã: «Bem-aventurados os pacificadores» (Mt 5, 9). Sigamos o caminho do Beato Gregório: um leigo, um médico, um homem de trabalho quotidiano que o zelo apostólico estimulou a viver praticando a caridade durante a vida inteira.
Papa Francisco
Audiência Geral 13.09.23
Catequeses. A paixão pela evangelização: o zelo apostólico do crente. 18. O anúncio na língua materna: São Juan Diego, mensageiro da Virgem de Guadalupe
No nosso percurso para redescobrir a paixão pelo anúncio do Evangelho, para ver como o zelo apostólico, esta paixão por anunciar o Evangelho se desenvolveu na história da Igreja – neste percurso olhemos hoje para as Américas. Ali a evangelização tem uma fonte sempre viva: Guadalupe. É uma fonte viva. Os mexicanos estão contentes! Certamente o Evangelho já lá tinha chegado antes daquelas aparições, mas infelizmente foi acompanhado também por interesses mundanos. Em vez do caminho da inculturação, tomou-se muitas vezes o percurso apressado do transplante e da imposição de modelos pré-constituídos – europeus, por exemplo – sem respeito pelas populações indígenas. A Virgem de Guadalupe, pelo contrário, aparece vestida com as roupas dos autóctones, fala a língua deles, acolhe e ama a cultura local: Maria é Mãe e sob o seu manto cada filho encontra lugar. N’Ela, Deus fez-se carne e, através de Maria, continua a encarnar-se na vida dos povos. Nossa Senhora, de facto, anuncia Deus na língua mais adequada, ou seja, a língua materna. E também a nós Nossa Senhora fala na língua materna, aquela que compreendemos melhor. O Evangelho é transmitido na língua materna. E gostaria de dizer obrigado a tantas mães e às muitas avós que o transmitem aos filhos e netos: a fé passa com a vida, por isso as mães e as avós são as primeiras anunciadoras. Um aplauso às mães e às avós! E o Evangelho comunica-se, como mostra Maria, na simplicidade: Nossa Senhora escolhe sempre os simples, na colina de Tepeyac, no México, como em Lourdes e em Fátima: falando-lhes, fala a cada um, numa linguagem adequada a todos, com uma linguagem compreensível, como a de Jesus.
Reflitamos então acerca do testemunho de São Juan Diego, que é o mensageiro, é o jovem, é o indígena que recebeu a revelação de Maria: o mensageiro de Nossa Senhora de Guadalupe. Ele era uma pessoa humilde, um índio do povo: sobre ele pousou o olhar de Deus, que gosta de fazer milagres através dos mais pequeninos. Juan Diego entrou na fé já adulto e casado. Em dezembro de 1531, tinha cerca de 55 anos. Enquanto estava a caminho, vê numa colina a Mãe de Deus, que o chama com ternura, e de que modo o chama Nossa senhora? «Meu pequeno e amado filho Juanito» (Nican Mopohua, 23). Depois envia-o ao Bispo para pedir que construa um templo no lugar onde ela tinha aparecido. Juan Diego, simples e disponível, vai com a generosidade do seu coração puro, mas tem de esperar muito tempo. Finalmente fala com o Bispo, que não acredita nele. Por vezes nós Bispos... Volta a encontrar Nossa Senhora, que o consola e lhe pede que tente de novo. O índio volta ao Bispo e, com grande dificuldade, encontra-o, mas o Bispo, depois de o ouvir, despede-o e envia homens para o seguirem. Eis a fadiga, a prova do anúncio: não obstante o zelo, chegam os imprevistos, por vezes da própria Igreja. Para anunciar, com efeito, não basta dar testemunho do bem, é preciso saber suportar o mal. Não esqueçamos isto: é muito importante; para anunciar o Evangelho não é suficiente testemunhar o bem, mas é necessário saber suportar o mal. Um cristão pratica o bem. Mas suporta o mal. Ambos caminham juntos, a vida é assim. Ainda hoje, em tantos lugares, inculturar o Evangelho e evangelizar as culturas exige perseverança e paciência, não temer os conflitos, não desanimar. Penso num país onde os cristãos são perseguidos, porque são cristãos e não podem praticar bem e em paz a própria religião. Juan Diego, desanimado, pois o Bispo adiava sempre, pede a Nossa Senhora que o dispense e que encarregue alguém mais estimado e capaz do que ele, mas é instado a perseverar. Há sempre o risco de uma certa rendição no anúncio: uma coisa não corre bem e desiste-se, desanimando e talvez refugiando-se nas próprias certezas, em pequenos grupos e nalgumas devoções intimistas. Nossa Senhora, pelo contrário, ao mesmo tempo que nos consola, faz-nos ir em frente e assim faz-nos crescer, como uma boa mãe que, seguindo os passos do filho, o lança nos desafios do mundo.
