Catequeses. A paixão pela evangelização: o zelo apostólico do crente - 16. Testemunhas: Santa Teresa do Menino Jesus, Padroeira das Missões
Estão aqui diante de nós as relíquias de Santa Teresa do Menino Jesus, padroeira universal das missões. É bom que isto aconteça no momento em que estamos a refletir sobre a paixão pela evangelização, sobre o zelo apostólico. Portanto, hoje deixemo-nos ajudar pelo testemunho de Santa Teresa. Ela nasceu há 150 anos e, por ocasião deste aniversário, tenciono dedicar-lhe uma Carta Apostólica.
É a padroeira das missões, mas nunca esteve em missão: como se explica isto? Era uma monja carmelita e a sua vida foi marcada pela pequenez e pela fragilidade: ela definia-se “um pequeno grão de areia”. De saúde frágil, morreu com apenas 24 anos. Mas se o seu corpo estava doente, o seu coração era vibrante, era missionário. No seu “diário” conta que ser missionária era o seu desejo e que queria sê-lo não apenas durante alguns anos, mas por toda a vida, aliás até ao fim do mundo. Teresa foi “irmã espiritual” de vários missionários: do mosteiro acompanhava-os com as suas cartas, as suas orações e oferecendo sacrifícios contínuos por eles. Sem aparecer, intercedia pelas missões, como um motor que, escondido, dá a um veículo a força para ir em frente. No entanto, muitas vezes era incompreendida pelas suas irmãs monjas: teve delas “mais espinhos do que rosas”, mas aceitava tudo com amor, com paciência, oferecendo, juntamente com a sua doença, também os julgamentos e as incompreensões. E fê-lo com alegria, fê-lo pelas necessidades da Igreja, para que, como dizia, se espalhassem “rosas sobre todos”, especialmente sobre os mais afastados.
Mas agora, questiono-me, podemos perguntar-nos de onde vem todo este zelo, esta força missionária e esta alegria de interceder? Dois episódios que aconteceram antes da entrada de Teresa no mosteiro ajudam-nos a compreender melhor. O primeiro diz respeito ao dia que mudou a sua vida, o Natal de 1886, quando Deus fez um milagre no seu coração. Teresa teria completado 14 anos. Sendo a filha mais nova, em casa era mimada por todos, mas não “mal crescida”. Quando regressa da missa da meia-noite, o pai, muito cansado, não tinha vontade de assistir à abertura das prendas da filha e disse: «Ainda bem que é o último ano!» pois com 15 anos já não se fazia mais. Teresa, de natureza muito sensível e de lágrimas fáceis, fica magoada, vai para o seu quarto e chora. Mas rapidamente reprime as lágrimas, desce e, cheia de alegria, anima o pai. O que aconteceu? Que naquela noite, em que Jesus se tinha feito débil por amor, ela se tinha tornado forte de espírito – um verdadeiro milagre: em poucos instantes, tinha saído da prisão do seu egoísmo e da sua autocomiseração; começou a sentir que “a caridade lhe entrava no coração, com a necessidade de se esquecer de si mesma” (cf. Manuscrito A, 133-134). A partir de então, dirigiu o seu zelo para os outros, para que encontrassem Deus, e em vez de procurar consolar-se a si mesma, pôs-se a «consolar Jesus, [para] torná-lo amado pelas almas», porque - anotou Teresa, «Jesus está doente de amor e [...] a doença do amor não pode ser curada senão pelo amor» (Carta a Marie Guérin, julho de 1890). Eis então o objetivo do seu dia a dia: «fazer amar Jesus» (Carta a Céline, 15 de outubro de 1889), interceder a fim de que outros o amassem. Escreveu: «Gostaria de salvar almas e de me esquecer de mim mesma por elas: gostaria de as salvar inclusive depois da minha morte» (Carta ao Padre Roullan, 19 de março de 1897). Várias vezes disse: «Passarei o meu céu a fazer o bem na terra». Este é o primeiro episódio que lhe mudou a vida aos 14 anos.
E este seu zelo era dirigido sobretudo aos pecadores, aos “distantes”. O segundo episódio revela isto. Teresa toma conhecimento de um criminoso condenado à morte por delitos horríveis, chamava-se Enrico Pranzini – ela escreveu o nome: considerado culpado do assassínio brutal de três pessoas, está destinado à guilhotina, mas não quer receber os confortos da fé. Teresa leva-o a peito e faz tudo o que pode: reza de todas as maneiras pela sua conversão, para que ele, a quem com compaixão fraterna chama «o pobre diabo do Pranzini», possa ter um pequeno sinal de arrependimento e dar lugar à misericórdia de Deus, em quem Teresa confia cegamente. A execução tem lugar. No dia seguinte, Teresa lê no jornal que Pranzini, pouco antes de apoiar a cabeça no cadafalso, «de repente, tomado por uma súbita inspiração, volta-se, pega no Crucifixo que o sacerdote lhe apresentava e beija três vezes as sagradas chagas» de Jesus. A santa comenta: «Então a sua alma foi receber a sentença misericordiosa d’Aquele que declarou que no Céu haverá mais alegria por um só pecador que se arrepende do que por noventa e nove justos que não têm necessidade de penitência!» (Manuscrito A, 135).
Irmãos e irmãs, eis o poder de intercessão movido pela caridade, eis o motor da missão. Com efeito os missionários, dos quais Teresa é padroeira, não são apenas aqueles que vão longe, aprendem novas línguas, fazem boas obras e são bons anunciadores; não, missionário é também todo aquele que vive, onde está, como instrumento do amor de Deus; que faz tudo para que, através do seu testemunho, da sua oração, da sua intercessão, Jesus passe. Este é o zelo apostólico que, recordemos sempre, nunca se realiza por proselitismo – nunca! – ou por constrição – nunca – mas por atração: a fé nasce por atração, não nos tornamos cristãos por sermos forçados por alguém, não, mas por sermos tocados pelo amor. A Igreja, perante tantos meios, métodos e estruturas, que por vezes desviam do essencial, precisa de corações como o de Teresa, corações que atraem pelo amor e nos aproximam de Deus. E peçamos à santa – temos as relíquias aqui – peçamos à santa a graça de vencer o nosso egoísmo e peçamos a paixão de interceder a fim de que esta atração seja maior nas pessoas e para que Jesus seja conhecido e amado.
Papa Francisco
Audiência geral 7.06.23
Catequeses. A paixão pela evangelização: o zelo apostólico do crente - 15. Testemunhas: Pe. Matteo Ricci
Prosseguimos as catequeses falando sobre o zelo apostólico, isto é, aquele que o cristão sente para levar por diante o anúncio de Jesus Cristo. Hoje gostaria de vos apresentar outro grande exemplo de zelo apostólico: falámos de São Francisco Xavier, de São Paulo, o zelo apostólico dos grandes zelosos; hoje falaremos de um – italiano – mas que foi à China: Matteo Ricci.
Natural de Macerata, na região das Marcas, depois de ter estudado nas escolas dos jesuítas e de ter entrado na Companhia de Jesus, entusiasmado com os relatos que ouvia dos missionários entusiasmou-se, como muitos outros jovens, que sentiam o mesmo, pediu para ser enviado para as missões do Extremo Oriente. Depois da tentativa de Francisco Xavier, mais vinte e cinco jesuítas tinham procurado, sem sucesso, entrar na China. Mas Ricci e um dos seus confrades prepararam-se muito bem, estudando cuidadosamente a língua e os costumes chineses, e no final conseguiram estabelecer-se no sul do país. Foram necessários dezoito anos, com etapas em quatro cidades diferentes, antes de chegar a Pequim, que era o centro. Com constância e paciência, animado por uma fé inabalável, Matteo Ricci conseguiu superar dificuldades, perigos, desconfianças e oposições. Pensai naquele tempo, caminhar ou ir a cavalo, quantas distâncias... e ele ia em frente. Mas qual foi o segredo de Matteo Ricci? Por qual estrada o impeliu o zelo?
Ele seguiu sempre o caminho do diálogo e da amizade com todas as pessoas que encontrou, e isto abriu-lhe muitas portas para o anúncio da fé cristã. A sua primeira obra em língua chinesa foi precisamente um tratado Sobre a amizade, que teve grande ressonância. Para se integrar na cultura e na vida chinesas, num primeiro período vestia-se como os bonzos budistas, o costume do país, mas depois compreendeu que a melhor maneira era assumir o estilo de vida e os trajes dos eruditos, como os professores universitários, os eruditos vestiam-se: e ele vestia-se assim. Estudou profundamente os seus textos clássicos, a fim de poder apresentar o cristianismo em diálogo positivo com a sua sabedoria confucionista e os usos e costumes da sociedade chinesa. E isto chama-se uma atitude de inculturação. Este missionário soube “inculturar” a fé cristã em diálogo como os Padres antigos com a cultura grega.
A sua excelente preparação científica suscitava o interesse e a admiração dos homens cultos, a começar pelo seu famoso mapa-múndi, o mapa de todo o mundo então conhecido, com os diferentes continentes, que revela aos chineses, pela primeira vez, uma realidade fora da China muito mais vasta do que pensavam. Mostra-lhes que o mundo é maior do que a China, e eles compreendem – pois eram inteligentes. Mas também os conhecimentos matemáticos e astronómicos de Ricci e dos seus seguidores missionários contribuíram para um encontro fecundo entre a cultura e a ciência do Ocidente e do Oriente, que então viverá uma das suas épocas mais felizes, no sinal do diálogo e da amizade. Com efeito, a obra de Matteo Ricci nunca teria sido possível sem a colaboração dos seus grandes amigos chineses, como os famosos “Doutor Paulo” (Xu Guangqi) e o “Doutor Leão” (Li Zhizao).
No entanto, a fama de Ricci como homem de ciência não deve obscurecer a motivação mais profunda de todos os seus esforços: isto é, o anúncio do Evangelho. Ele, com o diálogo científico, com os cientistas, ia em frente, mas dava testemunho da própria fé, do Evangelho. A credibilidade obtida mediante o diálogo científico conferia-lhe autoridade para propor a verdade da fé e da moral cristã, que ele debate de modo aprofundado nas suas principais obras chinesas, como O verdadeiro significado do Senhor do Céu – este é o nome daquele livro. Além da doutrina, são o seu testemunho de vida religiosa, de virtude e de oração: estes missionários rezavam. Iam rezar, moviam-se, tomavam iniciativas políticas, tudo: mas rezavam. É a oração que alimenta a vida missionária, uma vida de caridade, ajudavam os outros, humildes, com total desinteresse por honras e riquezas que levam muitos dos seus discípulos e amigos chineses a aceitar a fé católica. Porque viam um homem tão inteligente, tão sábio, tão esperto – no sentido bom da palavra – para levar as coisas em frente e tão crente que diziam: “Mas, o que prega é verdade pois é dito por uma personalidade que dá testemunho: testemunha com a própria vida o que anuncia”. Esta é a coerência dos evangelizadores. E isto cabe a todos nós cristãos que somos evangelizadores. Posso recitar o “Credo” de cor, posso dizer todas as coisas que cremos, mas se a minha vida não for coerente com o que professo não serve para nada. O que atrai as pessoas é o testemunho de coerência: nós cristãos somos chamados a viver o que dizemos, e não fingir que se vive como cristãos e viver como mundano. Olhai para este grande missionário – como Matteo Ricci que é italiano – olhando para estes grandes missionários, vereis que a maior força é a coerência: são coerentes.
Nos últimos dias da sua vida, a quantos estavam mais próximos dele e lhe perguntavam como se sentia, Matteo Ricci «respondia que naquele momento pensava se eram maiores a alegria e o regozijo que sentia interiormente, com a ideia de estar prestes a empreender a sua viagem para ir pregustar Deus, ou a tristeza que lhe poderia causar deixar os seus companheiros de toda a missão que tanto amava, e o serviço que ainda podia prestar a Deus Nosso Senhor nesta missão» (S. DE URSIS, Relazione su M. Ricci, Archivio Storico Romano S.I.). Trata-se da mesma atitude do apóstolo Paulo (cf. Fl 1, 22-24), que desejava ir para o Senhor, encontrar o Senhor, mas dizia: “permaneço para vos servir”.
Matteo Ricci faleceu em Pequim, em 1610, com 57 anos, um homem que dedicou toda a vida à missão. O espírito missionário de Matteo Ricci constitui um modelo vivo atual. O seu amor pelo povo chinês é um modelo; mas o que representa uma estrada atual é a sua coerência de vida, o testemunho da sua vida como cristão. Ele levou o cristianismo à China; ele é grande porque é um grande cientista, ele é grande porque é corajoso, ele é grande porque escreveu muitos livros, mas sobretudo é grande porque foi coerente com a sua vocação, coerente com aquela vontade de seguir Jesus Cristo. Irmãos e irmãs, hoje nós, cada um de nós, perguntemo-nos no íntimo: “Sou coerente, ou sou um pouco assim-assim?”.
Catequese do Papa Francisco na Audiência Geral 31.05.2023
Catequeses. A paixão pela evangelização: o zelo apostólico do crente - 14. Testemunhas: Santo André Kim Taegon
Nesta série de catequeses coloquemo-nos na escola de alguns Santos e Santas que, como testemunhas exemplares, nos ensinam o zelo apostólico. Recordemos que estamos a falar do zelo apostólico, aquele que devemos ter para anunciar o Evangelho.
Um grande exemplo de Santo da paixão pela evangelização, vamos encontrá-lo hoje numa terra muito distante, ou seja, na Igreja coreana. Olhemos para o mártir e primeiro sacerdote coreano, Santo André Kim Tae-gon. Mas a evangelização da Coreia foi feita pelos leigos. Foram os leigos batizados que transmitiram a fé, não eram sacerdotes, pois não os tinham; vieram mais tarde, portanto a primeira evangelização foi feita pelos leigos. Seremos capazes de algo do género? Pensemos nisto: é interessante. E este é um dos primeiros sacerdotes, Santo André. A sua vida foi e permanece um eloquente testemunho de zelo pelo anúncio do Evangelho.
Há cerca de 200 anos, o território coreano foi teatro de uma perseguição muito severa: os cristãos eram perseguidos e aniquilados. Na Coreia daquela época, acreditar em Jesus Cristo significava estar pronto a dar testemunho até à morte. Em particular, o exemplo de Santo André Kim podemos obtê-lo de dois aspetos concretos da sua vida.
O primeiro é o modo como tinha que usar para se encontrar com os fiéis. Considerando o contexto altamente intimidatório, o Santo era obrigado a aproximar-se dos cristãos de maneira não evidente e sempre na presença de outras pessoas, como se se conhecessem há tempos. Então, para identificar a identidade cristã do seu interlocutor, Santo André recorria a estes expedientes: em primeiro lugar, havia um sinal de reconhecimento previamente combinado: tu encontrar-te-ás com este cristão e ele terá este sinal na roupa ou na mão; em seguida, às escondidas, ele fazia esta pergunta, mas em voz baixa: "És discípulo de Jesus?". Dado que havia outras pessoas que assistiam à conversa, o Santo devia falar em voz baixa, pronunciando apenas algumas palavras, as mais essenciais. Portanto, para André Kim, a expressão que resumia toda a identidade do cristão era "discípulo de Cristo". "És discípulo de Cristo?", mas em voz baixa porque era perigoso. Era proibido ser cristão.
Com efeito, ser discípulo do Senhor significa segui-lo, seguir o seu caminho, e o cristão é por sua natureza alguém que prega e dá testemunho de Jesus. Cada comunidade cristã recebe esta identidade do Espírito Santo, assim como a Igreja inteira, a partir do dia de Pentecostes (cf. Conc. Vat. II, Decr. Ad gentes, 2). É deste Espírito que recebemos, nasce a paixão, a paixão pela evangelização, este zelo apostólico grande: é um dom do Espírito. E embora o contexto ao redor não seja favorável, como era o coreano de André Kim, a paixão não muda, aliás, torna-se ainda mais valiosa. Santo André Kim e os outros fiéis coreanos demonstraram que o testemunho do Evangelho oferecido em tempos de perseguição pode dar muitos frutos para a fé.
Vejamos agora um segundo exemplo concreto. Quando ainda era seminarista, Santo André devia encontrar uma maneira de acolher secretamente os missionários provenientes do estrangeiro. Não se tratava de uma tarefa fácil, pois o regime daquela época proibia rigorosamente a entrada de todos os estrangeiros no território. Por isso foi – antes disto – tão difícil encontrar um sacerdote que viesse missionar: a missão foi realizada pelos leigos. Certa vez – pensai no que fez Santo André – certa vez ele caminhou na neve, sem comer, durante tanto tempo a ponto de cair exausto no chão, correndo o risco de perder os sentidos e de permanecer ali congelado. Naquele momento, de repente, ouviu uma voz: "Levanta-te, caminha!". Ao ouvir aquela voz, André acordou, vendo uma espécie de sombra de alguém que o guiava.
Esta experiência da grande testemunha coreana faz-nos compreender um aspeto muito importante do zelo apostólico. Ou seja, a coragem de se levantar quando se cai. Mas os santos caem? Sim! Desde os primeiros tempos: pensai em São Pedro: cometeu um grande pecado, mas teve a força na misericórdia de Deus e levantou-se. E em Santo André vemos esta força: ele caiu fisicamente, mas teve a força de ir, ir, ir para levar a mensagem em frente. Por mais difícil que possa ser a situação, aliás, às vezes parece não deixar espaço à mensagem evangélica, não devemos desistir nem podemos deixar de levar em frente o que é essencial na nossa vida cristã, isto é, a evangelização. Esta é a estrada. E cada um de nós pode pensar: "Mas eu, como posso evangelizar?". Olha para estes grandes e pensa nas tuas possibilidades, pensemos nas nossas capacidades: evangelizar a família, evangelizar os amigos, falar de Jesus, mas falar de Jesus e evangelizar com o coração cheio de alegria, pleno de força. Esta é dada pelo Espírito Santo. Preparemo-nos para receber o Espírito Santo no próximo Pentecostes e peçamos-lhe aquela graça, a graça da coragem apostólica, a graça de evangelizar, de levar em frente sempre a mensagem de Jesus.
Papa Francisco
Catequese na audiência geral 24.05.23
Catequeses. A paixão pela evangelização: o zelo apostólico do crente - 13. Testemunhas: São Francisco Xavier
Estimados irmãos e irmãs, bom dia!
Prosseguindo o nosso itinerário das Catequeses com alguns modelos exemplares de zelo apostólico... recordemos que estamos a falar de evangelização, de zelo apostólico, de anunciar o nome de Jesus, e há muitas mulheres e homens na história que o fizeram de forma exemplar. Hoje, por exemplo, escolhemos, São Francisco Xavier: que é considerado, dizem alguns, o maior missionário dos tempos modernos. Mas não se pode dizer quem é o maior, quem é o menor, porque há tantos missionários escondidos que ainda hoje fazem muito mais do que São Francisco Xavier. E Xavier é o padroeiro das missões, como Santa Teresa do Menino Jesus. Mas um missionário é grande quando vai. E há muitos, muitos, sacerdotes, leigos, religiosas, que vão para as missões, inclusive da Itália e muitos de vós. Vejo, por exemplo, quando me apresentam a história de um sacerdote como candidato ao episcopado: passou dez anos na missão em tal lugar... isto é ótimo: sair da pátria para anunciar o Evangelho. É o zelo apostólico. Devemos cultivar muito isto. E olhando para a figura destes homens, destas mulheres, aprendemos.
