Catequeses. A paixão pela evangelização: o zelo apostólico do crente - 4. O primeiro apostolado
Continuemos as nossas catequeses; o tema que escolhemos é: “A paixão de evangelizar, o zelo apostólico. Pois evangelizar não é dizer: “Olha, blá-blá-blá” e nada mais; há uma paixão que engloba tudo: a mente, o coração, as mãos, ir... tudo, a pessoa inteira está envolvida na proclamação do Evangelho, e por isso falamos de paixão de evangelizar. Depois de termos visto em Jesus o modelo e o mestre do anúncio, hoje passemos aos primeiros discípulos, àquilo que os primeiros discípulos fizeram. O Evangelho diz que Jesus «designou doze dentre eles - a quem chamou apóstolos - para andarem com Ele e para os enviar a pregar» (Mc 3, 14), duas coisas: para que andassem com Ele e para os enviar a pregar. Há um aspeto que parece contraditório: chama-os para que andem com Ele e para os enviar a pregar. Dir-se-ia: ou um ou outro, ou andar ou enviar. Mas não: para Jesus, não há estar sem ir e não há ir sem estar. Não é fácil entender isto, mas é assim. Procuremos compreender um pouco em que sentido Jesus diz estas coisas.
Em primeiro lugar, não há ir sem estar: antes de enviar os discípulos em missão, Cristo - diz o Evangelho – “reúne-os” (cf. Mt 10, 1). O anúncio nasce do encontro com o Senhor; toda a atividade cristã, especialmente a missão, começa a partir dali. Não se aprende numa academia: não! Começa pelo encontro com o Senhor. Com efeito, testemunhá-lo significa irradiá-lo; mas, se não recebermos a sua luz, extinguir-nos-emos; se não o frequentarmos, anunciar-nos-emos a nós próprios e não a Ele – anuncio-me a mim mesmo, não a Ele - e tudo será vão. Portanto, só a pessoa que andar com Ele poderá anunciar o Evangelho de Jesus. Quem não andar com Ele não pode anunciar o Evangelho. Anunciará ideias, mas não o Evangelho. Mas de igual modo não há estar sem ir. Na realidade, seguir Cristo não é algo intimista: sem anúncio, sem serviço, sem missão, a relação com Jesus não cresce. Observemos que no Evangelho o Senhor envia os discípulos antes de ter completado a sua preparação: pouco depois de os ter chamado, já os envia! Isto significa que a experiência da missão faz parte da formação cristã. Então, recordemos estes dois momentos constitutivos para cada discípulo: estar com Jesus e ir, envidados por Jesus.
Tendo chamado os discípulos a si, e antes de os enviar, Cristo dirige-lhes um discurso, conhecido como o “sermão missionário”, assim se chama no Evangelho. Encontra-se no capítulo 10 do Evangelho de Mateus e é como que a “constituição” do anúncio. Daquele discurso, cuja leitura vos recomendo hoje – é apenas uma página do Evangelho - friso três aspetos: porquê anunciar, o que anunciar e como anunciar.
Porquê anunciar. A motivação está em cinco palavras de Jesus, que nos fará bem recordar: «Recebestes de graça, dai de graça!» (v. 8). São cinco palavras. Mas porquê anunciar? Porque recebi de graça e devo dar de graça. O anúncio não começa por nós, mas pela beleza do que recebemos de graça, sem mérito: encontrar Jesus, conhecê-lo, descobrir que somos amados e salvos. É um dom tão grande que não podemos guardá-lo para nós, sentimos a necessidade de o irradiar; mas com o mesmo estilo, ou seja, na gratuidade. Em síntese: temos um dom, por isso somos chamados a fazer-nos dom; recebemos um dom e a nossa vocação consiste em tornar-nos dom para os outros; em nós há a alegria de ser filhos de Deus, e ela deve ser partilhada com os irmãos e irmãs que ainda não o conhecem! Esta é a razão do anúncio. Ir e anunciar a alegria daquilo que recebemos.
Segundo, o que anunciar? Jesus diz: «Pregai, anunciando que o reino dos céus está próximo» (v. 7). Eis o que se deve dizer, antes de tudo e em tudo: Deus está próximo. Mas, nunca esqueçamos isto: Deus esteve sempre próximo do povo, Ele próprio o recordou ao povo, Disse assim: “Vede, que Deus está tão próximo das nações como Eu estou próximo de vós?”. A proximidade é uma das coisas mais importantes de Deus. Há três aspetos importantes: proximidade, misericórdia e ternura. Não vos esqueçais disto. Quem é Deus? O Próximo, o Terno, o Misericordioso. Esta é a realidade de Deus! Pregando, frequentemente convidamos as pessoas a fazer algo, e isto é bom; mas não esqueçamos que a mensagem principal é que Ele está próximo: proximidade, misericórdia e ternura. Aceitar o amor de Deus é mais difícil, porque queremos estar sempre no centro, desejamos ser protagonistas, estamos mais propensos a deixar-nos plasmar, mais a falar do que a ouvir. Mas, se em primeiro lugar estiver o que fazemos, continuaremos a ser os protagonistas. Ao contrário, o anúncio deve dar a primazia a Deus: dar a primazia a Deus, o primeiro lugar a Deus e oferecer aos outros a oportunidade de o acolher, de sentir que Ele está próximo. E eu, atrás!
Terceiro ponto: como anunciar. É o aspeto sobre o qual Jesus mais insiste: como anunciar, qual é o método, qual deve ser a linguagem para anunciar; é significativo: diz-nos que o modo, o estilo, é essencial no testemunho. O testemunho não envolve apenas a mente, dizer algo, conceitos: não! Engloba tudo, mente, coração, mãos, tudo, as três linguagens da pessoa: a linguagem do pensamento, a linguagem do afeto e a linguagem da obra. As três linguagens. Não se pode evangelizar apenas com a mente ou só com o coração ou unicamente com as mãos. Envolve tudo. E, neste estilo, o importante é o testemunho, como Jesus quer que façamos. Ele diz assim: «Envio-vos como ovelhas no meio de lobos» (v. 16). Não nos pede para saber enfrentar os lobos, isto é, para saber argumentar, reagir e defender-se: não! Pensaríamos assim: tornemo-nos relevantes, numerosos, prestigiosos, e o mundo ouvir-nos-á, respeitar-nos-á e derrotaremos os lobos: não, não é assim! Não, envio-vos como ovelhas, como cordeiros. Isto é importante. Se não quiseres ser ovelha, o Senhor não te defenderá dos lobos. Arranja-te como puderes. Mas se fores ovelha, tem a certeza de que o Senhor te defenderá dos lobos. Ser humilde! Ele pede-nos que sejamos assim, mansos e desejosos de ser inocentes, dispostos ao sacrifício; com efeito, é o que o cordeiro representa: mansidão, inocência, dedicação, ternura. E Ele, o Pastor, reconhecerá os seus cordeiros e protegê-los-á dos lobos. Ao contrário, os cordeiros disfarçados de lobos são desmascarados e dilacerados. Um Padre da Igreja escrevia: «Enquanto formos cordeiros, venceremos; e mesmo que sejamos circundados por numerosos lobos, conseguiremos vencê-los. Mas se formos lobos, seremos derrotados, pois seremos privados da ajuda do pastor. Ele não apascenta lobos, mas cordeiros» (São João Crisóstomo, Homilia 33 sobre o Evangelho de Mateus). Se eu quiser ser do Senhor, devo deixar que Ele seja o meu pastor, e Ele não é pastor de lobos, é pastor de cordeiros mansos, humildes, bons para com o Senhor.
Ainda sobre o modo como anunciar, é impressionante que Jesus, em vez de prescrever o que levar em missão, diga o que não levar. Às vezes, vê-se algum apóstolo, alguma pessoa que se muda, algum cristão que se diz apóstolo e deu a vida pelo Senhor, e carrega muitas bagagens: mas isto não é do Senhor, o Senhor torna suave o nosso fardo e diz o que não devemos levar: «Não leveis nem ouro, nem prata, nem dinheiro nos vossos cintos, nem alforge para a viagem, nem duas túnicas, nem sandálias, nem cajado» (vv. 9-10). Não levar nada. Diz para não nos apoiarmos em certezas materiais, para ir ao mundo sem mundanidade. É o que se deve dizer: vou ao mundo não com o estilo do mundo, não com os valores do mundo, não com a mundanidade - e para a Igreja, cair na mundanidade é o pior que pode acontecer. Vou com simplicidade! Eis como se anuncia: mostrando Jesus, mais do que falando de Jesus. E como mostramos Jesus? Com o nosso testemunho. Em síntese, caminhando juntos, em comunidade: o Senhor envia todos os discípulos, mas ninguém vai sozinho. A Igreja apostólica é toda missionária e na missão encontra a sua unidade. Portanto: ir mansos e bons como cordeiros, sem mundanidade, e ir juntos. Eis a chave do anúncio, eis a chave do bom êxito da evangelização! Aceitemos estes convites de Jesus: as suas palavras sejam o nosso ponto de referência!
Papa Francisco
Catequese na audiência geral 15.02.23
Imagem: site do Vaticano
Catequeses. A paixão pela evangelização: o zelo apostólico do crente - 3. Jesus Mestre do anúncio
Na quarta-feira passada refletimos sobre Jesus, modelo do anúncio, sobre o seu coração pastoral, sempre propenso para os outros. Hoje olhemos para Ele como mestre do anúncio. Deixemo-nos orientar pelo episódio em que Ele prega na sinagoga do seu povoado, Nazaré. Jesus lê um trecho do profeta Isaías (cf. 61, 1-2) e depois surpreende todos com um “sermão” muito breve, de uma única frase, uma só frase. Diz assim: «Hoje cumpriu-se este oráculo, que acabais de ouvir» (Lc 4, 21). Esta foi a pregação de Jesus: «Hoje cumpriu-se este oráculo, que acabais de ouvir». Isto significa que para Jesus essa passagem profética contém o essencial daquilo que Ele quer dizer de si. Por conseguinte, cada vez que falamos de Jesus, deveríamos seguir aquele seu primeiro anúncio. Então, vejamos em que consiste este primeiro anúncio. Podemos identificar cinco elementos essenciais.
O primeiro elemento é a alegria. Jesus proclama: «O Espírito do Senhor está sobre mim; [...] enviou-me para anunciar a boa nova aos pobres» (v. 18), isto é, um anúncio de júbilo, de alegria. Boa nova: não se pode falar de Jesus sem alegria, porque a fé é uma maravilhosa história de amor a partilhar. Testemunhar Jesus, fazer algo pelos outros em seu nome, é dizer nas entrelinhas da vida que se recebeu um dom tão bonito que nenhuma palavra é suficiente para o expressar. Ao contrário, quando falta alegria, o Evangelho não passa, pois ele – como a própria palavra o diz - é bom anúncio, e Evangelho quer dizer bom anúncio, anúncio de alegria. O cristão triste pode falar de coisas maravilhosas, mas será tudo em vão se o anúncio que transmite não for jubiloso. Dizia um pensador: “um cristão triste é um triste cristão”: não esqueçais isto.
Passemos para o segundo aspeto: a libertação. Jesus diz que foi enviado «para anunciar a libertação aos cativos» (v. 19). Isto significa que quem anuncia Deus não pode fazer proselitismo, não, não pode pressionar os outros, mas deve aliviá-los: não impor fardos, mas livrar deles; levar paz, não sentimentos de culpa. Sem dúvida, seguir Jesus exige ascese, exige sacrifícios; de resto, se cada coisa boa o requer, muito mais o exige a realidade decisiva da vida! Mas quem dá testemunho de Cristo mostra a beleza da meta, mais do que o cansaço do caminho. Ter-nos-á ocorrido contar a alguém sobre uma bela viagem que fizemos. Por exemplo, teríamos falado da beleza dos lugares, do que vimos e vivemos, não do tempo para lá chegar, nem das filas no aeroporto, não! Assim, qualquer anúncio digno do Redentor deve comunicar libertação. Como aquele de Jesus. Hoje há alegria pois vim libertar.
Terceiro aspeto: a luz. Jesus diz que veio para restituir «aos cegos o recobrar da vista» (ibid.). É impressionante que em toda a Bíblia, antes de Cristo, nunca aparece a cura de um cego, nunca. Com efeito, era um sinal prometido que viria com o Messias. Contudo, aqui não se trata apenas da vista física, mas de uma luz que faz ver a vida de modo novo. Há um “vir à luz”, um renascimento que só se verifica com Jesus. Pensando bem, foi assim que a vida cristã teve início para nós: com o Batismo, que antigamente se chamava precisamente “iluminação”. E que luz nos dá Jesus? Traz-nos a luz da filiação: Ele é o Filho amado do Pai, vivo para sempre; e com Ele, também nós somos filhos de Deus, amados para sempre, não obstante os nossos erros e defeitos. Então, a vida já não é um avançar cego rumo ao nada, não: não é questão de destino ou sorte, não é algo que depende do acaso ou das estrelas, nem sequer da saúde ou das finanças, não. A vida depende do amor, do amor do Pai, que cuida de nós, seus filhos amados. Como é maravilhoso partilhar esta luz com os outros! Já pensastes que a vida de cada um de nós – a minha vida, a tua vida, a nossa vida – é um gesto de amor? É um convite ao amor? Isto é maravilhoso! Mas muitas vezes esquecemos isto, face às dificuldades, diante das más notícias, também diante – e isto é terrível – da mundanidade, do modo de viver mundano.
Quarto aspeto do anúncio: a cura. Jesus diz que veio «para libertar os oprimidos» (ibid.). Oprimido é aquele que, na vida, se sente esmagado por algo que acontece: doenças, canseiras, pesos no coração, sentimentos de culpa, erros, vícios, pecados... Oprimidos por isto: pensemos por exemplo nos sentimentos de culpa. Quantos de nós sofreram com isto? Pensemos um pouco num sentimento de culpa deste, daquele… O que nos oprime é, acima de tudo, precisamente aquele mal que nenhum medicamento ou remédio humano pode curar: o pecado. E se alguém tem sentimento de culpa por algo que fez, e se sente mal... mas a boa notícia é que com Jesus este mal antigo, o pecado, que parece invencível, já não tem a última palavra. Posso pecar, pois sou débil. Cada um de nós o pode fazer, mas esta não é a última palavra. A última palavra é a mão estendida de Jesus que te ergue do pecado. E padre, quando o faz? Uma vez? Não. Duas? Não. Três? Não. Sempre. Cada vez que estás mal, o Senhor tem sempre a mão estendida. É preciso apenas pegar nela e deixar-se levar. A boa notícia é que com Jesus este mal antigo não tem a última palavra: a última palavra é a mão estendida de Jesus que te leva em frente. Do pecado, Jesus cura-nos sempre. E quanto devo pagar pela cura? Nada. Cura-nos sempre e gratuitamente. Ele convida quantos estão «cansados e oprimidos» - disse-o no Evangelho – convida a ir até Ele (cf. Mt 11, 28). E então, acompanhar alguém ao encontro de Jesus significa levá-lo ao médico do coração, que alivia a vida. Significa dizer: “Irmão, irmã, não tenho respostas para muitos dos teus problemas, mas Jesus conhece-te, Jesus ama-te, pode curar-te e tranquilizar o coração”. Quem carrega fardos precisa de uma carícia no passado. Muitas vezes ouvimos: “Mas eu precisaria de curar o meu passado… preciso de uma carícia naquele passado que me pesa muito…”. Tem necessidade de perdão. E quem acredita em Jesus tem precisamente isto para oferecer ao próximo: a força do perdão que liberta a alma de qualquer dívida. Irmãos, irmãs, não esqueçais: Deus esquece tudo. Porquê? Sim, esquece todos os nossos pecados, deles não há memória. Deus perdoa tudo pois esquece os nossos pecados. Só precisamos de nos aproximar do Senhor e Ele perdoa-nos tudo. Pensai em algo do Evangelho, naquele que começou a falar: “Senhor, pequei!”. Aquele filho… E o pai fecha-lhe a boca com a mão. “Não, está bem, nada…” Não o deixa acabar… Isto é bonito. Jesus espera-nos para nos perdoar, para nos sarar. E quanto? Uma vez? Duas vezes? Não. Sempre. “Mas, padre, faço as mesmas coisas sempre...”. E também ele fará as suas mesmas coisas sempre: perdoa-te, abraça-te. Por favor, não duvidemos disto. É assim que se ama o Senhor. Quem carrega pesos e precisa de uma carícia no passado, precisa de perdão, saiba que Jesus o faz. E é isto que Jesus oferece: libertar a alma de cada dívida. Na Bíblia fala-se de um ano em que libertava do peso das dívidas: o Jubileu, o ano da graça. Como se fosse o último ponto do anúncio!
Com efeito, Jesus diz que veio «para proclamar o ano da graça do Senhor» (Lc 4, 19). Não era um jubileu programado, como aqueles que estamos a fazer agora, que tudo é programado e pensamos em como fazer, como não fazer… Não. Mas com Cristo a graça que renova a vida chega e surpreende sempre. Cristo é o Jubileu de cada dia, de cada hora, que se aproxima de ti, para te acariciar, para te perdoar. E o anúncio de Jesus deve trazer sempre o enlevo da graça. Este enlevo… “Não acredito, fui perdoado, fui perdoada”. Mas é tão grande o nosso Deus! Pois não somos nós que fazemos grandes coisas, mas é a graça do Senhor que, inclusive através de nós, realiza coisas imprevisíveis. E estas são as surpresas de Deus! Deus é um mestre das surpresas. Surpreende-nos sempre, espera-nos sempre. Nós chegamos, e Ele está à espera. Sempre. O Evangelho é acompanhado por um sentimento de maravilha e de novidade que tem um nome: Jesus!
Que Ele nos ajude a anunciá-lo como deseja, comunicando alegria, libertação, luz, cura e enlevo. É assim que se comunica Jesus.
Um último aspeto: este feliz anúncio, que recita o Evangelho, é dirigido «aos pobres» (v. 18). Muitas vezes esquecemo-nos deles, no entanto são os destinatários explicitamente mencionados porque são os prediletos de Deus. Lembremo-nos deles, e recordemos que, para receber o Senhor, cada um de nós deve fazer-se “pobre dentro”. Com aquela pobreza que faz dizer… “Senhor, preciso de perdão, preciso de ajuda, preciso de força”. A pobreza que todos temos: tornar-se pobre dentro. Trata-se de superar qualquer pretensão de autossuficiência para compreender que é necessitado de graça, e sempre necessitado d’Ele. Se alguém me disser: Padre, mas qual é a via mais breve para encontrar Jesus? Torna-te necessitado. Torna-te necessitado de graça, necessitado de perdão, necessitado e alegria. E Ele aproximar-se-á de ti.
Papa Francisco
Catequese na audiência Geral 25.01.23
Catequeses. A paixão pela evangelização: o zelo apostólico do crente - 2. Jesus modelo do anúncio
Na quarta-feira passada demos início a um ciclo de catequeses sobre a paixão de evangelizar, isto é, sobre o zelo apostólico que deve animar a Igreja e cada cristão. Hoje olhemos para o modelo insuperável do anúncio: Jesus. O Evangelho do dia de Natal definia-o “Verbo de Deus” (cf. Jo 1, 1). O fato de Ele ser o Verbo, ou seja, a Palavra, indica-nos um aspeto essencial de Jesus: Ele está sempre em relação, em saída, nunca isolado, sempre em relação, em saída; com efeito, a palavra existe para ser transmitida, comunicada. Assim é Jesus, Palavra eterna do Pai comunicada a nós, transmitida a nós. Cristo não só tem palavras de vida, mas faz da sua vida uma Palavra, uma mensagem: ou seja, vive sempre voltado para o Pai e para nós. Olhando sempre para o Pai que O enviou e olhando para nós aos quais Ele foi enviado.