Juan Diego, assim encorajado, volta a procurar o Bispo que lhe pede um sinal. Nossa Senhora promete-lhe um sinal e conforta-o com estas palavras: «Não se perturbe o teu rosto, nem o teu coração: [...] Não estou eu aqui, tua mãe?» (ibid., 118-119). É bonito isto, Nossa Senhora muitas vezes quando sentimos desolação, tristeza, dificuldade, diz também a nós, no coração: «Não estou porventura aqui, eu que sou a tua mãe?». Sempre próxima para nos consolar e dar força para ir em frente. Depois, pede-lhe que vá ao cimo da árida colina colher flores. É inverno mas, não obstante, Juan Diego encontra algumas belas flores, guarda-as no seu manto e oferece-as à Mãe de Deus, que o convida a levá-las ao Bispo como prova. Ele vai, espera a sua vez com paciência e, finalmente, na presença do Bispo, abre a sua tilma – o que usavam os indígenas para se agasalhar – abre a sua tilma mostrando as flores e eis que no tecido do manto aparece a imagem de Nossa Senhora, a extraordinária e viva que conhecemos nós, em cujos olhos estão ainda impressos os protagonistas daquele tempo. Eis a surpresa de Deus: quando há disponibilidade e, quando há obediência, Ele pode realizar algo inesperado, em tempos e modos que não podemos prever. E assim o santuário pedido pela Virgem foi construído e hoje pode ser visitado.
Juan Diego deixa tudo e, com a autorização do bispo, dedica a sua vida ao santuário. Acolhe os peregrinos e evangeliza-os. É o que acontece nos santuários marianos, meta de peregrinações e lugares de anúncio, onde todos se sentem em casa – pois é a casa da mãe, é a casa da mãe – e experimentam a saudade de casa, ou seja, a nostalgia do lugar no qual a Mãe está, o Céu. Ali, a fé é acolhida de forma simples, a fé acolhe-se deste modo, genuína, de maneira popular, e Nossa Senhora, como disse a Juan Diego, ouve os nossos prantos e cura as nossas penas (cf. ibid., 32). Aprendamos: quando há dificuldades na vida, procuremos a Mãe; e quando a vida é feliz, procuremos a Mãe para partilhar inclusive isto. Precisamos de ir a estes oásis de consolação e de misericórdia, onde a fé se exprime numa linguagem materna; onde colocamos as fadigas da vida nos braços de Nossa Senhora e regressamos à vida com a paz no coração, talvez com a paz das crianças.
Papa Francisco
Catequese na Audiência Geral 23.08.2023
Catequeses. A paixão pela evangelização: o zelo apostólico do crente - 17. Testemunhas: Santa Mary Mackillop
Hoje, com este calor, devemos ser um pouco pacientes! Obrigado por terdes vindo com este calor, com este sol, muito obrigado pela vossa visita!
Nesta série de catequeses sobre o zelo apostólico, encontramos algumas figuras exemplares de homens e mulheres de todos os tempos e lugares, que deram a vida pelo Evangelho. Hoje vamos para longe, para a Oceânia, um continente constituído por numerosas ilhas, grandes e pequenas. A fé em Cristo, que tantos emigrantes europeus levaram para aquelas terras, depressa criou raízes e deu frutos abundantes (cf. Exortação Apostólica pós-sinodal Ecclesia in Oceania, 6). Entre eles, uma religiosa extraordinária, Santa Mary MacKillop (1842-1909), fundadora das Irmãs de São José do Sagrado Coração, que dedicou a sua vida à formação intelectual e religiosa dos pobres na Austrália rural.