E São Francisco Xavier nasce numa família nobre mas pobre, de Navarra, no norte da Espanha, em 1506. Vai estudar em Paris – é um jovem mundano, inteligente, capaz. Lá encontra Inácio de Loyola, com quem faz os exercícios espirituais e muda de vida. Ele deixa toda a sua carreira mundana para se tornar missionário. Torna-se jesuíta, emite os votos. Depois torna-se sacerdote e vai evangelizar, enviado para o Oriente. Naquele tempo as viagens dos missionários ao Oriente eram um envio rumo a mundos desconhecidos. Ele vai porque está cheio de zelo apostólico.
Parte assim o primeiro de um numeroso exército de missionários apaixonados dos tempos modernos, prontos a suportar dificuldades e perigos imensos, a chegar a terras e a encontrar povos de culturas e línguas totalmente desconhecidas, impelidos unicamente pelo fortíssimo desejo de dar a conhecer Jesus Cristo e o seu Evangelho.
Em pouco mais de onze anos, realizará uma obra extraordinária. Foi missionário durante onze anos mais ou menos. Naquela época, as viagens de navio eram deveras árduas e perigosas. Muitos morriam durante a viagem, devido a naufrágios ou doenças. Hoje, infelizmente morrem porque os deixamos morrer no Mediterrâneo... Francisco Xavier passa nas naus mais de três anos e meio, um terço de toda a duração da sua missão. Ele passou mais de três anos e meio nos navios para ir à Índia, depois da Índia ao Japão.
Quando chega a Goa, na Índia, capital do Oriente português, a capital cultural e também comercial, Francisco Xavier estabelece lá a sua base, mas não permanece lá. Vai evangelizar os pescadores pobres da costa meridional da Índia, ensinando o catecismo e orações às crianças, batizando e curando os enfermos. Depois, durante uma prece noturna diante do túmulo do apóstolo São Bartolomeu, sente que deve ir além da Índia. Deixa em boas mãos a obra já encetada e zarpa corajosamente para as Molucas, as ilhas mais longínquas do arquipélago indonésio. Para estas pessoas não existiam horizontes, elas iam além... Que coragem tinham estes santos missionários! Também os de hoje, embora não viajem em navios por três meses, vão de avião por 24 horas mas depois lá é o mesmo. Devem ir lá. E fazer muitos quilómetros, entrar nas florestas. E Xavier, nas Molucas, põe o catecismo em versos na língua local e ensina a entoar o catecismo, pois com o canto aprende-se melhor. Quais são os seus sentimentos, sabemo-lo através das suas missivas. Escreve: «Os perigos e os sofrimentos, aceites voluntária e unicamente por amor e serviço a Deus nosso Senhor, são tesouros ricos de grandes consolações espirituais. Aqui, em poucos anos, poder-se-ia perder os olhos pelas demasiadas lágrimas de alegria!» (20 de janeiro de 1548). Chorava de alegria ao ver a obra do Senhor.
Um dia, na Índia, encontra um japonês que lhe fala do seu país distante, onde ainda não tinha ido nenhum missionário europeu. Francisco Xavier tinha a inquietação do apóstolo, de ir além, e decide partir o mais depressa possível e chega ali após uma viagem aventurosa no junco de um chinês. Os três anos no Japão são muito árduos, devido ao clima, às oposições e ao desconhecimento da língua, mas também ali as sementes plantadas darão frutos abundantes.
O grande sonhador, Xavier, no Japão compreende que o país decisivo para a missão na Ásia era outro: a China. Com a sua cultura, história e grandeza, exercia efetivamente um predomínio sobre aquela parte do mundo. Também hoje a China é precisamente um polo cultural, com uma grande história, uma história belíssima. Por isso, regressa a Goa e pouco depois volta a embarcar-se, na esperança de poder entrar na China. Mas o seu plano falha: ele morre às portas da China, numa ilha, a pequena ilha de Sanchoão, no litoral chinês na vã espera de poder desembarcar em terra firme, perto de Cantão. A 3 de dezembro de 1552, morre em total abandono, só há um chinês ao seu lado para vigiar sobre ele. Assim termina a viagem terrena de Francisco Xavier. Tinha envelhecido, quantos anos tinha? Oitenta? Não... Tinha apenas quarenta e seis anos, dedicou a vida à missão, com o zelo. Parte da Espanha culta e chega ao país mais culto do mundo naquela época, a China, e morre diante da grande China, acompanhado por um chinês. Tudo um símbolo!
A sua atividade extremamente intensa estava sempre vinculada à oração, à união mística e contemplativa com Deus. Nunca deixou a oração pois sabia que nela estava a força. Onde quer que se encontrasse, tinha grande cuidado com os doentes, os pobres e as crianças. Não era um missionário “aristocrático”: ia sempre com os mais necessitados, as crianças que estavam mais necessitadas de instrução, de catequese, os pobres, os doentes: ia precisamente às fronteiras da assistência onde cresceu em grandeza. O amor de Cristo foi a força que o impeliu até às fronteiras mais distantes, com fadigas e perigos contínuos, superando reveses, desilusões e desânimos, aliás, dando-lhe consolação e alegria no seu seguimento e serviço até ao fim.
São Francisco Xavier, que realizou este empreendimento grandioso, em tanta pobreza e com tanta coragem, nos conceda um pouco deste zelo, deste zelo para viver o Evangelho e anunciar o Evangelho. Aos muitos jovens de hoje que têm alguma inquietação e não sabem o que fazer com essa inquietação, digo: olhai para Francisco Xavier, olhai para o horizonte do mundo, olhai para os povos tão necessitados, olhai para as muitas pessoas que sofrem, tanta gente que precisa de Jesus. E ide, tende coragem. Também hoje há jovens corajosos. Penso em tantos missionários, por exemplo na Papua-Nova Guiné, penso nos meus amigos, jovens, que estão na diocese de Vanimo, e em todos aqueles que foram evangelizar na esteira de Francisco Xavier. Que o Senhor nos conceda a todos a alegria de evangelizar, a alegria de levar por diante esta mensagem tão bonita que nos faz felizes, e a todos.
Papa Francisco
Catequese na audiência geral 17.05.2023
Catequeses. A paixão pela evangelização: o zelo apostólico do crente - 12. Testemunhas: o monaquismo e a força da intercessão. Gregório de Narek
Continuamos as catequeses sobre as testemunhas do zelo apostólico. Começamos por São Paulo e, da última vez, vimos os mártires, que anunciam Jesus com a vida, a ponto de a entregar por Ele e pelo Evangelho. Mas existe outro grande testemunho que atravessa a história da fé: o das monjas e dos monges, irmãs e irmãos que renunciam a si, renunciam ao mundo para imitar Jesus no caminho da pobreza, da castidade e da obediência e para interceder a favor de todos. A vida deles fala por si só, mas nós poderíamos perguntar-nos: como podem pessoas que vivem no mosteiro ajudar o anúncio do Evangelho? Não seria melhor que empregassem as suas energias na missão? Saindo do mosteiro e pregando o Evangelho fora do mosteiro? Na realidade, os monges são o coração pulsante do anúncio: a sua oração é oxigénio para todos os membros do Corpo de Cristo, a sua oração é a força invisível que sustenta a missão. Não é por acaso que a padroeira das missões é uma monja, Santa Teresa do Menino Jesus. Ouçamos como descobriu a sua vocação, escreveu o seguinte: «Compreendi que a Igreja tem um coração, um coração abrasado pelo amor. Entendi que só o amor impele os membros da Igreja à ação e que, quando este amor se apaga, os apóstolos já não anunciariam o Evangelho, os mártires já não derramariam o seu sangue. Compreendi e descobri que o amor abarca em si todas as vocações [...]. Então, com imensa alegria e êxtase de alma, clamei: Ó Jesus, meu amor, finalmente encontrei a minha vocação. A minha vocação é o amor. [...] No coração da Igreja, minha mãe, serei o amor» (Manuscrito autobiográfico “B”, 8 de setembro de 1896). Os contemplativos, os monges, as monjas: pessoas que rezam, trabalham, oram em silêncio, por toda a Igreja. E este é o amor: é o amor que se exprime orando pela Igreja, trabalhando pela Igreja, nos mosteiros.
Este amor por todos anima a vida dos monges e traduz-se na sua oração de intercessão. A tal respeito, gostaria de vos citar como exemplo São Gregório de Narek, Doutor da Igreja. É um monge arménio, que viveu por volta do ano 1000 e nos deixou um livro de orações, no qual foi derramada a fé do povo arménio, o primeiro que abraçou o cristianismo; um povo que, apegado à cruz de Cristo, sofreu muito ao longo da história. São Gregório passou quase toda a sua vida no mosteiro de Narek. Ali aprendeu a perscrutar as profundezas da alma humana e, fundindo poesia e oração, alcançou o auge tanto da literatura como da espiritualidade arménia. O aspeto que mais impressiona nele é exatamente a solidariedade universal da qual é intérprete. E entre os monges e as monjas há uma solidariedade universal: aconteça o que acontecer no mundo, encontra lugar no coração deles e rezam. O coração dos monges e das monjas é um coração que recebe como uma antena, capta o que acontece no mundo e reza e intercede por isso. Assim vivem em união com o Senhor e com todos. E São Gregório de Narek escreve: «Tomei voluntariamente sobre mim todas as faltas, desde as do primeiro pai até àquela do último dos seus descendentes» (Livro das Lamentações, 72). E como fez Jesus os monges assumem sobre si os problemas do mundo, as dificuldades, as doenças, muitas coisas e rezam pelos outros. Estes são os grandes evangelizadores. Porque é que os mosteiros vivem fechados e evangelizam? Porque com a palavra, o exemplo, a intercessão e o trabalho diário, os monges são uma ponte de intercessão para todas as pessoas e para os pecados. Eles choram também com as lágrimas, choram pelos seus pecados – todos somos pecadores – e choram também pelos pecados do mundo, e oram e intercedem com as mãos e o coração ao alto. Pensemos um pouco nesta – permito-me a palavra – “reserva” que temos na Igreja: são a verdadeira força, a força autêntica que leva em frente o povo de Deus e disto tem origem o hábito que as pessoas têm – o povo de Deus – quando se encontra com um consagrado, uma consagrada, de dizer: “Reza por mim, ora por mim”, pois sabem que há uma oração de intercessão. Far-nos-á bem – na medida em que pudermos – visitar algum mosteiro, porque lá se reza e se trabalha. Cada um tem a própria regra, mas as mãos estão sempre ocupadas: ocupadas com o trabalho, ocupadas com a oração. Que o Senhor nos conceda novos mosteiros, monges e monjas que levem em frente a Igreja com a sua intercessão. Obrigado.
Papa Francisco
Catequese na audiência Geral 26.04.23
Catequeses. A paixão pela evangelização: o zelo apostólico do crente - 11. Testemunhas: os mártires
Falando da evangelização e do zelo apostólico, depois de ter considerado o testemunho de São Paulo, verdadeiro “campeão” de zelo apostólico, hoje o nosso olhar dirige-se não para uma única figura, mas para o exército de mártires, homens e mulheres de todas as idades, línguas e nações, que deram a vida por Cristo, que derramaram o sangue para confessar Cristo. Depois da geração dos Apóstolos, foram eles por excelência as “testemunhas” do Evangelho. Os mártires: o primeiro foi o diácono Santo Estêvão, lapidado fora das muralhas de Jerusalém. A palavra “martírio” deriva do grego martyria, que significa precisamente testemunho. O mártir é uma testemunha, alguém que dá testemunho até derramar o sangue. No entanto, em breve o termo mártir passou a ser utilizado na Igreja para indicar quem dava testemunho até à efusão do sangue [1]. Ou seja, no início a palavra martyria indicava o testemunho dado todos os dias, mais tarde passou a ser usada para indicar quem dá a vida com a efusão.
Contudo, os mártires não devem ser vistos como “heróis” que agiram individualmente, como flores brotadas num deserto, mas como frutos maduros e excelentes da vinha do Senhor, que é a Igreja. Em particular, participando assiduamente na celebração da Eucaristia, os cristãos eram levados pelo Espírito a colocar a própria vida na base desse mistério de amor: ou seja, na constatação de que o Senhor Jesus tinha dado a sua vida por eles e, por conseguinte, também eles podiam e deviam dar a vida por Ele e pelos irmãos. Uma grande generosidade, o caminho do testemunho cristão. Santo Agostinho realça frequentemente esta dinâmica de gratidão e de reciprocidade gratuita do dom. Eis, por exemplo, o que ele pregava por ocasião da festa de São Lourenço: «São Lourenço era diácono da Igreja de Roma. Ali era ministro do sangue de Cristo e onde, pelo nome de Cristo, derramou o seu sangue. O beato apóstolo João expôs claramente o mistério da Ceia do Senhor, dizendo: “Cristo deu a sua vida por nós. Também nós devemos dar a nossa vida pelos irmãos” (1 Jo 3, 16). Irmãos, Lourenço compreendeu tudo isto. Compreendeu-o e pô-lo em prática. E retribuiu verdadeiramente o que tinha recebido naquela mesa. Amou Cristo na sua vida, imitou-o na sua morte» (Disc. 304, 14; pl 38, 1395-1397). Era assim que Santo Agostinho explicava o dinamismo espiritual que animava os mártires. Com estas palavras: os mártires amam Cristo na sua vida e imitam-no na sua morte.
Caros irmãos e irmãs, hoje recordemos todos os mártires que acompanharam a vida da Igreja. Como eu já disse muitas vezes, eles são mais numerosos no nosso tempo do que nos primeiros séculos. Hoje há muitos mártires na Igreja, numerosos, porque por confessarem a fé cristã são expulsos da sociedade ou vão para a prisão... São tantos! O Concílio Vaticano II lembra-nos que «o martírio, pelo qual o discípulo se torna semelhante ao mestre, que livremente aceitou a morte para a salvação do mundo, e a Ele se conforma no derramamento do sangue, é considerado pela Igreja como dom insigne e prova suprema de caridade» (Const. Lumen gentium, 42). À imitação de Jesus e com a sua graça, os mártires transformam a violência de quem rejeita o anúncio, em ocasião suprema de amor, que vai até ao perdão dos próprios algozes. Isto é interessante: os mártires perdoam sempre os algozes. Estêvão, o primeiro mártir, morreu rezando: “Senhor, perdoa-lhes, não sabem o que fazem!”. Os mártires rezam pelos algozes.
Embora só alguns sejam chamados ao martírio «todos, porém, devem estar dispostos a confessar a Cristo diante dos homens e a segui-lo no caminho da cruz no meio das perseguições, que nunca faltarão à Igreja» (ibid., 42). Mas, a perseguição é algo daquela época? Não, não: de hoje. Hoje há perseguições de cristãos no mundo, muitas, tantas! Há mais mártires hoje do que nos primeiros tempos. Os mártires mostram-nos que cada cristão é chamado ao testemunho da vida, até quando não chega à efusão do sangue, fazendo de si mesmo um dom a Deus e aos irmãos, à imitação de Jesus.
E gostaria de concluir, recordando o testemunho cristão presente em todos os cantos do mundo. Penso, por exemplo, no Iémen, uma terra há muitos anos ferida por uma guerra terrível, esquecida, que causou tantos mortos e ainda hoje faz sofrer tantas pessoas, especialmente crianças. Precisamente nessa terra houve testemunhos resplandecentes de fé, como o das irmãs Missionárias da Caridade, que ali deram a vida. Ainda hoje elas estão presentes no Iémen, onde oferecem assistência a idosos enfermos e a pessoas portadoras de deficiência. Algumas delas sofreram o martírio, mas as demais continuam, arriscam a vida, mas vão em frente. Recebem todos, de qualquer religião, porque a caridade e a fraternidade não têm fronteiras. Em julho de 1998, a Irmã Aletta, a Irmã Zelia e a Irmã Michael, a caminho de casa depois da missa, foram mortas por um fanático porque eram cristãs. Mais recentemente, pouco depois do início do conflito ainda em curso, em março de 2016, a Irmã Anselm, a Irmã Marguerite, a Irmã Reginette e a Irmã Judith foram mortas com alguns leigos que as ajudavam na obra de caridade no meio dos últimos. São os mártires do nosso tempo. Entre estes leigos assassinados, além dos cristãos, havia muçulmanos que trabalhavam com as religiosas. É comovedor ver que o testemunho do sangue pode aproximar pessoas de diferentes religiões. Nunca se deve matar em nome de Deus, pois para Ele somos todos irmãos e irmãs. Mas juntos podemos dar a vida pelos outros.
Portanto, oremos para não nos cansarmos de dar testemunho do Evangelho até em tempos de tribulação. Que todos os santos e santas mártires sejam sementes de paz e de reconciliação entre os povos, por um mundo mais humano e fraterno, à espera que se manifeste plenamente o Reino dos céus, quando Deus será tudo em todos (cf. 1 Cor 15, 28).
Papa Francisco
Catequese na audiência geral 19.04.23
1) Orígenes, In Johannem, II, 210: «Quem quer que dê testemunho da verdade, seja por palavras ou obras, ou trabalhando de qualquer maneira a favor dela, pode chamar-se com razão testemunha. Mas o nome de testemunha (martyres) em sentido próprio, a comunidade de irmãos, impressionados pela força de espírito daqueles que lutaram pela verdade ou virtude até à morte, adquiriu o costume de o reservar àqueles que deram testemunho do mistério da verdadeira religião através da efusão do sangue».
Catequeses. A paixão pela evangelização: o zelo apostólico do crente - 10. Testemunhas: São Paulo. 2
Depois de ter visto, há duas semanas, o impulso pessoal de São Paulo pelo Evangelho, hoje podemos refletir mais profundamente sobre o zelo evangélico à medida que ele mesmo fala e o descreve nalgumas das suas cartas.
Em virtude da própria experiência, Paulo não ignora o perigo de um zelo distorcido, orientado numa direção errada; ele próprio caiu neste perigo antes da providencial queda no caminho de Damasco. Por vezes temos de lidar com um zelo mal orientado, obstinado na observância de normas puramente humanas e obsoletas para a comunidade cristã. «O interesse – escreve o Apóstolo – que mostram por vós não é bom» (Gl 4, 17).
Não podemos ignorar a solicitude com que alguns se dedicam a ocupações erradas, inclusive na própria comunidade cristã; podemos gabar-nos de um falso impulso evangélico ao mesmo tempo que perseguimos a vanglória ou as próprias convicções ou um pouco de amor-próprio.
Por isso perguntemo-nos: quais são as caraterísticas do verdadeiro zelo evangélico segundo Paulo? Por isso, parece ser útil texto que ouvimos no início, uma lista de “armas” que o Apóstolo indica para a batalha espiritual. Entre elas está a prontidão para propagar o Evangelho, traduzida por alguns como “zelo” - esta pessoa é um zelante na realização destas ideias, destas coisas -, e indicada como “calçado”. Porquê? Como se relaciona o impulso pelo Evangelho com o que se põe em pé? Esta metáfora retoma um texto do profeta Isaías, que diz: «Que formosos são, sobre os montes, / os pés do mensageiro que anuncia a paz, / que traz a boa nova, e que apregoa a vitória! / que diz a Sião: o teu Deus é Rei» (52, 7).
Também aqui encontramos referência aos pés de um anunciador de boas notícias. Porquê? Porque aquele que vai anunciar se deve mover, deve caminhar! Mas notamos também que Paulo, naquele texto, fala do calçado como parte de uma armadura, segundo a analogia do equipamento de um soldado que vai para a batalha: no combate, era fundamental ter estabilidade de apoio, para evitar as armadilhas do terreno, pois com frequência o adversário disseminava o campo de batalha com armadilhas, e ter a força para correr e mover-se na direção certa. Portanto, o calçado é para correr e evitar todas estas coisas do adversário.