Efetivamente, se olharmos para os seus dias, descritos nos Evangelhos, veremos que em primeiro lugar há intimidade com o Pai, a oração, por isso Jesus levanta-se cedo, quando ainda está escuro, e retira-se em áreas desertas para rezar (cf. Mc 1, 35; Lc 4, 42) para falar com o Pai. Todas as decisões e escolhas importantes são feitas depois de ter rezado (cf. Lc 6, 12; 9, 18). Precisamente nesta relação, na oração que o une ao Pai no Espírito, Jesus descobre o sentido do seu ser homem, da sua existência no mundo pois Ele está em missão por nós, enviado pelo Pai para nós.
A este propósito, é interessante o primeiro gesto público que Ele faz, após os anos de vida escondida em Nazaré. Jesus não realiza um grande prodígio, não lança uma mensagem espetacular, mas mistura-se com as pessoas que iam ser batizadas por João. Assim, oferece-nos a chave do seu agir no mundo: despender-se pelos pecadores, tornando-se solidário para connosco sem distâncias, na partilha total da vida. Com efeito, falando da sua missão, dirá que não veio «para ser servido, mas para servir e dar a sua vida» (Mc 10, 45). Todos os dias, depois da oração, Jesus dedica toda a sua jornada ao anúncio do Reino de Deus e dedica-o às pessoas, sobretudo às mais pobres e frágeis, aos pecadores e doentes (cf. Mc 1, 32-39). Isto é, Jesus está em contacto com o Pai na oração e depois está em contacto com todas as pessoas para a missão, para a catequese, para ensinar o caminho do Reino de Deus.
Pois bem, se quisermos representar com uma imagem o seu estilo de vida, não teremos dificuldade em encontrá-la: é o próprio Jesus que no-la oferece, como acabámos de ouvir, falando de si como do bom Pastor, aquele que - diz - «dá a sua vida pelas ovelhas» (Jo 10, 11), este é Jesus. Com efeito, ser pastor não era apenas um trabalho, que exigia tempo e muito esforço; era um verdadeiro estilo de vida: vinte e quatro horas por dia, vivendo com o rebanho, acompanhando-o às pastagens, dormindo entre as ovelhas, cuidando das mais fracas. Em síntese, Jesus não faz algo por nós, mas dá tudo, dá a vida por nós. O seu é um coração pastoral (cf. Ez 34, 15). É pastor com todos nós.
Com efeito, para resumir numa palavra a ação da Igreja, usa-se muitas vezes precisamente o termo “pastoral”. E para avaliar a nossa pastoral, devemos confrontar-nos com o modelo, confrontar-nos com Jesus, Jesus bom Pastor. Em primeiro lugar, podemos perguntar-nos: imitamo-lo bebendo das fontes da oração, para que o nosso coração esteja em sintonia com o seu? A intimidade com Ele é, como sugeria o bonito volume do abade Chautard, «a alma de todo o apostolado». O próprio Jesus disse claramente aos seus discípulos: «Sem mim nada podeis fazer!» (Jo 15, 5). Quem está com Jesus, descobre que o seu coração pastoral bate sempre por quantos estão perdidos, desviados, distantes. E o nosso? Quantas vezes a nossa atitude com pessoas que são um pouco difíceis ou que são um pouco complicadas se exprime com estas palavras: “Mas é um problema dele, que se arranje…”. Mas Jesus nunca disse isto, ao contrário, sempre foi ao encontro de todos os marginalizados, dos pecadores. Era acusado por isto, por estar com os pecadores, pois levava até eles a salvação de Deus.
Ouvimos a parábola da ovelha tresmalhada, contida no capítulo 15 do Evangelho de Lucas (cf. vv. 4-7). Jesus fala também da moeda perdida e do filho pródigo. Se quisermos treinar o nosso zelo apostólico, devemos ter sempre ao alcance o capítulo 15 de Lucas. Lede com frequência este trecho, nele podemos entender o que significa o zelo apostólico. Ali descobrimos que Deus não contempla o redil das suas ovelhas, nem as ameaça para que não se vão embora. Pelo contrário, se uma sai e se perde, não a abandona, mas procura-a. Não diz: “Foi-se, a culpa é dela, que se arranje”. O coração pastoral reage de outra maneira: o coração pastoral sofre, o coração pastoral arrisca. Sofre: sim, Deus sofre por aquele que parte, e na medida em que chora por ele, ama-o ainda mais. O Senhor sofre quando nos distanciamos do seu coração. Sofre por quem não conhece a beleza do seu amor, nem o calor do seu abraço. Mas, em resposta a este sofrimento, não se fecha, mas arrisca: deixa as noventa e nove ovelhas que estão a salvo e aventura-se em busca da única que se perdeu, fazendo assim algo arriscado e até irracional, mas em sintonia com o seu coração pastoral, que tem saudades de quantos se foram. A nostalgia por aqueles que se foram é contínua em Jesus. E quando sentimos que alguém deixou a Igreja o que dizemos? “Que se arranje”. Não, Jesus ensina-nos as saudades daqueles que vão embora; Jesus não sente raiva nem ressentimento, mas uma irredutível nostalgia de nós. Jesus sente saudades de nós e este é o zelo de Deus!
E eu pergunto-me: nós, será que temos sentimentos semelhantes? Talvez vejamos como adversários ou inimigos aqueles que deixaram o rebanho. “E este? – Não, foi para outra parte, perdeu a fé, espera-o o inferno…”, e estamos tranquilos. Encontrando-os na escola, no trabalho, nas ruas da cidade, por que não pensar, ao contrário, que temos uma boa oportunidade de lhes testemunhar a alegria de um Pai que os ama e nunca os esqueceu? Não para fazer proselitismo, não! Mas que lhe chegue a Palavra do Pai, para caminhar juntos. Evangelizar não é fazer proselitismo: fazer proselitismo é algo pagão, não é religioso nem evangélico. Há uma boa palavra para aqueles que deixaram o rebanho e somos nós que temos a honra e o dever de lhas levar, de dizer aquela palavra. Pois é a Palavra, Jesus, que nos pede isto, aproximarmo-nos sempre, com o coração aberto, a todos, pois Ele é assim. Talvez sigamos e amemos Jesus há muito tempo, sem nunca nos perguntarmos se compartilhamos os seus sentimentos, se sofremos e arriscamos, em sintonia com o coração de Jesus, com este coração pastoral, próximo do coração pastoral de Jesus! Não se trata de fazer proselitismo, disse, para que outros sejam “dos nossos”, não, isto não é cristão: trata-se de amar a fim de que sejam filhos felizes de Deus. Peçamos na oração a graça de um coração pastoral, aberto, que se põe próximo de todos, para levar a mensagem do Senhor e também sentir as saudades de Cristo por cada um. Pois a nossa vida sem este amor que sofre e arrisca, não está bem: se nós cristãos não temos este amor que sofre e arrisca, correremos o perigo de nos apascentarmos unicamente a nós próprios. Os pastores que são pastores de si mesmos, e não pastores do rebanho, são penteadores de ovelhas “requintadas”. Não devemos ser pastores de nós mesmos, mas pastores de todos.
Papa Francisco
Catequese na audiência Geral 18.01.23
Catequeses - A paixão pela evangelização: o zelo apostólico do crente. O chamado ao apostolado (Mt 9,9-13)
Hoje começamos um novo ciclo de catequeses, dedicado a um tema urgente e decisivo para a vida cristã: a paixão pela evangelização, ou seja, o zelo apostólico. Trata-se de uma dimensão vital para a Igreja: com efeito, a comunidade dos discípulos de Jesus nasce apostólica, nasce missionária, não proselitista e desde o início deveríamos distinguir isto: ser missionária, ser apostólica, evangelizar não é o mesmo que fazer proselitismo, nada tem a ver uma coisa com a outra. Trata-se de uma dimensão vital para a Igreja, a comunidade dos discípulos de Jesus nasce apostólica e missionária. O Espírito Santo plasma-a em saída - a Igreja em saída, que sai – para que não fique fechada em si mesma, mas seja extrovertida, testemunha contagiosa de Jesus - a fé também se contagia - destinada a irradiar a sua luz até aos extremos confins da terra. Contudo, pode acontecer que o ardor apostólico, o desejo de alcançar os outros com o bom anúncio do Evangelho, diminua, se torne tíbio. Às vezes parece eclipsar-se, são cristãos fechados, não pensam nos outros. Mas quando a vida cristã perde de vista o horizonte da evangelização, o horizonte do anúncio, adoece: fecha-se em si mesma, torna-se autorreferencial, atrofia-se. Sem zelo apostólico, a fé esmorece. Ao contrário, a missão é o oxigénio da vida cristã: tonifica-a e purifica-a. Então, empreendamos um caminho à redescoberta da paixão evangelizadora, começando pelas Escrituras e pelo ensinamento da Igreja, para haurir das fontes o zelo apostólico. Depois, abordaremos algumas nascentes vivas, algumas testemunhas que reacenderam na Igreja a paixão pelo Evangelho, a fim de que nos ajudem a reavivar o fogo que o Espírito Santo quer fazer arder sempre em nós.
E hoje, gostaria de iniciar com um episódio evangélico de certo modo emblemático, que acabámos de ouvir: a chamada do apóstolo Mateus, e ele mesmo narra-a no seu Evangelho, no excerto que ouvimos (cf. 9, 9-13).
Tudo começa com Jesus, que “vê” - diz o texto - «um homem». Poucos viam Mateus como era: conheciam-no como aquele que estava «sentado no banco dos impostos» (v. 9). Com efeito, era cobrador de impostos: ou seja, alguém que cobrava os tributos em nome do império romano, que ocupava a Palestina. Em síntese, era um colaboracionista, um traidor do povo. Podemos imaginar o desprezo que o povo sentia por ele: era um “publicano”, assim se chamava. Mas, aos olhos de Jesus, Mateus é um homem, com as suas misérias e a sua grandeza. Estai atentos a isto: Jesus não se detém nos adjetivos, Jesus procura sempre o substantivo. “Este é um pecador, este é um tal pelo qual…” são adjetivos: Jesus vai à pessoa, ao coração, esta é uma pessoa, este é um homem, esta é uma mulher, Jesus vai à substância, ao substantivo, nunca ao adjetivo, põe de lado os adjetivos. E enquanto entre Mateus e o seu povo há distância – pois eles viam o adjetivo “publicano” - Jesus aproxima-se dele, porque cada homem é amado por Deus; “Até este desventurado?”. Sim, inclusive este desventurado, aliás Ele veio para este desventurado, diz o Evangelho: “Vim para os pecadores, não para os justos”. Este olhar de Jesus que é belíssimo, que vê o outro, quem quer que seja, como destinatário de amor, é o início da paixão evangelizadora. Tudo começa a partir deste olhar, que aprendemos com Jesus.
Podemos perguntar-nos: como vemos os outros? Quantas vezes vemos os seus defeitos e não as suas necessidades; quantas vezes etiquetamos as pessoas pelo que fazem ou por aquilo que pensam! Até como cristãos, dizemos: é ou não é dos nossos? Este não é o olhar de Jesus: Ele olha sempre para cada um com misericórdia, aliás, com predileção. E os cristãos são chamados a fazer como Cristo, olhando como Ele, especialmente para os chamados “distantes”. Efetivamente, a narração da chamada de Mateus conclui-se com Jesus que diz: «Não vim chamar os justos, mas os pecadores!» (v. 13). E se algum de nós se sente justo, Jesus permanece distante, Ele aproxima-se dos nossos limites e das nossas misérias, para nos curar.
Portanto, tudo começa pelo olhar de Jesus “Viu um homem”, Mateus. A isto segue-se - segunda passagem - um movimento. Antes do olhar, Jesus viu, depois a segunda passagem, o movimento. Mateus estava sentado no banco dos impostos; Jesus disse-lhe: «Segue-me!». E ele «levantou-se e seguiu-o» (v. 9). Observemos que o texto realça: “levantou-se”. Por que é tão importante este detalhe? Porque naquela época quem estava sentado tinha autoridade sobre os outros, que permaneciam em pé diante dele para o ouvir ou, como nesse caso, para pagar os impostos. Em síntese, quem estava sentado tinha poder. A primeira coisa que Jesus faz é separar Mateus do poder: do estar sentado para receber os outros, põe-no em movimento rumo aos outros, não recebe, não: vai até aos outros; fá-lo deixar uma posição de supremacia para o colocar no mesmo nível dos irmãos e para lhe abrir os horizontes do serviço. É isto que faz, e isto é fundamental para os cristãos: nós, discípulos de Jesus, nós, Igreja, permanecemos sentados à espera que as pessoas venham, ou sabemos levantar-nos, pôr-nos a caminho com os outros, procurar os outros? É uma posição não cristã dizer: “Mas, que venham, estou aqui, que venham”. Não, vai tu procura-los, dá tu o primeiro passo.
Um olhar – Jesus viu - , um movimento – levanta-se - e terceiro, uma meta. Depois de se levantar e seguir Jesus, para onde irá Mateus? Poderíamos imaginar que, tendo mudado a vida daquele homem, o Mestre o conduziu para novos encontros, novas experiências espirituais. Não, ou pelo menos não imediatamente. Em primeiro lugar, Jesus vai a sua casa; ali, Mateus prepara-lhe «um grande banquete», no qual «participa uma grande multidão de publicanos» (Lc 5, 29) isto é, pessoa como ele. Mateus regressa ao seu ambiente, mas volta mudado e com Jesus. O seu zelo apostólico não começa num lugar novo, puro, num lugar ideal, distante, mas lá, começa onde vive, com as pessoas que conhece. Eis a mensagem para nós: não devemos esperar ser perfeitos e ter percorrido um longo caminho atrás de Jesus para dar testemunho d’Ele; o nosso anúncio começa hoje, lá onde vivemos. E não começa procurando convencer os outros, convencer não: mas testemunhando todos os dias a beleza do Amor que olhou para nós e nos fez levantar e será esta beleza, comunicar esta beleza que convencerá as pessoas, não comunicar a nós, mas o Senhor. Somos aqueles que anunciam o Senhor, não anunciamos a nós mesmos, nem anunciamos um partido político, uma ideologia, não: anunciamos Jesus. É preciso pôr Jesus em contato com as pessoas, sem as convencer, mas deixar que o Senhor convença. Com efeito, como nos ensinou o Papa Bento XVI, «a Igreja não faz proselitismo. Ao contrário, ela desenvolve-se por atração» (Homilia na Missa de Inauguração da V Conferência Geral do Episcopado Latino-Americano e do Caribe, Aparecida, 13 de maio de 2007). Não esqueçais isto: quando virdes cristãos que fazem proselitismo, que fazem uma lista de gente que venha… estes nãos são cristãos, são pagãos disfarçados de cristãos mas o coração é pagão. A Igreja não cresce por proselitismo, cresce por atração. Recordo que certa vez num hospital de Buenos Aires foram embora as religiosas que ali trabalhavam porque eram poucas e não podiam levar em frente o hospital e veio uma comunidade de irmãs da Coreia e chegaram, pensemos por exemplo numa segunda-feira, não me lembro o dia. Tomaram posse da casa das religiosas do hospital e na terça-feira desceram para visitar os doentes, mas não falavam uma palavra em espanhol, falavam apenas o coreano e os doentes estavam felizes, pois comentavam: “Ótimas estas religiosas, boas, excelentes” – Mas o que te disse a irmã? “Nada, mas com o olhar falou-me, comunicou-me Jesus”. Não comuniquemos a nós mesmos, mas com o olhar, com os gestos, comuniquemos Jesus. Esta é a atração, o contrário do proselitismo.
Este testemunho atraente, este testemunho jubiloso é a meta para a qual Jesus nos conduz com o seu olhar de amor e com o movimento em saída que o seu Espírito suscita no coração. E podemos pensar se o nosso olhar se assemelha ao de Jesus para atrair as pessoas, para aproximar à Igreja. Pensemos nisto.
Papa Francisco
Catequese na audiência geral 11.01.22
Catequeses sobre o discernimento 14. O acompanhamento espiritual
Antes de começar esta catequese, gostaria que nos uníssemos a quantos, aqui ao lado, prestam homenagem a Bento XVI e dirigir o meu pensamento a ele, que foi um grande mestre de catequese. O seu pensamento perspicaz e gentil não foi autorreferencial, mas eclesial, pois sempre quis acompanhar-nos ao encontro com Jesus. Jesus, o Crucificado Ressuscitado, o Vivente e o Senhor, foi a meta para a qual o Papa Bento nos conduziu, levando-nos pela mão. Que ele nos ajude a redescobrir em Cristo a alegria de acreditar e a esperança de viver.
Com esta catequese de hoje concluímos o ciclo dedicado ao tema do discernimento, e fazemo-lo completando o discurso sobre as ajudas que podem e devem sustentá-lo: sustentar o processo de discernimento. Uma delas é o acompanhamento espiritual, importante sobretudo para o conhecimento de si que, como vimos, é uma condição indispensável para o discernimento. Olharmo-nos no espelho, sozinhos, nem sempre ajuda, pois podemos alterar a imagem. Ao contrário, olhar no espelho com o auxílio de outra pessoa, isto ajuda muito pois o outro diz-te a verdade – quanto é verdadeiro – e assim ajuda-te.
A graça de Deus em nós trabalha sempre na nossa natureza. Pensando numa parábola evangélica, podemos comparar a graça com a boa semente e a natureza com o terreno (cf. Mc 4, 3-9). Em primeiro lugar, é importante dar-se a conhecer, sem ter medo de compartilhar os aspetos mais frágeis, onde nos descobrimos mais sensíveis, fracos, ou receosos de ser julgados. Dar-se a conhecer, manifestar-se a si mesmo a uma pessoa que nos acompanhe no caminho da vida. Não que decida por nós, não: mas que nos acompanhe. Pois a fragilidade é, na realidade, a nossa verdadeira riqueza: somos ricos de fragilidade, todos; a verdadeira riqueza, que devemos aprender a respeitar e a aceitar, pois quando é oferecida a Deus, torna-nos capazes de ternura, de misericórdia e de amor. Ai daquelas pessoas que não se sentem frágeis: são duras, ditatoriais. Mas, as pessoas que com humildade reconhecem as próprias fragilidades são mais compreensivas com os outros. A fragilidade – posso dizer - torna-nos humanos. Não é por acaso que a primeira das três tentações de Jesus no deserto – ligada à fome – procura roubar-nos a fragilidade, apresentando-a como um mal do qual nos livrar, um impedimento a ser como Deus. Ao contrário, é o nosso tesouro mais precioso: com efeito, para nos tornarmos semelhante a Ele, Deus quis partilhar até ao fim precisamente a nossa fragilidade. Olhemos para o Crucificado: Deus que desceu até à fragilidade. Olhemos para o presépio que chega numa fragilidade humana grande. Ele partilhou a nossa fragilidade.
Se for dócil ao Espírito Santo, o acompanhamento espiritual ajuda a desmascarar equívocos até graves na consideração de nós mesmos e na relação com o Senhor. O Evangelho apresenta vários exemplos de diálogos esclarecedores e libertadores feitos por Jesus. Pensemos, por exemplo, naqueles com a Samaritana, que nós lemos, lemos, e sempre há esta sabedoria e ternura de Jesus; pensemos naquele com Zaqueu, com a pecadora, pensemos com Nicodemos e com os discípulos de Emaús: o modo de se aproximar do Senhor. As pessoas que se encontram verdadeiramente com Jesus não têm medo de lhe abrir o coração, de apresentar a própria vulnerabilidade, a própria inadequação, a própria fragilidade. Deste modo, a partilha de si torna-se uma experiência de salvação, de perdão gratuitamente recebido.
Narrar diante de outra pessoa o que vivemos ou o que procuramos ajuda a esclarecer a nós próprios, trazendo à luz os numerosos pensamentos que habitam em nós, e que muitas vezes nos inquietam com os seus insistentes refrães. Quantas vezes, nos momentos obscuros, vêm-nos os pensamentos assim: “Errei tudo, sou inútil, ninguém me compreende, nunca serei bem-sucedido, estou destinado ao fracasso”, quantas vezes nos vieram estes pensamentos. Pensamentos falsos e venenosos, que o confronto com o outro ajuda a desmascarar, de tal modo que nos possamos sentir amados e estimados pelo Senhor como somos, capazes de fazer coisas boas por Ele. Descobrimos com surpresa diferentes formas de ver a realidade, sinais de bem sempre presentes em nós. É verdade, podemos partilhar as nossas fragilidades com o outro, com aquele que nos acompanha na vida, na vida espiritual, o mestre de vida espiritual, quer leigo quer sacerdote e dizer: “Olha o que me acontece: sou um desventurado, estão a acontecer-me estas coisas”. E aquele que acompanha responde: “Sim, todos nós passamos por estes momentos”. Isto ajuda-nos a esclarecer bem e ver de onde chegam as raízes e deste modo superá-las.