Mary MacKillop nasceu perto de Melbourne, de pais que tinham emigrado da Escócia para a Austrália. Desde muito jovem, sentiu-se chamada por Deus a servi-lo e a testemunhá-lo não apenas com palavras, mas sobretudo com uma vida transformada pela presença de Deus (cf. Evangelii gaudium, 259). Como Maria Madalena, que encontrou pela primeira vez Jesus ressuscitado e foi enviada por Ele para levar o anúncio aos discípulos, Mary estava convencida de que também Ela era enviada para difundir a Boa Nova e atrair outros para o encontro com o Deus vivo.
Lendo sabiamente os sinais dos tempos, deu-se conta de que a melhor maneira de o fazer era através da educação dos jovens, consciente de que a educação católica é uma forma de evangelização. É uma grande forma de evangelização! Assim, se podemos dizer que «cada santo é uma missão; é um desígnio do Pai para refletir e encarnar, num determinado momento da história, um aspeto do Evangelho» (Exortação Apostólica Gaudete et exsultate, 19), Mary MacKillop foi-o especialmente através da fundação de escolas.
Uma caraterística essencial do seu zelo pelo Evangelho consistia na atenção aos pobres e aos marginalizados. E isto é muito importante: no caminho da santidade, que é o caminho cristão, os pobres e os marginalizados são protagonistas e uma pessoa não pode progredir na santidade, se não se dedicar também a eles, de um modo ou de outro. Eles, que precisam da ajuda do Senhor, têm em si a presença do Senhor. Certa vez li uma frase que me impressionou; dizia assim: “O protagonista da história é o mendigo: os mendigos são aqueles que chamam a atenção para a injustiça, que é a grande pobreza do mundo”; o dinheiro é gasto para fabricar armas, não para produzir refeições... E não vos esqueçais: não há santidade se, de um modo ou de outro, não houver cuidado para com os pobres, os necessitados, aqueles que estão um pouco à margem da sociedade. Esta preocupação com os pobres e os marginalizados levou Mary a ir onde outros não queriam, ou não podiam ir. A 19 de março de 1866, festa de São José, abriu a primeira escola num pequeno subúrbio no sul da Austrália. Seguiram-se muitas outras, que ela e as suas religiosas fundaram em comunidades rurais da Austrália e da Nova Zelândia. Multiplicaram-se, pois o zelo apostólico faz isto: multiplica as obras!
Mary MacKillop estava convencida de que o objetivo da educação é o desenvolvimento integral da pessoa, quer como indivíduo, quer como membro da comunidade; e que isto requer sabedoria, paciência e caridade da parte de cada professor. Com efeito, a educação não consiste em encher a cabeça de ideias: não, não é só isso! Em que consiste a educação? Em acompanhar e encorajar os alunos ao longo do caminho do crescimento humano e espiritual, mostrando-lhes como a amizade com Jesus Ressuscitado dilata o coração, tornando a vida mais humana. Educar significa ajudar a pensar bem: a sentir bem - a linguagem do coração - e a fazer bem - a linguagem das mãos. Esta visão é plenamente atual, quando sentimos a necessidade de um “pacto educativo”, capaz de unir as famílias, as escolas e a sociedade inteira.
O zelo de Mary MacKillop pela difusão do Evangelho no meio dos pobres levou-a também a empreender várias outras obras de caridade, a começar pela “Casa da Providência”, aberta em Adelaide para acolher idosos e crianças abandonadas. Mary tinha uma grande fé na Providência de Deus: estava sempre confiante de que, em qualquer situação, Deus provê. Mas isto não lhe poupava as ansiedades e dificuldades do seu apostolado, e Mary tinha bons motivos para isto: devia pagar as contas, confrontar-se com os bispos e sacerdotes locais, gerir as escolas e cuidar da formação profissional e espiritual das suas religiosas; e, mais tarde, problemas de saúde. Mas, apesar de tudo, manteve-se serena, carregando pacientemente a cruz, que é parte integrante da missão.