O zelo evangélico é o apoio em que se baseia o anúncio, e os anunciadores são um pouco como os pés do corpo de Cristo que é a Igreja. Não há proclamação sem movimento, sem “saída”, sem iniciativa. Isto significa que não há cristão se não estiver em movimento, não se é cristão se não se sair de si mesmo para se pôr a caminho e levar o anúncio. Não há anúncio sem movimento, sem caminho. Não se anuncia o Evangelho parado, fechado num escritório, na escrivaninha ou no computador, fazendo polémicas como “leões do teclado” e substituindo a criatividade da proclamação com o copia-e-cola de ideias tiradas aqui e ali. Anuncia-se o Evangelho movendo-se, caminhando, indo.
O termo utilizado por Paulo, para indicar o calçado de quantos levam o Evangelho, é uma palavra grega que denota prontidão, preparação, alacridade. É o oposto de desleixo, incompatível com o amor. De fato, noutros lugares Paulo diz: «Sede diligentes, sem fraqueza, fervorosos de espírito, dedicados ao serviço do Senhor» (Rm 12, 11). Esta atitude era a exigida no Livro do Êxodo para celebrar o sacrifício da libertação pascal: «Quando o comerdes, tereis os rins cingidos, as sandálias nos pés e o bordão na mão. Comê-lo-eis apressadamente pois é a Páscoa do Senhor. Passarei nesta noite» (12, 11-12a).
Um anunciador está pronto para ir, e sabe que o Senhor passará de uma forma surpreendente; deve, portanto, estar livre de esquemas e preparado para uma ação inesperada e nova: preparado para as surpresas. Aquele que proclama o Evangelho não pode estar fossilizado em jaulas de plausibilidade ou no “sempre se fez assim”, mas está pronto a seguir uma sabedoria que não é deste mundo, como diz Paulo falando de si: «A minha palavra e a minha pregação não consistiram em discursos persuasivos da sabedoria humana, mas na manifestação do Espírito e do poder divino, para que a vossa fé não se apoie na sabedoria dos homens, mas no poder de Deus» (1 Cor 2, 4-5).
Eis então, irmãos e irmãs: é importante ter esta prontidão para a novidade do Evangelho, esta atitude que é um impulso, uma tomada de iniciativa, um ir primeiro. É um não deixar escapar as oportunidades para promulgar o anúncio do Evangelho da paz, aquela paz que Cristo sabe dar mais e melhor do que o mundo. E por isso exorto-vos a serdes evangelizadores que se movem, sem temor, que vão em frente, para levar a beleza de Jesus, para levar a novidade de Jesus que muda tudo. “Sim, Padre, muda o calendário, porque agora contamos os anos antes de Jesus...”. – “Mas também, muda o coração: e estás disposto a deixar que Jesus mude o teu coração? Ou és um cristão tíbio, que não te moves? Pensa um pouco: és um entusiasta de Jesus, vais em frente? Pensa um pouco nisto...
Papa Francisco
Catequese na audiência geral 12.04.2023
Imagem: site do Vaticano
Catequeses. A paixão pela evangelização: o zelo apostólico do crente - 9. Testemunhas: São Paulo. 1
Estimados irmãos e irmãs, bom dia!
No caminho das catequeses sobre o zelo apostólico, começamos hoje a olhar para algumas figuras que, de modos e em tempos diversos, deram um testemunho exemplar do que significa a paixão pelo Evangelho. E a primeira testemunha, naturalmente, é o apóstolo Paulo. A ele, gostaria de dedicar duas catequeses.
A história de Paulo de Tarso é emblemática sobre este tema. No primeiro capítulo da Carta aos Gálatas, assim como na narração dos Atos dos Apóstolos, podemos relevar que o seu zelo pelo Evangelho aparece após a sua conversão, e toma o lugar do seu zelo anterior pelo judaísmo. Era um homem zeloso da lei de Moisés para o judaísmo e depois da conversão este zelo continua, mas para proclamar, para pregar Jesus Cristo. Paulo era um apaixonado por Jesus. Saulo - o primeiro nome de Paulo - já era zeloso, mas Cristo converte o seu zelo: da Lei para o Evangelho. O seu impulso primeiro queria destruir a Igreja, mas depois ao contrário edifica-a. Podemos perguntar-nos: o que aconteceu, como passou da destruição à construção? O que mudou em Paulo? Em que sentido o seu zelo, o seu impulso para a glória de Deus se transformou?
São Tomás de Aquino ensina que a paixão, sob o ponto de vista moral, não é boa nem má: o seu uso virtuoso torna-a moralmente boa, o pecado torna-a má [1]. No caso de Paulo, o que o mudou não foi uma mera ideia ou convicção: para Saulo, o encontro com o Senhor ressuscitado – não esqueçais isto, aquilo que muda uma vida é o encontro com o Senhor – transformou todo o seu ser. A humanidade de Paulo, a sua paixão por Deus e a sua glória não foi aniquilada, mas transformada, “convertida” pelo Espírito Santo. O único que pode mudar os nossos corações é o Espírito Santo. E o mesmo é válido para cada aspeto da sua vida. Precisamente como acontece na Eucaristia: o pão e o vinho não desaparecem, mas tornam-se o Corpo e o Sangue de Cristo. O zelo de Paulo permanece, mas torna-se o zelo de Cristo. Muda o sentido mas o zelo é o mesmo. O Senhor é servido com a nossa humanidade, com as nossas prerrogativas e caraterísticas, mas o que muda tudo não é uma ideia mas a verdadeira vida, como o próprio Paulo diz: «Se alguém está em Cristo, é uma criação; passou o que era velho; eis que tudo se fez novo» ( 2 Cor 5, 17). O encontro com Jesus Cristo muda-te a partir de dentro, faz de ti outra pessoa. Se alguém estiver em Cristo é uma nova criatura, este é o sentido de ser uma nova criatura. Tornar-se cristão não é uma maquiagem que te muda o rosto, não! Se fores cristão muda-te o coração mas se fores cristão de aparência, não está bem... cristão de maquiagem não serve. A verdadeira mudança é do coração. E isto aconteceu a Paulo.
A paixão pelo Evangelho não é uma questão de compreensão ou de estudos, que certamente são úteis, mas não a geram; significa antes passar por aquela mesma experiência de “queda e ressurreição” que Saulo/Paulo viveu e que está na origem da transfiguração do seu impulso apostólico. Podes estudar toda a teologia que quiseres, podes estudar a Bíblia e tudo o resto, mas seres ateu ou mundano, não é uma questão de estudos; na história existiram muitos teólogos ateus! Estudar é útil, mas não gera a nova vida da graça. De facto, como diz Santo Inácio de Loyola: «O muito saber não sacia nem satisfaz a alma, mas o sentir e o saborear as coisas internamente» [2]. Trata-se das coisas que te mudam dentro, que te fazem conhecer outra coisa, saborear outra coisa. Cada um de nós pense nisto: “Sou um religioso?” – “Pois bem” – “Rezo?” – “sim” – “Procuro observar os mandamentos?” – “sim” – “Mas onde está Jesus na tua vida?” – “Ah, não faço as coisas que manda a Igreja”. Mas Jesus onde está? Encontraste Jesus, falaste com Jesus? Lês o Evangelho ou falas com Jesus, recordas quem é Jesus? E esta é uma coisa que nos falta muitas vezes. Quando Jesus entra na tua vida, como entrou na vida de Paulo, Jesus entra e muda tudo. Muitas vezes ouvimos comentários sobre as pessoas: “Mas olha aquele, que era um pobre coitado e agora é um homem bom, uma mulher bondosa... Quem o mudou? Jesus, encontrou Jesus. A tua vida que é cristã mudou? “Não, mais ou menos, sim...”. Se não entrar Jesus na tua vida ela não muda. Podes ser cristão só por fora. Não, Jesus deve entrar e isto muda-te e aconteceu a Paulo. É preciso encontrar Jesus e por isso Paulo dizia que o amor de Jesus nos constrange, mos leva em frente. A mesma mudança aconteceu a todos os santos, que quando encontraram Jesus foram em frente.
Podemos fazer uma ulterior reflexão sobre a mudança que ocorreu em Paulo, o qual de perseguidor se tornou apóstolo de Cristo. Notemos que nele ocorre uma espécie de paradoxo: de facto, enquanto ele se considerar justo perante Deus, então sente-se autorizado a perseguir, a aprisionar, até a matar, como no caso de Estêvão; mas quando, iluminado pelo Senhor ressuscitado, descobre que foi “um blasfemador e um homem violento” (cf. 1 Tm 1, 13), - assim diz de si mesmo: “fui um blasfemador e um violento” – então começa a ser verdadeiramente capaz de amar. Este é o caminho. Se um de nós disser: “Ah, obrigado Senhor, porque sou uma pessoa bondosa, pratico coisas boas, não cometo grandes pecados...”: este não é um bom caminho, é uma estrada de autossuficiência, é um caminho que não te justifica, faz de ti um católico elegante, mas um católico elegante não é um católico santo, é elegante. O católico verdadeiro, o cristão verdadeiro é aquele que recebe Jesus dentro, que muda o coração. Esta é a pergunta que faço a todos vós hoje: o que significa Jesus para mim? Deixei-o entrar no coração ou só o tenho ao alcance da mão mas que não venha muito dentro? Deixei-me mudar por Ele? Ou Jesus é apenas uma ideia, uma teologia que prossegue... E isto é o zelo, quando alguém encontra Jesus sente o fogo e como Paulo deve pregar Jesus, deve falar de Jesus, deve ajudar as pessoas, deve praticar o bem. Quando alguém encontra a ideia de Jesus permanece um ideólogo do cristianismo e isto não salva, só Jesus nos salva, se tu o encontraste e lhe abriste a porta do coração. A ideia de Jesus não te salva! O Senhor nos ajude a encontrar Jesus, a encontrar Jesus, e que Jesus a partir de dentro nos mude a vida e nos ajude a ajudar os outros.
Papa Francisco
Catequese na audiência geral 29.03.23
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[1] Cf. Quaestio “De veritate”, 24, 7.
[2] Exercícios espirituais, Anotações, 2, 4.
Catequeses. A paixão pela evangelização: o zelo apostólico do crente - 7. O Concílio Vaticano II. 2. Ser apóstolos em uma Igreja Apostólica
Continuemos as catequeses sobre a paixão de evangelizar: não apenas sobre “evangelizar”, mas a paixão de evangelizar e, na escola do Concílio Vaticano II, procuremos compreender melhor o que significa ser “apóstolo” hoje. A palavra “apóstolo” traz-nos à mente o grupo dos Doze discípulos escolhidos por Jesus. Às vezes chamamos “apóstolo” a alguns santos ou, mais genericamente, aos Bispos: são apóstolos, pois vão em nome de Jesus. Mas estamos conscientes de que ser apóstolo se refere a cada cristão? Estamos cientes que se refere a cada um de nós? Com efeito, somos chamados a ser apóstolos – isto é enviados – numa Igreja que, no Credo, professamos como apostólica.
Por conseguinte, o que significa ser apóstolo? Significa ser enviado para uma missão. Exemplar e fundacional é o acontecimento em que Cristo Ressuscitado envia os seus apóstolos ao mundo, transmitindo-lhes o poder que Ele próprio recebeu do Pai e oferecendo-lhes o seu Espírito. No Evangelho de João lemos: «Jesus disse-lhes mais uma vez: “A paz esteja convosco! Assim como o Pai me enviou, também Eu vos envio a vós”. Depois, soprou sobre eles e disse-lhes: “Recebei o Espírito Santo!”» (20, 21-22).
Outro aspeto fundamental de ser apóstolo é a vocação, ou seja, a chamada. Foi assim desde o início, quando o Senhor Jesus «chamou a si os que Ele quis. E foram ter com Ele» (Mc 3, 13). Constituiu-os como grupo, atribuindo-lhes o título de “apóstolos”, para que permanecessem com Ele e para os enviar em missão (cf. Mc 3, 14; Mt 10, 1-42). Nas suas cartas, São Paulo apresenta-se assim: «Paulo, chamado a ser apóstolo», isto é enviado, (1 Cor 1, 1) e ainda: «Paulo, servo de Jesus Cristo, apóstolo enviado por vocação, escolhido para anunciar o Evangelho de Deus» (Rm 1, 1). E insiste que é «apóstolo não da parte de homens, nem por meio de algum homem, mas por Jesus Cristo e por Deus Pai que o ressuscitou dos mortos» (Gl 1, 1); Deus chamou-o do seio da sua mãe para anunciar o evangelho entre os gentios (cf. Gl 1, 15-16).
A experiência dos Doze apóstolos e o testemunho de Paulo interpelam-nos também hoje. Convidam-nos a averiguar as nossas atitudes, a verificar as nossas escolhas, as nossas decisões, com base nestes pontos fixos: tudo depende de uma chamada gratuita de Deus; Deus escolhe-nos até para serviços que às vezes parecem exceder as nossas capacidades ou não corresponder às nossas expetativas; à chamada recebida como dom gratuito é preciso responder gratuitamente.
O Concílio diz: «A vocação cristã [...] é também, por sua própria natureza, vocação ao apostolado» (Decr. Apostolicam actuositatem [AA], 2). Trata-se de uma chamada que é comum, «assim como comum é a dignidade dos membros pela sua regeneração em Cristo, comum é a graça da adoção filial, comum é a vocação à perfeição; só existe uma salvação, uma esperança e uma caridade sem divisões» (LG, 32).
É uma chamada que diz respeito tanto aos que receberam o sacramento da Ordem, como às pessoas consagradas e a todos os fiéis leigos, homens ou mulheres, é uma chamada a todos. Tu, o tesouro que recebeste com a tua vocação cristã, és obrigado a doá-lo: é a dinâmica da vocação, é a dinâmica da vida. Trata-se de uma chamada que habilita a desempenhar ativa e criativamente a sua tarefa apostólica, no seio de uma Igreja na qual «existe diversidade de funções, mas unidade de missão. Aos apóstolos e aos seus sucessores confiou Cristo a missão de ensinar, santificar e governar em seu nome e pelo seu poder. Mas os leigos: todos vós; a maioria de vós sois leigos. Também os leigos, dado que são participantes do múnus sacerdotal, profético e real de Cristo, têm um papel próprio a desempenhar na missão de todo o Povo de Deus, na Igreja e no mundo» (AA, 2).
Neste contexto, como entende o Concílio a colaboração do laicado com a hierarquia? Como o entende? Trata-se de uma mera adaptação estratégica às novas situações que surgem? De modo algum, não: há algo mais, que supera as contingências do momento e que retém um seu próprio valor também para nós. A Igreja é assim, é apostólica.
No âmbito da unidade da missão, a diversidade de carismas e ministérios não deve dar lugar, no seio do corpo eclesial, a categorias privilegiadas: aqui não há uma promoção, e quando tu concebes a vida cristã como uma promoção, isto é, aquele que está em cima comanda os outros porque conseguiu subir, isto não é cristianismo. Isto é paganismo puro. A vocação cristã não é uma promoção para subir, não! É outra questão. E há uma coisa grande porque, embora «por vontade de Cristo, alguns sejam constituídos num lugar talvez mais importante, doutores, dispensadores dos mistérios e pastores a favor dos demais, reina, porém, igualdade entre todos quanto à dignidade e quanto à atuação, comum a todos os fiéis, em benefício da edificação do corpo de Cristo» (LG, 32). Quem tem mais dignidade, na Igreja: o bispo, o sacerdote? Não... todos somos cristãos ao serviço dos outros. Quem é mais importante, na Igreja: a religiosa ou a pessoa comum, batizada, a criança, o bispo...? Todos são iguais, somos iguais e quando uma das partes se considera mais importante do que os outros e levanta um pouco o nariz, erra. Não é essa a vocação de Jesus. A vocação que Jesus dá, a todos – mas inclusive a quantos parecem estar em postos mais altos – é o serviço, servir os outros, humilhar-te. Se encontrares uma pessoa que na Igreja tem uma vocação mais elevada e tu a vês vaidosa, dirás: “Pobrezinho”; reza por ele porque não entendeu o que é a vocação de Deus. A vocação de Deus é adoração ao Pai, amor à comunidade e serviço. Isto é ser apóstolo, este é o testemunho dos apóstolos.
A questão da igualdade em dignidade pede-nos que repensemos muitos aspetos das nossas relações, que são decisivas para a evangelização. Por exemplo, estamos conscientes de que, com as nossas palavras, podemos lesar a dignidade das pessoas, arruinando assim as relações dentro da Igreja? Enquanto procuramos dialogar com o mundo, também sabemos dialogar entre nós, crentes? Ou na paróquia um vai contra o outro, uma fala mal do outro para subir mais? Sabemos ouvir para compreender as razões do outro, ou será que nos impomos, talvez até com palavras de cetim? Ouvir, humilhar-se, estar ao serviço dos outros: isto é servir, isto é ser cristão, isto é ser apóstolo.
Caros irmãos e irmãs, não tenhamos medo de nos interrogar com estas perguntas. Fujamos da vaidade, da vaidade dos postos. Estas palavras podem ajudar-nos a verificar o modo em que vivemos a nossa vocação batismal, como vivemos a nossa maneira de ser apóstolos numa Igreja apostólica, que está ao serviço dos outros.
Papa Francisco
catequese na audiência geral 15.03.2023
Catequeses. A paixão pela evangelização: o zelo apostólico do crente - 6. O Concílio Vaticano II. 1. A evangelização como serviço eclesial
Na última catequese vimos que o primeiro “concílio” na história da Igreja – concílio, como o do Vaticano II – o primeiro concílio, foi convocado em Jerusalém, para uma questão ligada à evangelização, ou seja, ao anúncio da Boa Nova aos não-judeus – pensava-se que só aos judeus se devia levar o anúncio do Evangelho. No século XX, o Concílio Ecuménico Vaticano II apresentou a Igreja como Povo de Deus peregrino no tempo e por sua natureza missionário (cf. Decr. Ad gentes, 2). O que significa isto? Existe como que uma ponte entre o primeiro e o último Concílio, no sinal da evangelização, uma ponte cujo arquiteto é o Espírito Santo. Hoje coloquemo-nos à escuta do Concílio Vaticano II, para descobrir que evangelizar é sempre um serviço eclesial, nunca solitário, jamais isolado nem individualista. A evangelização faz-se sempre in ecclesia, isto é, em comunidade e sem fazer proselitismo pois isto não é evangelização.
Com efeito, o evangelizador transmite sempre aquilo que ele mesmo ou ela mesma recebeu. Foi São Paulo que o escreveu primeiro: o evangelho que ele anunciava e que as comunidades recebiam e no qual permaneciam firmes é o mesmo que o Apóstolo, por sua vez, tinha recebido (cf. 1 Cor 15, 1-3). Recebe-se a fé e transmite-se a fé. Este dinamismo eclesial de transmissão da Mensagem é vinculante e garante a autenticidade do anúncio cristão. O próprio Paulo escreve aos Gálatas: «Se alguém, nós ou um anjo do céu, vos anunciasse um evangelho diferente daquele que vos temos anunciado, que ele seja anátema» (1, 8). É bom isto e adequa-se a tantas visões que estão na moda...