Aquele ou aquela que acompanha – acompanhador ou acompanhadora – não se substitui ao Senhor, não faz o trabalho no lugar da pessoa acompanhada, mas caminha ao seu lado, encoraja-a a ler o que se move no seu coração, o lugar por excelência onde o Senhor fala. O acompanhador espiritual, que chamamos diretor espiritual – não gosto deste termo, prefiro acompanhador espiritual, é melhor – é aquele que te diz: “Pois bem, olha para este lado, para aquele lado”, a tua atenção é atraída para aspetos que talvez passam; ajuda-te a compreender melhor os sinais dos tempos, a voz do Senhor, a voz do tentador, a voz das dificuldades que não consegues superar. Por isso é muito importante não caminhar sozinho. Há um ditado da sabedoria africana – pois eles possuem aquela mística da tribo – que diz: “Se queres chegar depressa, vai sozinho; se queres chegar seguro, vai com os outros”, acompanhado, vai com o teu povo. É importante. Na vida espiritual é melhor fazer-se acompanhar por alguém que conheça as nossas coisas e nos ajude. E este é o acompanhamento espiritual.
O acompanhamento pode ser frutuoso se, de ambos os lados, se experimentar a filiação e a fraternidade espiritual. Descobrimos que somos filhos de Deus no momento em que nos descobrimos irmãos, filhos do mesmo Pai. Por isso, é indispensável estar inserido numa comunidade a caminho. Não estamos sozinhos, pertencemos a um povo, a uma nação, a uma cidade que caminha, a uma Igreja, a uma paróquia, a este grupo... a uma comunidade a caminho. Não vamos ao encontro do Senhor sozinhos: isto não está bem. Devemos compreendê-lo bem. Como na narração evangélica do paralítico, muitas vezes somos sustentados e curados graças à fé de outrem (cf. Mc 2, 1-5) que nos ajuda a ir em frente, pois todos nós às vezes temos paralisias interiores e é necessário alguém que nos auxilie a superar aquele conflito com uma ajuda. Não se vai ao Senhor sozinhos, recordemos bem isto; outras vezes, somos nós que assumimos este compromisso em nome de um irmão ou de uma irmã, e somos acompanhadores para ajudar aquele outro. Sem experiência de filiação e de fraternidade, o acompanhamento pode prestar-se a expetativas irreais, a equívocos e a formas de dependência que deixam a pessoa no estado infantil. Acompanhamento, mas como filhos de Deus e irmãos entre nós.
A Virgem Maria é mestra de discernimento: fala pouco, ouve muito e preserva no coração (cf. Lc 2, 19). As três atitudes de Nossa Senhora: falar pouco, ouvir muito e preservar no coração. E as poucas vezes que fala, deixa a marca. Por exemplo, no Evangelho de João, há uma frase muito curta, pronunciada por Maria, que é uma exortação para os cristãos de todos os tempos: “Fazei o que Ele vos disser!” (cf. 2, 5). É curioso: certa vez ouvi uma senhora idosa muito boa, muito piedosa, não tinha estudado teologia, era muito simples. E disse-me: “O senhor sabe qual é o gesto que Nossa Senhora faz sempre?”. Não sei: acaricia-te, chama-te... “Não: o gesto que faz Nossa Senhora é este” [indica com o dedo]. Não entendi, e perguntei: “O que significa?”. E a idosa respondeu-me: “Indica sempre Jesus”. Isto é bonito: Nossa Senhora nada detém para si, indica Jesus. Fazer o que Jesus nos disser! Assim é Nossa Senhora. Maria sabe que o Senhor fala ao coração de cada um e pede para traduzir esta palavra em ações e escolhas. Ela soube fazê-lo mais do que ninguém e, com efeito, está presente nos momentos fundamentais da vida de Jesus, especialmente na hora suprema da morte na cruz.
Amados irmãos e irmãs, concluímos esta série de catequeses sobre o discernimento: o discernimento é uma arte, uma arte que se pode aprender e que tem as suas regras próprias. Se for bem aprendido, ele permite viver a experiência espiritual de forma cada vez mais bonita e ordenada. O discernimento é sobretudo um dom de Deus, que deve ser sempre pedido, sem jamais presumir ser perito e autossuficiente. Senhor, concedei-me a graça de discernir nos momentos da vida, o que devo fazer, o que devo compreender. Dai-me a graça de discernir, e concedei-me a pessoa que me ajude a discernir.
A voz do Senhor pode ser sempre reconhecida, tem um estilo único, é uma voz que pacifica, encoraja e tranquiliza nas dificuldades. O Evangelho no-lo recorda constantemente: «Não temas!» (Lc 1, 30), que linda esta palavra do anjo a Maria depois da ressurreição de Jesus; «Não tenhas medo!». «Não temais!» é precisamente o estilo do Senhor: «não temais». «Não temais!», repete o Senhor também a nós hoje; «não temais»: se confiarmos na sua palavra, desempenharemos bem o jogo da vida, e poderemos ajudar outros. Como diz o Salmo, a sua Palavra é lâmpada para os nossos passos e luz para o nosso caminho (cf. 119, 105).
Papa Francisco
04.01.22
Catequese na audiência geral
Esta noite, que significado tem ainda para as nossas vidas? Transcorridos dois milénios desde o nascimento de Jesus, após tantos Natais comemorados no meio de ornamentações e prendas, depois de tanto consumismo que envolveu o mistério que celebramos, corremos um risco: o de sabermos muitas coisas sobre o Natal, mas esquecermos o seu significado. Como voltar a encontrar o significado do Natal? E sobretudo aonde ir procurá-lo? O Evangelho do nascimento de Jesus parece escrito precisamente para isto: tomar-nos pela mão e levar-nos lá onde Deus quer. Sigamos o Evangelho!
De facto, começa com uma situação parecida com a nossa: todos estavam preocupados e atarefados com um evento importante em desenvolvimento – o grande recenseamento – que exigia muitos preparativos. Neste sentido, o clima de então era semelhante ao que nos envolve, hoje, no Natal. Mas a narração do Evangelho distancia-se daquele cenário mundano. Deixa de lado rapidamente aquela imagem para enquadrar e insistir noutra realidade; detém-se num pequeno objeto, aparentemente insignificante, que menciona três vezes e para o qual convergem os protagonistas da narração: primeiro Maria, que recostou Jesus «numa manjedoura» (Lc 2, 7); depois os anjos, que anunciam aos pastores «um menino envolto em panos e deitado numa manjedoura» (2, 12); em seguida os pastores, que encontram «o menino deitado na manjedoura» (2, 16). A manjedoura! Para voltar a encontrar o sentido do Natal, é preciso fixar nela o olhar. E por que é tão importante a manjedoura? Porque é o sinal, não casual, com que Cristo entra em cena no mundo. É o manifesto com que Se apresenta, o modo como Deus nasce na história para fazer renascer a história. Que nos quer dizer então a manjedoura? Quer-nos dizer pelo menos três coisas: proximidade, pobreza e concretismo.
1. Proximidade. A manjedoura serve para deixar o alimento mais próximo da boca e assim consumi-lo mais depressa. Deste modo pode simbolizar um aspeto da humanidade: a voracidade em consumir. Pois, enquanto os animais no estábulo consomem alimento, os homens no mundo, esfomeados de poder e dinheiro, consomem mesmo os seus vizinhos, os seus irmãos. Tantas guerras! Em tantos lugares, ainda hoje, são espezinhadas a dignidade e a liberdade! E as principais vítimas da voracidade humana são sempre os frágeis, os vulneráveis. Também neste Natal, uma humanidade insaciável de dinheiro, insaciável de poder e insaciável de prazer não dá lugar – como sucedeu com Jesus (cf. 2, 7) – aos mais pequenos, a tantos nascituros, pobres, abandonados. Penso sobretudo nas crianças devoradas por guerras, pobreza e injustiça. Mas é precisamente lá que vem Jesus, menino na manjedoura do descarte e da rejeição. N’Ele, menino de Belém, está cada criança. E está o convite a olhar a vida, a política e a história com os olhos das crianças.
Na manjedoura incómoda da rejeição, acomoda-Se Deus: vem para ali, porque nela está o problema da humanidade, a indiferença gerada pela pressa devoradora de possuir e consumir. Cristo nasce lá e, naquela manjedoura, descobrimo-Lo próximo. Vem aonde se devora o alimento para Se fazer nosso alimento. Deus não é um pai que devora os seus filhos, mas o Pai que, em Jesus, nos faz seus filhos e nutre de ternura. Vem tocar-nos o coração, dizendo que a única força que muda o curso da história é o amor. Não permanece distante nem permanece poderoso, mas faz-Se próximo e humilde; Ele, que estava sentado no Céu, deixa-Se recostar numa manjedoura.
Irmão, irmã, nesta noite Deus aproxima-Se de ti, porque Se importa contigo. Da manjedoura, como alimento para a tua vida, diz-te: «Se te sentes consumido pelos acontecimentos, se o teu sentimento de culpa e a tua inadequação te devoram, se tens fome de justiça, Eu – o teu Deus – estou contigo. Sei aquilo que tu vives, experimentei-o naquela manjedoura. Conheço as tuas misérias e a tua história. Nasci para te dizer que estou, e sempre estarei, próximo de ti». A manjedoura do Natal, primeira mensagem dum Deus menino, diz-nos que Ele está connosco, ama-nos, procura-nos. Coragem! Não te deixes vencer pelo medo, a resignação, o desânimo. Deus nasce numa manjedoura para te fazer renascer precisamente lá onde pensavas ter tocado o fundo. Não há mal, não há pecado de que Jesus não queira e não possa salvar-te. Natal significa dizer que Deus está próximo: renasça a confiança!
2. Além de proximidade, a manjedoura de Belém fala-nos também de pobreza. Na realidade, à volta duma manjedoura, não há grande coisa: tojo, qualquer animal e pouco mais. As pessoas hospedavam-se no quentinho dos albergues, não no estábulo frio duma pensão; mas aqui nasceu Jesus, e a manjedoura lembra-nos que nada mais havia em redor senão quem Lhe queria bem: Maria, José e alguns pastores… todos, pobres, irmanados pelo afeto e a maravilha, não por riquezas e grandes possibilidades. E assim a pobre manjedoura faz emergir as verdadeiras riquezas da vida: não o dinheiro nem o poder, mas as relações e as pessoas.
E a primeira pessoa, a primeira riqueza é precisamente Jesus. Mas nós… queremos mesmo estar ao seu lado? Aproximamo-nos d’Ele, amamos a sua pobreza? Ou preferimos cingir-nos comodamente aos nossos interesses? Sobretudo visitamo-Lo onde Se encontra, isto é, nas pobres manjedouras do nosso mundo? É lá que Ele está presente. E nós somos chamados a ser uma Igreja que adora Jesus pobre, e serve Jesus nos pobres. Como disse um santo bispo: «A Igreja apoia e abençoa os esforços tendentes a transformar as estruturas de injustiça colocando apenas uma condição: que as transformações sociais, económicas e políticas redundem em autêntico benefício para os pobres» (O. A. Romero, Mensagem Pastoral para o Novo Ano, 01/I/1980). Certamente não é fácil deixar o tépido calor do mundanismo para abraçar a nua beleza da gruta de Belém, mas lembremo-nos de que, sem os pobres, verdadeiramente não é Natal. Sem eles, festeja-se o Natal, mas não o de Jesus... Irmãos, irmãs, no Natal Deus é pobre: renasça a caridade!
3. Chegamos assim ao último ponto: a manjedoura fala-nos de concretismo. De facto, um bebé numa manjedoura constitui uma cena chocante, até mesmo uma cena dura. Lembra-nos que Deus Se fez verdadeiramente carne. Por isso, a seu respeito, já não bastam teorias, belos pensamentos e devotos sentimentos. Jesus, que nasce pobre, viverá pobre e morrerá pobre, não fez muitos discursos sobre a pobreza, mas viveu-a, em toda a sua profundidade, por nós. Da manjedoura à cruz, o seu amor por nós foi palpável, concreto: do nascimento à morte, o filho do carpinteiro abraçou a aspereza da madeira, a aspereza da nossa existência. Não nos amou com palavras, não nos amou por divertimento!
Por conseguinte não Se contenta com aparências. Não quer apenas bons propósitos, Ele que Se fez carne. Ele que nasceu na manjedoura, procura uma fé concreta, feita de adoração e caridade, não de palavreado e exterioridade. Ele, que Se deixa colocar na manjedoura nu e, nu, O colocarão na cruz, pede-nos verdade, descendo à realidade nua e crua das coisas, abandonando ao pé da manjedoura desculpas, justificações e hipocrisias. Ele, que foi ternamente envolvido em panos por Maria, quer que nos revistamos de amor. Deus não quer aparência, mas concretismo. Não deixemos passar este Natal, irmãos e irmãs, sem fazer algo de bom. Uma vez que é a festa d’Ele, o seu aniversário, ofereçamos-Lhe prendas de que Ele gosta! No Natal, Deus é concreto: em seu nome, façamos renascer um pouco de esperança em quem a perdeu!
Jesus, contemplamo-Vos recostado na manjedoura. Vemo-Vos tão próximo, perto de nós para sempre… Obrigado, Senhor! Vemo-Vos pobre, ensinando-nos que a verdadeira riqueza não está nas coisas, mas nas pessoas, sobretudo nos pobres: desculpai, Senhor, se não Vos reconhecemos e servimos neles. Vemo-Vos concreto, porque concreto é o vosso amor por nós: Jesus, ajudai-nos a dar carne e vida à nossa fé. Amem.
Papa Francisco
24.12.2022
Catequeses sobre o discernimento 13.
Continuemos – estão a acabar – as catequeses sobre o discernimento, e quem seguiu estas catequeses até agora talvez possa pensar: que prática complicada é discernir! Na realidade, é a vida que é complicada e, se não aprendermos a lê-la, complicada como é, corremos o risco de a desperdiçar, levando-a em frente com expedientes que acabam por nos aviltar.
No nosso primeiro encontro vimos que sempre, todos os dias, quer queiramos quer não, realizamos atos de discernimento, naquilo que comemos, lemos, no trabalho, nos relacionamentos, em tudo. A vida coloca-nos sempre diante de escolhas, e se não as fizermos de maneira consciente, no final é a vida que escolherá por nós, levando-nos para onde não gostaríamos de ir.
No entanto, o discernimento não se faz sozinhos. Hoje, abordemos mais especificamente algumas ajudas que podem facilitar este exercício do discernimento, indispensável da vida espiritual, embora de certo modo já as tenhamos encontrado no decurso destas catequeses. Mas um resumo ajudar-nos-á muito.
Uma primeira ajuda indispensável é o confronto com a Palavra de Deus e a doutrina da Igreja. Elas ajudam-nos a ler o que se move no coração, aprendendo a reconhecer a voz de Deus e a distingui-la de outras vozes, que parecem impor-se à nossa atenção, mas que no final nos deixam confusos. A Bíblia adverte-nos que a voz de Deus ressoa na calma, na atenção, no silêncio. Pensemos na experiência do profeta Elias: o Senhor não lhe fala no vento que fende as rochas, nem no fogo ou no tremor de terra, mas fala-lhe numa brisa suave (cf. 1 Rs 19, 11-12). É uma imagem muito bonita que faz com que compreendamos o modo como Deus fala! A voz de Deus não se impõe, a voz de Deus é discreta, respeitosa, permito-me dizer: a voz de Deus é humilde e, precisamente por isso, pacificadora. E somente na paz podemos entrar no íntimo de nós próprios e reconhecer os desejos autênticos que o Senhor colocou no nosso coração. E muitas vezes não é fácil entrar naquela paz do coração, pois andamos atarefados, com isto, aqui e ali, o dia inteiro... Mas, por favor, acalma-te um pouco, entra em ti mesmo, em ti mesma. Dois minutos, pára. Presta atenção ao que o teu coração sente. Mas façamos isto, irmãos e irmãs, ajudar-nos-á muito, pois naquele momento de calma imediatamente a voz de Deus que nos diz: “Mas, repara, olha para isto, bom isto que estás a fazer...”. Deixemos na calma que venha de repente a voz de Deus. Espera-nos para isto...
Para quem crê, a Palavra de Deus não é simplesmente um texto para ler, a Palavra de Deus é uma presença viva, é uma obra do Espírito Santo que conforta, instrui, dá luz, força, alívio e gosto de viver. Ler a Bíblia, ler um trecho, um ou dois trechos pequenos da Bíblia, são como pequenos telegramas de Deus que te chegam logo ao coração. A Palavra de Deus é – e não exagero – um pouco como verdadeira antecipação do paraíso. Quem o compreendeu bem foi um grande santo e pastor, Ambrósio, aquele bispo de Milão, que escreveu: «Quando leio a Divina Escritura, Deus volta a passear no paraíso terrestre» (Carta, 49, 3). Com a Bíblia abrimos a porta a Deus que passeia. Interessante...
Esta relação afetiva com a Bíblia, com a Escritura, com o Evangelho, leva a viver uma relação afetiva com o Senhor Jesus, não tenhais medo disto! O coração fala ao coração, e esta é outra ajuda indispensável e não é óbvia. Muitas vezes podemos ter uma ideia deturpada de Deus, considerando-o como um juiz cruel e severo, pronto para nos apanhar em flagrante, com a corda pronta para nos punir. Jesus, ao contrário, revela-nos um Deus cheio de compaixão e ternura, pronto a sacrificar-se para vir ao nosso encontro, exatamente como o pai da parábola do filho pródigo (cf. Lc 15, 11-32). Certa vez, alguém perguntou – não sei se à mãe ou à avó, contaram-me – “Mas o que devo fazer neste momento?” – “Ouve Deus, Ele dir-te-á o que deverás fazer. Abri o coração a Deus”: um bom conselho. Recordo uma vez, numa peregrinação de jovens, que se faz uma vez por ano ao Santuário de Luján, a 70 km de Buenos Aires: emprega-se o dia inteiro para chegar lá; eu tinha o hábito de confessar durante a noite. Aproximou-se um rapaz, de 22 anos mais ou menos, tudo, com muitas coisas [kit], tatuagens... “Meu Deus – pensei – o que será isto?”, não? E disse-me: “O senhor sabe, vim porque tenho um problema grave, contei-o à minha mãe e ela disse-me: “Vai ter com Nossa Senhora, faz a peregrinação, e Nossa Senhora responder-te-á”. E vim. Tive contacto com a Bíblia, aqui, ouvi a Palavra de Deus que me comoveu o coração e devo fazer isto, isto e isto”. A Palavra de Deus faz comover o coração e muda a tua vida. E assim vi muitas coisas, isto, tantas vezes. Pois Deus não deseja destruir-nos, Deus quer que sejamos mais fortes, melhores a cada dia. Quem permanece diante do Crucificado sente uma nova paz, aprende a não ter medo de Deus, pois Jesus na cruz não assusta ninguém, é a imagem do desamparo total e ao mesmo tempo do amor mais completo, capaz de enfrentar todas as provações por nós. Os santos sempre tiveram uma predileção por Jesus Crucificado. A narração da Paixão de Jesus é a via mestra para nos confrontarmos com o mal sem sermos esmagados por ele; nela não há julgamento nem sequer resignação, porque é permeada por uma luz maior, a luz da Páscoa, que permite ver naqueles terríveis feitos um desígnio maior, que nenhum impedimento, obstáculo ou fracasso pode frustrar. A Palavra de Deus sempre te faz olhar para o outro lado: isto é, há a cruz, aqui, é terrível, mas há o outro lado, uma esperança, uma ressurreição. A Palavra de Deus abre-te todas as portas, pois Ele é a porta, é o Senhor. Peguemos no Evangelho, peguemos a Bíblia nas mãos: cinco minutos por dia, não mais. Levai um Evangelho convosco, na bolsa, e quando estiverdes de viagem pegai nele e lede-o, durante o dia, um pequeno trecho, deixai que a Palavra de Deus se aproxime do coração. Fazei isto e vereis como mudará a vossa vida. Com a proximidade à Palavra de Deus. “Sim, Padre, mas estou habituado a ler a Vida dos Santos”: isto faz bem, faz bem, mas não deixes a Palavra de Deus. Leva o Evangelho contigo, por dia, um minuto...