Numa ocasião, na festa da Exaltação da Cruz, Mary disse a uma das suas irmãs: “Minha filha, há muitos anos aprendi a amar a Cruz”. Ela não desistiu nos momentos de provação e de escuridão, quando a sua alegria foi amortecida pela oposição e rejeição. Reparai: todos os santos encontraram oposição, até no seio da Igreja. Isto é curioso! Também ela teve algumas. Mas estava persuadida de que, até quando o Senhor lhe dava «o pão da angústia e a água da tribulação» (Is 30, 20), depressa responderia ao seu clamor, envolvendo-a com a sua graça. Eis o segredo do zelo apostólico: uma relação contínua com o Senhor.
Irmãos e irmãs, que o discipulado missionário de Santa Mary MacKillop, a sua resposta criativa às necessidades da Igreja do seu tempo e o seu compromisso na formação integral dos jovens inspirem todos nós, hoje, que somos chamados a ser fermento do Evangelho nas nossas sociedades em rápida transformação. Que o seu exemplo e a sua intercessão apoiem o trabalho diário dos pais, dos professores, dos catequistas e de todos os educadores, para o bem dos jovens e para um futuro mais humano e cheio de esperança!
Papa Francisco
Audiência Geral 28.06.2023
Catequeses. A paixão pela evangelização: o zelo apostólico do crente - 16. Testemunhas: Santa Teresa do Menino Jesus, Padroeira das Missões
Estão aqui diante de nós as relíquias de Santa Teresa do Menino Jesus, padroeira universal das missões. É bom que isto aconteça no momento em que estamos a refletir sobre a paixão pela evangelização, sobre o zelo apostólico. Portanto, hoje deixemo-nos ajudar pelo testemunho de Santa Teresa. Ela nasceu há 150 anos e, por ocasião deste aniversário, tenciono dedicar-lhe uma Carta Apostólica.
É a padroeira das missões, mas nunca esteve em missão: como se explica isto? Era uma monja carmelita e a sua vida foi marcada pela pequenez e pela fragilidade: ela definia-se “um pequeno grão de areia”. De saúde frágil, morreu com apenas 24 anos. Mas se o seu corpo estava doente, o seu coração era vibrante, era missionário. No seu “diário” conta que ser missionária era o seu desejo e que queria sê-lo não apenas durante alguns anos, mas por toda a vida, aliás até ao fim do mundo. Teresa foi “irmã espiritual” de vários missionários: do mosteiro acompanhava-os com as suas cartas, as suas orações e oferecendo sacrifícios contínuos por eles. Sem aparecer, intercedia pelas missões, como um motor que, escondido, dá a um veículo a força para ir em frente. No entanto, muitas vezes era incompreendida pelas suas irmãs monjas: teve delas “mais espinhos do que rosas”, mas aceitava tudo com amor, com paciência, oferecendo, juntamente com a sua doença, também os julgamentos e as incompreensões. E fê-lo com alegria, fê-lo pelas necessidades da Igreja, para que, como dizia, se espalhassem “rosas sobre todos”, especialmente sobre os mais afastados.