Por isso, a dimensão eclesial da evangelização constitui um critério de verificação do zelo apostólico. Uma verificação necessária, porque a tentação de proceder “solitariamente” está sempre à espreita, de modo especial quando o caminho se torna impérvio e sentimos o peso do compromisso. Igualmente perigosa é a tentação de seguir caminhos pseudoeclesiais mais fáceis, de adotar a lógica mundana dos números e das sondagens, de confiar na força das nossas ideias, dos programas, das estruturas, das “relações que contam”. Isto não está bem, isto deve ajudar um pouco mas é fundamental a força que o Espírito te dá para anunciar a verdade de Jesus Cristo, para anunciar o Evangelho. Os outros aspetos são secundários.
Pois bem, irmãos e irmãs, coloquemo-nos mais diretamente na escola do Concílio Vaticano II, relendo alguns números do Decreto Ad gentes (AG), o documento sobre a atividade missionária da Igreja. Estes textos do Vaticano II conservam plenamente o seu valor, até no nosso contexto complexo e plural.
Em primeiro lugar, este documento, AG convida-nos a considerar o amor de Deus Pai como uma fonte, que «nos cria livremente pela sua extraordinária e misericordiosa benignidade, e depois nos chama gratuitamente a partilhar a sua própria vida e glória. Esta é a nossa vocação. Ele quis ser, assim, não só criador de todas as coisas, mas também “tudo em todas as coisas” (1 Cor 15, 28), conseguindo simultaneamente a sua glória e a nossa felicidade» (n. 2). Esta passagem é fundamental, pois diz que o amor do Pai tem como destinatário cada ser humano. O amor de Deus não é apenas por um pequeno grupo, não... por todos. Colocai bem aquela palavra na cabeça e no coração: todos, todos, sem excluir ninguém, assim diz o Senhor. E este amor por cada ser humano é um amor que alcança cada homem e mulher através da missão de Jesus, medianeiro da salvação e nosso Redentor (cf. AG, 3), e mediante a missão do Espírito Santo (cf. AG, 4), o qual, Espírito Santo, age em cada um, tanto nos batizados como nos não-batizados. O Espírito Santo age!
Além disso, o Concílio recorda que a Igreja tem a tarefa de continuar a missão de Cristo, que foi «enviado a evangelizar os pobres; por isso – acrescenta o documento Ad gentes – a Igreja, movida pelo influxo do Espírito Santo, o Espírito de Cristo, deve seguir o mesmo caminho d’Ele: o caminho da pobreza, da obediência, do serviço e da imolação própria até à morte, morte de que Ele saiu vencedor pela sua ressurreição» (AG, 5). Se permanecer fiel a este “caminho”, a missão da Igreja será «a manifestação, ou seja, a epifania e a realização dos desígnios de Deus no mundo e na história» (AG, 9).
Irmãos e irmãs, estas breves indicações ajudam-nos também a compreender o sentido eclesial do zelo apostólico de cada discípulo-missionário. O zelo apostólico não é um entusiasmo, é outra coisa, é uma graça de Deus, que devemos preservar. Devemos compreender o sentido porque no Povo de Deus peregrino e evangelizador não existem sujeitos ativos e passivos. Não há os que pregam, os que anunciam o Evangelho num modo ou noutro, e os que estão calados. Não. «Cada batizado – diz a Evangelii gaudium – qualquer que seja a sua função na Igreja e o grau de instrução da sua fé, é um sujeito ativo de evangelização» (Exortação Apostólica Evangelii gaudium, 120). Tu és cristão? “Sim, recebi o Batismo”... E tu evangelizas? “Mas o que significa isso...?” Se tu não evangelizares, se tu não testemunhares, se tu não deres aquele testemunho do Batismo que recebeste, da fé que o Senhor te concedeu, tu não és um bom cristão. Em virtude do Batismo recebido e da consequente incorporação na Igreja, cada batizado participa na missão da Igreja e, nela, na missão de Cristo Rei, Sacerdote e Profeta. Irmãos e irmãs, esta tarefa «é uma e a mesma em toda a parte, sejam quais forem os condicionamentos, embora difira quanto ao exercício conforme as circunstâncias» (AG, 6). Isto convida-nos a não nos tornarmos escleróticos nem fossilizados; resgata-nos daquela inquietude que não é de Deus. O zelo missionário do crente manifesta-se também como busca criativa de novas maneiras de anunciar e testemunhar, de novos modos de encontrar a humanidade ferida que Cristo assumiu. Em síntese, de novas formas de servir o Evangelho e a humanidade. A evangelização é um serviço. Se alguém se disser evangelizador e não tiver aquela atitude, aquele coração de servo, e se se considerar patrão, não é um evangelizador, não... é um pobre diabo.
Voltar ao amor fontal do Pai e às missões do Filho e do Espírito Santo não nos fecha em espaços de tranquilidade pessoal estática. Pelo contrário, leva-nos a reconhecer a gratuidade do dom da plenitude de vida a que somos chamados, dom pelo qual louvamos e damos graças a Deus. Este dom não é apenas para nós, mas é para o dar aos outros. E leva-nos também a viver cada vez mais plenamente o que recebemos partilhando-o com os outros, com sentido de responsabilidade e percorrendo juntos os caminhos, muitas vezes tortuosos e difíceis da história, na expetativa vigilante e laboriosa do seu cumprimento. Peçamos esta graça ao Senhor, pegar pela mão esta vocação cristã e dar graças ao Senhor por aquilo que nos concedeu, por este tesouro. E procurar comunica-lo aos outros.
Papa Francisco
Catequese na audiência geral 08.03.2023
Imagem: site do Vaticano
Catequeses. A paixão pela evangelização: o zelo apostólico do crente - 5. O protagonista do anúncio: o Espírito Santo
No nosso itinerário de catequeses sobre a paixão de evangelizar, hoje recomeçamos pelas palavras de Jesus que ouvimos: «Ide, pois, e fazei discípulos de todas as nações, batizando-as em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo» (Mt 28, 19). Ide, diz o Ressuscitado, não para doutrinar, nem para fazer prosélitos, não, mas para fazer discípulos, ou seja, para oferecer a cada um a possibilidade de entrar em contacto com Jesus, de o conhecer e de o amar livremente. Ide, batizando: batizar significa imergir e, portanto, antes de indicar uma ação litúrgica, exprime uma ação vital: imergir a própria vida no Pai, no Filho, no Espírito Santo; experimentar todos os dias a alegria da presença de Deus que está próximo de nós como Pai, como Irmão, como Espírito que age em nós, no nosso próprio espírito. Batizar significa imergir-se na Trindade.
Quando Jesus diz aos seus discípulos - e também a nós – “Ide!”, não comunica apenas uma palavra. Não! Comunica, ao mesmo tempo, o Espírito Santo, pois só graças a Ele, ao Espírito Santo, podemos receber a missão de Cristo e cumpri-la (cf. Jo 20, 21-22). Com efeito, os Apóstolos permanecem fechados no Cenáculo, com medo, enquanto não chega o dia de Pentecostes e desce sobre eles o Espírito Santo (cf. At 2, 1-13). E naquele momento desaparece o temor e com a sua força aqueles pescadores, na sua maioria iletrados, mudarão o mundo. “Mas se não soubem falar...”. Mas é a palavra do Espírito, a força do Espírito que os leva em frente para mudar o mundo. Portanto, o anúncio do Evangelho só se realiza na força do Espírito, que precede os missionários e prepara o coração: Ele é “o motor da evangelização”.
Descobrimo-lo nos Atos dos Apóstolos, onde em cada página vemos que o protagonista do anúncio não é Pedro, Paulo, Estêvão ou Filipe, mas o Espírito Santo. Ainda nos Atos, narra-se um momento nevrálgico dos primórdios da Igreja, que também nos pode dizer muito. Nessa época, como hoje, com as consolações não faltavam tribulações - momentos bons e momentos menos bons – as alegrias eram acompanhadas por preocupações, ambas as coisas. Uma em particular: como se comportar com os pagãos que chegavam à fé, com quantos não pertenciam ao povo hebreu, por exemplo. Eram ou não obrigados a observar as prescrições da Lei mosaica? Não se tratava de uma questão de pouca importância para aquele povo. Assim, formam-se dois grupos, entre aqueles que consideravam a observância da Lei indispensável e quem não. Para discernir, os Apóstolos reúnem-se no que se chama o “Concílio de Jerusalém”, o primeiro da história. Como resolver o dilema? Ter-se-ia podido procurar um bom compromisso entre tradição e inovação: algumas normas observam-se, outras deixam-se de lado. Contudo, os Apóstolos não seguem esta sabedoria humana para procurar um equilíbrio diplomático entre uma e outra, não seguem isto, mas adaptam-se à obra do Espírito, que os tinha antecipado, descendo sobre os pagãos como sobre eles.
Portanto, eliminando quase todas as obrigações ligadas à Lei, comunicam as decisões finais, tomadas – e escrevem assim - «pelo Espírito Santo e por nós» (cf. At 15, 28) saiu esta, o Espírito Santo connosco, assim agem sempre os Apóstolos. Juntos, sem se dividir, não obstante as diferentes sensibilidades e opiniões, põem-se à escuta do Espírito. E Ele ensina algo, válido até hoje: cada tradição religiosa é útil, se facilitar o encontro com Jesus, cada tradição religiosa é útil se agilizar o encontro com Jesus. Poderíamos dizer que a decisão histórica do primeiro Concílio, do qual também nós nos beneficiamos, foi movida por um princípio, o princípio do anúncio: tudo na Igreja deve conformar-se com as exigências do anúncio do Evangelho; não com as opiniões dos conservadores ou dos progressistas, mas com o facto de que Jesus alcance a vida das pessoas. Por conseguinte, cada escolha, cada uso, cada estrutura e cada tradição devem ser avaliados na medida em que favorecerem o anúncio de Cristo. Quando se encontram decisões na Igreja, por exemplo, divisões ideológicas: “Sou conservador porque... sou progressista porque...”. Mas onde está o Espírito Santo? Estai atentos que o Evangelho não é uma ideia, o Evangelho não é uma ideologia: o Evangelho é um anúncio que toca o coração e te faz mudar o coração, mas se tu te refugiares numa ideia, numa ideologia quer de direita quer de esquerda quer de centro, estás a fazer do Evangelho um partido político, uma ideologia, um clube de pessoas. O Evangelho oferece-te sempre esta liberdade do Espírito que age em ti e te leva em frente. E quanto é necessário hoje pegar pela mão a liberdade do Evangelho e deixar-nos levar em frente pelo Espírito.
Assim, o Espírito ilumina o caminho da Igreja, sempre. Com efeito, Ele não é apenas a luz do coração, é a luz que orienta a Igreja: ilumina, ajuda a distinguir, ajuda a discernir. Por isso, é necessário invocá-lo frequentemente; façamo-lo também hoje, no início da Quaresma. Pois, como Igreja, podemos ter tempos e espaços bem definidos, comunidades, institutos e movimentos bem organizados, mas sem o Espírito, tudo permanece sem alma. A organização não é suficiente: é o Espírito que dá vida à Igreja. Se não rezar a Ele e não o invocar, a Igreja fecha-se em si mesma, em debates estéreis e extenuantes, em polarizações desgastantes, enquanto a chama da missão se extingue. É muito triste ver a Igreja como se fosse um parlamento; não, a Igreja é outra coisa. A Igreja é a comunidade de homens e mulheres que acreditam e anunciam Jesus Cristo mas movidos pelo Espírito Santo, não pelas próprias razões. Sim, usa-se a razão mas vem o Espírito que a ilumina e move. O Espírito faz-nos sair, impele-nos a anunciar a fé, impele-nos para nos confirmarmos na fé, a ir em missão para reencontrarmos quem somos. Por isso, o Apóstolo Paulo recomenda assim: «Não extingais o Espírito!» (1 Ts 5, 19), não extingais o Espírito. Oremos com frequência ao Espírito, invoquemo-lo, peçamos-lhe todos os dias que acenda em nós a sua luz. Façamo-lo antes de cada encontro, para nos tornarmos apóstolos de Jesus com as pessoas que encontrarmos. Não extingais o Espírito nas comunidades cristãs nem dentro de cada um de nós.
Caros irmãos e irmãs, como Igreja comecemos e recomecemos do Espírito Santo. «Sem dúvida, é importante que nas nossas programações pastorais comecemos a partir das sondagens sociológicas, das análises, da lista de dificuldades, do elenco de expetativas e queixas. No entanto, é muito mais importante começar a partir das experiências do Espírito: eis o verdadeiro início. Portanto, é necessário procurá-las, enumerá-las, estudá-las, interpretá-las. Trata-se de um princípio fundamental que, na vida espiritual, é chamado primado da consolação sobre a desolação. Primeiro há o Espírito que consola, reanima, ilumina, se move; depois, haverá também a desolação, o sofrimento, a escuridão, mas o princípio para se regular na obscuridade é a luz do Espírito» (C.M. MARTINI, Evangelizzare nella consolazione dello Spirito, 25 de setembro de 1997). Este é o princípio para se regular nas coisas que não se compreendem, nas confusões, inclusive nas muitas escuridões, é importante. Procuremos interrogar-nos se nos abrimos a esta luz, se lhe damos espaço: invoco o Espírito? Cada um responda no próprio íntimo. Quantos de nós rezamos ao Espírito? “Não, padre, rezo a Nossa Senhora, rezo aos Santos, rezo a Jesus, mas às vezes, rezo o Pai-Nosso, rezo ao Pai” – “E ao Espírito? Tu não rezas ao Espírito, que é aquele que te faz mover o coração, que te leva em frente, te leva à consolação, leva em frente a tua vontade de evangelizar e de fazer missão?”. Deixo-vos esta pergunta: Rezo ao Espírito Santo? Deixo-me orientar por Ele, que me convida a não me fechar, mas a levar Jesus, a dar testemunho do primado da consolação de Deus sobre a desolação do mundo? Nossa Senhora que compreendeu este bem nos faça entender isto.
Papa Francisco
Catequese na audiência Geral 22.02.23
Catequeses. A paixão pela evangelização: o zelo apostólico do crente - 4. O primeiro apostolado
Continuemos as nossas catequeses; o tema que escolhemos é: “A paixão de evangelizar, o zelo apostólico. Pois evangelizar não é dizer: “Olha, blá-blá-blá” e nada mais; há uma paixão que engloba tudo: a mente, o coração, as mãos, ir... tudo, a pessoa inteira está envolvida na proclamação do Evangelho, e por isso falamos de paixão de evangelizar. Depois de termos visto em Jesus o modelo e o mestre do anúncio, hoje passemos aos primeiros discípulos, àquilo que os primeiros discípulos fizeram. O Evangelho diz que Jesus «designou doze dentre eles - a quem chamou apóstolos - para andarem com Ele e para os enviar a pregar» (Mc 3, 14), duas coisas: para que andassem com Ele e para os enviar a pregar. Há um aspeto que parece contraditório: chama-os para que andem com Ele e para os enviar a pregar. Dir-se-ia: ou um ou outro, ou andar ou enviar. Mas não: para Jesus, não há estar sem ir e não há ir sem estar. Não é fácil entender isto, mas é assim. Procuremos compreender um pouco em que sentido Jesus diz estas coisas.
Em primeiro lugar, não há ir sem estar: antes de enviar os discípulos em missão, Cristo - diz o Evangelho – “reúne-os” (cf. Mt 10, 1). O anúncio nasce do encontro com o Senhor; toda a atividade cristã, especialmente a missão, começa a partir dali. Não se aprende numa academia: não! Começa pelo encontro com o Senhor. Com efeito, testemunhá-lo significa irradiá-lo; mas, se não recebermos a sua luz, extinguir-nos-emos; se não o frequentarmos, anunciar-nos-emos a nós próprios e não a Ele – anuncio-me a mim mesmo, não a Ele - e tudo será vão. Portanto, só a pessoa que andar com Ele poderá anunciar o Evangelho de Jesus. Quem não andar com Ele não pode anunciar o Evangelho. Anunciará ideias, mas não o Evangelho. Mas de igual modo não há estar sem ir. Na realidade, seguir Cristo não é algo intimista: sem anúncio, sem serviço, sem missão, a relação com Jesus não cresce. Observemos que no Evangelho o Senhor envia os discípulos antes de ter completado a sua preparação: pouco depois de os ter chamado, já os envia! Isto significa que a experiência da missão faz parte da formação cristã. Então, recordemos estes dois momentos constitutivos para cada discípulo: estar com Jesus e ir, envidados por Jesus.
Tendo chamado os discípulos a si, e antes de os enviar, Cristo dirige-lhes um discurso, conhecido como o “sermão missionário”, assim se chama no Evangelho. Encontra-se no capítulo 10 do Evangelho de Mateus e é como que a “constituição” do anúncio. Daquele discurso, cuja leitura vos recomendo hoje – é apenas uma página do Evangelho - friso três aspetos: porquê anunciar, o que anunciar e como anunciar.
Porquê anunciar. A motivação está em cinco palavras de Jesus, que nos fará bem recordar: «Recebestes de graça, dai de graça!» (v. 8). São cinco palavras. Mas porquê anunciar? Porque recebi de graça e devo dar de graça. O anúncio não começa por nós, mas pela beleza do que recebemos de graça, sem mérito: encontrar Jesus, conhecê-lo, descobrir que somos amados e salvos. É um dom tão grande que não podemos guardá-lo para nós, sentimos a necessidade de o irradiar; mas com o mesmo estilo, ou seja, na gratuidade. Em síntese: temos um dom, por isso somos chamados a fazer-nos dom; recebemos um dom e a nossa vocação consiste em tornar-nos dom para os outros; em nós há a alegria de ser filhos de Deus, e ela deve ser partilhada com os irmãos e irmãs que ainda não o conhecem! Esta é a razão do anúncio. Ir e anunciar a alegria daquilo que recebemos.
Segundo, o que anunciar? Jesus diz: «Pregai, anunciando que o reino dos céus está próximo» (v. 7). Eis o que se deve dizer, antes de tudo e em tudo: Deus está próximo. Mas, nunca esqueçamos isto: Deus esteve sempre próximo do povo, Ele próprio o recordou ao povo, Disse assim: “Vede, que Deus está tão próximo das nações como Eu estou próximo de vós?”. A proximidade é uma das coisas mais importantes de Deus. Há três aspetos importantes: proximidade, misericórdia e ternura. Não vos esqueçais disto. Quem é Deus? O Próximo, o Terno, o Misericordioso. Esta é a realidade de Deus! Pregando, frequentemente convidamos as pessoas a fazer algo, e isto é bom; mas não esqueçamos que a mensagem principal é que Ele está próximo: proximidade, misericórdia e ternura. Aceitar o amor de Deus é mais difícil, porque queremos estar sempre no centro, desejamos ser protagonistas, estamos mais propensos a deixar-nos plasmar, mais a falar do que a ouvir. Mas, se em primeiro lugar estiver o que fazemos, continuaremos a ser os protagonistas. Ao contrário, o anúncio deve dar a primazia a Deus: dar a primazia a Deus, o primeiro lugar a Deus e oferecer aos outros a oportunidade de o acolher, de sentir que Ele está próximo. E eu, atrás!