É muito bonito pensar na vida com o Senhor como uma relação de amizade que cresce dia após dia. A amizade com Deus – pesastes nisto? Mas, é a estrada! Pensemos em Deus, ele dá-nos... Deus não nos dá tanto, não? Deus ama-nos, quer-nos como amigos! A amizade com Deus tem a capacidade de transformar o coração; é um dos grandes dons do Espírito Santo, a piedade, que nos torna capazes de reconhecer a paternidade de Deus. Temos um Pai terno e carinhoso, um Pai que nos ama, que sempre nos amou: quando experimenta isto, o coração dissolve-se e as dúvidas, os receios, os sentimentos de indignidade desaparecem. Nada se pode opor a este amor do encontro com o Senhor!
E isto lembra-nos outra grande ajuda, o dom do Espírito Santo, que está presente em nós, e que nos instrui, torna viva a Palavra de Deus que lemos, sugere novos significados, abre portas que pareciam fechadas, indica sendas de vida onde parecia existir unicamente escuridão e confusão. Pergunto-vos: rezais ao Espírito Santo? Mas quem é ele? O Grande Desconhecido? Nós rezamos ao Pai, sim, o Nosso Pai, rezamos a Jesus, mas esquecemos o Espírito! Certa vez, fazendo a catequese às crianças, perguntei: “Quem de vós sabe quem é o Espírito Santo?”. E um menino: “Eu sei!” – “E quem é?” – “O paralítico”, disse-me! Ele tinha ouvido “o Paráclito”, e pensava que fosse um paralítico. E muitas vezes – isto fez-me pensar – para nós o Espírito Santo está ali, como se fosse uma Pessoa que não conta. O Espírito Santo é aquele que te dá vida para a alma! Deixa-o entrar. Falai com o Espírito assim como falais com o Pai, como falais com o Filho: falai com o Espírito Santo – que nada tem de paralítico! Ele tem a força da Igreja, é aquele que te leva em frente. O Espírito Santo é discernimento em ação, presença de Deus em nós, é o dom, a maior dádiva que o Pai garante a quantos o pedem (cf. Lc 11, 13). E Jesus como o chama? “O dom”: “Permanecei aqui em Jerusalém na espera do dom de Deus”, que é o Espírito Santo. É interessante levar a vida na amizade com o Espírito Santo: Ele muda-te, Ele faz-te crescer.
A Liturgia das Horas dá início aos principais momentos de oração do dia, com esta invocação: «Deus, vinde em nosso auxílio. Senhor, socorrei-nos e salvai-nos». «Senhor, socorrei-me!», porque sozinho não posso continuar, não posso amar, não posso viver... Esta invocação de salvação é o pedido irreprimível que brota do íntimo do nosso ser. O discernimento tem a finalidade de reconhecer a salvação realizada pelo Senhor na minha vida, lembra-me que nunca estou só e que, se luto, é porque a aposta é importante. O Espírito Santo está sempre conosco. “Oh, Padre, fiz algo negativo, devo ir confessar-me, não posso fazer nada...”. Mas, fizeste algo mau? Fala ao Espírito que está contigo e diz-lhe: “Ajudai-me, fiz algo ruim...”. Mas não canceles o diálogo com o Espírito Santo. “Padre, estou em pecado mortal”: não importa, fala com Ele assim ajudar-te-á a perdoar-te. Nunca deixes este diálogo com o Espírito Santo. E com estas ajudas que o Senhor nos oferece, não devemos ter medo! Em frente, coragem e com alegria!
Papa Francisco
Catequese na audiência geral 21.12.22
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Catequeses sobre o discernimento 12. A vigilância
Já estamos na fase final deste percurso de catequeses sobre o discernimento. Começamos com o exemplo de Santo Inácio de Loyola; depois consideramos os elementos do discernimento - isto é, a oração, o conhecimento de si, o desejo e o “livro da vida” - e meditamos sobre a desolação e a consolação, que formam a sua “matéria”; e depois chegamos à confirmação da escolha feita.
Nesta altura considero necessário inserir a chamada a uma atitude essencial, a fim de que não se perca todo o trabalho levado a cabo para discernir o melhor e tomar a boa decisão, e esta seria a atitude da vigilância. Refletimos sobre o discernimento, a consolação e a desolação; escolhemos uma coisa... tudo está bem, mas agora, vigiar: a atitude da vigilância. Pois efetivamente, como ouvimos na passagem do Evangelho que foi lida, o risco existe. O risco existe, e é que o “desmancha-prazeres”, ou seja, o Maligno, possa arruinar tudo, fazendo-nos voltar ao ponto de partida, aliás, a uma condição ainda pior. É o que acontece, por isso é preciso estar atentos e vigiar. Eis por que é indispensável estar vigilante. Por conseguinte, hoje pareceu-me oportuno evidenciar esta atitude, de que todos nós precisamos para que o processo de discernimento tenha bom êxito e permaneça ali.
Com efeito, na sua pregação, Jesus insiste muito sobre o facto de que o bom discípulo é vigilante, não adormece, não se deixa tomar pela segurança excessiva quando tudo corre bem, mas permanece atento e pronto para cumprir o seu dever.
Por exemplo, no Evangelho de Lucas, Jesus diz: «Estejam cingidos os vossos rins, e acesas as vossas lâmpadas; sede semelhantes àqueles que esperam o seu senhor quando ele regressar de uma festa, para que quando ele vier e bater à porta, eles lha abram imediatamente. Bem-aventurados os servos aos quais o senhor encontrar vigilantes quando vier!» (12, 35-37).
Vigiar para salvaguardar o nosso coração e compreender o que acontece dentro. Trata-se da disposição de espírito dos cristãos que aguardam a vinda final do Senhor; mas pode ser entendida também como a atitude comum a ter na conduta de vida, de tal modo que as nossas boas escolhas, feitas às vezes depois de um discernimento exigente, possam continuar de maneira perseverante e coerente e dar fruto.
Se faltar a vigilância, como dissemos, será muito forte o risco de que tudo se perca. Não se trata de um perigo de ordem psicológica, mas sim espiritual, uma verdadeira cilada do espírito maligno. Com efeito, ele aguarda o momento exato em que nos sentimos demasiado seguros de nós próprios, este é o perigo: “Estou seguro de mim mesmo, venci, agora estou bem...”, este é o momento que o espírito maligno espera, quando tudo corre bem, quando as coisas vão “às mil maravilhas” e temos, como se diz, “o vento em popa”. Efetivamente, na breve parábola evangélica que ouvimos, afirma-se que o espírito impuro, quando regressa à casa de onde tinha saído, «encontra-a vazia, limpa e adornada» (Mt 12, 44). Tudo está no lugar, tudo está em ordem, mas onde se encontra o dono da casa? Não está presente. Não há ninguém que vigie sobre ela e a salvaguarde. Eis o problema! O dono da casa não está presente, saiu, distraiu-se; ou está em casa, mas adormeceu, e portanto é como se não estivesse presente. Não está vigilante, não está atento, pois sente-se demasiado seguro de si mesmo e perdeu a humildade de salvaguardar o próprio coração. Devemos preservar sempre a nossa casa, o nosso coração, e não nos devemos distrair e ir... pois o problema é este, como dizia a Parábola.
Então, o espírito maligno pode aproveitar-se e regressar àquela casa. Contudo, o Evangelho diz que não regressa sozinho, mas com «outros sete espíritos piores do que ele» (v. 45). Uma companhia de malfeitores, um quadrilha de bandidos. Mas - perguntemo-nos - como é possível que possam entrar sem ser perturbados? Como é que o senhor não se apercebe? Não fora porventura capaz de fazer o discernimento e de os expulsar? Não recebera até as felicitações dos seus amigos e vizinhos por aquela casa tão bonita e elegante, tão arrumada e limpa? Sim, mas talvez precisamente por isso apaixonou-se demasiado pela casa, ou seja, por ele mesmo, e deixou de esperar o Senhor, de aguardar a vinda do Esposo; talvez, por medo de estragar aquela ordem, já não recebesse ninguém, não convidasse os pobres, os desabrigados, aqueles que incomodam... Uma coisa é certa: tem a ver com o mau orgulho, com a presunção de estar certo, de ser bom, de estar bem. Muitas vezes ouvimos dizer: “Sim, antes eu era malvado, depois converti-me e agora a casa está em ordem, graças a Deus, fica tranquilo quanto a isto...”. Quando confiamos demasiado em nós próprios e não na graça de Deus, então o Maligno encontra a porta aberta. Em seguida, organiza a expedição e toma posse daquela casa. E Jesus conclui: «A condição daquele homem torna-se pior do que a primeira» (v. 45).
Mas o senhor não se apercebe? Não, porque estes são os demónios educados: entram sem que te dês conta, batem à porta, são gentis. “Não está bem, vai, vai, entra...” e depois acabam por mandar na tua alma. Cuidado com estes diabinhos, com estes demónios: o diabo é educado quando finge ser um grande senhor. Pois entra com a nossa para sair com a sua. É preciso proteger a casa deste engano de demónios educados. E a mundanidade espiritual segue sempre este caminho.
Caros irmãos e irmãs, parece impossível, mas é assim! Muitas vezes perdemos, somos derrotados nas batalhas, devido a esta falta de vigilância. Muitas vezes, talvez o Senhor tenha concedido tantas graças e no final não fomos capazes de perseverar nesta graça e perdemos tudo, porque nos falta a vigilância: não protegemos as portas. E depois fomos enganados por alguém que vem, educado, que entra e diz olá... o diabo comporta-se assim! Cada um pode até verificá-lo, reconsiderando a sua história pessoal. Não é suficiente fazer um bom discernimento e uma boa escolha. Não, não é suficiente: é preciso permanecer vigilante, preservar esta graça que Deus nos concedeu, mas vigiar, pois podes dizer-me: “Mas quando vejo alguma desordem, apercebo-me imediatamente que é o diabo, que é uma tentação...”, sim, mas desta vez vem disfarçado de anjo: o diabo sabe disfarçar-se de anjo, entra com palavras educadas, convence-te e no fim é pior do que no início... Devemos permanecer vigilantes, velar sobre o coração. Se hoje eu perguntasse a cada um de nós, e também a mim mesmo: “O que acontece no teu coração?”. Talvez não saibamos dizer tudo: diremos uma ou duas coisas, mas não tudo. Velar sobre o coração, pois a vigilância é sinal de sabedoria, é sobretudo sinal de humildade, pois temos medo de cair, e a humildade é a via mestra da vida cristã.
Papa Francisco
Catequese na audiência geral 14.12.22
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Catequeses sobre o discernimento 11. A confirmação da boa escolha
No processo de discernimento, é importante permanecer atento também à fase que se segue imediatamente à decisão tomada, para captar os sinais que a confirmam, ou aqueles que a desmentem. Devo tomar uma decisão, faço o discernimento a favor ou contra, sentimentos, rezo... depois, termina este processo e tomo a decisão, e em seguida vem aquela parte em que devemos estar atentos, ver. Pois na vida há decisões que não são boas e existem sinais que as desmentem, enquanto as boas as confirmam.
Com efeito, vimos que o tempo é um critério fundamental para reconhecer a voz de Deus no meio de muitas outras vozes. Somente Ele é Senhor do tempo: é uma marca de garantia da sua originalidade, que o diferencia das imitações que, sem sucesso, falam em seu nome. Um dos sinais distintivos do espírito bom é que ele comunica uma paz que perdura no tempo. Se fizeres um aprofundamento e depois tomares a decisão, e se isto te der uma paz que perdura no tempo, este é um bom sinal, pois indica que o caminho foi bom. Uma paz que traz harmonia, unidade, fervor, zelo. Sais do processo de aprofundamento melhor do que entraste.
Por exemplo, se eu tomar a decisão de dedicar meia hora a mais à oração, e depois sentir que vivo melhor os outros momentos do dia, que estou mais tranquilo, menos ansioso, desempenho o trabalho com mais atenção e prazer, até as relações com algumas pessoas difíceis se tornam mais fáceis..., todos estes são sinais importantes que vão a favor da bondade da decisão tomada. A vida espiritual é circular: a bondade de uma escolha beneficia todos os âmbitos da nossa vida, porque é participação na criatividade de Deus.
Podemos reconhecer alguns aspetos importantes, que ajudam a ler o tempo que se segue à decisão como possível confirmação da sua bondade, pois o tempo que se segue confirma a bondade da decisão. De certo modo, já descobrimos estes aspetos importantes no decurso destas catequeses, mas agora elas encontram uma sua ulterior aplicação.
Um primeiro aspeto consiste em saber se a decisão é considerada como um possível sinal de resposta ao amor e à generosidade que o Senhor tem em relação a mim. Não nasce do medo, não nasce de uma chantagem afetiva, nem de uma constrição, mas nasce da gratidão pelo bem recebido, que leva o coração a viver com liberalidade a relação com o Senhor.
Outro elemento importante é a consciência de se sentir à-vontade na vida – aquela tranquilidade, “estou à-vontade” - e de se sentir parte de um desígnio maior, para o qual se deseja oferecer a própria contribuição. Na Praça de São Pedro, há dois pontos exatos - os focos da elipse - de onde se veem as colunas de Bernini perfeitamente alinhadas. De maneira análoga, o homem pode reconhecer que encontrou o que procura, quando o seu dia se torna mais ordenado, sente uma integração crescente entre os seus múltiplos interesses, estabelece uma hierarquia correta de importância e consegue viver tudo isto com facilidade, enfrentando com renovadas energia e força de espírito as dificuldades que se apresentam. Estes são sinais de que tomaste uma boa decisão.
Por exemplo, outro bom sinal de confirmação é quando se permanece livre em relação ao que se decidiu, disposto a pô-lo novamente em questão, até a renunciar ao mesmo perante possíveis negações, procurando encontrar nelas um eventual ensinamento do Senhor. Não porque Ele nos quer privar do que nos é querido, mas para o viver com liberdade, sem apego. Só Deus sabe o que é verdadeiramente bom para nós. A possessividade é inimiga do bem e mata o afeto, prestai atenção a isto, a possessividade é inimiga do bem, mata o afeto: os numerosos casos de violência no âmbito doméstico, de que infelizmente temos notícias frequentes, surgem quase sempre da pretensão de possuir o afeto do outro, da busca de uma segurança absoluta que mata a liberdade e sufoca a vida, tornando-a um inferno.
Só podemos amar na liberdade, e foi por isso que o Senhor nos criou livres, livres até de lhe dizer não. Oferecer-lhe o que temos de mais querido é interesse nosso, permite-nos vivê-lo da melhor maneira possível e na verdade, como um dom que nos concedeu, como sinal da sua bondade gratuita, conscientes de que a nossa vida, assim como toda a História, está nas suas mãos benevolentes. É a isto que a Bíblia chama temor de Deus, ou seja, o respeito por Deus, não é que Deus me assusta, não, mas é um respeito, uma condição indispensável para aceitar a dádiva da Sabedoria (cf. Eclo 1, 1-18). É o temor que afasta todos os outros receios, porque está orientado para Ele, que é o Senhor de tudo. Perante Ele nada nos pode inquietar. É a surpreendente experiência de São Paulo, que dizia assim: «Sei viver na penúria, e sei também viver na abundância. Estou habituado a todas as vicissitudes: fartura e fome, abundância e indigência. Tudo posso n’Aquele que me conforta» (Fl 4, 12-13). Este é o homem livre, que bendiz o Senhor quer quando recebe coisas boas, quer quando recebe coisas não muito boas: bendito seja e vamos em frente!
Reconhecer isto é fundamental para uma boa decisão, e tranquiliza acerca daquilo que não podemos controlar nem prever: a saúde, o futuro, os entes queridos, os nossos projetos. O que importa é que a nossa confiança seja depositada no Senhor do universo, que nos ama imensamente e sabe que, com Ele, podemos edificar algo magnífico, algo eterno. A vida dos santos no-lo mostra da maneira mais bonita! Vamos em frente, procurando sempre tomar decisões assim, com a oração, sentindo o que acontece no nosso coração e progredindo lentamente, ânimo!
Papa Francisco
Catequese na audiência geral 07.12.22
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Catequeses sobre o discernimento 10. A consolação autêntica
Continuando a nossa reflexão sobre o discernimento, e em particular sobre a experiência espiritual chamada “consolação”, sobre a qual falámos na outra quarta-feira, perguntemo-nos: como reconhecer a verdadeira consolação? É uma pergunta muito importante para um bom discernimento, para não sermos enganados na busca do nosso verdadeiro bem.
Podemos encontrar alguns critérios num trecho dos Exercícios espirituais de Santo Inácio de Loyola. «Se nos pensamentos tudo é bom – diz Santo Inácio - o princípio, o meio e o fim, e se tudo está orientado para o bem, este é um sinal do anjo bom. Por outro lado, pode ser que no decurso dos pensamentos se apresente algo mau, ou que distraia, ou menos bom do que aquilo que antes a alma se propusera fazer, ou algo que debilite a alma, que a torne inquieta, que a ponha em agitação e lhe tire a paz, lhe tira a tranquilidade e a calma que antes tinha: então, este é um sinal claro de que tais pensamentos vêm do espírito maligno» (n. 333). Pois é verdade: há uma verdadeira consolação, mas também há algumas consolações que não são verdadeiras. E por isso é preciso compreender bem o percurso da consolação: como vai e onde me leva? Se me levar a algo que não está bem, que não é bom, a consolação não é verdadeira, é “fingida”, digamos assim.
E estas são indicações preciosas, que merecem um breve comentário. O que significa que o princípio está orientado para o bem, como diz Santo Inácio de uma boa consolação? Por exemplo, tenho o pensamento de rezar, e observo que se acompanha ao afeto pelo Senhor e pelo próximo, convida a realizar gestos de generosidade, de caridade: é um bom princípio. No entanto, pode acontecer que aquele pensamento surja para evitar um trabalho ou uma tarefa que me foi confiada: sempre que devo lavar a louça ou limpar a casa, vem-me uma grande vontade de começar a rezar! Acontece isto nos conventos. Mas a oração não é uma fuga dos nossos afazeres; pelo contrário, é uma ajuda para realizar o bem que somos chamados a praticar, aqui e agora. Isto a propósito do princípio.
Em seguida há o meio: Santo Inácio dizia que o princípio, o meio e o fim devem ser bons. O princípio é este: tenho vontade de rezar para não lavar os pratos: vai, lava os pratos e depois vai rezar. Depois há o meio, ou seja, o que vem depois, o que se segue a tal pensamento. Permanecendo no exemplo anterior, se eu começar a rezar e, como faz o fariseu da parábola (cf. Lc 18, 9-14), tendo a agradar a mim mesmo e a desprezar os outros, talvez com um ânimo ressentido e azedo, então estes são sinais de que o espírito maligno utilizou aquele pensamento como chave de acesso para entrar no meu coração e para me transmitir os seus sentimentos. Se eu for rezar e me vier à mente o famoso fariseu – “dou-te graças, Senhor, porque eu rezo, não sou como os outros que não te procuram, não rezam” – aquela oração acaba mal. Aquela consolação de rezar é para se sentir um pavão diante de Deus. E este é o meio que não está bem.