Mas agora, questiono-me, podemos perguntar-nos de onde vem todo este zelo, esta força missionária e esta alegria de interceder? Dois episódios que aconteceram antes da entrada de Teresa no mosteiro ajudam-nos a compreender melhor. O primeiro diz respeito ao dia que mudou a sua vida, o Natal de 1886, quando Deus fez um milagre no seu coração. Teresa teria completado 14 anos. Sendo a filha mais nova, em casa era mimada por todos, mas não “mal crescida”. Quando regressa da missa da meia-noite, o pai, muito cansado, não tinha vontade de assistir à abertura das prendas da filha e disse: «Ainda bem que é o último ano!» pois com 15 anos já não se fazia mais. Teresa, de natureza muito sensível e de lágrimas fáceis, fica magoada, vai para o seu quarto e chora. Mas rapidamente reprime as lágrimas, desce e, cheia de alegria, anima o pai. O que aconteceu? Que naquela noite, em que Jesus se tinha feito débil por amor, ela se tinha tornado forte de espírito – um verdadeiro milagre: em poucos instantes, tinha saído da prisão do seu egoísmo e da sua autocomiseração; começou a sentir que “a caridade lhe entrava no coração, com a necessidade de se esquecer de si mesma” (cf. Manuscrito A, 133-134). A partir de então, dirigiu o seu zelo para os outros, para que encontrassem Deus, e em vez de procurar consolar-se a si mesma, pôs-se a «consolar Jesus, [para] torná-lo amado pelas almas», porque - anotou Teresa, «Jesus está doente de amor e [...] a doença do amor não pode ser curada senão pelo amor» (Carta a Marie Guérin, julho de 1890). Eis então o objetivo do seu dia a dia: «fazer amar Jesus» (Carta a Céline, 15 de outubro de 1889), interceder a fim de que outros o amassem. Escreveu: «Gostaria de salvar almas e de me esquecer de mim mesma por elas: gostaria de as salvar inclusive depois da minha morte» (Carta ao Padre Roullan, 19 de março de 1897). Várias vezes disse: «Passarei o meu céu a fazer o bem na terra». Este é o primeiro episódio que lhe mudou a vida aos 14 anos.
E este seu zelo era dirigido sobretudo aos pecadores, aos “distantes”. O segundo episódio revela isto. Teresa toma conhecimento de um criminoso condenado à morte por delitos horríveis, chamava-se Enrico Pranzini – ela escreveu o nome: considerado culpado do assassínio brutal de três pessoas, está destinado à guilhotina, mas não quer receber os confortos da fé. Teresa leva-o a peito e faz tudo o que pode: reza de todas as maneiras pela sua conversão, para que ele, a quem com compaixão fraterna chama «o pobre diabo do Pranzini», possa ter um pequeno sinal de arrependimento e dar lugar à misericórdia de Deus, em quem Teresa confia cegamente. A execução tem lugar. No dia seguinte, Teresa lê no jornal que Pranzini, pouco antes de apoiar a cabeça no cadafalso, «de repente, tomado por uma súbita inspiração, volta-se, pega no Crucifixo que o sacerdote lhe apresentava e beija três vezes as sagradas chagas» de Jesus. A santa comenta: «Então a sua alma foi receber a sentença misericordiosa d’Aquele que declarou que no Céu haverá mais alegria por um só pecador que se arrepende do que por noventa e nove justos que não têm necessidade de penitência!» (Manuscrito A, 135).
Irmãos e irmãs, eis o poder de intercessão movido pela caridade, eis o motor da missão. Com efeito os missionários, dos quais Teresa é padroeira, não são apenas aqueles que vão longe, aprendem novas línguas, fazem boas obras e são bons anunciadores; não, missionário é também todo aquele que vive, onde está, como instrumento do amor de Deus; que faz tudo para que, através do seu testemunho, da sua oração, da sua intercessão, Jesus passe. Este é o zelo apostólico que, recordemos sempre, nunca se realiza por proselitismo – nunca! – ou por constrição – nunca – mas por atração: a fé nasce por atração, não nos tornamos cristãos por sermos forçados por alguém, não, mas por sermos tocados pelo amor. A Igreja, perante tantos meios, métodos e estruturas, que por vezes desviam do essencial, precisa de corações como o de Teresa, corações que atraem pelo amor e nos aproximam de Deus. E peçamos à santa – temos as relíquias aqui – peçamos à santa a graça de vencer o nosso egoísmo e peçamos a paixão de interceder a fim de que esta atração seja maior nas pessoas e para que Jesus seja conhecido e amado.