Terceiro ponto: como anunciar. É o aspeto sobre o qual Jesus mais insiste: como anunciar, qual é o método, qual deve ser a linguagem para anunciar; é significativo: diz-nos que o modo, o estilo, é essencial no testemunho. O testemunho não envolve apenas a mente, dizer algo, conceitos: não! Engloba tudo, mente, coração, mãos, tudo, as três linguagens da pessoa: a linguagem do pensamento, a linguagem do afeto e a linguagem da obra. As três linguagens. Não se pode evangelizar apenas com a mente ou só com o coração ou unicamente com as mãos. Envolve tudo. E, neste estilo, o importante é o testemunho, como Jesus quer que façamos. Ele diz assim: «Envio-vos como ovelhas no meio de lobos» (v. 16). Não nos pede para saber enfrentar os lobos, isto é, para saber argumentar, reagir e defender-se: não! Pensaríamos assim: tornemo-nos relevantes, numerosos, prestigiosos, e o mundo ouvir-nos-á, respeitar-nos-á e derrotaremos os lobos: não, não é assim! Não, envio-vos como ovelhas, como cordeiros. Isto é importante. Se não quiseres ser ovelha, o Senhor não te defenderá dos lobos. Arranja-te como puderes. Mas se fores ovelha, tem a certeza de que o Senhor te defenderá dos lobos. Ser humilde! Ele pede-nos que sejamos assim, mansos e desejosos de ser inocentes, dispostos ao sacrifício; com efeito, é o que o cordeiro representa: mansidão, inocência, dedicação, ternura. E Ele, o Pastor, reconhecerá os seus cordeiros e protegê-los-á dos lobos. Ao contrário, os cordeiros disfarçados de lobos são desmascarados e dilacerados. Um Padre da Igreja escrevia: «Enquanto formos cordeiros, venceremos; e mesmo que sejamos circundados por numerosos lobos, conseguiremos vencê-los. Mas se formos lobos, seremos derrotados, pois seremos privados da ajuda do pastor. Ele não apascenta lobos, mas cordeiros» (São João Crisóstomo, Homilia 33 sobre o Evangelho de Mateus). Se eu quiser ser do Senhor, devo deixar que Ele seja o meu pastor, e Ele não é pastor de lobos, é pastor de cordeiros mansos, humildes, bons para com o Senhor.
Ainda sobre o modo como anunciar, é impressionante que Jesus, em vez de prescrever o que levar em missão, diga o que não levar. Às vezes, vê-se algum apóstolo, alguma pessoa que se muda, algum cristão que se diz apóstolo e deu a vida pelo Senhor, e carrega muitas bagagens: mas isto não é do Senhor, o Senhor torna suave o nosso fardo e diz o que não devemos levar: «Não leveis nem ouro, nem prata, nem dinheiro nos vossos cintos, nem alforge para a viagem, nem duas túnicas, nem sandálias, nem cajado» (vv. 9-10). Não levar nada. Diz para não nos apoiarmos em certezas materiais, para ir ao mundo sem mundanidade. É o que se deve dizer: vou ao mundo não com o estilo do mundo, não com os valores do mundo, não com a mundanidade - e para a Igreja, cair na mundanidade é o pior que pode acontecer. Vou com simplicidade! Eis como se anuncia: mostrando Jesus, mais do que falando de Jesus. E como mostramos Jesus? Com o nosso testemunho. Em síntese, caminhando juntos, em comunidade: o Senhor envia todos os discípulos, mas ninguém vai sozinho. A Igreja apostólica é toda missionária e na missão encontra a sua unidade. Portanto: ir mansos e bons como cordeiros, sem mundanidade, e ir juntos. Eis a chave do anúncio, eis a chave do bom êxito da evangelização! Aceitemos estes convites de Jesus: as suas palavras sejam o nosso ponto de referência!
Papa Francisco
Catequese na audiência geral 15.02.23
Imagem: site do Vaticano
Catequeses. A paixão pela evangelização: o zelo apostólico do crente - 3. Jesus Mestre do anúncio
Na quarta-feira passada refletimos sobre Jesus, modelo do anúncio, sobre o seu coração pastoral, sempre propenso para os outros. Hoje olhemos para Ele como mestre do anúncio. Deixemo-nos orientar pelo episódio em que Ele prega na sinagoga do seu povoado, Nazaré. Jesus lê um trecho do profeta Isaías (cf. 61, 1-2) e depois surpreende todos com um “sermão” muito breve, de uma única frase, uma só frase. Diz assim: «Hoje cumpriu-se este oráculo, que acabais de ouvir» (Lc 4, 21). Esta foi a pregação de Jesus: «Hoje cumpriu-se este oráculo, que acabais de ouvir». Isto significa que para Jesus essa passagem profética contém o essencial daquilo que Ele quer dizer de si. Por conseguinte, cada vez que falamos de Jesus, deveríamos seguir aquele seu primeiro anúncio. Então, vejamos em que consiste este primeiro anúncio. Podemos identificar cinco elementos essenciais.
O primeiro elemento é a alegria. Jesus proclama: «O Espírito do Senhor está sobre mim; [...] enviou-me para anunciar a boa nova aos pobres» (v. 18), isto é, um anúncio de júbilo, de alegria. Boa nova: não se pode falar de Jesus sem alegria, porque a fé é uma maravilhosa história de amor a partilhar. Testemunhar Jesus, fazer algo pelos outros em seu nome, é dizer nas entrelinhas da vida que se recebeu um dom tão bonito que nenhuma palavra é suficiente para o expressar. Ao contrário, quando falta alegria, o Evangelho não passa, pois ele – como a própria palavra o diz - é bom anúncio, e Evangelho quer dizer bom anúncio, anúncio de alegria. O cristão triste pode falar de coisas maravilhosas, mas será tudo em vão se o anúncio que transmite não for jubiloso. Dizia um pensador: “um cristão triste é um triste cristão”: não esqueçais isto.
Passemos para o segundo aspeto: a libertação. Jesus diz que foi enviado «para anunciar a libertação aos cativos» (v. 19). Isto significa que quem anuncia Deus não pode fazer proselitismo, não, não pode pressionar os outros, mas deve aliviá-los: não impor fardos, mas livrar deles; levar paz, não sentimentos de culpa. Sem dúvida, seguir Jesus exige ascese, exige sacrifícios; de resto, se cada coisa boa o requer, muito mais o exige a realidade decisiva da vida! Mas quem dá testemunho de Cristo mostra a beleza da meta, mais do que o cansaço do caminho. Ter-nos-á ocorrido contar a alguém sobre uma bela viagem que fizemos. Por exemplo, teríamos falado da beleza dos lugares, do que vimos e vivemos, não do tempo para lá chegar, nem das filas no aeroporto, não! Assim, qualquer anúncio digno do Redentor deve comunicar libertação. Como aquele de Jesus. Hoje há alegria pois vim libertar.
Terceiro aspeto: a luz. Jesus diz que veio para restituir «aos cegos o recobrar da vista» (ibid.). É impressionante que em toda a Bíblia, antes de Cristo, nunca aparece a cura de um cego, nunca. Com efeito, era um sinal prometido que viria com o Messias. Contudo, aqui não se trata apenas da vista física, mas de uma luz que faz ver a vida de modo novo. Há um “vir à luz”, um renascimento que só se verifica com Jesus. Pensando bem, foi assim que a vida cristã teve início para nós: com o Batismo, que antigamente se chamava precisamente “iluminação”. E que luz nos dá Jesus? Traz-nos a luz da filiação: Ele é o Filho amado do Pai, vivo para sempre; e com Ele, também nós somos filhos de Deus, amados para sempre, não obstante os nossos erros e defeitos. Então, a vida já não é um avançar cego rumo ao nada, não: não é questão de destino ou sorte, não é algo que depende do acaso ou das estrelas, nem sequer da saúde ou das finanças, não. A vida depende do amor, do amor do Pai, que cuida de nós, seus filhos amados. Como é maravilhoso partilhar esta luz com os outros! Já pensastes que a vida de cada um de nós – a minha vida, a tua vida, a nossa vida – é um gesto de amor? É um convite ao amor? Isto é maravilhoso! Mas muitas vezes esquecemos isto, face às dificuldades, diante das más notícias, também diante – e isto é terrível – da mundanidade, do modo de viver mundano.
Quarto aspeto do anúncio: a cura. Jesus diz que veio «para libertar os oprimidos» (ibid.). Oprimido é aquele que, na vida, se sente esmagado por algo que acontece: doenças, canseiras, pesos no coração, sentimentos de culpa, erros, vícios, pecados... Oprimidos por isto: pensemos por exemplo nos sentimentos de culpa. Quantos de nós sofreram com isto? Pensemos um pouco num sentimento de culpa deste, daquele… O que nos oprime é, acima de tudo, precisamente aquele mal que nenhum medicamento ou remédio humano pode curar: o pecado. E se alguém tem sentimento de culpa por algo que fez, e se sente mal... mas a boa notícia é que com Jesus este mal antigo, o pecado, que parece invencível, já não tem a última palavra. Posso pecar, pois sou débil. Cada um de nós o pode fazer, mas esta não é a última palavra. A última palavra é a mão estendida de Jesus que te ergue do pecado. E padre, quando o faz? Uma vez? Não. Duas? Não. Três? Não. Sempre. Cada vez que estás mal, o Senhor tem sempre a mão estendida. É preciso apenas pegar nela e deixar-se levar. A boa notícia é que com Jesus este mal antigo não tem a última palavra: a última palavra é a mão estendida de Jesus que te leva em frente. Do pecado, Jesus cura-nos sempre. E quanto devo pagar pela cura? Nada. Cura-nos sempre e gratuitamente. Ele convida quantos estão «cansados e oprimidos» - disse-o no Evangelho – convida a ir até Ele (cf. Mt 11, 28). E então, acompanhar alguém ao encontro de Jesus significa levá-lo ao médico do coração, que alivia a vida. Significa dizer: “Irmão, irmã, não tenho respostas para muitos dos teus problemas, mas Jesus conhece-te, Jesus ama-te, pode curar-te e tranquilizar o coração”. Quem carrega fardos precisa de uma carícia no passado. Muitas vezes ouvimos: “Mas eu precisaria de curar o meu passado… preciso de uma carícia naquele passado que me pesa muito…”. Tem necessidade de perdão. E quem acredita em Jesus tem precisamente isto para oferecer ao próximo: a força do perdão que liberta a alma de qualquer dívida. Irmãos, irmãs, não esqueçais: Deus esquece tudo. Porquê? Sim, esquece todos os nossos pecados, deles não há memória. Deus perdoa tudo pois esquece os nossos pecados. Só precisamos de nos aproximar do Senhor e Ele perdoa-nos tudo. Pensai em algo do Evangelho, naquele que começou a falar: “Senhor, pequei!”. Aquele filho… E o pai fecha-lhe a boca com a mão. “Não, está bem, nada…” Não o deixa acabar… Isto é bonito. Jesus espera-nos para nos perdoar, para nos sarar. E quanto? Uma vez? Duas vezes? Não. Sempre. “Mas, padre, faço as mesmas coisas sempre...”. E também ele fará as suas mesmas coisas sempre: perdoa-te, abraça-te. Por favor, não duvidemos disto. É assim que se ama o Senhor. Quem carrega pesos e precisa de uma carícia no passado, precisa de perdão, saiba que Jesus o faz. E é isto que Jesus oferece: libertar a alma de cada dívida. Na Bíblia fala-se de um ano em que libertava do peso das dívidas: o Jubileu, o ano da graça. Como se fosse o último ponto do anúncio!
Com efeito, Jesus diz que veio «para proclamar o ano da graça do Senhor» (Lc 4, 19). Não era um jubileu programado, como aqueles que estamos a fazer agora, que tudo é programado e pensamos em como fazer, como não fazer… Não. Mas com Cristo a graça que renova a vida chega e surpreende sempre. Cristo é o Jubileu de cada dia, de cada hora, que se aproxima de ti, para te acariciar, para te perdoar. E o anúncio de Jesus deve trazer sempre o enlevo da graça. Este enlevo… “Não acredito, fui perdoado, fui perdoada”. Mas é tão grande o nosso Deus! Pois não somos nós que fazemos grandes coisas, mas é a graça do Senhor que, inclusive através de nós, realiza coisas imprevisíveis. E estas são as surpresas de Deus! Deus é um mestre das surpresas. Surpreende-nos sempre, espera-nos sempre. Nós chegamos, e Ele está à espera. Sempre. O Evangelho é acompanhado por um sentimento de maravilha e de novidade que tem um nome: Jesus!
Que Ele nos ajude a anunciá-lo como deseja, comunicando alegria, libertação, luz, cura e enlevo. É assim que se comunica Jesus.
Um último aspeto: este feliz anúncio, que recita o Evangelho, é dirigido «aos pobres» (v. 18). Muitas vezes esquecemo-nos deles, no entanto são os destinatários explicitamente mencionados porque são os prediletos de Deus. Lembremo-nos deles, e recordemos que, para receber o Senhor, cada um de nós deve fazer-se “pobre dentro”. Com aquela pobreza que faz dizer… “Senhor, preciso de perdão, preciso de ajuda, preciso de força”. A pobreza que todos temos: tornar-se pobre dentro. Trata-se de superar qualquer pretensão de autossuficiência para compreender que é necessitado de graça, e sempre necessitado d’Ele. Se alguém me disser: Padre, mas qual é a via mais breve para encontrar Jesus? Torna-te necessitado. Torna-te necessitado de graça, necessitado de perdão, necessitado e alegria. E Ele aproximar-se-á de ti.
Papa Francisco
Catequese na audiência Geral 25.01.23
Catequeses. A paixão pela evangelização: o zelo apostólico do crente - 2. Jesus modelo do anúncio
Na quarta-feira passada demos início a um ciclo de catequeses sobre a paixão de evangelizar, isto é, sobre o zelo apostólico que deve animar a Igreja e cada cristão. Hoje olhemos para o modelo insuperável do anúncio: Jesus. O Evangelho do dia de Natal definia-o “Verbo de Deus” (cf. Jo 1, 1). O fato de Ele ser o Verbo, ou seja, a Palavra, indica-nos um aspeto essencial de Jesus: Ele está sempre em relação, em saída, nunca isolado, sempre em relação, em saída; com efeito, a palavra existe para ser transmitida, comunicada. Assim é Jesus, Palavra eterna do Pai comunicada a nós, transmitida a nós. Cristo não só tem palavras de vida, mas faz da sua vida uma Palavra, uma mensagem: ou seja, vive sempre voltado para o Pai e para nós. Olhando sempre para o Pai que O enviou e olhando para nós aos quais Ele foi enviado.
Efetivamente, se olharmos para os seus dias, descritos nos Evangelhos, veremos que em primeiro lugar há intimidade com o Pai, a oração, por isso Jesus levanta-se cedo, quando ainda está escuro, e retira-se em áreas desertas para rezar (cf. Mc 1, 35; Lc 4, 42) para falar com o Pai. Todas as decisões e escolhas importantes são feitas depois de ter rezado (cf. Lc 6, 12; 9, 18). Precisamente nesta relação, na oração que o une ao Pai no Espírito, Jesus descobre o sentido do seu ser homem, da sua existência no mundo pois Ele está em missão por nós, enviado pelo Pai para nós.
A este propósito, é interessante o primeiro gesto público que Ele faz, após os anos de vida escondida em Nazaré. Jesus não realiza um grande prodígio, não lança uma mensagem espetacular, mas mistura-se com as pessoas que iam ser batizadas por João. Assim, oferece-nos a chave do seu agir no mundo: despender-se pelos pecadores, tornando-se solidário para connosco sem distâncias, na partilha total da vida. Com efeito, falando da sua missão, dirá que não veio «para ser servido, mas para servir e dar a sua vida» (Mc 10, 45). Todos os dias, depois da oração, Jesus dedica toda a sua jornada ao anúncio do Reino de Deus e dedica-o às pessoas, sobretudo às mais pobres e frágeis, aos pecadores e doentes (cf. Mc 1, 32-39). Isto é, Jesus está em contacto com o Pai na oração e depois está em contacto com todas as pessoas para a missão, para a catequese, para ensinar o caminho do Reino de Deus.
Pois bem, se quisermos representar com uma imagem o seu estilo de vida, não teremos dificuldade em encontrá-la: é o próprio Jesus que no-la oferece, como acabámos de ouvir, falando de si como do bom Pastor, aquele que - diz - «dá a sua vida pelas ovelhas» (Jo 10, 11), este é Jesus. Com efeito, ser pastor não era apenas um trabalho, que exigia tempo e muito esforço; era um verdadeiro estilo de vida: vinte e quatro horas por dia, vivendo com o rebanho, acompanhando-o às pastagens, dormindo entre as ovelhas, cuidando das mais fracas. Em síntese, Jesus não faz algo por nós, mas dá tudo, dá a vida por nós. O seu é um coração pastoral (cf. Ez 34, 15). É pastor com todos nós.
Com efeito, para resumir numa palavra a ação da Igreja, usa-se muitas vezes precisamente o termo “pastoral”. E para avaliar a nossa pastoral, devemos confrontar-nos com o modelo, confrontar-nos com Jesus, Jesus bom Pastor. Em primeiro lugar, podemos perguntar-nos: imitamo-lo bebendo das fontes da oração, para que o nosso coração esteja em sintonia com o seu? A intimidade com Ele é, como sugeria o bonito volume do abade Chautard, «a alma de todo o apostolado». O próprio Jesus disse claramente aos seus discípulos: «Sem mim nada podeis fazer!» (Jo 15, 5). Quem está com Jesus, descobre que o seu coração pastoral bate sempre por quantos estão perdidos, desviados, distantes. E o nosso? Quantas vezes a nossa atitude com pessoas que são um pouco difíceis ou que são um pouco complicadas se exprime com estas palavras: “Mas é um problema dele, que se arranje…”. Mas Jesus nunca disse isto, ao contrário, sempre foi ao encontro de todos os marginalizados, dos pecadores. Era acusado por isto, por estar com os pecadores, pois levava até eles a salvação de Deus.
Ouvimos a parábola da ovelha tresmalhada, contida no capítulo 15 do Evangelho de Lucas (cf. vv. 4-7). Jesus fala também da moeda perdida e do filho pródigo. Se quisermos treinar o nosso zelo apostólico, devemos ter sempre ao alcance o capítulo 15 de Lucas. Lede com frequência este trecho, nele podemos entender o que significa o zelo apostólico. Ali descobrimos que Deus não contempla o redil das suas ovelhas, nem as ameaça para que não se vão embora. Pelo contrário, se uma sai e se perde, não a abandona, mas procura-a. Não diz: “Foi-se, a culpa é dela, que se arranje”. O coração pastoral reage de outra maneira: o coração pastoral sofre, o coração pastoral arrisca. Sofre: sim, Deus sofre por aquele que parte, e na medida em que chora por ele, ama-o ainda mais. O Senhor sofre quando nos distanciamos do seu coração. Sofre por quem não conhece a beleza do seu amor, nem o calor do seu abraço. Mas, em resposta a este sofrimento, não se fecha, mas arrisca: deixa as noventa e nove ovelhas que estão a salvo e aventura-se em busca da única que se perdeu, fazendo assim algo arriscado e até irracional, mas em sintonia com o seu coração pastoral, que tem saudades de quantos se foram. A nostalgia por aqueles que se foram é contínua em Jesus. E quando sentimos que alguém deixou a Igreja o que dizemos? “Que se arranje”. Não, Jesus ensina-nos as saudades daqueles que vão embora; Jesus não sente raiva nem ressentimento, mas uma irredutível nostalgia de nós. Jesus sente saudades de nós e este é o zelo de Deus!