E depois há o fim: o princípio, o meio e o fim. O fim é um aspeto que já encontramos, ou seja: para onde me leva um pensamento? Por exemplo, onde me leva o pensamento de rezar. Ou então, pode acontecer que eu trabalhe arduamente por uma obra boa e meritória, mas isto impele-me a deixar de rezar, porque estou atarefado com muitas coisas, descubro-me cada vez mais agressivo e zangado, considero que tudo depende de mim, a ponto de perder a confiança em Deus. Evidentemente, aqui há a ação do espírito maligno. Ponho-me a rezar, depois na oração sinto-me omnipotente, que tudo deve estar nas minhas mãos pois sou o único, a única que sabe levar em frente as situações: evidentemente nisto não há o bom espírito. É preciso examinar bem o percurso dos nossos sentimentos e o percurso dos bons sentimentos, da consolação, no momento em que quero fazer alguma coisa. Como é o princípio, como é o meio e como é o fim.
O estilo do inimigo - quando falamos do inimigo, falamos do diabo, pois o demónio existe, está presente! – o seu estilo, sabemo-lo, consiste em apresentar-se de maneira sorrateira e disfarçada: começa a partir daquilo que nos é mais querido e depois, pouco a pouco, atrai-nos a si: o mal entra secretamente, sem que a pessoa se aperceba. E, com o passar do tempo, a suavidade torna-se dureza: aquele pensamento revela-se pelo que realmente é.
Eis a importância deste paciente, mas indispensável exame sobre a origem e a verdade dos próprios pensamentos; é um convite a aprender com as experiências, com o que nos acontece, para não continuar a repetir os mesmos erros. Quanto mais nos conhecemos, mais sentimos por onde entra o espírito maligno, as suas “passwords”, as portas de entrada do nosso coração, que são os pontos onde somos mais sensíveis, de modo a prestar-lhes atenção no futuro. Cada um de nós tem os pontos mais sensíveis, os pontos mais débeis da própria personalidade: e por ali entra o espírito mau e leva-nos para a estrada não reta, ou tira-nos da verdadeira estrada certa. Vou rezar, mas tira-me da oração.
Os exemplos poderiam multiplicar-se à vontade, refletindo sobre os nossos dias. Por isso é tão importante o exame de consciência diário: antes de acabar o dia, paremos um pouco. O que aconteceu? Não nos jornais, não na vida: o que aconteceu no meu coração? O meu coração prestou atenção? Cresceu? Foi uma estrada que passou por cima tudo, sem o meu conhecimento? O que aconteceu no meu coração? E este exame é importante, trata-se do precioso esforço de reler a experiência sob um ponto de vista particular. É importante compreender o que acontece, é sinal de que a graça de Deus age em nós, ajudando-nos a crescer em liberdade e consciência. Não estamos sozinhos: é o Espírito Santo que está connosco. Vejamos como correram as coisas.
A consolação autêntica é uma espécie de confirmação de que estamos a cumprir o que Deus quer de nós, que percorremos os seus caminhos, ou seja, as veredas da vida, da alegria, da paz. Com efeito, o discernimento não é simplesmente sobre o bem, nem sobre o máximo bem possível, mas sobre o que é um bem para mim aqui e agora: é nisto que sou chamado a crescer, colocando limites a outras propostas, atraentes, mas irreais, para não ser enganado na busca do verdadeiro bem.
Irmãos e irmãs, é preciso entender, ir em frente na compreensão do que acontece no meu coração. E por isso é necessário o exame de consciência, para ver o que aconteceu hoje. “Hoje zanguei-me ali, não fiz aquilo…”: mas porquê? Ir além do porquê é procurar a raiz destes erros. “Mas, hoje fui feliz, porém estava aborrecido porque devia ajudar aquelas pessoas, mas no final senti-me satisfeito, satisfeita com aquela ajuda”: e há o Espírito Santo. Aprender a ler no livro do nosso coração o que aconteceu durante o dia. Fazei isto, apenas dois minutos, far-vos-á bem, vo-lo garanto.
Papa Francisco
Catequese na audiência geral 30.11.22
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Catequeses sobre o discernimento 9. A consolação
Continuemos as catequeses sobre o discernimento do espírito: como discernir o que acontece no nosso coração, na nossa alma. E depois de ter considerado alguns aspetos da desolação – aquela escuridão da alma - falemos hoje sobre a consolação, que seria a luz da alma, e que é outro elemento importante para o discernimento, e que não se deve dar por certo, pois pode prestar-se a equívocos. Devemos compreender o que é a consolação, como procurámos entender bem o que é a desolação.
O que é a consolação espiritual? É uma experiência de alegria interior, que permite ver a presença de Deus em tudo; ela revigora a fé e a esperança, assim como a capacidade de fazer o bem. A pessoa que vive a consolação não se rende diante das dificuldades, pois experimenta uma paz mais forte do que a provação. Portanto, trata-se de um grande dom para a vida espiritual e para a vida no seu conjunto. E viver esta alegria interior.
A consolação é um movimento íntimo, que toca o fundo de nós próprios. Não é vistosa, mas suave, delicada, como uma gota de água sobre uma esponja (cf. Santo Inácio de Loyola, Exercícios espirituais, 335): a pessoa sente-se abraçada pela presença de Deus, de uma maneira sempre respeitosa da própria liberdade. Nunca é algo desafinado, que procura forçar a nossa vontade, mas também não é uma euforia passageira: pelo contrário, como vimos, até a dor - por exemplo, por causa dos próprios pecados - pode tornar-se motivo de consolação.
Pensemos na experiência de Santo Agostinho, quando fala com a mãe Mónica sobre a beleza da vida eterna; ou na perfeita alegria de São Francisco – de resto associada a situações muito difíceis de suportar; e pensemos em tantos santos e santas que souberam fazer maravilhas, não porque se julgavam hábeis e capazes, mas porque foram conquistados pela docilidade pacificadora do amor de Deus. Trata-se da paz, que Santo Inácio sentia em si com admiração quando lia a vida dos santos. Ser consolado é estar em paz com Deus, sentir que tudo está arrumado em paz, tudo é harmónico dentro de nós. Trata-se da paz que Edith Stein experimenta após a conversão; um ano depois de ter recebido o Batismo, escreve – assim diz Edith Stein: «Na medida em que me abandono a este sentimento, pouco a pouco uma nova vida começa a preencher-me e - sem tensão alguma da minha vontade - a impelir-me rumo a novas realizações. Este fluxo vital parece brotar de uma atividade e de uma força que não são minhas e que, sem fazer qualquer violência às minhas, se tornam ativas em mim» (Psicologia e scienze dello spirito, Città Nuova, 1996, 116). Ou seja, uma paz genuína, uma paz que faz brotar os bons sentimentos em nós.
A consolação refere-se, acima de tudo, à esperança, propende para o futuro, põe a caminho, permite tomar iniciativas até àquele momento adiadas, ou nem sequer imaginadas, como o Batismo para Edith Stein.
A consolação é uma paz deste como esta mas não para permanecer sentados ali, gozando-a, não; ela dá-te a paz e atrai-te para o Senhor e põe-te a caminho para realizar, fazer coisas boas. Em tempo de consolação, quando estamos consolados, vem-nos vontade de praticar tanto bem, sempre. Ao contrário, quando há um momento de desolação, vem-nos vontade de nos fecharmos em nós mesmos e de não fazer nada. A consolação impele-nos para a frente, para o serviço aos outros, da sociedade, das pessoas. A consolação espiritual não é “pilotável” – não podes dizer agora que venha a consolação, não, não é pilotável - não é programável a bel-prazer, é uma dádiva do Espírito Santo: permite uma familiaridade com Deus, que parece anular as distâncias. Santa Teresa do Menino Jesus, visitando com 14 anos a basílica de Santa Cruz de Jerusalém, em Roma, procura tocar o prego ali venerado, um daqueles com que Jesus foi crucificado. Teresa sente esta sua ousadia como um transporte de amor e de confidência. E em seguida escreve: «Fui verdadeiramente demasiado audaz. Mas o Senhor vê o fundo do coração, sabe que a minha intenção era pura [...]. Agi com Ele como uma criança, que acredita que tudo lhe é permitido, e considera os tesouros do Pai como seus» (Manuscrito autobiográfico, 183). A consolação é espontânea, leva-te a fazer tudo espontaneamente, como se fôssemos crianças. As crianças são espontâneas, e a consolação leva-te a ser espontâneo com uma doçura, com uma paz muito grande. Uma jovem de 14 anos oferece-nos uma maravilhosa descrição da consolação espiritual: temos uma sensação de ternura em relação a Deus, que nos torna audazes no desejo de participar na sua própria vida, de fazer o que lhe agrada, porque nos familiares d’Ele, sentimos que a sua casa é a nossa, sentimo-nos acolhidos, amados, restabelecidos. Com esta consolação, não nos rendemos diante das dificuldades: com efeito, com a mesma audácia, Teresa pedirá ao Papa a autorização para entrar no Carmelo, não obstante fosse demasiado jovem, e será atendida. O que significa isto? Quer dizer que a consolação nos torna audazes: quando vivemos tempos obscuros, de desolação, e pensamos: “Não sou capaz de fazer isto”. A desolação põe-te abaixo, faz-te ver tudo escuro: “Não, não posso fazer, não o farei”. Ao contrário, em tempo de consolação, vês as mesmas coisas de maneira diferente e dizes: “Não, vou em frente, consigo”. “mas, tens a certeza”. “Sinto a força de Deus e vou em frente”. E assim a consolação impele-te a ir em frente e a fazer coisas que em tempo de desolação não serias capaz; impele-te a dar o primeiro passo. Este é o aspeto bonito da consolação.
Mas, estejamos atentos. Devemos distinguir bem a consolação que vem de Deus das falsas consolações. Na vida espiritual ocorre algo semelhante ao que acontece nas produções humanas: há originais e há imitações. Se a consolação autêntica for como uma gota sobre uma esponja, será suave e íntima; as suas imitações serão mais barulhentas e vistosas, são mero entusiasmo, são fogos de palha, sem consistência, levam a fechar-se em si mesmas, e a não se preocupar com os outros. No final, a falsa consolação deixa-nos vazios, distantes do centro da nossa existência. Por isso, quando nos sentimos felizes, em paz, somos capazes de fazer qualquer coisa. Mas não confundamos aquela paz com um entusiasmo passageiro, pois há o entusiasmo hoje, depois diminui e deixa de haver.
Por isso, é necessário fazer discernimento, até quando nos sentimos consolados. Pois a falsa consolação pode tornar-se um perigo, se a procurarmos como um fim em si mesma, de modo obsessivo, e esquecermos o Senhor. Como diria São Bernardo, procuram-se as consolações de Deus, não se procura o Deus das consolações. Devemos procurar o Senhor e, com a sua presença, o Senhor consola-nos, faz-nos ir em frente. E não procurar Deus que nos traga consolações: não; não está bem, não devemos estar interessados nisto. É a dinâmica da criança de que falamos na última vez, que só procura os pais para obter algo deles, mas não por eles próprios: vão por interesse. “Pai, mãe”. E as crianças sabem fazer isto, sabem jogar e quando a família é dividida, e têm este hábito de procurar aqui e ali, isto não faz bem, não é consolação, é interesse. Também nós corremos o risco de viver a relação com Deus de maneira infantil, procurando o nosso interesse, procurando reduzir Deus a um objeto para nosso uso e consumo, perdendo o dom mais belo, que é Ele próprio. Assim, vamos em frente na nossa vida, que procede entre as consolações de Deus e as desolações do pecado do mundo, mas sabendo distinguir quando é uma consolação de Deus, que te dá paz até ao fundo da alma, de quando é um entusiasmo passageiro que não é negativo, mas não é a consolação de Deus.
Papa Francisco
Catequese na audiência geral 23.11.22
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Catequeses sobre o discernimento 8. Por que estamos desolados?
Estimados irmãos e irmãs, bom dia, bem-vindos!
Retomemos hoje as catequeses sobre o tema do discernimento. Vimos como é importante ler o que se move dentro de nós, para não tomar decisões apressadas, na onda da emoção do momento, para depois nos arrependermos, quando já é demasiado tarde. Isto é, ler o que acontece e depois tomar as decisões.
Neste sentido, também o estado espiritual a que chamamos desolação, quando no coração é tudo escuro, triste, este estado de desolação pode ser ocasião de crescimento. Com efeito, se não houver um pouco de insatisfação, um pouco de tristeza saudável, uma capacidade salutar de habitar na solidão, de estar connosco próprios sem fugir, corremos o risco de permanecer sempre na superfície das coisas, sem nunca entrar em contacto com o centro da nossa existência. A desolação provoca uma “trepidação da alma”, quando alguém está triste é como se a alma tremesse; mantém-nos alerta, favorece a vigilância e a humildade, protegendo-nos contra os ventos do capricho. São condições indispensáveis para o progresso na vida e, portanto, inclusive na vida espiritual. Uma serenidade perfeita mas “assética”, sem sentimentos, quando é o critério de escolhas e comportamentos, torna-nos desumanos. Nós não podemos deixar de fazer caso aos sentimentos: somos humanos e o sentimento é uma parte da nossa humanidade; sem entender os sentimentos seríamos desumanos, sem viver os sentimentos seríamos também indiferentes ao sofrimento dos outros e incapazes de aceitar o nosso. Sem considerar que esta “serenidade perfeita” não se alcança por este caminho da indiferença. Esta distância assética: “Não me intrometo nas coisas, afasto-me”: esta não é vida, é como se vivêssemos num laboratório, fechados, para não apanhar micróbios, doenças. Para muitos santos e santas, a inquietação foi um ímpeto decisivo para fazer uma mudança na própria vida. Não é boa esta serenidade artificial, mas é boa a saudável inquietude, o coração inquieto, o coração que procura encontrar caminhos. É o caso, por exemplo, de Agostinho de Hipona, ou de Edith Stein, ou de José Benedito Cottolengo ou de Charles de Foucauld. As escolhas importantes têm um preço que a vida apresenta, um preço acessível a todos: ou seja, as escolhas importantes não se vencem com a lotaria, não; têm um preço e deves pagar aquele preço. É um preço que deves pagar com o teu coração, é um preço da decisão, um preço de levar adiante um pouco de esforço. Não é grátis, mas é um preço ao alcance de todos. Todos nós devemos pagar esta decisão para sair do estado de indiferença, que nos entristece, sempre.
A desolação é também um convite à gratuidade, a não agir sempre e unicamente em vista de uma gratificação emocional. Estar desolados oferece-nos a possibilidade de crescer, de começar uma relação mais madura, mais bela, com o Senhor e com os entes queridos, uma relação que não se reduza a uma mera troca de dar e receber. Pensemos na nossa infância, por exemplo, pensemos: quando se é criança, procura-se com frequência os pais para obter algo deles, um brinquedo, dinheiro para comprar um gelado, uma autorização... E assim procuramo-los não por eles próprios, mas por um interesse. E no entanto, o maior dom são eles, os pais, e compreendemo-lo na medida em que crescemos.
Até muitas das nossas orações são um pouco deste tipo, são pedidos de favores dirigidos ao Senhor, sem um verdadeiro interesse por Ele. Vamos pedir, pedir, pedir ao Senhor. O Evangelho observa que Jesus vivia frequentemente circundado por muitas pessoas que o procuravam para obter algo, curas, ajudas materiais, mas não simplesmente para estar com Ele. Era pressionado pelas multidões, e, contudo, estava sozinho. Alguns santos, e até certos artistas, meditaram sobre esta condição de Jesus. Poderia parecer estranho, irreal, perguntar ao Senhor: “Como estás?”. E, no entanto, é um modo muito bonito de entrar numa relação verdadeira, sincera, com a sua humanidade, com o seu sofrimento, até com a sua singular solidão. Com Ele, com o Senhor, que quis partilhar até ao fim a sua vida connosco.
Faz-nos muito bem aprender a estar com Ele, a estar com o Senhor sem outro objetivo, exatamente como nos acontece com as pessoas de quem gostamos: desejamos conhecê-las cada vez mais, porque é bom estar com elas.
Caros irmãos e irmãs, a vida espiritual não é uma técnica à nossa disposição, não é um programa de “bem-estar” interior que nos compete planificar. Não! A vida espiritual é a relação com o Vivente, com Deus, o Vivente, irredutível às nossas categorias. Então, a desolação é a resposta mais clara à objeção de que a experiência de Deus constitui uma forma de sugestão, uma simples projeção dos nossos desejos. A desolação consiste em não sentir nada, tudo escuro: mas tu procuras Deus na desolação. Em tal caso, se pensarmos que é uma projeção dos nossos desejos, seríamos sempre nós a programá-la, estaríamos sempre felizes e satisfeitos, como um disco que repete a mesma música. Ao contrário, quem reza observa que os resultados são imprevisíveis: experiências e passagens da Bíblia que muitas vezes nos entusiasmaram, hoje, estranhamente, não suscitam emoção alguma. E, igualmente de modo inesperado, experiências, encontros e leituras a que nunca se prestara atenção ou que se preferiria evitar - como a experiência da Cruz - trazem uma paz imensa. Não temais a desolação, levai-a avante com perseverança, não escapeis. E na desolação procurai encontrar o coração de Cristo, encontrar o Senhor. E a resposta chega, sempre.
Portanto, diante das dificuldades nunca devemos desanimar, por favor, mas enfrentar a provação com decisão, com a ajuda da graça de Deus que nunca nos falta. E se ouvirmos dentro de nós uma voz insistente, que nos quer distrair da oração, aprendamos a desmascará-la como a voz do tentador; e não nos deixemos impressionar: façamos simplesmente o contrário do que ela nos diz! Obrigado.
Papa Francisco
Catequese na audiência geral 16.11.22
Imagem: site do Vaticano
Catequeses sobre o discernimento 7. A matéria do discernimento. A desolação
Como vimos nas catequeses anteriores, o discernimento não é principalmente um procedimento lógico; ele incide sobre as ações, e as ações têm uma conotação também afetiva, que deve ser reconhecida, porque Deus fala ao coração. Então, abordemos a primeira modalidade afetiva, objeto do discernimento: isto é, a desolação. De que se trata?
A desolação foi definida assim: «Obscuridade da alma, perturbação interior, impulso para coisas baixas e terrenas, inquietação devida a várias agitações e tentações: assim a alma inclina-se para a desconfiança, fica sem esperança e sem amor, torna-se indolente, tíbia, triste e como que separada do seu Criador e Senhor» (Santo Inácio de Loyola, Exercícios espirituais, 317). Todos nós temos esta experiência. Acredito que, de um modo ou de outro, vivemos esta experiência da desolação. O problema é como poder lê-la, pois também ela tem algo importante para nos dizer, e se tivermos pressa de nos livrar dela, correremos o risco de a perder.
Ninguém gostaria de se sentir desolado, triste: isto é verdade. Todos gostaríamos de uma vida sempre jubilosa, alegre e realizada. E, no entanto, isto, além de não ser possível – pois não é possível – também não seria bom para nós. Com efeito, a mudança de uma vida orientada para o vício pode começar a partir de uma situação de tristeza, de remorso pelo que se fez. É deveras bonita a etimologia desta palavra, “remorso”: o remorso da consciência, todos conhecemos isto. Remorso: literalmente, é a consciência que morde, que não dá paz. Alessandro Manzoni, em Os noivos, ofereceu-nos uma maravilhosa descrição do remorso, como ocasião para mudar de vida. Trata-se do célebre diálogo entre o cardeal Federico Borromeo e o Inominado que, depois de uma noite terrível, se apresenta transtornado ao cardeal, que se dirige a ele com palavras surpreendentes: «“Tem uma boa notícia para me dar, e faz-me suspirar tanto?”. “Boa notícia, eu? – disse o outro - Tenho o inferno no coração [...]. Diga-me, se o souber, qual é esta boa notícia?”. “Que Deus tocou o seu coração e quer fazê-lo seu”, retorquiu pacatamente o cardeal» (cap. XXIII). Deus toca o coração e vem-te algo dentro, a tristeza, o remorso por alguma coisa, e é um convite a iniciar um caminho. O homem de Deus sabe observar profundamente o que se move no coração.