Papa Francisco
Audiência geral 7.06.23
Catequeses. A paixão pela evangelização: o zelo apostólico do crente - 15. Testemunhas: Pe. Matteo Ricci
Prosseguimos as catequeses falando sobre o zelo apostólico, isto é, aquele que o cristão sente para levar por diante o anúncio de Jesus Cristo. Hoje gostaria de vos apresentar outro grande exemplo de zelo apostólico: falámos de São Francisco Xavier, de São Paulo, o zelo apostólico dos grandes zelosos; hoje falaremos de um – italiano – mas que foi à China: Matteo Ricci.
Natural de Macerata, na região das Marcas, depois de ter estudado nas escolas dos jesuítas e de ter entrado na Companhia de Jesus, entusiasmado com os relatos que ouvia dos missionários entusiasmou-se, como muitos outros jovens, que sentiam o mesmo, pediu para ser enviado para as missões do Extremo Oriente. Depois da tentativa de Francisco Xavier, mais vinte e cinco jesuítas tinham procurado, sem sucesso, entrar na China. Mas Ricci e um dos seus confrades prepararam-se muito bem, estudando cuidadosamente a língua e os costumes chineses, e no final conseguiram estabelecer-se no sul do país. Foram necessários dezoito anos, com etapas em quatro cidades diferentes, antes de chegar a Pequim, que era o centro. Com constância e paciência, animado por uma fé inabalável, Matteo Ricci conseguiu superar dificuldades, perigos, desconfianças e oposições. Pensai naquele tempo, caminhar ou ir a cavalo, quantas distâncias... e ele ia em frente. Mas qual foi o segredo de Matteo Ricci? Por qual estrada o impeliu o zelo?
Ele seguiu sempre o caminho do diálogo e da amizade com todas as pessoas que encontrou, e isto abriu-lhe muitas portas para o anúncio da fé cristã. A sua primeira obra em língua chinesa foi precisamente um tratado Sobre a amizade, que teve grande ressonância. Para se integrar na cultura e na vida chinesas, num primeiro período vestia-se como os bonzos budistas, o costume do país, mas depois compreendeu que a melhor maneira era assumir o estilo de vida e os trajes dos eruditos, como os professores universitários, os eruditos vestiam-se: e ele vestia-se assim. Estudou profundamente os seus textos clássicos, a fim de poder apresentar o cristianismo em diálogo positivo com a sua sabedoria confucionista e os usos e costumes da sociedade chinesa. E isto chama-se uma atitude de inculturação. Este missionário soube “inculturar” a fé cristã em diálogo como os Padres antigos com a cultura grega.
A sua excelente preparação científica suscitava o interesse e a admiração dos homens cultos, a começar pelo seu famoso mapa-múndi, o mapa de todo o mundo então conhecido, com os diferentes continentes, que revela aos chineses, pela primeira vez, uma realidade fora da China muito mais vasta do que pensavam. Mostra-lhes que o mundo é maior do que a China, e eles compreendem – pois eram inteligentes. Mas também os conhecimentos matemáticos e astronómicos de Ricci e dos seus seguidores missionários contribuíram para um encontro fecundo entre a cultura e a ciência do Ocidente e do Oriente, que então viverá uma das suas épocas mais felizes, no sinal do diálogo e da amizade. Com efeito, a obra de Matteo Ricci nunca teria sido possível sem a colaboração dos seus grandes amigos chineses, como os famosos “Doutor Paulo” (Xu Guangqi) e o “Doutor Leão” (Li Zhizao).