E eu pergunto-me: nós, será que temos sentimentos semelhantes? Talvez vejamos como adversários ou inimigos aqueles que deixaram o rebanho. “E este? – Não, foi para outra parte, perdeu a fé, espera-o o inferno…”, e estamos tranquilos. Encontrando-os na escola, no trabalho, nas ruas da cidade, por que não pensar, ao contrário, que temos uma boa oportunidade de lhes testemunhar a alegria de um Pai que os ama e nunca os esqueceu? Não para fazer proselitismo, não! Mas que lhe chegue a Palavra do Pai, para caminhar juntos. Evangelizar não é fazer proselitismo: fazer proselitismo é algo pagão, não é religioso nem evangélico. Há uma boa palavra para aqueles que deixaram o rebanho e somos nós que temos a honra e o dever de lhas levar, de dizer aquela palavra. Pois é a Palavra, Jesus, que nos pede isto, aproximarmo-nos sempre, com o coração aberto, a todos, pois Ele é assim. Talvez sigamos e amemos Jesus há muito tempo, sem nunca nos perguntarmos se compartilhamos os seus sentimentos, se sofremos e arriscamos, em sintonia com o coração de Jesus, com este coração pastoral, próximo do coração pastoral de Jesus! Não se trata de fazer proselitismo, disse, para que outros sejam “dos nossos”, não, isto não é cristão: trata-se de amar a fim de que sejam filhos felizes de Deus. Peçamos na oração a graça de um coração pastoral, aberto, que se põe próximo de todos, para levar a mensagem do Senhor e também sentir as saudades de Cristo por cada um. Pois a nossa vida sem este amor que sofre e arrisca, não está bem: se nós cristãos não temos este amor que sofre e arrisca, correremos o perigo de nos apascentarmos unicamente a nós próprios. Os pastores que são pastores de si mesmos, e não pastores do rebanho, são penteadores de ovelhas “requintadas”. Não devemos ser pastores de nós mesmos, mas pastores de todos.
Papa Francisco
Catequese na audiência Geral 18.01.23
Catequeses - A paixão pela evangelização: o zelo apostólico do crente. O chamado ao apostolado (Mt 9,9-13)
Hoje começamos um novo ciclo de catequeses, dedicado a um tema urgente e decisivo para a vida cristã: a paixão pela evangelização, ou seja, o zelo apostólico. Trata-se de uma dimensão vital para a Igreja: com efeito, a comunidade dos discípulos de Jesus nasce apostólica, nasce missionária, não proselitista e desde o início deveríamos distinguir isto: ser missionária, ser apostólica, evangelizar não é o mesmo que fazer proselitismo, nada tem a ver uma coisa com a outra. Trata-se de uma dimensão vital para a Igreja, a comunidade dos discípulos de Jesus nasce apostólica e missionária. O Espírito Santo plasma-a em saída - a Igreja em saída, que sai – para que não fique fechada em si mesma, mas seja extrovertida, testemunha contagiosa de Jesus - a fé também se contagia - destinada a irradiar a sua luz até aos extremos confins da terra. Contudo, pode acontecer que o ardor apostólico, o desejo de alcançar os outros com o bom anúncio do Evangelho, diminua, se torne tíbio. Às vezes parece eclipsar-se, são cristãos fechados, não pensam nos outros. Mas quando a vida cristã perde de vista o horizonte da evangelização, o horizonte do anúncio, adoece: fecha-se em si mesma, torna-se autorreferencial, atrofia-se. Sem zelo apostólico, a fé esmorece. Ao contrário, a missão é o oxigénio da vida cristã: tonifica-a e purifica-a. Então, empreendamos um caminho à redescoberta da paixão evangelizadora, começando pelas Escrituras e pelo ensinamento da Igreja, para haurir das fontes o zelo apostólico. Depois, abordaremos algumas nascentes vivas, algumas testemunhas que reacenderam na Igreja a paixão pelo Evangelho, a fim de que nos ajudem a reavivar o fogo que o Espírito Santo quer fazer arder sempre em nós.
E hoje, gostaria de iniciar com um episódio evangélico de certo modo emblemático, que acabámos de ouvir: a chamada do apóstolo Mateus, e ele mesmo narra-a no seu Evangelho, no excerto que ouvimos (cf. 9, 9-13).
Tudo começa com Jesus, que “vê” - diz o texto - «um homem». Poucos viam Mateus como era: conheciam-no como aquele que estava «sentado no banco dos impostos» (v. 9). Com efeito, era cobrador de impostos: ou seja, alguém que cobrava os tributos em nome do império romano, que ocupava a Palestina. Em síntese, era um colaboracionista, um traidor do povo. Podemos imaginar o desprezo que o povo sentia por ele: era um “publicano”, assim se chamava. Mas, aos olhos de Jesus, Mateus é um homem, com as suas misérias e a sua grandeza. Estai atentos a isto: Jesus não se detém nos adjetivos, Jesus procura sempre o substantivo. “Este é um pecador, este é um tal pelo qual…” são adjetivos: Jesus vai à pessoa, ao coração, esta é uma pessoa, este é um homem, esta é uma mulher, Jesus vai à substância, ao substantivo, nunca ao adjetivo, põe de lado os adjetivos. E enquanto entre Mateus e o seu povo há distância – pois eles viam o adjetivo “publicano” - Jesus aproxima-se dele, porque cada homem é amado por Deus; “Até este desventurado?”. Sim, inclusive este desventurado, aliás Ele veio para este desventurado, diz o Evangelho: “Vim para os pecadores, não para os justos”. Este olhar de Jesus que é belíssimo, que vê o outro, quem quer que seja, como destinatário de amor, é o início da paixão evangelizadora. Tudo começa a partir deste olhar, que aprendemos com Jesus.
Podemos perguntar-nos: como vemos os outros? Quantas vezes vemos os seus defeitos e não as suas necessidades; quantas vezes etiquetamos as pessoas pelo que fazem ou por aquilo que pensam! Até como cristãos, dizemos: é ou não é dos nossos? Este não é o olhar de Jesus: Ele olha sempre para cada um com misericórdia, aliás, com predileção. E os cristãos são chamados a fazer como Cristo, olhando como Ele, especialmente para os chamados “distantes”. Efetivamente, a narração da chamada de Mateus conclui-se com Jesus que diz: «Não vim chamar os justos, mas os pecadores!» (v. 13). E se algum de nós se sente justo, Jesus permanece distante, Ele aproxima-se dos nossos limites e das nossas misérias, para nos curar.
Portanto, tudo começa pelo olhar de Jesus “Viu um homem”, Mateus. A isto segue-se - segunda passagem - um movimento. Antes do olhar, Jesus viu, depois a segunda passagem, o movimento. Mateus estava sentado no banco dos impostos; Jesus disse-lhe: «Segue-me!». E ele «levantou-se e seguiu-o» (v. 9). Observemos que o texto realça: “levantou-se”. Por que é tão importante este detalhe? Porque naquela época quem estava sentado tinha autoridade sobre os outros, que permaneciam em pé diante dele para o ouvir ou, como nesse caso, para pagar os impostos. Em síntese, quem estava sentado tinha poder. A primeira coisa que Jesus faz é separar Mateus do poder: do estar sentado para receber os outros, põe-no em movimento rumo aos outros, não recebe, não: vai até aos outros; fá-lo deixar uma posição de supremacia para o colocar no mesmo nível dos irmãos e para lhe abrir os horizontes do serviço. É isto que faz, e isto é fundamental para os cristãos: nós, discípulos de Jesus, nós, Igreja, permanecemos sentados à espera que as pessoas venham, ou sabemos levantar-nos, pôr-nos a caminho com os outros, procurar os outros? É uma posição não cristã dizer: “Mas, que venham, estou aqui, que venham”. Não, vai tu procura-los, dá tu o primeiro passo.
Um olhar – Jesus viu - , um movimento – levanta-se - e terceiro, uma meta. Depois de se levantar e seguir Jesus, para onde irá Mateus? Poderíamos imaginar que, tendo mudado a vida daquele homem, o Mestre o conduziu para novos encontros, novas experiências espirituais. Não, ou pelo menos não imediatamente. Em primeiro lugar, Jesus vai a sua casa; ali, Mateus prepara-lhe «um grande banquete», no qual «participa uma grande multidão de publicanos» (Lc 5, 29) isto é, pessoa como ele. Mateus regressa ao seu ambiente, mas volta mudado e com Jesus. O seu zelo apostólico não começa num lugar novo, puro, num lugar ideal, distante, mas lá, começa onde vive, com as pessoas que conhece. Eis a mensagem para nós: não devemos esperar ser perfeitos e ter percorrido um longo caminho atrás de Jesus para dar testemunho d’Ele; o nosso anúncio começa hoje, lá onde vivemos. E não começa procurando convencer os outros, convencer não: mas testemunhando todos os dias a beleza do Amor que olhou para nós e nos fez levantar e será esta beleza, comunicar esta beleza que convencerá as pessoas, não comunicar a nós, mas o Senhor. Somos aqueles que anunciam o Senhor, não anunciamos a nós mesmos, nem anunciamos um partido político, uma ideologia, não: anunciamos Jesus. É preciso pôr Jesus em contato com as pessoas, sem as convencer, mas deixar que o Senhor convença. Com efeito, como nos ensinou o Papa Bento XVI, «a Igreja não faz proselitismo. Ao contrário, ela desenvolve-se por atração» (Homilia na Missa de Inauguração da V Conferência Geral do Episcopado Latino-Americano e do Caribe, Aparecida, 13 de maio de 2007). Não esqueçais isto: quando virdes cristãos que fazem proselitismo, que fazem uma lista de gente que venha… estes nãos são cristãos, são pagãos disfarçados de cristãos mas o coração é pagão. A Igreja não cresce por proselitismo, cresce por atração. Recordo que certa vez num hospital de Buenos Aires foram embora as religiosas que ali trabalhavam porque eram poucas e não podiam levar em frente o hospital e veio uma comunidade de irmãs da Coreia e chegaram, pensemos por exemplo numa segunda-feira, não me lembro o dia. Tomaram posse da casa das religiosas do hospital e na terça-feira desceram para visitar os doentes, mas não falavam uma palavra em espanhol, falavam apenas o coreano e os doentes estavam felizes, pois comentavam: “Ótimas estas religiosas, boas, excelentes” – Mas o que te disse a irmã? “Nada, mas com o olhar falou-me, comunicou-me Jesus”. Não comuniquemos a nós mesmos, mas com o olhar, com os gestos, comuniquemos Jesus. Esta é a atração, o contrário do proselitismo.
Este testemunho atraente, este testemunho jubiloso é a meta para a qual Jesus nos conduz com o seu olhar de amor e com o movimento em saída que o seu Espírito suscita no coração. E podemos pensar se o nosso olhar se assemelha ao de Jesus para atrair as pessoas, para aproximar à Igreja. Pensemos nisto.
Papa Francisco
Catequese na audiência geral 11.01.22
Catequeses sobre o discernimento 14. O acompanhamento espiritual
Antes de começar esta catequese, gostaria que nos uníssemos a quantos, aqui ao lado, prestam homenagem a Bento XVI e dirigir o meu pensamento a ele, que foi um grande mestre de catequese. O seu pensamento perspicaz e gentil não foi autorreferencial, mas eclesial, pois sempre quis acompanhar-nos ao encontro com Jesus. Jesus, o Crucificado Ressuscitado, o Vivente e o Senhor, foi a meta para a qual o Papa Bento nos conduziu, levando-nos pela mão. Que ele nos ajude a redescobrir em Cristo a alegria de acreditar e a esperança de viver.
Com esta catequese de hoje concluímos o ciclo dedicado ao tema do discernimento, e fazemo-lo completando o discurso sobre as ajudas que podem e devem sustentá-lo: sustentar o processo de discernimento. Uma delas é o acompanhamento espiritual, importante sobretudo para o conhecimento de si que, como vimos, é uma condição indispensável para o discernimento. Olharmo-nos no espelho, sozinhos, nem sempre ajuda, pois podemos alterar a imagem. Ao contrário, olhar no espelho com o auxílio de outra pessoa, isto ajuda muito pois o outro diz-te a verdade – quanto é verdadeiro – e assim ajuda-te.
A graça de Deus em nós trabalha sempre na nossa natureza. Pensando numa parábola evangélica, podemos comparar a graça com a boa semente e a natureza com o terreno (cf. Mc 4, 3-9). Em primeiro lugar, é importante dar-se a conhecer, sem ter medo de compartilhar os aspetos mais frágeis, onde nos descobrimos mais sensíveis, fracos, ou receosos de ser julgados. Dar-se a conhecer, manifestar-se a si mesmo a uma pessoa que nos acompanhe no caminho da vida. Não que decida por nós, não: mas que nos acompanhe. Pois a fragilidade é, na realidade, a nossa verdadeira riqueza: somos ricos de fragilidade, todos; a verdadeira riqueza, que devemos aprender a respeitar e a aceitar, pois quando é oferecida a Deus, torna-nos capazes de ternura, de misericórdia e de amor. Ai daquelas pessoas que não se sentem frágeis: são duras, ditatoriais. Mas, as pessoas que com humildade reconhecem as próprias fragilidades são mais compreensivas com os outros. A fragilidade – posso dizer - torna-nos humanos. Não é por acaso que a primeira das três tentações de Jesus no deserto – ligada à fome – procura roubar-nos a fragilidade, apresentando-a como um mal do qual nos livrar, um impedimento a ser como Deus. Ao contrário, é o nosso tesouro mais precioso: com efeito, para nos tornarmos semelhante a Ele, Deus quis partilhar até ao fim precisamente a nossa fragilidade. Olhemos para o Crucificado: Deus que desceu até à fragilidade. Olhemos para o presépio que chega numa fragilidade humana grande. Ele partilhou a nossa fragilidade.
Se for dócil ao Espírito Santo, o acompanhamento espiritual ajuda a desmascarar equívocos até graves na consideração de nós mesmos e na relação com o Senhor. O Evangelho apresenta vários exemplos de diálogos esclarecedores e libertadores feitos por Jesus. Pensemos, por exemplo, naqueles com a Samaritana, que nós lemos, lemos, e sempre há esta sabedoria e ternura de Jesus; pensemos naquele com Zaqueu, com a pecadora, pensemos com Nicodemos e com os discípulos de Emaús: o modo de se aproximar do Senhor. As pessoas que se encontram verdadeiramente com Jesus não têm medo de lhe abrir o coração, de apresentar a própria vulnerabilidade, a própria inadequação, a própria fragilidade. Deste modo, a partilha de si torna-se uma experiência de salvação, de perdão gratuitamente recebido.
Narrar diante de outra pessoa o que vivemos ou o que procuramos ajuda a esclarecer a nós próprios, trazendo à luz os numerosos pensamentos que habitam em nós, e que muitas vezes nos inquietam com os seus insistentes refrães. Quantas vezes, nos momentos obscuros, vêm-nos os pensamentos assim: “Errei tudo, sou inútil, ninguém me compreende, nunca serei bem-sucedido, estou destinado ao fracasso”, quantas vezes nos vieram estes pensamentos. Pensamentos falsos e venenosos, que o confronto com o outro ajuda a desmascarar, de tal modo que nos possamos sentir amados e estimados pelo Senhor como somos, capazes de fazer coisas boas por Ele. Descobrimos com surpresa diferentes formas de ver a realidade, sinais de bem sempre presentes em nós. É verdade, podemos partilhar as nossas fragilidades com o outro, com aquele que nos acompanha na vida, na vida espiritual, o mestre de vida espiritual, quer leigo quer sacerdote e dizer: “Olha o que me acontece: sou um desventurado, estão a acontecer-me estas coisas”. E aquele que acompanha responde: “Sim, todos nós passamos por estes momentos”. Isto ajuda-nos a esclarecer bem e ver de onde chegam as raízes e deste modo superá-las.
Aquele ou aquela que acompanha – acompanhador ou acompanhadora – não se substitui ao Senhor, não faz o trabalho no lugar da pessoa acompanhada, mas caminha ao seu lado, encoraja-a a ler o que se move no seu coração, o lugar por excelência onde o Senhor fala. O acompanhador espiritual, que chamamos diretor espiritual – não gosto deste termo, prefiro acompanhador espiritual, é melhor – é aquele que te diz: “Pois bem, olha para este lado, para aquele lado”, a tua atenção é atraída para aspetos que talvez passam; ajuda-te a compreender melhor os sinais dos tempos, a voz do Senhor, a voz do tentador, a voz das dificuldades que não consegues superar. Por isso é muito importante não caminhar sozinho. Há um ditado da sabedoria africana – pois eles possuem aquela mística da tribo – que diz: “Se queres chegar depressa, vai sozinho; se queres chegar seguro, vai com os outros”, acompanhado, vai com o teu povo. É importante. Na vida espiritual é melhor fazer-se acompanhar por alguém que conheça as nossas coisas e nos ajude. E este é o acompanhamento espiritual.
O acompanhamento pode ser frutuoso se, de ambos os lados, se experimentar a filiação e a fraternidade espiritual. Descobrimos que somos filhos de Deus no momento em que nos descobrimos irmãos, filhos do mesmo Pai. Por isso, é indispensável estar inserido numa comunidade a caminho. Não estamos sozinhos, pertencemos a um povo, a uma nação, a uma cidade que caminha, a uma Igreja, a uma paróquia, a este grupo... a uma comunidade a caminho. Não vamos ao encontro do Senhor sozinhos: isto não está bem. Devemos compreendê-lo bem. Como na narração evangélica do paralítico, muitas vezes somos sustentados e curados graças à fé de outrem (cf. Mc 2, 1-5) que nos ajuda a ir em frente, pois todos nós às vezes temos paralisias interiores e é necessário alguém que nos auxilie a superar aquele conflito com uma ajuda. Não se vai ao Senhor sozinhos, recordemos bem isto; outras vezes, somos nós que assumimos este compromisso em nome de um irmão ou de uma irmã, e somos acompanhadores para ajudar aquele outro. Sem experiência de filiação e de fraternidade, o acompanhamento pode prestar-se a expetativas irreais, a equívocos e a formas de dependência que deixam a pessoa no estado infantil. Acompanhamento, mas como filhos de Deus e irmãos entre nós.
A Virgem Maria é mestra de discernimento: fala pouco, ouve muito e preserva no coração (cf. Lc 2, 19). As três atitudes de Nossa Senhora: falar pouco, ouvir muito e preservar no coração. E as poucas vezes que fala, deixa a marca. Por exemplo, no Evangelho de João, há uma frase muito curta, pronunciada por Maria, que é uma exortação para os cristãos de todos os tempos: “Fazei o que Ele vos disser!” (cf. 2, 5). É curioso: certa vez ouvi uma senhora idosa muito boa, muito piedosa, não tinha estudado teologia, era muito simples. E disse-me: “O senhor sabe qual é o gesto que Nossa Senhora faz sempre?”. Não sei: acaricia-te, chama-te... “Não: o gesto que faz Nossa Senhora é este” [indica com o dedo]. Não entendi, e perguntei: “O que significa?”. E a idosa respondeu-me: “Indica sempre Jesus”. Isto é bonito: Nossa Senhora nada detém para si, indica Jesus. Fazer o que Jesus nos disser! Assim é Nossa Senhora. Maria sabe que o Senhor fala ao coração de cada um e pede para traduzir esta palavra em ações e escolhas. Ela soube fazê-lo mais do que ninguém e, com efeito, está presente nos momentos fundamentais da vida de Jesus, especialmente na hora suprema da morte na cruz.
Amados irmãos e irmãs, concluímos esta série de catequeses sobre o discernimento: o discernimento é uma arte, uma arte que se pode aprender e que tem as suas regras próprias. Se for bem aprendido, ele permite viver a experiência espiritual de forma cada vez mais bonita e ordenada. O discernimento é sobretudo um dom de Deus, que deve ser sempre pedido, sem jamais presumir ser perito e autossuficiente. Senhor, concedei-me a graça de discernir nos momentos da vida, o que devo fazer, o que devo compreender. Dai-me a graça de discernir, e concedei-me a pessoa que me ajude a discernir.