É importante aprender a ler a tristeza. Todos sabemos o que é a tristeza: todos. Mas sabemos lê-la? Sabemos compreender o que ela significa para mim hoje? No nosso tempo – a tristeza – é considerada sobretudo negativamente, como um mal a evitar custe o que custar, e ao contrário pode ser um indispensável sinal de alarme para a vida, convidando-nos a explorar paisagens mais ricas e férteis que a fugacidade e a evasão não permitem. S. Tomás define a tristeza como uma dor da alma: como os nervos para o corpo, ela desperta a atenção diante de um possível perigo, ou de um bem ignorado (cf. Summa Th. I-II, q. 36, a. 1). Por isso, é indispensável para a nossa saúde, protege-nos para não nos ferirmos a nós próprios e aos outros. Seria muito mais grave e perigoso não ter este sentimento e ir em frente. A tristeza às vezes age como semáforo: “Pare, pare! Está vermelho, aqui. Pare”.
Ao contrário, para quem tem o desejo de praticar o bem, a tristeza é um obstáculo com que o tentador quer desencorajar-nos. Neste caso, deve-se agir exatamente ao contrário em relação ao que é sugerido, determinado a continuar o que se tinha proposto cumprir (cf. Exercícios espirituais, 318). Pensemos no trabalho, no estudo, na oração, num compromisso assumido: se os deixássemos, assim que sentíssemos tédio ou tristeza, nunca realizaríamos nada. Também esta é uma experiência comum à vida espiritual: o caminho para o bem, recorda o Evangelho, é estreito e íngreme, requer um combate, uma vitória de si mesmo. Começo a rezar ou dedico-me a uma boa obra e, é estranho, precisamente nesse momento vêm-me à mente coisas urgentes a fazer – para não rezar e não fazer as coisas boas. Todos temos esta experiência. Para quem quer servir o Senhor, é importante não se deixar enganar pela desolação. E isto que… “Mas não, não tenho vontade, isto é aborrecedor…”: estai atentos. Infelizmente, alguns decidem abandonar a vida de oração, ou a escolha feita, o matrimónio ou a vida religiosa, impelidos pela desolação, sem primeiro fazer uma pausa para considerar este estado de espírito, e sobretudo sem a ajuda de um guia. Uma regra sábia diz para não fazer mudanças quando se está desolado. O tempo seguinte, e não o humor do momento, mostrará a bondade ou não das nossas escolhas.
É interessante observar, no Evangelho, que Jesus afasta as tentações com uma atitude de firme determinação (cf. Mt 3, 14-15; 4, 1-11; 16, 21-23). As situações de provação advêm-lhe de várias partes, mas sempre, encontrando n’Ele esta firmeza decidida a cumprir a vontade do Pai, esmorecem e deixam de impedir o caminho. Na vida espiritual, a provação é um momento importante, como a Bíblia recorda explicitamente, diz assim: «Se quiseres servir a Deus, prepara a tua alma para a provação» (Eclo 2, 1). Se quiseres ir pelo bom caminho, prepara-te: há obstáculos, tentações, momentos de tristeza. É como quando um professor examina o estudante: quando vê que conhece os pontos essenciais da matéria, não insiste: passou a prova! Mas deve superar a prova.
Se soubermos atravessar a solidão e a desolação com abertura e consciência, poderemos sair revigorados sob os aspetos humano e espiritual. Nenhuma prova está fora do nosso alcance; nenhuma prova será superior ao que nós podemos fazer. Mas não fujamos das provas: verificar o que significa esta prova, o que significa que estou triste: por que estou triste? O que significa que neste momento sinto desolação? O que quer dizer que estou em desolação e não posso ir em frente? São Paulo lembra que ninguém é tentado além das próprias possibilidades, pois o Senhor nunca nos abandona e, tendo Ele perto, poderemos vencer todas as tentações (cf. 1 Cor 10, 13). E se não a vencermos hoje, erguemo-nos outra vez, caminhamos e vencê-la-emos amanhã. Mas não permaneçamos mortos – digamos assim – não permaneçamos vencidos por um momento de tristeza, de desolação: vamos em frente! Que o Senhor vos abençoe neste caminho – corajoso! – da vida espiritual, que é sempre caminhar.
Papa Francisco
Catequese na audiência geral
26.10.22
Catequeses sobre o discernimento 6. Os elementos do discernimento. O livro da própria vida
Nas catequeses destas semanas insistimos sobre os pressupostos para fazer um bom discernimento. Na vida devemos tomar decisões, sempre, e para tomar decisões devemos percorrer um caminho, uma estrada de discernimento. Cada atividade importante tem as suas “instruções” a seguir, que devem ser conhecidas para que possam produzir os efeitos necessários. Hoje meditemos sobre outro ingrediente indispensável para o discernimento: a própria história de vida. Conhecer a própria história de vida é um ingrediente – digamos assim – indispensável para o discernimento.
A nossa vida é o “livro” mais precioso que nos foi confiado, um livro que muitos infelizmente não leem, ou que o fazem demasiado tarde, antes de morrer. No entanto, é precisamente nesse livro que se encontra aquilo que se procura inutilmente por outros caminhos. Santo Agostinho, um grande investigador da verdade, compreendeu-o exatamente relendo a sua vida, observando nela os passos silenciosos e discretos, mas incisivos, da presença do Senhor. No final deste percurso, anotará com admiração: «Tu estavas dentro de mim, e eu fora. Lá, eu procurava-te. Deformado, lançava-me sobre as belas formas das tuas criaturas. Tu estavas comigo, mas eu não estava contigo» (Confissões X, 27.38). Daqui deriva o seu convite a cultivar a vida interior, para encontrar o que se procura: «Volta para ti mesmo. No homem interior habita a verdade» (A verdadeira religião, XXXIX, 72). Este é um convite que faria a todos vós, inclusive a mim mesmo: “Entra em ti mesmo. Lê a tua vida. Lê dentro de ti, como foi o teu percurso. Com serenidade. Entra em ti mesmo”.
Muitas vezes, também nós vivemos a experiência de Agostinho, de nos encontrarmos presos em pensamentos que nos afastam de nós mesmos, mensagens estereotipadas que nos ferem: por exemplo, “Nada valho” – e desanimas; “tudo corre mal comigo”, e deprimes-te; “nunca farei nada de bom”, e desencorajas-te; e assim é a vida. Estas frases pessimistas que te desanimam! Ler a própria história significa também reconhecer a presença destes elementos “tóxicos”, mas para depois ampliar a trama da nossa narração, aprendendo a observar outras coisas, tornando-a mais rica, mais respeitadora da complexidade, conseguindo até captar os modos discretos como Deus age na nossa vida. Certa vez conheci uma pessoa da qual havia quem dissesse que merecia o prémio Nobel da negatividade: tudo era terrível, tudo, e procurava sempre motivos para desanimar. Era uma pessoa amargurada e no entanto possuía muitas qualidades. Depois, esta pessoa encontrou outra pessoa que a ajudou muito e cada vez que se lamentava de algo, esta última dizia: “Agora, para compensar, diz alguma coisa positiva de ti”. E ele: “Ah, sim... tenho também esta qualidade”, e pouco a pouco ajudou-o a ir em frente, a ler bem a própria vida, quer nos aspetos negativos quer nos positivos. Devemos ler a nossa vida, e assim vemos o que não é positivo e também as coisas boas que Deus semeia em nós.
Vimos que o discernimento tem uma abordagem narrativa: não se limita à ação pontual; insere-a num contexto: de onde vem este pensamento? O que sinto agora, de onde vem? Para onde me leva o que estou a pensar agora? Quando tive a ocasião de o encontrar precedentemente? É algo novo que sinto agora, ou que já senti outras vezes? Porquê é mais insistente do que outros? O que me quer dizer a vida com isto?
A narração das vicissitudes da nossa vida permite também compreender matizes e detalhes importantes, que podem revelar-se ajudas valiosas até então ocultas. Por exemplo, uma leitura, um serviço, um encontro, à primeira vista considerados de pouca importância, sucessivamente transmitem uma paz interior, transmitem a alegria de viver e sugerem outras iniciativas de bem. Deter-se e reconhecer que isto é indispensável para o discernimento. Parar é reconhecer: é importante para o discernimento, é uma obra de recolha daquelas pérolas preciosas e escondidas que o Senhor disseminou no nosso terreno.
O bem está escondido, sempre, pois o bem tem pudor e esconde-se: o bem está escondido; é silencioso, requer uma escavação lenta e contínua. Pois o estilo de Deus é discreto: a Deus apraz o escondimento, a discrição, não se impõe; é como o ar que respiramos, não o vemos, mas faz-nos viver, e só nos damos conta dele quando nos falta.
Habituar-se a reler a própria vida educa o olhar, aguça-o, permite notar os pequenos milagres que o bom Deus realiza para nós todos os dias. Quando prestamos atenção, observamos outros rumos possíveis que revigoram o gosto interior, a paz e a criatividade. Acima de tudo, torna-nos mais livres dos estereótipos tóxicos. Diz-se sabiamente que o homem que não conhece o seu passado está condenado a repeti-lo. É curioso: se não conhecermos a estrada percorrida, o passado, repetimo-lo sempre, somos circulares. A pessoa que caminha circularmente nunca vai em frente, não há caminho, é como o cão que se morde a cauda, sempre vai assim, e repete as ações.
Podemos perguntar-nos: já contei a alguém a minha vida? Esta é uma bonita experiência dos namorados, que quando a relação é séria contam a vida um ao outro... Trata-se de uma das formas de comunicação mais belas e íntimas, narrar a própria vida. Ela permite-nos descobrir coisas até então desconhecidas, pequenas e simples, mas, como diz o Evangelho, é precisamente das pequenas coisas que nascem as grandes (cf. Lc 16, 10).
Também a vida dos santos constitui uma ajuda preciosa para reconhecer o estilo de Deus na própria vida: permite familiarizar com o seu modo de agir. O comportamento de alguns santos interpela-nos, mostrando-nos novos significados e oportunidades. Foi o que aconteceu, por exemplo, a Santo Inácio de Loyola. Quando descreve a descoberta fundamental da sua vida, acrescenta uma importante observação: «Por experiência, deduziu que alguns pensamentos o deixaram triste e outros, alegre; e pouco a pouco aprendeu a conhecer a diversidade dos pensamentos, a diversidade dos espíritos que nele se agitavam» (Autob., n. 8). Conhecer o que acontece dentro de nós, conhecer, estar atentos.
O discernimento é a leitura narrativa dos momentos bons e dos momentos escuros, das consolações e desolações que experimentamos ao longo da nossa vida. No discernimento é o coração que nos fala de Deus, e nós devemos aprender a compreender a sua linguagem. Perguntemo-nos, no final do dia, por exemplo: o que aconteceu hoje no meu coração? Alguns pensam que fazer este exame de consciência é fazer a contabilidade dos pecados que cometemos – e cometemos muitos – mas é também perguntar-se “o que aconteceu dentro de mim, tive alegrias? O que me causou alegria? Fiquei triste? Qual o motivo da tristeza? E assim aprender a discernir o que acontece dentro de nós.
Papa Francisco
Catequese na audiência geral de 19.10.22
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Catequeses sobre o discernimento 5. Os elementos do discernimento. O desejo
Estimados irmãos e irmãs, bom dia!
Nestas catequeses, revemos os elementos do discernimento. Depois da oração e do conhecimento de si, isto é, rezar e conhecer-se a si mesmo, hoje gostaria de falar sobre outro “ingrediente”, por assim dizer, indispensável: hoje gostaria de falar sobre o desejo. Com efeito, o discernimento é uma forma de busca, e a busca deriva sempre de algo que nos falta, mas que de certo modo, conhecemos, intuímos.
De que tipo é este conhecimento? Os mestres espirituais indicam-no com o termo “desejo” que, na raiz, é uma nostalgia de plenitude que nunca encontra realização total, e é o sinal da presença de Deus em nós. O desejo não é a vontade do momento, não. A palavra italiana vem de um termo latino muito bonito, isto é curioso: de-sidus, literalmente “a falta da estrela”, desejo é uma falta da estrela, falta do ponto de referência que orienta o caminho da vida; ela evoca um sofrimento, uma carência e, ao mesmo tempo, uma tensão para alcançar o bem que nos falta. Então, o desejo é a bússola para compreender onde estou e para onde vou, aliás é a bússola para compreender se estou parado ou a caminhar, uma pessoa que nunca deseja é uma pessoa parada, talvez doente, quase morta. É a bússola que indica se estou a caminhar ou parado. E como é possível reconhecê-lo?
Pensemos, um desejo sincero sabe tocar profundamente as cordas do nosso ser, e por isso não se extingue perante as dificuldades ou contratempos. É como quando estamos com sede: se não encontramos algo para beber, não renunciamos; pelo contrário, a busca ocupa cada vez mais os nossos pensamentos e ações, até nos dispormos a fazer qualquer sacrifício para a poder saciar, quase obcecados. Obstáculos e fracassos não sufocam o desejo, não; pelo contrário, tornam-no ainda mais vivo em nós.
Ao contrário da vontade ou da emoção do momento, o desejo dura no tempo, até por muito tempo, e tende a concretizar-se. Se, por exemplo, um jovem desejar tornar-se médico, deverá empreender um percurso de estudos e de trabalho que ocupará vários anos da sua vida e, consequentemente, deverá estabelecer limites, dizer “não”, em primeiro lugar a outros percursos de estudos, mas também a possíveis lazeres e distrações, especialmente nos momentos mais intensos de estudo. No entanto, o desejo de dar um rumo à sua vida e de alcançar aquela meta – chegar a ser médico era o exemplo - permite-lhe superar tais dificuldades. O desejo torna-te forte, corajoso, faz com que vás em frente sempre porque queres chegar àquilo: “Eu desejo aquilo”.
Com efeito, um valor torna-se belo e mais facilmente realizável quando é atraente. Como alguém disse, «mais do que ser bom é importante ter o desejo de se tornar bom». Ser bom é atraente, todos queremos ser bons, mas temos a vontade de nos tornarmos bons?
É impressionante que Jesus, antes de realizar um milagre, frequentemente questione a pessoa sobre o seu desejo: “Queres ser curado?”. E às vezes esta pergunta parece inoportuna, mas vê-se que está doente! Por exemplo, quando encontra o paralítico na piscina de Betesda, que já estava ali havia muitos anos e nunca conseguia encontrar o momento certo para entrar na água. Jesus pergunta-lhe: «Queres ser curado?» (Jo 5, 6). Porquê? Na realidade, a resposta do paralítico revela uma série de estranhas resistências à cura, que não dizem respeito somente a ele. A pergunta de Jesus era um convite a esclarecer o seu coração, para acolher um possível salto de qualidade: deixar de pensar em si próprio e na sua vida “de paralítico”, transportado por outros. Mas o homem na maca não parece estar tão convencido disto. Dialogando com o Senhor, aprendemos a compreender o que verdadeiramente queremos da nossa vida. Aquele paralítico é o exemplo típico das pessoas: “Sim, sim, quero, quero”, mas não quero, não quero, não faço nada. O querer fazer torna-se como uma ilusão e não se dá o passo para o fazer. As pessoas que querem e não querem. Isto é terrível, e aquele doente de 38 anos, sempre com lamentações: “Não, sabes Senhor, mas sabes que quando as águas se movem – que é o momento do milagre – tu sabes, vem alguém mais forte do que eu, entra e eu chego atrasado”, e lamenta-se e lamenta-se. Mas estai atentos que as lamentações são um veneno, um veneno para a alma, um veneno para a vida pois não te fazem crescer o desejo de ir em frente. Estai atentos com as lamentações. Quando se lamentam em família, lamentam-se os cônjuges, lamentam-se uns dos outros, os filhos dos pais ou os sacerdotes do bispo ou os bispos de muitas outras coisas… Não, se vos encontrardes no meio de lamentações, estai atentos, é quase pecado, pois não deixa crescer o desejo.
Muitas vezes, é precisamente o desejo que faz a diferença entre um projeto de sucesso, coerente e duradouro, e os milhares de veleidades e tantos bons propósitos com que, como se diz, “é pavimentado o inferno”: “Sim, eu queria, queria, queria…” mas nada faz. A época em que vivemos parece favorecer a máxima liberdade de escolha, mas ao mesmo tempo atrofia o desejo – queres satisfazer-te continuamente - reduzido principalmente à vontade do momento. E devemos estar atentos a não atrofiar o desejo. Somos bombardeados por mil propostas, projetos e possibilidades, que correm o risco de nos distrair e de não nos permitir avaliar com calma o que realmente queremos. Muitas vezes, encontramos pessoas – pensemos nos jovens por exemplo – com o telemóvel na mão e procuram, olham… “Mas tu paras para pensar?” – “Não”. Sempre extroverso, para com o outro. Assim o desejo não pode crescer, tu vives o momento, saciado no momento e o desejo não cresce.
Muitas pessoas sofrem porque não sabem o que querem da própria vida; provavelmente nunca entraram em contacto com o seu desejo mais profundo, nunca souberam: “O que queres da tua vida?” – “não sei”. Daqui deriva o risco de passar a existência entre tentativas e expedientes de vários tipos, sem nunca chegar a lado algum, desperdiçando oportunidades preciosas. E assim certas mudanças, embora desejadas em teoria, quando se apresenta a ocasião, nunca são postas em prática, falta o desejo forte de levar algo adiante.
Se hoje, por exemplo, a qualquer um de nós, o Senhor nos dirigisse a pergunta que fez ao cego de Jericó: «Que queres que te faça?» (Mc 10, 51) – imaginemos que o Senhor pergunte hoje a cada um de nós: “que queres que eu faça por ti” - como responderíamos? Talvez finalmente pudéssemos pedir-lhe que nos ajude a conhecer o profundo desejo d’Ele que o próprio Deus colocou no nosso coração: “Senhor, que eu conheça os meus desejos, que eu seja uma mulher, um homem de grandes desejos” talvez o Senhor nos conceda a força para o realizar. É uma graça imensa, na base de todas as outras: permitir que o Senhor, como no Evangelho, faça milagres para nós: “Concedei-nos o desejo e fazei-o crescer, Senhor”.
Porque também Ele tem um grande desejo em relação a nós: tornar-nos partícipes da sua plenitude de vida. Obrigado.
Papa Francisco
Catequese na audiência geral em 12.10.22
Catequeses sobre o discernimento 4. Os elementos do discernimento. Conhecer-se a si mesmo.
Prezados irmãos e irmãs, bom dia!
Continuamos a abordar o tema do discernimento. Na semana passada considerámos como seu elemento indispensável o da oração, entendida como familiaridade e confidência com Deus. Oração, não como os papagaios, mas como familiaridade e confidência com Deus; oração dos filhos ao Pai; oração com o coração aberto. Vimos isto na última Catequese. Hoje gostaria de salientar, de maneira quase complementar, que o bom discernimento exige também o conhecimento de si. Conhecer a si mesmo. E isto não é fácil. Com efeito, o discernimento envolve as nossas faculdades humanas: a memória, o intelecto, a vontade, os afetos. Muitas vezes não sabemos discernir porque não nos conhecemos de modo suficiente, e assim não sabemos o que realmente queremos. Ouvistes muitas vezes: “Mas aquela pessoa, por que não se ocupa da sua vida? Nunca soube o que quer…”. Sem chegar àquele extremo, mas também a nós acontece que não sabemos bem o que queremos, não nos conhecemos bem.
Na base de dúvidas espirituais e crises vocacionais encontra-se não raro um diálogo insuficiente entre a vida religiosa e a nossa dimensão humana, cognitiva e afetiva. Um autor de espiritualidade observava que muitas dificuldades a respeito do tema do discernimento remetem para problemas de outro tipo, que devem ser reconhecidos e explorados. Assim escreve este autor: «Cheguei à convicção de que o maior obstáculo para o verdadeiro discernimento (e para o verdadeiro crescimento na oração) não é a natureza intangível de Deus, mas a constatação de que não nos conhecemos suficientemente a nós próprios, e de que nem sequer queremos conhecer-nos como verdadeiramente somos. Quase todos nos escondemos por detrás de uma máscara, não só perante os outros, mas também quando nos olhamos ao espelho» (Th. Green, Il grano e la zizzania, Roma, 1992, 25). Todos temos a tentação de usar máscaras inclusive diante de nós mesmos.