No entanto, a fama de Ricci como homem de ciência não deve obscurecer a motivação mais profunda de todos os seus esforços: isto é, o anúncio do Evangelho. Ele, com o diálogo científico, com os cientistas, ia em frente, mas dava testemunho da própria fé, do Evangelho. A credibilidade obtida mediante o diálogo científico conferia-lhe autoridade para propor a verdade da fé e da moral cristã, que ele debate de modo aprofundado nas suas principais obras chinesas, como O verdadeiro significado do Senhor do Céu – este é o nome daquele livro. Além da doutrina, são o seu testemunho de vida religiosa, de virtude e de oração: estes missionários rezavam. Iam rezar, moviam-se, tomavam iniciativas políticas, tudo: mas rezavam. É a oração que alimenta a vida missionária, uma vida de caridade, ajudavam os outros, humildes, com total desinteresse por honras e riquezas que levam muitos dos seus discípulos e amigos chineses a aceitar a fé católica. Porque viam um homem tão inteligente, tão sábio, tão esperto – no sentido bom da palavra – para levar as coisas em frente e tão crente que diziam: “Mas, o que prega é verdade pois é dito por uma personalidade que dá testemunho: testemunha com a própria vida o que anuncia”. Esta é a coerência dos evangelizadores. E isto cabe a todos nós cristãos que somos evangelizadores. Posso recitar o “Credo” de cor, posso dizer todas as coisas que cremos, mas se a minha vida não for coerente com o que professo não serve para nada. O que atrai as pessoas é o testemunho de coerência: nós cristãos somos chamados a viver o que dizemos, e não fingir que se vive como cristãos e viver como mundano. Olhai para este grande missionário – como Matteo Ricci que é italiano – olhando para estes grandes missionários, vereis que a maior força é a coerência: são coerentes.
Nos últimos dias da sua vida, a quantos estavam mais próximos dele e lhe perguntavam como se sentia, Matteo Ricci «respondia que naquele momento pensava se eram maiores a alegria e o regozijo que sentia interiormente, com a ideia de estar prestes a empreender a sua viagem para ir pregustar Deus, ou a tristeza que lhe poderia causar deixar os seus companheiros de toda a missão que tanto amava, e o serviço que ainda podia prestar a Deus Nosso Senhor nesta missão» (S. DE URSIS, Relazione su M. Ricci, Archivio Storico Romano S.I.). Trata-se da mesma atitude do apóstolo Paulo (cf. Fl 1, 22-24), que desejava ir para o Senhor, encontrar o Senhor, mas dizia: “permaneço para vos servir”.
Matteo Ricci faleceu em Pequim, em 1610, com 57 anos, um homem que dedicou toda a vida à missão. O espírito missionário de Matteo Ricci constitui um modelo vivo atual. O seu amor pelo povo chinês é um modelo; mas o que representa uma estrada atual é a sua coerência de vida, o testemunho da sua vida como cristão. Ele levou o cristianismo à China; ele é grande porque é um grande cientista, ele é grande porque é corajoso, ele é grande porque escreveu muitos livros, mas sobretudo é grande porque foi coerente com a sua vocação, coerente com aquela vontade de seguir Jesus Cristo. Irmãos e irmãs, hoje nós, cada um de nós, perguntemo-nos no íntimo: “Sou coerente, ou sou um pouco assim-assim?”.
Catequese do Papa Francisco na Audiência Geral 31.05.2023
Catequeses. A paixão pela evangelização: o zelo apostólico do crente - 14. Testemunhas: Santo André Kim Taegon
Nesta série de catequeses coloquemo-nos na escola de alguns Santos e Santas que, como testemunhas exemplares, nos ensinam o zelo apostólico. Recordemos que estamos a falar do zelo apostólico, aquele que devemos ter para anunciar o Evangelho.
Um grande exemplo de Santo da paixão pela evangelização, vamos encontrá-lo hoje numa terra muito distante, ou seja, na Igreja coreana. Olhemos para o mártir e primeiro sacerdote coreano, Santo André Kim Tae-gon. Mas a evangelização da Coreia foi feita pelos leigos. Foram os leigos batizados que transmitiram a fé, não eram sacerdotes, pois não os tinham; vieram mais tarde, portanto a primeira evangelização foi feita pelos leigos. Seremos capazes de algo do género? Pensemos nisto: é interessante. E este é um dos primeiros sacerdotes, Santo André. A sua vida foi e permanece um eloquente testemunho de zelo pelo anúncio do Evangelho.
Há cerca de 200 anos, o território coreano foi teatro de uma perseguição muito severa: os cristãos eram perseguidos e aniquilados. Na Coreia daquela época, acreditar em Jesus Cristo significava estar pronto a dar testemunho até à morte. Em particular, o exemplo de Santo André Kim podemos obtê-lo de dois aspetos concretos da sua vida.