A voz do Senhor pode ser sempre reconhecida, tem um estilo único, é uma voz que pacifica, encoraja e tranquiliza nas dificuldades. O Evangelho no-lo recorda constantemente: «Não temas!» (Lc 1, 30), que linda esta palavra do anjo a Maria depois da ressurreição de Jesus; «Não tenhas medo!». «Não temais!» é precisamente o estilo do Senhor: «não temais». «Não temais!», repete o Senhor também a nós hoje; «não temais»: se confiarmos na sua palavra, desempenharemos bem o jogo da vida, e poderemos ajudar outros. Como diz o Salmo, a sua Palavra é lâmpada para os nossos passos e luz para o nosso caminho (cf. 119, 105).
Papa Francisco
04.01.22
Catequese na audiência geral
Esta noite, que significado tem ainda para as nossas vidas? Transcorridos dois milénios desde o nascimento de Jesus, após tantos Natais comemorados no meio de ornamentações e prendas, depois de tanto consumismo que envolveu o mistério que celebramos, corremos um risco: o de sabermos muitas coisas sobre o Natal, mas esquecermos o seu significado. Como voltar a encontrar o significado do Natal? E sobretudo aonde ir procurá-lo? O Evangelho do nascimento de Jesus parece escrito precisamente para isto: tomar-nos pela mão e levar-nos lá onde Deus quer. Sigamos o Evangelho!
De facto, começa com uma situação parecida com a nossa: todos estavam preocupados e atarefados com um evento importante em desenvolvimento – o grande recenseamento – que exigia muitos preparativos. Neste sentido, o clima de então era semelhante ao que nos envolve, hoje, no Natal. Mas a narração do Evangelho distancia-se daquele cenário mundano. Deixa de lado rapidamente aquela imagem para enquadrar e insistir noutra realidade; detém-se num pequeno objeto, aparentemente insignificante, que menciona três vezes e para o qual convergem os protagonistas da narração: primeiro Maria, que recostou Jesus «numa manjedoura» (Lc 2, 7); depois os anjos, que anunciam aos pastores «um menino envolto em panos e deitado numa manjedoura» (2, 12); em seguida os pastores, que encontram «o menino deitado na manjedoura» (2, 16). A manjedoura! Para voltar a encontrar o sentido do Natal, é preciso fixar nela o olhar. E por que é tão importante a manjedoura? Porque é o sinal, não casual, com que Cristo entra em cena no mundo. É o manifesto com que Se apresenta, o modo como Deus nasce na história para fazer renascer a história. Que nos quer dizer então a manjedoura? Quer-nos dizer pelo menos três coisas: proximidade, pobreza e concretismo.
1. Proximidade. A manjedoura serve para deixar o alimento mais próximo da boca e assim consumi-lo mais depressa. Deste modo pode simbolizar um aspeto da humanidade: a voracidade em consumir. Pois, enquanto os animais no estábulo consomem alimento, os homens no mundo, esfomeados de poder e dinheiro, consomem mesmo os seus vizinhos, os seus irmãos. Tantas guerras! Em tantos lugares, ainda hoje, são espezinhadas a dignidade e a liberdade! E as principais vítimas da voracidade humana são sempre os frágeis, os vulneráveis. Também neste Natal, uma humanidade insaciável de dinheiro, insaciável de poder e insaciável de prazer não dá lugar – como sucedeu com Jesus (cf. 2, 7) – aos mais pequenos, a tantos nascituros, pobres, abandonados. Penso sobretudo nas crianças devoradas por guerras, pobreza e injustiça. Mas é precisamente lá que vem Jesus, menino na manjedoura do descarte e da rejeição. N’Ele, menino de Belém, está cada criança. E está o convite a olhar a vida, a política e a história com os olhos das crianças.
Na manjedoura incómoda da rejeição, acomoda-Se Deus: vem para ali, porque nela está o problema da humanidade, a indiferença gerada pela pressa devoradora de possuir e consumir. Cristo nasce lá e, naquela manjedoura, descobrimo-Lo próximo. Vem aonde se devora o alimento para Se fazer nosso alimento. Deus não é um pai que devora os seus filhos, mas o Pai que, em Jesus, nos faz seus filhos e nutre de ternura. Vem tocar-nos o coração, dizendo que a única força que muda o curso da história é o amor. Não permanece distante nem permanece poderoso, mas faz-Se próximo e humilde; Ele, que estava sentado no Céu, deixa-Se recostar numa manjedoura.
Irmão, irmã, nesta noite Deus aproxima-Se de ti, porque Se importa contigo. Da manjedoura, como alimento para a tua vida, diz-te: «Se te sentes consumido pelos acontecimentos, se o teu sentimento de culpa e a tua inadequação te devoram, se tens fome de justiça, Eu – o teu Deus – estou contigo. Sei aquilo que tu vives, experimentei-o naquela manjedoura. Conheço as tuas misérias e a tua história. Nasci para te dizer que estou, e sempre estarei, próximo de ti». A manjedoura do Natal, primeira mensagem dum Deus menino, diz-nos que Ele está connosco, ama-nos, procura-nos. Coragem! Não te deixes vencer pelo medo, a resignação, o desânimo. Deus nasce numa manjedoura para te fazer renascer precisamente lá onde pensavas ter tocado o fundo. Não há mal, não há pecado de que Jesus não queira e não possa salvar-te. Natal significa dizer que Deus está próximo: renasça a confiança!
2. Além de proximidade, a manjedoura de Belém fala-nos também de pobreza. Na realidade, à volta duma manjedoura, não há grande coisa: tojo, qualquer animal e pouco mais. As pessoas hospedavam-se no quentinho dos albergues, não no estábulo frio duma pensão; mas aqui nasceu Jesus, e a manjedoura lembra-nos que nada mais havia em redor senão quem Lhe queria bem: Maria, José e alguns pastores… todos, pobres, irmanados pelo afeto e a maravilha, não por riquezas e grandes possibilidades. E assim a pobre manjedoura faz emergir as verdadeiras riquezas da vida: não o dinheiro nem o poder, mas as relações e as pessoas.
E a primeira pessoa, a primeira riqueza é precisamente Jesus. Mas nós… queremos mesmo estar ao seu lado? Aproximamo-nos d’Ele, amamos a sua pobreza? Ou preferimos cingir-nos comodamente aos nossos interesses? Sobretudo visitamo-Lo onde Se encontra, isto é, nas pobres manjedouras do nosso mundo? É lá que Ele está presente. E nós somos chamados a ser uma Igreja que adora Jesus pobre, e serve Jesus nos pobres. Como disse um santo bispo: «A Igreja apoia e abençoa os esforços tendentes a transformar as estruturas de injustiça colocando apenas uma condição: que as transformações sociais, económicas e políticas redundem em autêntico benefício para os pobres» (O. A. Romero, Mensagem Pastoral para o Novo Ano, 01/I/1980). Certamente não é fácil deixar o tépido calor do mundanismo para abraçar a nua beleza da gruta de Belém, mas lembremo-nos de que, sem os pobres, verdadeiramente não é Natal. Sem eles, festeja-se o Natal, mas não o de Jesus... Irmãos, irmãs, no Natal Deus é pobre: renasça a caridade!
3. Chegamos assim ao último ponto: a manjedoura fala-nos de concretismo. De facto, um bebé numa manjedoura constitui uma cena chocante, até mesmo uma cena dura. Lembra-nos que Deus Se fez verdadeiramente carne. Por isso, a seu respeito, já não bastam teorias, belos pensamentos e devotos sentimentos. Jesus, que nasce pobre, viverá pobre e morrerá pobre, não fez muitos discursos sobre a pobreza, mas viveu-a, em toda a sua profundidade, por nós. Da manjedoura à cruz, o seu amor por nós foi palpável, concreto: do nascimento à morte, o filho do carpinteiro abraçou a aspereza da madeira, a aspereza da nossa existência. Não nos amou com palavras, não nos amou por divertimento!
Por conseguinte não Se contenta com aparências. Não quer apenas bons propósitos, Ele que Se fez carne. Ele que nasceu na manjedoura, procura uma fé concreta, feita de adoração e caridade, não de palavreado e exterioridade. Ele, que Se deixa colocar na manjedoura nu e, nu, O colocarão na cruz, pede-nos verdade, descendo à realidade nua e crua das coisas, abandonando ao pé da manjedoura desculpas, justificações e hipocrisias. Ele, que foi ternamente envolvido em panos por Maria, quer que nos revistamos de amor. Deus não quer aparência, mas concretismo. Não deixemos passar este Natal, irmãos e irmãs, sem fazer algo de bom. Uma vez que é a festa d’Ele, o seu aniversário, ofereçamos-Lhe prendas de que Ele gosta! No Natal, Deus é concreto: em seu nome, façamos renascer um pouco de esperança em quem a perdeu!
Jesus, contemplamo-Vos recostado na manjedoura. Vemo-Vos tão próximo, perto de nós para sempre… Obrigado, Senhor! Vemo-Vos pobre, ensinando-nos que a verdadeira riqueza não está nas coisas, mas nas pessoas, sobretudo nos pobres: desculpai, Senhor, se não Vos reconhecemos e servimos neles. Vemo-Vos concreto, porque concreto é o vosso amor por nós: Jesus, ajudai-nos a dar carne e vida à nossa fé. Amem.
Papa Francisco
24.12.2022
Catequeses sobre o discernimento 13.
Continuemos – estão a acabar – as catequeses sobre o discernimento, e quem seguiu estas catequeses até agora talvez possa pensar: que prática complicada é discernir! Na realidade, é a vida que é complicada e, se não aprendermos a lê-la, complicada como é, corremos o risco de a desperdiçar, levando-a em frente com expedientes que acabam por nos aviltar.
No nosso primeiro encontro vimos que sempre, todos os dias, quer queiramos quer não, realizamos atos de discernimento, naquilo que comemos, lemos, no trabalho, nos relacionamentos, em tudo. A vida coloca-nos sempre diante de escolhas, e se não as fizermos de maneira consciente, no final é a vida que escolherá por nós, levando-nos para onde não gostaríamos de ir.
No entanto, o discernimento não se faz sozinhos. Hoje, abordemos mais especificamente algumas ajudas que podem facilitar este exercício do discernimento, indispensável da vida espiritual, embora de certo modo já as tenhamos encontrado no decurso destas catequeses. Mas um resumo ajudar-nos-á muito.
Uma primeira ajuda indispensável é o confronto com a Palavra de Deus e a doutrina da Igreja. Elas ajudam-nos a ler o que se move no coração, aprendendo a reconhecer a voz de Deus e a distingui-la de outras vozes, que parecem impor-se à nossa atenção, mas que no final nos deixam confusos. A Bíblia adverte-nos que a voz de Deus ressoa na calma, na atenção, no silêncio. Pensemos na experiência do profeta Elias: o Senhor não lhe fala no vento que fende as rochas, nem no fogo ou no tremor de terra, mas fala-lhe numa brisa suave (cf. 1 Rs 19, 11-12). É uma imagem muito bonita que faz com que compreendamos o modo como Deus fala! A voz de Deus não se impõe, a voz de Deus é discreta, respeitosa, permito-me dizer: a voz de Deus é humilde e, precisamente por isso, pacificadora. E somente na paz podemos entrar no íntimo de nós próprios e reconhecer os desejos autênticos que o Senhor colocou no nosso coração. E muitas vezes não é fácil entrar naquela paz do coração, pois andamos atarefados, com isto, aqui e ali, o dia inteiro... Mas, por favor, acalma-te um pouco, entra em ti mesmo, em ti mesma. Dois minutos, pára. Presta atenção ao que o teu coração sente. Mas façamos isto, irmãos e irmãs, ajudar-nos-á muito, pois naquele momento de calma imediatamente a voz de Deus que nos diz: “Mas, repara, olha para isto, bom isto que estás a fazer...”. Deixemos na calma que venha de repente a voz de Deus. Espera-nos para isto...
Para quem crê, a Palavra de Deus não é simplesmente um texto para ler, a Palavra de Deus é uma presença viva, é uma obra do Espírito Santo que conforta, instrui, dá luz, força, alívio e gosto de viver. Ler a Bíblia, ler um trecho, um ou dois trechos pequenos da Bíblia, são como pequenos telegramas de Deus que te chegam logo ao coração. A Palavra de Deus é – e não exagero – um pouco como verdadeira antecipação do paraíso. Quem o compreendeu bem foi um grande santo e pastor, Ambrósio, aquele bispo de Milão, que escreveu: «Quando leio a Divina Escritura, Deus volta a passear no paraíso terrestre» (Carta, 49, 3). Com a Bíblia abrimos a porta a Deus que passeia. Interessante...
Esta relação afetiva com a Bíblia, com a Escritura, com o Evangelho, leva a viver uma relação afetiva com o Senhor Jesus, não tenhais medo disto! O coração fala ao coração, e esta é outra ajuda indispensável e não é óbvia. Muitas vezes podemos ter uma ideia deturpada de Deus, considerando-o como um juiz cruel e severo, pronto para nos apanhar em flagrante, com a corda pronta para nos punir. Jesus, ao contrário, revela-nos um Deus cheio de compaixão e ternura, pronto a sacrificar-se para vir ao nosso encontro, exatamente como o pai da parábola do filho pródigo (cf. Lc 15, 11-32). Certa vez, alguém perguntou – não sei se à mãe ou à avó, contaram-me – “Mas o que devo fazer neste momento?” – “Ouve Deus, Ele dir-te-á o que deverás fazer. Abri o coração a Deus”: um bom conselho. Recordo uma vez, numa peregrinação de jovens, que se faz uma vez por ano ao Santuário de Luján, a 70 km de Buenos Aires: emprega-se o dia inteiro para chegar lá; eu tinha o hábito de confessar durante a noite. Aproximou-se um rapaz, de 22 anos mais ou menos, tudo, com muitas coisas [kit], tatuagens... “Meu Deus – pensei – o que será isto?”, não? E disse-me: “O senhor sabe, vim porque tenho um problema grave, contei-o à minha mãe e ela disse-me: “Vai ter com Nossa Senhora, faz a peregrinação, e Nossa Senhora responder-te-á”. E vim. Tive contacto com a Bíblia, aqui, ouvi a Palavra de Deus que me comoveu o coração e devo fazer isto, isto e isto”. A Palavra de Deus faz comover o coração e muda a tua vida. E assim vi muitas coisas, isto, tantas vezes. Pois Deus não deseja destruir-nos, Deus quer que sejamos mais fortes, melhores a cada dia. Quem permanece diante do Crucificado sente uma nova paz, aprende a não ter medo de Deus, pois Jesus na cruz não assusta ninguém, é a imagem do desamparo total e ao mesmo tempo do amor mais completo, capaz de enfrentar todas as provações por nós. Os santos sempre tiveram uma predileção por Jesus Crucificado. A narração da Paixão de Jesus é a via mestra para nos confrontarmos com o mal sem sermos esmagados por ele; nela não há julgamento nem sequer resignação, porque é permeada por uma luz maior, a luz da Páscoa, que permite ver naqueles terríveis feitos um desígnio maior, que nenhum impedimento, obstáculo ou fracasso pode frustrar. A Palavra de Deus sempre te faz olhar para o outro lado: isto é, há a cruz, aqui, é terrível, mas há o outro lado, uma esperança, uma ressurreição. A Palavra de Deus abre-te todas as portas, pois Ele é a porta, é o Senhor. Peguemos no Evangelho, peguemos a Bíblia nas mãos: cinco minutos por dia, não mais. Levai um Evangelho convosco, na bolsa, e quando estiverdes de viagem pegai nele e lede-o, durante o dia, um pequeno trecho, deixai que a Palavra de Deus se aproxime do coração. Fazei isto e vereis como mudará a vossa vida. Com a proximidade à Palavra de Deus. “Sim, Padre, mas estou habituado a ler a Vida dos Santos”: isto faz bem, faz bem, mas não deixes a Palavra de Deus. Leva o Evangelho contigo, por dia, um minuto...
É muito bonito pensar na vida com o Senhor como uma relação de amizade que cresce dia após dia. A amizade com Deus – pesastes nisto? Mas, é a estrada! Pensemos em Deus, ele dá-nos... Deus não nos dá tanto, não? Deus ama-nos, quer-nos como amigos! A amizade com Deus tem a capacidade de transformar o coração; é um dos grandes dons do Espírito Santo, a piedade, que nos torna capazes de reconhecer a paternidade de Deus. Temos um Pai terno e carinhoso, um Pai que nos ama, que sempre nos amou: quando experimenta isto, o coração dissolve-se e as dúvidas, os receios, os sentimentos de indignidade desaparecem. Nada se pode opor a este amor do encontro com o Senhor!
E isto lembra-nos outra grande ajuda, o dom do Espírito Santo, que está presente em nós, e que nos instrui, torna viva a Palavra de Deus que lemos, sugere novos significados, abre portas que pareciam fechadas, indica sendas de vida onde parecia existir unicamente escuridão e confusão. Pergunto-vos: rezais ao Espírito Santo? Mas quem é ele? O Grande Desconhecido? Nós rezamos ao Pai, sim, o Nosso Pai, rezamos a Jesus, mas esquecemos o Espírito! Certa vez, fazendo a catequese às crianças, perguntei: “Quem de vós sabe quem é o Espírito Santo?”. E um menino: “Eu sei!” – “E quem é?” – “O paralítico”, disse-me! Ele tinha ouvido “o Paráclito”, e pensava que fosse um paralítico. E muitas vezes – isto fez-me pensar – para nós o Espírito Santo está ali, como se fosse uma Pessoa que não conta. O Espírito Santo é aquele que te dá vida para a alma! Deixa-o entrar. Falai com o Espírito assim como falais com o Pai, como falais com o Filho: falai com o Espírito Santo – que nada tem de paralítico! Ele tem a força da Igreja, é aquele que te leva em frente. O Espírito Santo é discernimento em ação, presença de Deus em nós, é o dom, a maior dádiva que o Pai garante a quantos o pedem (cf. Lc 11, 13). E Jesus como o chama? “O dom”: “Permanecei aqui em Jerusalém na espera do dom de Deus”, que é o Espírito Santo. É interessante levar a vida na amizade com o Espírito Santo: Ele muda-te, Ele faz-te crescer.
A Liturgia das Horas dá início aos principais momentos de oração do dia, com esta invocação: «Deus, vinde em nosso auxílio. Senhor, socorrei-nos e salvai-nos». «Senhor, socorrei-me!», porque sozinho não posso continuar, não posso amar, não posso viver... Esta invocação de salvação é o pedido irreprimível que brota do íntimo do nosso ser. O discernimento tem a finalidade de reconhecer a salvação realizada pelo Senhor na minha vida, lembra-me que nunca estou só e que, se luto, é porque a aposta é importante. O Espírito Santo está sempre conosco. “Oh, Padre, fiz algo negativo, devo ir confessar-me, não posso fazer nada...”. Mas, fizeste algo mau? Fala ao Espírito que está contigo e diz-lhe: “Ajudai-me, fiz algo ruim...”. Mas não canceles o diálogo com o Espírito Santo. “Padre, estou em pecado mortal”: não importa, fala com Ele assim ajudar-te-á a perdoar-te. Nunca deixes este diálogo com o Espírito Santo. E com estas ajudas que o Senhor nos oferece, não devemos ter medo! Em frente, coragem e com alegria!