O esquecimento da presença de Deus na nossa vida anda de mãos dadas com a ignorância sobre nós mesmos – ignorar Deus e ignorar-nos – ignorância sobre as caraterísticas da nossa personalidade e sobre os nossos desejos mais profundos.
Conhecer-se a si próprio não é difícil, mas é cansativo: exige um paciente trabalho de escavação interior. Requer a capacidade de parar, de “desativar o piloto automático”, de tomar consciência da nossa maneira de agir, dos sentimentos que nos habitam, dos pensamentos recorrentes que nos condicionam, e muitas vezes sem que saibamos. Exige também que se distinga entre as emoções e as faculdades espirituais. “Sinto” não é a mesma coisa que “estou convencido”; “apetece-me” não é a mesma coisa que “desejo”. Assim chegamos a reconhecer que a visão que temos de nós próprios e da realidade é às vezes um pouco deturpada. Compreender isto é uma graça! Com efeito, muitas vezes pode acontecer que convicções erradas sobre a realidade, baseadas nas experiências do passado, nos influenciem fortemente, limitando a nossa liberdade de apostar naquilo que realmente conta na nossa vida.
Vivendo na era da informática, sabemos como é importante conhecer as passwords para poder entrar nos programas em que se encontram as informações mais pessoais e preciosas. Mas até a vida espiritual tem as suas “passwords”: há palavras que tocam o coração, porque remetem para aquilo a que somos mais sensíveis. O tentador, isto é o diabo, conhece bem estas palavras-chave, e é importante que também nós as conheçamos, para não nos encontrarmos onde não gostaríamos. A tentação não sugere necessariamente coisas más, mas muitas vezes coisas desordenadas, apresentadas com importância excessiva. Deste modo, hipnotiza-nos com a atratividade que tais coisas suscitam em nós, coisas bonitas, mas ilusórias, que não podem cumprir o que prometem, e assim no final deixam-nos uma sensação de vazio e de tristeza. Aquela sensação de vazio e tristeza é um sinal de que empreendemos uma estrada que não era correta, que nos desorientou. Por exemplo, podem ser o título de estudos, a carreira, os relacionamentos, tudo em si louvável, mas em reação ao que, se não formos livres, corremos o risco de alimentar expetativas irreais, como por exemplo a confirmação do nosso valor. Por exemplo, tu quando pensas num estudo que estás a fazer, pensas nele apenas para te promover a ti mesmo, para o teu interesse, ou também para servir a comunidade? Nisto pode-se ver qual é a intencionalidade de cada um de nós. Deste mal-entendido derivam com frequência os maiores sofrimentos, dado que nada disto pode ser a garantia da nossa dignidade.
Por isso, estimados irmãos e irmãs, é importante conhecer-se, conhecer as passwords do nosso coração, aquilo a que somos mais sensíveis, para nos protegermos de quem se apresenta com palavras persuasivas para nos manipular, mas também para reconhecer o que é realmente importante para nós, distinguindo-o das modas do momento ou de slogans vistosos e superficiais. Muitas vezes o que se diz num programa de televisão, nalguma publicidade que se faz, comove-nos o coração e faz-nos ir numa direção sem liberdade. Estai atentos a isto: sou livre ou deixo-me influenciar pelos sentimentos do momento, ou pelas provocações do momento?
Uma ajuda para isso é o exame de consciência, mas não falo do exame de consciência que todos fazemos quando vamos à confissão, não. Isto é: “Mas cometi este pecado, aquile…”. Não. Exame de consciência geral do dia: o que aconteceu no meu coração neste dia? “Aconteceram muitas coisas…”. Quais? Porquê? Quais traços deixaram no coração? Fazer exame de consciência, ou seja, o bom hábito de reler com calma o que acontece no nosso dia, aprendendo a observar nas avaliações e escolhas aquilo a que damos mais importância, o que procuramos e porquê, e o que afinal encontramos. Aprendendo sobretudo a reconhecer o que sacia o meu coração. Pois somente o Senhor nos pode dar a confirmação de quanto valemos. Diz-nos isto todos os dias da cruz: morreu por nós, para nos mostrar quão preciosos somos aos seus olhos. Não há obstáculo nem fracasso que possa impedir o seu terno abraço. O exame de consciência ajuda muito, pois assim vemos que o nosso coração não é uma estrada onde acontece de tudo sem que nós o saibamos. Não. Ver: o que ocorreu hoje? O que aconteceu? O que me fez reagir? O que me entristeceu? O que me alegrou? O que foi desagradável e se pratiquei algum mal aos outros. Trata-se de ver o percurso dos sentimentos, das atrações no meu coração durante o dia. Não vos esqueçais! Na semana passada falámos sobre a oração; hoje falámos da consciência de si mesmo.
A oração e o conhecimento de nós mesmos permitem-nos crescer na liberdade. Eis, é para crescer na liberdade! São elementos básicos da existência cristã, elementos preciosos para encontrar o próprio lugar na vida. Obrigado.
Papa Francisco
05.10.22
Catequese na audiência geral
Catequeses sobre o discernimento 3. Os elementos do discernimento. A familiaridade com o Senhor
Estimados irmãos e irmãs, bom dia!
Retomemos as catequeses sobre o tema do discernimento, pois é muito importante o tema do discernimento para saber o que acontece dentro de nós; dos sentimentos e das ideias, devemos discernir de onde veem, para onde me levam, para qual decisão - e hoje concentremo-nos no primeiro dos seus elementos constitutivos, isto é a oração. Para discernir é preciso estar num ambiente, num estado de oração.
A oração é uma ajuda indispensável para o discernimento espiritual, sobretudo quando envolve os afetos, permitindo que nos dirijamos a Deus com simplicidade e familiaridade, como se fala com um amigo. É saber ir além dos pensamentos, entrar em intimidade com o Senhor, com uma espontaneidade afetuosa. O segredo da vida dos santos é a familiaridade e a confidência com Deus, que cresce neles e torna cada vez mais fácil reconhecer o que Lhe agrada. A oração verdadeira é familiaridade e confidência com Deus. Não é recitar orações como um papagaio, blá-blá-blá, não. A verdadeira oração é aquela espontaneidade e afeto com o Senhor. Esta familiaridade supera o medo ou a dúvida de que a sua vontade não é para o nosso bem, uma tentação que às vezes atravessa os nossos pensamentos, tornando o coração inquieto e incerto ou até amargo.
O discernimento não pretende uma certeza absoluta – não é quimicamente um puro método, não, pretende uma certeza absoluta porque diz respeito à vida, e a vida nem sempre é lógica, apresenta muitos aspetos que não se deixam encerrar numa única categoria de pensamento. Gostaríamos de saber exatamente o que se deveria fazer, e, no entanto, até quando acontece, nem por isso agimos sempre em conformidade. Quantas vezes também nós vivemos a experiência descrita pelo apóstolo Paulo, que diz assim: «Não faço o bem que quero, mas o mal que não quero» (Rm 7, 19). Não somos apenas razão, não somos máquinas, não é suficiente receber instruções para as pôr em prática: os obstáculos, assim como as ajudas, a decidir-se pelo Senhor são acima de tudo afetivos, do coração.
É significativo que o primeiro milagre realizado por Jesus no Evangelho de Marcos seja um exorcismo (cf. 1, 21-28). Na sinagoga de Cafarnaum, liberta um homem do demónio, livrando-o da falsa imagem de Deus que Satanás sugere desde as origens: a de um Deus que não quer a nossa felicidade. O endemoninhado daquele trecho de Evangelho, sabe que Jesus é Deus, mas isto não o leva a acreditar n’Ele. Com efeito, diz: «Vieste arruinar-nos» (v. 24).
Muitas pessoas, inclusive cristãos, pensam a mesma coisa: que Jesus pode até ser o Filho de Deus, mas duvidam que Ele quer a nossa felicidade; aliás, alguns temem que levar a sério a sua proposta, o que Jesus nos propõe, signifique arruinar a vida, mortificar os nossos desejos, as nossas aspirações mais fortes. Às vezes surgem dentro de nós estes pensamentos: que Deus nos pede demasiado, temos medo de que Deus nos peça demasiado, que não nos ame verdadeiramente. Ao contrário, na nossa primeira audiência vimos que o sinal de um encontro com o Senhor é a alegria. Quando me encontro com o Senhor na oração, fico alegre. Cada um de nós torna-se jubiloso, algo bonito. Por outro lado, a tristeza ou o medo são sinais de distância de Deus: «Se quiseres entrar na vida, observa os mandamentos», diz Jesus ao jovem rico (Mt 19, 17). Infelizmente para aquele jovem, alguns obstáculos não lhe permitiram satisfazer o desejo que tinha no coração, de seguir mais de perto o “bom mestre”. Era um jovem interessado, empreendedor, tinha tomado a iniciativa de se encontrar com Jesus, mas vivia também muito dividido nos afetos; para ele as riquezas eram demasiado importantes. Jesus não o obriga a decidir, mas o texto observa que o jovem se afasta de Jesus «contristado» (v. 22). Quem se afasta do Senhor nunca se sente satisfeito, mesmo que tenha à sua disposição uma grande abundância de bens e possibilidades. Jesus nunca obriga a segui-lo, nunca. Jesus faz-te conhecer a sua vontade, de coração faz com que saibas as coisas, mas deixa-te livre. E isto é o aspeto mais bonito da oração com Jesus: a liberdade que Ele nos deixa. Ao contrário, quando nos afastamos do Senhor permanecemos com alguma coisa triste, algo negativo no coração.
Discernir o que acontece dentro de nós não é fácil, porque as aparências enganam, mas a familiaridade com Deus pode dissipar delicadamente dúvidas e temores, tornando a nossa vida cada vez mais recetiva à sua «luz suave», de acordo com a bonita expressão de São John Henry Newman. Os santos brilham com luz refletida, mostrando nos gestos simples do seu dia a presença amorosa de Deus, que torna possível o impossível. Diz-se que dois cônjuges que viveram juntos durante muito tempo, amando-se, acabam por se assemelhar um ao outro. Algo análogo pode-se dizer da oração afetiva: de modo gradual, mas eficaz, torna-nos cada vez mais capazes de reconhecer o que conta por conaturalidade, como algo que brota das profundezas do nosso ser. Estar em oração não significa pronunciar palavras, palavras, não; estar em oração significa abrir o coração a Jesus, aproximar-se de Jesus, deixar que Jesus entre no meu coração e nos faça sentir a sua presença. E nisto podemos discernir quando é Jesus e quando somos nós com os nossos pensamentos, muitas vezes distantes daquilo que Jesus quer.
Peçamos esta graça: viver uma relação de amizade com o Senhor, como um amigo fala com o amigo (cf. Santo Inácio de Loyola, Exercícios espirituais, 53). Conheci um irmão religioso idoso que era o porteiro de um colégio e cada vez que podia ele aproximava-se da capela, olhava para o altar, e dizia: “olá”, porque tinha proximidade com Jesus. Ele não precisava de dizer blá-blá-blá, não: “olá, estou perto de ti e tu estás perto de mim”. Esta é a relação que devemos ter na oração: proximidade, proximidade afetiva, como irmãos, proximidade com Jesus. Um sorriso, um simples gesto e não recitar palavras que não chegam ao coração. Como eu dizia, falar com Jesus como um amigo fala a outro amigo. É uma graça que devemos pedir uns pelos outros: ver Jesus como o nosso amigo, o nosso maior amigo, o nosso amigo fiel, que não chantageia, sobretudo que nunca nos abandona, nem sequer quando nos afastamos d’Ele. Ele permanece à porta do coração. “Não, não quero saber de nada de ti”, dizemos. E Ele permanece calado, fica ali ao alcance das mãos, ao alcance do coração porque Ele é sempre fiel. Vamos em frente com esta oração, recitamos a prece do “olá”, a oração de saudar o Senhor com o coração, a oração do afeto, a oração da proximidade, com poucas palavras, mas com gestos e com boas obras. Obrigado.
Papa Francisco
Catequese na audiência geral 28.09.22
Catequeses sobre o discernimento 2. Um exemplo: Inácio de Loyola
Estimados irmãos e irmãs, bom dia!
Continuemos a nossa reflexão sobre o discernimento - neste período falaremos todas as quartas-feiras sobre o discernimento espiritual - e fazer referência a um testemunho concreto pode ajudar-nos nisto.
Um dos exemplos mais instrutivos é-nos oferecido por Santo Inácio de Loyola, com um episódio decisivo da sua vida. Inácio está convalescente em casa, depois de ter sido ferido numa perna em batalha. Para se livrar do tédio, pede algo para ler. Gostava de contos de cavalaria, mas infelizmente em casa só havia vida de santos. Adapta-se um pouco de má vontade, mas durante a leitura começa a descobrir outro mundo, um mundo que o conquista e parece competir com o dos cavaleiros. Fica fascinado com as figuras de São Francisco e São Domingos, e sente o desejo de os imitar. Mas também o mundo cavaleiresco continua a exercer o seu fascínio sobre ele. E assim sente dentro de si aquela alternância de pensamentos, os cavaleirescos e os dos santos, que parecem equivaler-se.
No entanto, Inácio começa também a notar diferenças. Na sua Autobiografia - na terceira pessoa – escreve assim: «Pensando nas coisas do mundo - e nas coisas cavaleirescas, entende-se - sentia muito prazer, mas quando, por cansaço, as abandonava, sentia-se vazio e desiludido. Ao contrário, ir descalço a Jerusalém, alimentar-se unicamente de ervas, praticar todas as austeridades que tinha conhecido como habituais para os santos, eram pensamentos que não só o consolavam quando meditava sobre eles, mas até depois de os abandonar o deixavam satisfeito e cheio de alegria» (n. 8); deixavam-lhe um traço de alegria.
Nesta experiência, podemos notar sobretudo dois aspetos. O primeiro é o tempo: ou seja, os pensamentos do mundo no início são atraentes, mas depois perdem brilho e deixam vazio, insatisfeito, deixam-te assim, uma coisa vazia. Os pensamentos de Deus, ao contrário, primeiro suscitam uma certa resistência – “Mas não vou ler esta coisa tediosa sobre os santos” - mas quando são aceites trazem uma paz desconhecida, que dura muito tempo.
Eis, pois, o outro aspeto: o ponto de chegada dos pensamentos. No início, a situação não parece tão clara. Há um desenvolvimento do discernimento: por exemplo, compreendemos o que é bom para nós, não de modo abstrato e geral, mas no percurso da nossa vida. Nas regras para o discernimento, fruto desta experiência fundamental, Inácio determina uma premissa importante, que ajuda a entender este processo: «Àqueles que passam de um pecado mortal para outro, o diabo geralmente costuma propor prazeres aparentes, tranquilizá-los de que tudo está bem, levando-os a imaginar delícias e prazeres sensuais, para melhor os manter e fazê-los crescer nos seus vícios e pecados. Com eles, o espírito bom usa o método oposto, estimulando a sua consciência ao remorso mediante o juízo da razão» (Exercícios Espirituais, 314); Mas isto não é bom!
Há uma história que precede quem discerne, uma história que é indispensável conhecer, pois o discernimento não é uma espécie de oráculo ou de fatalismo, nem uma coisa de laboratório, como tirar a sorte sobre duas possibilidades. As grandes interrogações surgem quando, na vida, já percorremos um trecho do caminho, e é àquele percurso que devemos regressar para compreender o que procuramos. Se na vida se percorre um pouco do caminho, assim: “Mas por que vou nesta direção, o que procuro?”, e ali faz-se o discernimento. Quando se encontrava ferido na casa paterna, Inácio não pensava de modo algum em Deus, nem em como reformar a sua vida, não. Ele faz a sua primeira experiência de Deus, ouvindo o próprio coração, que lhe mostra uma inversão curiosa: as coisas à primeira vista atraentes deixam-no desiludido, e noutras, menos brilhantes, sente uma paz que perdura no tempo. Também nós vivemos esta experiência, muitas vezes começamos a pensar em algo e ficamos ali, e depois sentimo-nos desiludidos. Ao contrário, fazemos uma obra de caridade, fazemos algo bom e sentimos um pouco de felicidade, vem-te um bom pensamento, vem-te a felicidade, um pouco de alegria, é uma experiência totalmente nossa. Ele, Inácio, vive a sua primeira experiência de Deus, ouvindo o próprio coração, que lhe mostra uma curiosa inversão. É isto que devemos aprender: ouvir o próprio coração para saber o que acontece, que decisão tomar, formular um juízo sobre uma situação, é preciso ouvir o próprio coração. Ouvimos a televisão, a rádio, o telemóvel, somos mestres da escuta, mas pergunto-te: sabes ouvir o teu coração? Paras para dizer: “Mas como está o meu coração? Está satisfeito, está triste, está à procura de algo?”. Para tomar boas decisões, é preciso ouvir o próprio coração.
Por isso, Inácio sugerirá a leitura da vida dos santos, pois eles mostram de modo narrativo e compreensível o estilo de Deus na vida das pessoas não muito diferentes de nós, porque os santos eram de carne e osso, como nós. As suas ações falam com as nossas, ajudando-nos a compreender o seu significado.
Naquele famoso episódio dos dois sentimentos que Inácio tinha, um quando lia as coisas dos cavaleiros e o outro quando lia a vida dos santos, podemos reconhecer outro aspeto importante do discernimento, já mencionado na semana passada. Há uma casualidade aparente nos acontecimentos da vida: tudo parece nascer de um banal contratempo: não havia livros de cavaleiros, mas apenas vidas de santos. Um transtorno que, no entanto, encerra em si uma possível mudança. E só depois de um certo tempo Inácio se dará conta disto, e é nessa altura que lhe dedicará toda a sua atenção. Escutai bem: Deus trabalha através de eventos não programáveis por acaso, mas isto aconteceu comigo por acaso, por acaso conheci esta pessoa, por acaso vi este filme, não foi programado, mas Deus trabalha através de eventos não programáveis, e também nos contratempos: “Mas eu devia ir dar um passeio e tive um problema nos pés, não posso...”. Contratempo: o que te diz Deus? O que te diz a vida ali? Vimo-lo inclusive num trecho do Evangelho de Mateus: um homem que lavra um campo depara-se acidentalmente com um tesouro enterrado. Uma situação totalmente inesperada. Mas o importante é que o reconhece como o golpe de sorte da sua vida e decide consequentemente: vende tudo e compra aquele campo (cf. 13, 44). Dou-vos um conselho, prestai atenção às coisas inesperadas. Quem diz: “Mas eu não esperava isto por acaso”. Ali é a vida que te fala, é o Senhor que te fala ou é o diabo que te fala? Alguém. Mas há algo para discernir, como reajo perante as coisas inesperadas. Mas eu estava tão tranquilo em casa e “toque-toque” vem a sogra, e come reages à sogra? É amor ou é algo dentro? E fazes o discernimento. Enquanto eu trabalhava bem no escritório, um colega vem dizer-me que precisa de dinheiro, e como reagiste? Ver algo acontecer, quando vivemos algo que não esperamos, e ali aprendemos a conhecer como o nosso coração se move.
O discernimento é a ajuda para reconhecer os sinais com que o Senhor se deixa encontrar nas situações inesperadas, até desagradáveis, como foi para Inácio a ferida na perna. Delas pode nascer um encontro que muda a vida para sempre, como no caso de Inácio. Pode nascer algo que te faz melhorar ou piorar no caminho, não sei, mas permanecer atento e o fio condutor mais bonito é dado pelas coisas inesperadas: “Como me comporto diante disto?”. O Senhor nos ajude a sentir o nosso coração e a ver quando é Ele que age e quando não é Ele mas outras coisa.
Papa Francisco
07.09.22
Catequese na audiência geral
Catequeses sobre o discernimento 1. O que significa discernir?
Prezados irmãos e irmãs, bom dia!
Hoje iniciamos um novo ciclo de catequeses: terminámos as catequeses sobre a velhice, agora começamos um novo ciclo sobre o tema do discernimento. Discernir é um ato importante que se refere a todos, pois as escolhas constituem uma parte essencial da vida. Discernir as escolhas. Escolhe-se uma comida, uma roupa, um percurso de estudos, um emprego, uma relação. Em tudo isto realiza-se um projeto de vida, e também se concretiza a nossa relação com Deus.