O primeiro é o modo como tinha que usar para se encontrar com os fiéis. Considerando o contexto altamente intimidatório, o Santo era obrigado a aproximar-se dos cristãos de maneira não evidente e sempre na presença de outras pessoas, como se se conhecessem há tempos. Então, para identificar a identidade cristã do seu interlocutor, Santo André recorria a estes expedientes: em primeiro lugar, havia um sinal de reconhecimento previamente combinado: tu encontrar-te-ás com este cristão e ele terá este sinal na roupa ou na mão; em seguida, às escondidas, ele fazia esta pergunta, mas em voz baixa: "És discípulo de Jesus?". Dado que havia outras pessoas que assistiam à conversa, o Santo devia falar em voz baixa, pronunciando apenas algumas palavras, as mais essenciais. Portanto, para André Kim, a expressão que resumia toda a identidade do cristão era "discípulo de Cristo". "És discípulo de Cristo?", mas em voz baixa porque era perigoso. Era proibido ser cristão.
Com efeito, ser discípulo do Senhor significa segui-lo, seguir o seu caminho, e o cristão é por sua natureza alguém que prega e dá testemunho de Jesus. Cada comunidade cristã recebe esta identidade do Espírito Santo, assim como a Igreja inteira, a partir do dia de Pentecostes (cf. Conc. Vat. II, Decr. Ad gentes, 2). É deste Espírito que recebemos, nasce a paixão, a paixão pela evangelização, este zelo apostólico grande: é um dom do Espírito. E embora o contexto ao redor não seja favorável, como era o coreano de André Kim, a paixão não muda, aliás, torna-se ainda mais valiosa. Santo André Kim e os outros fiéis coreanos demonstraram que o testemunho do Evangelho oferecido em tempos de perseguição pode dar muitos frutos para a fé.
Vejamos agora um segundo exemplo concreto. Quando ainda era seminarista, Santo André devia encontrar uma maneira de acolher secretamente os missionários provenientes do estrangeiro. Não se tratava de uma tarefa fácil, pois o regime daquela época proibia rigorosamente a entrada de todos os estrangeiros no território. Por isso foi – antes disto – tão difícil encontrar um sacerdote que viesse missionar: a missão foi realizada pelos leigos. Certa vez – pensai no que fez Santo André – certa vez ele caminhou na neve, sem comer, durante tanto tempo a ponto de cair exausto no chão, correndo o risco de perder os sentidos e de permanecer ali congelado. Naquele momento, de repente, ouviu uma voz: "Levanta-te, caminha!". Ao ouvir aquela voz, André acordou, vendo uma espécie de sombra de alguém que o guiava.
Esta experiência da grande testemunha coreana faz-nos compreender um aspeto muito importante do zelo apostólico. Ou seja, a coragem de se levantar quando se cai. Mas os santos caem? Sim! Desde os primeiros tempos: pensai em São Pedro: cometeu um grande pecado, mas teve a força na misericórdia de Deus e levantou-se. E em Santo André vemos esta força: ele caiu fisicamente, mas teve a força de ir, ir, ir para levar a mensagem em frente. Por mais difícil que possa ser a situação, aliás, às vezes parece não deixar espaço à mensagem evangélica, não devemos desistir nem podemos deixar de levar em frente o que é essencial na nossa vida cristã, isto é, a evangelização. Esta é a estrada. E cada um de nós pode pensar: "Mas eu, como posso evangelizar?". Olha para estes grandes e pensa nas tuas possibilidades, pensemos nas nossas capacidades: evangelizar a família, evangelizar os amigos, falar de Jesus, mas falar de Jesus e evangelizar com o coração cheio de alegria, pleno de força. Esta é dada pelo Espírito Santo. Preparemo-nos para receber o Espírito Santo no próximo Pentecostes e peçamos-lhe aquela graça, a graça da coragem apostólica, a graça de evangelizar, de levar em frente sempre a mensagem de Jesus.
Papa Francisco
Catequese na audiência geral 24.05.23
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