Papa Francisco
Catequese na audiência geral 21.12.22
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Catequeses sobre o discernimento 12. A vigilância
Já estamos na fase final deste percurso de catequeses sobre o discernimento. Começamos com o exemplo de Santo Inácio de Loyola; depois consideramos os elementos do discernimento - isto é, a oração, o conhecimento de si, o desejo e o “livro da vida” - e meditamos sobre a desolação e a consolação, que formam a sua “matéria”; e depois chegamos à confirmação da escolha feita.
Nesta altura considero necessário inserir a chamada a uma atitude essencial, a fim de que não se perca todo o trabalho levado a cabo para discernir o melhor e tomar a boa decisão, e esta seria a atitude da vigilância. Refletimos sobre o discernimento, a consolação e a desolação; escolhemos uma coisa... tudo está bem, mas agora, vigiar: a atitude da vigilância. Pois efetivamente, como ouvimos na passagem do Evangelho que foi lida, o risco existe. O risco existe, e é que o “desmancha-prazeres”, ou seja, o Maligno, possa arruinar tudo, fazendo-nos voltar ao ponto de partida, aliás, a uma condição ainda pior. É o que acontece, por isso é preciso estar atentos e vigiar. Eis por que é indispensável estar vigilante. Por conseguinte, hoje pareceu-me oportuno evidenciar esta atitude, de que todos nós precisamos para que o processo de discernimento tenha bom êxito e permaneça ali.
Com efeito, na sua pregação, Jesus insiste muito sobre o facto de que o bom discípulo é vigilante, não adormece, não se deixa tomar pela segurança excessiva quando tudo corre bem, mas permanece atento e pronto para cumprir o seu dever.
Por exemplo, no Evangelho de Lucas, Jesus diz: «Estejam cingidos os vossos rins, e acesas as vossas lâmpadas; sede semelhantes àqueles que esperam o seu senhor quando ele regressar de uma festa, para que quando ele vier e bater à porta, eles lha abram imediatamente. Bem-aventurados os servos aos quais o senhor encontrar vigilantes quando vier!» (12, 35-37).
Vigiar para salvaguardar o nosso coração e compreender o que acontece dentro. Trata-se da disposição de espírito dos cristãos que aguardam a vinda final do Senhor; mas pode ser entendida também como a atitude comum a ter na conduta de vida, de tal modo que as nossas boas escolhas, feitas às vezes depois de um discernimento exigente, possam continuar de maneira perseverante e coerente e dar fruto.
Se faltar a vigilância, como dissemos, será muito forte o risco de que tudo se perca. Não se trata de um perigo de ordem psicológica, mas sim espiritual, uma verdadeira cilada do espírito maligno. Com efeito, ele aguarda o momento exato em que nos sentimos demasiado seguros de nós próprios, este é o perigo: “Estou seguro de mim mesmo, venci, agora estou bem...”, este é o momento que o espírito maligno espera, quando tudo corre bem, quando as coisas vão “às mil maravilhas” e temos, como se diz, “o vento em popa”. Efetivamente, na breve parábola evangélica que ouvimos, afirma-se que o espírito impuro, quando regressa à casa de onde tinha saído, «encontra-a vazia, limpa e adornada» (Mt 12, 44). Tudo está no lugar, tudo está em ordem, mas onde se encontra o dono da casa? Não está presente. Não há ninguém que vigie sobre ela e a salvaguarde. Eis o problema! O dono da casa não está presente, saiu, distraiu-se; ou está em casa, mas adormeceu, e portanto é como se não estivesse presente. Não está vigilante, não está atento, pois sente-se demasiado seguro de si mesmo e perdeu a humildade de salvaguardar o próprio coração. Devemos preservar sempre a nossa casa, o nosso coração, e não nos devemos distrair e ir... pois o problema é este, como dizia a Parábola.
Então, o espírito maligno pode aproveitar-se e regressar àquela casa. Contudo, o Evangelho diz que não regressa sozinho, mas com «outros sete espíritos piores do que ele» (v. 45). Uma companhia de malfeitores, um quadrilha de bandidos. Mas - perguntemo-nos - como é possível que possam entrar sem ser perturbados? Como é que o senhor não se apercebe? Não fora porventura capaz de fazer o discernimento e de os expulsar? Não recebera até as felicitações dos seus amigos e vizinhos por aquela casa tão bonita e elegante, tão arrumada e limpa? Sim, mas talvez precisamente por isso apaixonou-se demasiado pela casa, ou seja, por ele mesmo, e deixou de esperar o Senhor, de aguardar a vinda do Esposo; talvez, por medo de estragar aquela ordem, já não recebesse ninguém, não convidasse os pobres, os desabrigados, aqueles que incomodam... Uma coisa é certa: tem a ver com o mau orgulho, com a presunção de estar certo, de ser bom, de estar bem. Muitas vezes ouvimos dizer: “Sim, antes eu era malvado, depois converti-me e agora a casa está em ordem, graças a Deus, fica tranquilo quanto a isto...”. Quando confiamos demasiado em nós próprios e não na graça de Deus, então o Maligno encontra a porta aberta. Em seguida, organiza a expedição e toma posse daquela casa. E Jesus conclui: «A condição daquele homem torna-se pior do que a primeira» (v. 45).
Mas o senhor não se apercebe? Não, porque estes são os demónios educados: entram sem que te dês conta, batem à porta, são gentis. “Não está bem, vai, vai, entra...” e depois acabam por mandar na tua alma. Cuidado com estes diabinhos, com estes demónios: o diabo é educado quando finge ser um grande senhor. Pois entra com a nossa para sair com a sua. É preciso proteger a casa deste engano de demónios educados. E a mundanidade espiritual segue sempre este caminho.
Caros irmãos e irmãs, parece impossível, mas é assim! Muitas vezes perdemos, somos derrotados nas batalhas, devido a esta falta de vigilância. Muitas vezes, talvez o Senhor tenha concedido tantas graças e no final não fomos capazes de perseverar nesta graça e perdemos tudo, porque nos falta a vigilância: não protegemos as portas. E depois fomos enganados por alguém que vem, educado, que entra e diz olá... o diabo comporta-se assim! Cada um pode até verificá-lo, reconsiderando a sua história pessoal. Não é suficiente fazer um bom discernimento e uma boa escolha. Não, não é suficiente: é preciso permanecer vigilante, preservar esta graça que Deus nos concedeu, mas vigiar, pois podes dizer-me: “Mas quando vejo alguma desordem, apercebo-me imediatamente que é o diabo, que é uma tentação...”, sim, mas desta vez vem disfarçado de anjo: o diabo sabe disfarçar-se de anjo, entra com palavras educadas, convence-te e no fim é pior do que no início... Devemos permanecer vigilantes, velar sobre o coração. Se hoje eu perguntasse a cada um de nós, e também a mim mesmo: “O que acontece no teu coração?”. Talvez não saibamos dizer tudo: diremos uma ou duas coisas, mas não tudo. Velar sobre o coração, pois a vigilância é sinal de sabedoria, é sobretudo sinal de humildade, pois temos medo de cair, e a humildade é a via mestra da vida cristã.
Papa Francisco
Catequese na audiência geral 14.12.22
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Catequeses sobre o discernimento 11. A confirmação da boa escolha
No processo de discernimento, é importante permanecer atento também à fase que se segue imediatamente à decisão tomada, para captar os sinais que a confirmam, ou aqueles que a desmentem. Devo tomar uma decisão, faço o discernimento a favor ou contra, sentimentos, rezo... depois, termina este processo e tomo a decisão, e em seguida vem aquela parte em que devemos estar atentos, ver. Pois na vida há decisões que não são boas e existem sinais que as desmentem, enquanto as boas as confirmam.
Com efeito, vimos que o tempo é um critério fundamental para reconhecer a voz de Deus no meio de muitas outras vozes. Somente Ele é Senhor do tempo: é uma marca de garantia da sua originalidade, que o diferencia das imitações que, sem sucesso, falam em seu nome. Um dos sinais distintivos do espírito bom é que ele comunica uma paz que perdura no tempo. Se fizeres um aprofundamento e depois tomares a decisão, e se isto te der uma paz que perdura no tempo, este é um bom sinal, pois indica que o caminho foi bom. Uma paz que traz harmonia, unidade, fervor, zelo. Sais do processo de aprofundamento melhor do que entraste.
Por exemplo, se eu tomar a decisão de dedicar meia hora a mais à oração, e depois sentir que vivo melhor os outros momentos do dia, que estou mais tranquilo, menos ansioso, desempenho o trabalho com mais atenção e prazer, até as relações com algumas pessoas difíceis se tornam mais fáceis..., todos estes são sinais importantes que vão a favor da bondade da decisão tomada. A vida espiritual é circular: a bondade de uma escolha beneficia todos os âmbitos da nossa vida, porque é participação na criatividade de Deus.
Podemos reconhecer alguns aspetos importantes, que ajudam a ler o tempo que se segue à decisão como possível confirmação da sua bondade, pois o tempo que se segue confirma a bondade da decisão. De certo modo, já descobrimos estes aspetos importantes no decurso destas catequeses, mas agora elas encontram uma sua ulterior aplicação.
Um primeiro aspeto consiste em saber se a decisão é considerada como um possível sinal de resposta ao amor e à generosidade que o Senhor tem em relação a mim. Não nasce do medo, não nasce de uma chantagem afetiva, nem de uma constrição, mas nasce da gratidão pelo bem recebido, que leva o coração a viver com liberalidade a relação com o Senhor.
Outro elemento importante é a consciência de se sentir à-vontade na vida – aquela tranquilidade, “estou à-vontade” - e de se sentir parte de um desígnio maior, para o qual se deseja oferecer a própria contribuição. Na Praça de São Pedro, há dois pontos exatos - os focos da elipse - de onde se veem as colunas de Bernini perfeitamente alinhadas. De maneira análoga, o homem pode reconhecer que encontrou o que procura, quando o seu dia se torna mais ordenado, sente uma integração crescente entre os seus múltiplos interesses, estabelece uma hierarquia correta de importância e consegue viver tudo isto com facilidade, enfrentando com renovadas energia e força de espírito as dificuldades que se apresentam. Estes são sinais de que tomaste uma boa decisão.
Por exemplo, outro bom sinal de confirmação é quando se permanece livre em relação ao que se decidiu, disposto a pô-lo novamente em questão, até a renunciar ao mesmo perante possíveis negações, procurando encontrar nelas um eventual ensinamento do Senhor. Não porque Ele nos quer privar do que nos é querido, mas para o viver com liberdade, sem apego. Só Deus sabe o que é verdadeiramente bom para nós. A possessividade é inimiga do bem e mata o afeto, prestai atenção a isto, a possessividade é inimiga do bem, mata o afeto: os numerosos casos de violência no âmbito doméstico, de que infelizmente temos notícias frequentes, surgem quase sempre da pretensão de possuir o afeto do outro, da busca de uma segurança absoluta que mata a liberdade e sufoca a vida, tornando-a um inferno.
Só podemos amar na liberdade, e foi por isso que o Senhor nos criou livres, livres até de lhe dizer não. Oferecer-lhe o que temos de mais querido é interesse nosso, permite-nos vivê-lo da melhor maneira possível e na verdade, como um dom que nos concedeu, como sinal da sua bondade gratuita, conscientes de que a nossa vida, assim como toda a História, está nas suas mãos benevolentes. É a isto que a Bíblia chama temor de Deus, ou seja, o respeito por Deus, não é que Deus me assusta, não, mas é um respeito, uma condição indispensável para aceitar a dádiva da Sabedoria (cf. Eclo 1, 1-18). É o temor que afasta todos os outros receios, porque está orientado para Ele, que é o Senhor de tudo. Perante Ele nada nos pode inquietar. É a surpreendente experiência de São Paulo, que dizia assim: «Sei viver na penúria, e sei também viver na abundância. Estou habituado a todas as vicissitudes: fartura e fome, abundância e indigência. Tudo posso n’Aquele que me conforta» (Fl 4, 12-13). Este é o homem livre, que bendiz o Senhor quer quando recebe coisas boas, quer quando recebe coisas não muito boas: bendito seja e vamos em frente!
Reconhecer isto é fundamental para uma boa decisão, e tranquiliza acerca daquilo que não podemos controlar nem prever: a saúde, o futuro, os entes queridos, os nossos projetos. O que importa é que a nossa confiança seja depositada no Senhor do universo, que nos ama imensamente e sabe que, com Ele, podemos edificar algo magnífico, algo eterno. A vida dos santos no-lo mostra da maneira mais bonita! Vamos em frente, procurando sempre tomar decisões assim, com a oração, sentindo o que acontece no nosso coração e progredindo lentamente, ânimo!
Papa Francisco
Catequese na audiência geral 07.12.22
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Catequeses sobre o discernimento 10. A consolação autêntica
Continuando a nossa reflexão sobre o discernimento, e em particular sobre a experiência espiritual chamada “consolação”, sobre a qual falámos na outra quarta-feira, perguntemo-nos: como reconhecer a verdadeira consolação? É uma pergunta muito importante para um bom discernimento, para não sermos enganados na busca do nosso verdadeiro bem.
Podemos encontrar alguns critérios num trecho dos Exercícios espirituais de Santo Inácio de Loyola. «Se nos pensamentos tudo é bom – diz Santo Inácio - o princípio, o meio e o fim, e se tudo está orientado para o bem, este é um sinal do anjo bom. Por outro lado, pode ser que no decurso dos pensamentos se apresente algo mau, ou que distraia, ou menos bom do que aquilo que antes a alma se propusera fazer, ou algo que debilite a alma, que a torne inquieta, que a ponha em agitação e lhe tire a paz, lhe tira a tranquilidade e a calma que antes tinha: então, este é um sinal claro de que tais pensamentos vêm do espírito maligno» (n. 333). Pois é verdade: há uma verdadeira consolação, mas também há algumas consolações que não são verdadeiras. E por isso é preciso compreender bem o percurso da consolação: como vai e onde me leva? Se me levar a algo que não está bem, que não é bom, a consolação não é verdadeira, é “fingida”, digamos assim.
E estas são indicações preciosas, que merecem um breve comentário. O que significa que o princípio está orientado para o bem, como diz Santo Inácio de uma boa consolação? Por exemplo, tenho o pensamento de rezar, e observo que se acompanha ao afeto pelo Senhor e pelo próximo, convida a realizar gestos de generosidade, de caridade: é um bom princípio. No entanto, pode acontecer que aquele pensamento surja para evitar um trabalho ou uma tarefa que me foi confiada: sempre que devo lavar a louça ou limpar a casa, vem-me uma grande vontade de começar a rezar! Acontece isto nos conventos. Mas a oração não é uma fuga dos nossos afazeres; pelo contrário, é uma ajuda para realizar o bem que somos chamados a praticar, aqui e agora. Isto a propósito do princípio.
Em seguida há o meio: Santo Inácio dizia que o princípio, o meio e o fim devem ser bons. O princípio é este: tenho vontade de rezar para não lavar os pratos: vai, lava os pratos e depois vai rezar. Depois há o meio, ou seja, o que vem depois, o que se segue a tal pensamento. Permanecendo no exemplo anterior, se eu começar a rezar e, como faz o fariseu da parábola (cf. Lc 18, 9-14), tendo a agradar a mim mesmo e a desprezar os outros, talvez com um ânimo ressentido e azedo, então estes são sinais de que o espírito maligno utilizou aquele pensamento como chave de acesso para entrar no meu coração e para me transmitir os seus sentimentos. Se eu for rezar e me vier à mente o famoso fariseu – “dou-te graças, Senhor, porque eu rezo, não sou como os outros que não te procuram, não rezam” – aquela oração acaba mal. Aquela consolação de rezar é para se sentir um pavão diante de Deus. E este é o meio que não está bem.
E depois há o fim: o princípio, o meio e o fim. O fim é um aspeto que já encontramos, ou seja: para onde me leva um pensamento? Por exemplo, onde me leva o pensamento de rezar. Ou então, pode acontecer que eu trabalhe arduamente por uma obra boa e meritória, mas isto impele-me a deixar de rezar, porque estou atarefado com muitas coisas, descubro-me cada vez mais agressivo e zangado, considero que tudo depende de mim, a ponto de perder a confiança em Deus. Evidentemente, aqui há a ação do espírito maligno. Ponho-me a rezar, depois na oração sinto-me omnipotente, que tudo deve estar nas minhas mãos pois sou o único, a única que sabe levar em frente as situações: evidentemente nisto não há o bom espírito. É preciso examinar bem o percurso dos nossos sentimentos e o percurso dos bons sentimentos, da consolação, no momento em que quero fazer alguma coisa. Como é o princípio, como é o meio e como é o fim.
O estilo do inimigo - quando falamos do inimigo, falamos do diabo, pois o demónio existe, está presente! – o seu estilo, sabemo-lo, consiste em apresentar-se de maneira sorrateira e disfarçada: começa a partir daquilo que nos é mais querido e depois, pouco a pouco, atrai-nos a si: o mal entra secretamente, sem que a pessoa se aperceba. E, com o passar do tempo, a suavidade torna-se dureza: aquele pensamento revela-se pelo que realmente é.
Eis a importância deste paciente, mas indispensável exame sobre a origem e a verdade dos próprios pensamentos; é um convite a aprender com as experiências, com o que nos acontece, para não continuar a repetir os mesmos erros. Quanto mais nos conhecemos, mais sentimos por onde entra o espírito maligno, as suas “passwords”, as portas de entrada do nosso coração, que são os pontos onde somos mais sensíveis, de modo a prestar-lhes atenção no futuro. Cada um de nós tem os pontos mais sensíveis, os pontos mais débeis da própria personalidade: e por ali entra o espírito mau e leva-nos para a estrada não reta, ou tira-nos da verdadeira estrada certa. Vou rezar, mas tira-me da oração.
Os exemplos poderiam multiplicar-se à vontade, refletindo sobre os nossos dias. Por isso é tão importante o exame de consciência diário: antes de acabar o dia, paremos um pouco. O que aconteceu? Não nos jornais, não na vida: o que aconteceu no meu coração? O meu coração prestou atenção? Cresceu? Foi uma estrada que passou por cima tudo, sem o meu conhecimento? O que aconteceu no meu coração? E este exame é importante, trata-se do precioso esforço de reler a experiência sob um ponto de vista particular. É importante compreender o que acontece, é sinal de que a graça de Deus age em nós, ajudando-nos a crescer em liberdade e consciência. Não estamos sozinhos: é o Espírito Santo que está connosco. Vejamos como correram as coisas.
A consolação autêntica é uma espécie de confirmação de que estamos a cumprir o que Deus quer de nós, que percorremos os seus caminhos, ou seja, as veredas da vida, da alegria, da paz. Com efeito, o discernimento não é simplesmente sobre o bem, nem sobre o máximo bem possível, mas sobre o que é um bem para mim aqui e agora: é nisto que sou chamado a crescer, colocando limites a outras propostas, atraentes, mas irreais, para não ser enganado na busca do verdadeiro bem.
Irmãos e irmãs, é preciso entender, ir em frente na compreensão do que acontece no meu coração. E por isso é necessário o exame de consciência, para ver o que aconteceu hoje. “Hoje zanguei-me ali, não fiz aquilo…”: mas porquê? Ir além do porquê é procurar a raiz destes erros. “Mas, hoje fui feliz, porém estava aborrecido porque devia ajudar aquelas pessoas, mas no final senti-me satisfeito, satisfeita com aquela ajuda”: e há o Espírito Santo. Aprender a ler no livro do nosso coração o que aconteceu durante o dia. Fazei isto, apenas dois minutos, far-vos-á bem, vo-lo garanto.
Papa Francisco
Catequese na audiência geral 30.11.22
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