No Evangelho, Jesus fala do discernimento com imagens tiradas da vida comum; por exemplo, descreve os pescadores que selecionam os peixes bons e descartam os maus; ou o comerciante que sabe identificar, entre muitas pérolas, a de maior valor. Ou aquele que, lavrando um campo, se depara com algo que se revela um tesouro (cf. Mt 13, 44-48).
À luz destes exemplos, o discernimento apresenta-se como um exercício de inteligência, também de perícia e inclusive de vontade, para reconhecer o momento favorável: são estas as condições para fazer uma boa escolha. É preciso inteligência, perícia e também vontade para fazer uma boa escolha. E há ainda um custo necessário para que o discernimento se torne viável. Para desempenhar a sua profissão da melhor forma, o pescador tem em consideração o cansaço, as longas noites passadas no mar, e além disso descarta uma parte da pesca, aceitando uma perda do lucro para o bem daqueles a quem se destina. O mercador de pérolas não hesita em gastar tudo para comprar aquela pérola; e o homem que se deparou com um tesouro faz o mesmo. Situações inesperadas, não programadas, onde é fundamental reconhecer a importância e urgência de uma decisão a tomar. Cada um deve tomar decisões; não há ninguém que as tome por nós. Numa certa altura os adultos, livres, podem pedir conselhos, pensar, mas a decisão é pessoal; não se pode dizer: “Perdi isto, porque o meu marido decidiu, a minha esposa decidiu, o meu irmão decidiu”: não! Tu deves decidir, cada um de nós deve decidir, e por isso é importante saber discernir: para decidir bem, é necessário saber discernir.
O Evangelho sugere outro aspeto importante do discernimento: ele envolve os afetos. Quem encontrou o tesouro não tem dificuldade de vender tudo, tão grande é a sua alegria (cf. Mt 13, 44). O termo usado pelo evangelista Mateus indica uma alegria totalmente especial, que nenhuma realidade humana pode dar; e com efeito, repete-se em pouquíssimas outras passagens do Evangelho, todas elas relativas ao encontro com Deus. É a alegria dos Magos quando, depois de uma viagem longa e árdua, veem de novo a estrela (cf. Mt 2, 10); a alegria, é a alegria das mulheres que regressam do sepulcro vazio, depois de ter ouvido o anúncio da ressurreição, feito pelo anjo (cf. Mt 28, 8). É a alegria de quem encontrou o Senhor! Tomar uma boa decisão, uma decisão certa, leva-te sempre àquela alegria final; talvez ao longo do caminho tenhamos que sofrer um pouco de incerteza, pensar, procurar, mas no final a decisão certa beneficia-te com a alegria.
No juízo final Deus fará um discernimento – um grande discernimento – em relação a nós. As imagens do camponês, do pescador e do comerciante são exemplos do que acontece no Reino dos céus, um Reino que se manifesta nas ações comuns da vida, que exigem uma tomada de posição. Por isso é muito importante saber discernir: as grandes escolhas podem surgir de circunstâncias à primeira vista secundárias, mas que se revelam decisivas. Por exemplo, pensemos no primeiro encontro de André e João com Jesus, um encontro que nasce de uma simples pergunta: “Rabi, onde moras?” – “Vinde ver!” (cf. Jo 1, 38-39), diz Jesus. Um diálogo muito breve, mas é o início de uma mudança que, passo a passo, marcará a vida inteira. Anos mais tarde, o Evangelista continuará a lembrar-se daquele encontro que o mudou para sempre, recordando-se até da hora: «Eram cerca das quatro horas da tarde» (v. 39). Foi a hora em que o tempo e o eterno se encontraram na sua vida. E, numa decisão boa, certa, encontra-se a vontade de Deus com a nossa vontade; encontra-se o caminho atual com o eterno. Tomar uma decisão certa, depois de um caminho de discernimento, significa fazer este encontro: o tempo com o eterno.
Portanto: conhecimento, experiência, afetos, vontade: eis alguns elementos indispensáveis para o discernimento. No decurso destas catequeses veremos outros, igualmente importantes.
O discernimento - como eu dizia – exige esforço. Segundo a Bíblia, não encontramos diante de nós, já embalada, a vida que devemos viver: não! Devemos decidi-la continuamente, de acordo com as realidades que se apresentam. Deus convida-nos a avaliar e a escolher: Criou-nos livres e quer que exerçamos a nossa liberdade. Por isso, discernir é difícil.
Vivemos frequentemente esta experiência: escolher algo que nos parecia bom e, no entanto, não o era. Ou saber qual era o nosso verdadeiro bem e deixar de o escolher. O homem, diversamente dos animais, pode errar, pode não desejar escolher de modo correto. A Bíblia mostra-o a partir das suas primeiras páginas. Deus dá ao homem uma instrução exata: se quiseres viver, se quiseres desfrutar da vida, lembra-te que és criatura, que não és o critério do bem e do mal, e que as escolhas que fizeres terão uma consequência para ti, para os outros e para o mundo (cf. Gn 2, 16-17); podes fazer da terra um jardim magnífico, ou podes transformá-la num deserto de morte. Um ensinamento fundamental: não é por acaso que se trata do primeiro diálogo entre Deus e o homem. O diálogo é: o Senhor dá a missão, é preciso fazer isto e aquilo; e o homem, a cada passo que dá, deve discernir qual é a decisão a tomar. O discernimento é aquela reflexão da mente, do coração que devemos fazer antes de tomar uma decisão.
O discernimento é árduo, mas indispensável para viver. Requer que eu me conheça, que saiba o que é bom para mim aqui e agora. Exige sobretudo uma relação filial com Deus. Deus é Pai e não nos deixa sozinhos, está sempre disposto a aconselhar-nos, a encorajar-nos, a acolher-nos. Mas nunca impõe a sua vontade. Porquê? Porque quer ser amado, não temido. E Deus também quer que sejamos filhos, não escravos: filhos livres. E o amor só pode ser vivido na liberdade. Para aprender a viver é preciso aprender a amar, e por isso é necessário discernir: o que posso fazer agora, diante desta alternativa? Que seja um sinal de mais amor, de mais maturidade no amor. Peçamos que o Espírito Santo nos guie! Invoquemo-lo todos os dias, especialmente quando devemos fazer escolhas. Obrigado!
Papa Francisco
31.08.22
Catequese na audiência geral
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Catequese sobre a Velhice 18. As dores da criação. A história da criatura como mistério de gestação
Estimados irmãos e irmãs, bom dia!
Há pouco celebramos a Assunção da Mãe de Jesus no Céu. Este mistério ilumina o cumprimento da graça que plasmou o destino de Maria e ilumina também o nosso. O destino é o céu. Com esta imagem da Virgem que subiu ao Céu, gostaria de concluir o ciclo de catequeses sobre a velhice. No Ocidente contemplamo-la elevada ao Céu, envolta em luz gloriosa; no Oriente Ela é representada adormecida, circundada pelos Apóstolos em oração, enquanto o Senhor Ressuscitado a segura pela mão como uma menina.
A teologia sempre refletiu sobre a relação desta singular “assunção” com a morte, que o dogma não define. Penso que seria ainda mais importante tornar explícita a relação deste mistério com a ressurreição do Filho, que abre a todos nós o caminho da geração à vida. No ato divino do encontro de Maria com Cristo Ressuscitado, não é simplesmente superada a normal corrupção corporal da morte humana, não só isto, mas é antecipada a assunção corporal da vida de Deus. Com efeito, o destino da ressurreição que nos diz respeito é antecipado: pois de acordo com a fé cristã, o Ressuscitado é o primogénito de muitos irmãos e irmãs. O Senhor Ressuscitado é Aquele que partiu antes, que ressuscitou antes de todos, depois iremos nós: este é o nosso destino: ressuscitar.
Poderíamos dizer - segundo as palavras de Jesus a Nicodemos - que é um pouco como um segundo nascimento (cf. Jo 3, 3-8). Se o primeiro foi um nascimento na terra, o segundo é o nascimento no céu. Não é por acaso que o Apóstolo Paulo, no texto lido no início, fala de dores de parto (cf. Rm 8, 22). Do mesmo modo que, quando saímos do ventre da nossa mãe, somos sempre nós, o mesmo ser humano que estava no ventre, assim, após a morte, nascemos no céu, no espaço de Deus, e ainda somos os mesmos que caminhávamos nesta terra. Analogamente a quanto aconteceu com Jesus: o Ressuscitado é sempre Jesus, Ele não perde a sua humanidade, aquilo que viveu, nem sequer a sua corporeidade, não, porque sem ela já não seria Ele, não seria Jesus: isto é, com a sua humanidade, com aquilo que viveu.
É o que nos diz a experiência dos discípulos, aos quais Ele aparece durante quarenta dias depois da ressurreição. O Senhor mostra-lhes as feridas que selaram o seu sacrifício; mas já não são a fealdade do aviltamento dolorosamente sofrido, agora são a prova indelével do seu amor fiel até ao fim. Jesus Ressuscitado vive com o seu corpo na intimidade trinitária de Deus! E nela não perde a memória, não abandona a própria história, não dissolve as relações nas quais viveu na terra. Aos seus amigos prometeu: «E quando Eu tiver ido e vos tiver preparado um lugar, virei outra vez e levar-vos-ei comigo para que onde Eu estiver, estejais vós também» (Jo 14, 3). Ele partiu a fim de preparar o lugar para todos nós e depois de ter preparado um lugar voltará. Não virá somente no final para todos, virá cada vez para cada um de nós. Virá procurar-nos para nos levar com Ele. Neste sentido a morte é um pouco como o passo ao encontro de Jesus que está à minha espera para me levar com Ele.
O Ressuscitado vive no mundo de Deus, onde existe um lugar para todos, onde se forma uma nova terra e onde se constrói a cidade celestial, morada definitiva do homem. Não podemos imaginar esta transfiguração da nossa corporeidade mortal, mas estamos certos de que ela manterá os nossos rostos reconhecíveis e nos consentirá permanecer humanos no céu de Deus. Permitir-nos-á participar, com sublime emoção, na infinita e feliz exuberância do ato criador de Deus, cujas intermináveis aventuras experimentaremos pessoalmente.
Quando Jesus fala do Reino de Deus, descreve-o como um banquete de núpcias, como uma festa com amigos, como o trabalho que torna a casa perfeita: é a surpresa que torna a colheita mais rica do que a sementeira. Levar a sério as palavras do Evangelho sobre o Reino permite à nossa sensibilidade desfrutar do amor ativo e criativo de Deus, colocando-nos em sintonia com o destino inaudito da vida que semeamos. Queridas e queridos coetâneos, e falo aos “velhinhos” e às “velhinhas”, na nossa velhice a importância dos numerosos “detalhes” de que a vida é feita - uma carícia, um sorriso, um gesto, um trabalho apreciado, uma surpresa inesperada, uma alegria hospitaleira, um laço fiel - torna-se mais sentida. O essencial da vida, que nos é mais caro quando nos aproximamos do nosso adeus, torna-se definitivamente claro para nós. Eis, pois, que esta sabedoria da velhice é o lugar da nossa gestação, que ilumina a vida das crianças, dos jovens, dos adultos e de toda a comunidade. Nós, “velhinhos”, deveríamos ser isto para os outros: luz para todos. Toda a nossa vida se manifesta como uma semente que deverá ser enterrada a fim de que nasçam a sua flor e o seu fruto. Ela brotará, juntamente com todo o resto do mundo. Não sem os trabalhos de parto, não sem dores, mas brotará (cf. Jo 16, 21-23). E a vida do corpo ressuscitado será cem, mil vezes mais viva do que a experimentamos nesta terra (cf. Mc 10, 28-31).
Não é por acaso que o Senhor Ressuscitado, enquanto espera os Apóstolos na margem do lago, assa alguns peixes (cf. Jo 21, 9) e depois lhos oferece. Este gesto de amor atencioso dá-nos um vislumbre do que nos aguarda quando atravessarmos para a outra margem. Sim, caros irmãos e irmãs, especialmente vós, idosos, o melhor da vida ainda deve vir; “Mas somos velhos, o que mais devemos ver?”. O melhor, pois o melhor da vida ainda está por vir. Aguardemos esta plenitude de vida que nos espera a todos, quando o Senhor nos chamar. Que a Mãe do Senhor e nossa Mãe, que nos precedeu no Paraíso, nos restitua a trepidação da expetativa, pois não é uma espera anestesiada, não é uma espera entediada, não, é uma espera com trepidação: “Quando virá o meu Senhor? Quando poderei estar com Ele?”. Há um pouco de medo porque não sei o que significa esta passagem e cruzar aquela porta provoca um pouco de temor, mas há sempre a mão do Senhor que nos leva em frente e, após a travessia da porta vem a festa. Estejamos atentos, vós queridos “velhinhos” e queridas “velhinhas”, coetâneos, estejamos atentos, Ele espera por nós, apenas uma passagem e depois a festa.
Papa Francisco
24.08.22
Catequese na audiência geral
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Catequese sobre a Velhice 17. O «Antigo de dias». A velhice tranquiliza sobre o destino para a vida que já não morre
Estimados irmãos e irmãs, bom dia!
As palavras do sonho de Daniel, que ouvimos, evocam uma visão de Deus que é misteriosa e ao mesmo tempo resplandecente. São repetidas no início do livro do Apocalipse e referem-se a Jesus Ressuscitado, que aparece ao Vidente como Messias, Sacerdote e Rei, eterno, omnisciente e imutável (1, 12-15). Ele põe a sua mão sobre o ombro do Vidente e tranquiliza-o: «Não temas! Eu sou o Primeiro e o Último, o que vive. Conheci a morte, mas eis-me aqui vivo pelos séculos dos séculos» (vv. 17-18). Assim, desaparece a última barreira de medo e angústia que a teofania sempre suscitou: o Vivente tranquiliza-nos, dá-nos segurança. Ele também morreu, mas agora ocupa o lugar que lhe está destinado: o do Primeiro e do Último.
Neste entrelaçamento de símbolos - aqui há muitos símbolos - há um aspeto que talvez nos ajude a compreender melhor a ligação desta teofania, esta manifestação de Deus com o ciclo da vida, o tempo da história, o senhorio de Deus sobre o mundo criado. E este aspeto tem a ver precisamente com a velhice. O que tem a ver com isto? Vejamos.
A visão transmite uma impressão de vigor e força, de nobreza, de beleza e de encanto. A roupa, os olhos, a voz, os pés, tudo é esplêndido nesta visão: trata-se de uma visão! O seu cabelo, porém, é cândido: como a lã, como a neve. Como a de um homem idoso. O termo bíblico mais comum para indicar o idoso é “zaqen”: de “zaqan”, que significa “barba”. O cabelo branco é o símbolo antigo de um tempo muito longo, de um passado imemorável, de uma existência eterna. Não devemos desmitificar tudo com as crianças: a imagem de um Deus ancião com cabelo branco não é um símbolo tolo, é uma imagem bíblica, uma imagem nobre e também terna. A Figura que no Apocalipse está entre os castiçais de ouro sobrepõe-se à do “Ancião de dias” da profecia de Daniel. É velho como a humanidade inteira, mas ainda mais. É antigo e novo como a eternidade de Deus. Porque a eternidade de Deus é assim, antiga e nova, pois Deus surpreende-nos sempre com a sua novidade, vem sempre até nós, todos os dias de modo especial, para aquele momento, para nós. Renova-se sempre: Deus é eterno, é desde sempre, podemos dizer que há como que uma velhice em Deus, não é assim, mas é eterno, renova-se.
Nas Igrejas orientais, a festa do Encontro com o Senhor, que se celebra a 2 de fevereiro, é uma das doze grandes festas do ano litúrgico. Salienta o encontro de Jesus com o ancião Simeão no Templo, que evidencia o encontro da humanidade, representada pelos anciãos Simeão e Ana, com Cristo Senhor pequenino, Filho eterno de Deus feito homem. Um bonito ícone dele pode ser admirado em Roma, nos mosaicos de Santa Maria “in Trastevere”.
A liturgia bizantina reza com Simeão: «Este é Aquele que nasceu da Virgem: é o Verbo, Deus de Deus, Aquele que se fez carne por nós e salvou o homem». E continua: «Que se abra hoje a porta do céu, o Verbo eterno do Pai, tendo assumido um princípio temporal, sem deixar a sua divindade, é apresentado pela sua vontade no templo da Lei pela Virgem Mãe, e o ancião toma-o no colo». Estas palavras expressam a profissão de fé dos primeiros quatro Concílios ecuménicos, que são sagrados para todas as Igrejas. Mas o gesto de Simeão é também o ícone mais bonito para a especial vocação da velhice: olhando para Simeão, contemplamos o ícone mais belo da velhice: apresentar as crianças que vêm ao mundo como um dom ininterrupto de Deus, sabendo que um deles é o Filho gerado na própria intimidade de Deus, antes de todos os séculos.
A velhice, encaminhada rumo a um mundo onde poderá finalmente irradiar sem obstáculos o amor que Deus colocou na Criação, deve realizar este gesto de Simeão e Ana, antes da sua despedida. A velhice deve dar testemunho –para mim este é o núcleo, o mais central da velhice - a velhice deve dar testemunho às crianças da sua bênção: consiste na sua iniciação - bela e difícil - no mistério de um destino para a vida que ninguém pode aniquilar. Nem sequer a morte. Dar testemunho de fé perante uma criança é semear esta vida; dar testemunho de humanidade e de fé é também a vocação dos idosos. Para transmitir às crianças a realidade que experimentaram como testemunhas, dar o testemunho. Nós, idosos, somos chamados a isto, a dar testemunho, para que elas o levem adiante.
O testemunho dos idosos é credível para as crianças: os jovens e os adultos não são capazes de o tornar tão autêntico, tão terno, tão pungente como o podem os idosos, os avós. Quando o idoso abençoa a vida que vem ao seu encontro, pondo de lado todo o ressentimento pela vida que está prestes a acabar, é irresistível. Não está amargurado porque o tempo passa e ele vai-se embora: não! É com aquela alegria do bom vinho, do vinho que se tornou bom ao longo dos anos. O testemunho dos idosos une as idades da vida e as próprias dimensões do tempo: passado, presente e futuro, porque eles não são apenas a memória, são o presente e também a promessa. É doloroso - e prejudicial - ver que as idades da vida são concebidas como mundos separados e competitivos, cada um procurando viver à custa do outro: não está bem. A humanidade é antiga, muito antiga, se olharmos para o tempo do relógio. Mas o Filho de Deus, que nasceu de mulher, é o Primeiro e o Último de todos os tempos. Significa que ninguém fica fora da sua eterna geração, fora da sua maravilhosa força, fora da sua amorosa proximidade.
A aliança - e digo aliança – a aliança dos idosos e das crianças salvará a família humana. Onde as crianças, onde os jovens falam com os velhos há futuro; se não houver este diálogo entre idosos e jovens, o futuro não se verá claramente. A aliança dos idosos e das crianças salvará a família humana. Poderíamos por favor restituir às crianças, que devem aprender a nascer, o terno testemunho de idosos que possuem a sabedoria de morrer? Poderá esta humanidade, que com todo o seu progresso nos parece um adolescente que nasceu ontem, ser capaz de recuperar a graça de uma velhice que mantém firme o horizonte do nosso destino? A morte é certamente uma passagem difícil da vida, para todos nós: é uma passagem difícil. Todos temos de chegar lá, mas não é fácil. Contudo, a morte é também a passagem que fecha o tempo da incerteza e abandona o relógio: é difícil, porque ele é a passagem da morte. Porque a beleza da vida, que já não tem prazo, começa precisamente naquele momento. Mas começa com a sabedoria daquele homem e daquela mulher, idosos, que são capazes de dar testemunho aos jovens. Pensemos no diálogo, na aliança dos idosos e das crianças, dos anciãos com os jovens, e asseguremos que este vínculo não seja rompido. Que os idosos tenham a alegria de falar, de se expressar com os jovens, e que os jovens procurem os idosos para aprender com eles a sabedoria da vida.
Papa Francisco
17.08.22
Catequese na audiência geral
imagem: site do vaticano
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