“Em colóquio com os seus discípulos, Jesus convidava-os a reconhecer a relação paterna que Deus tem com todas as criaturas e recordava-lhes,
com comovente ternura, como cada uma delas era importante aos olhos d’Ele” (laudato si’ n. 96)
Todas as religiões e culturas se servem de relatos para revelar a verdade e fazer chegar até nós a sabedoria de nossos antepassados. A revelação mais antiga e universal é que a Terra e todas as suas criaturas, assim como o ar, o solo, a pedra e a água são sagrados, e que esta verdade deve refletir-se em nossas vidas.
Como cristãos, seguir Jesus Cristo hoje é adquirir conhecimento e experiência consciente desta história oculta e sagrada. Com efeito, a Terra acolheu Jesus como acolhe toda pessoa que vem a este mundo.
É a casa verdadeira, a mais básica. Jesus sentiu a companhia desta Terra que é irmã e mãe. Os Evangelhos destacam de muitas maneiras a boa relação que Ele teve com a Terra. Jesus soube viver as noites e empregá-las, para além de sua solidão e aspereza, para encontrar sentido e para dar profundidade às suas atuações mais decisivas. Desfrutou dos caminhos andados, dos campos semeados, do vento que se assemelha ao Espírito, das árvores que empregará como parábolas do Reino, das vinhas que serão símbolo de sua oferta em novidade... Experimentou a dureza da Terra, sua aspereza no deserto e o calor de seu abrigo à hora da morte; pisou o chão de terra batida, machucada, rasgada... Teve uma mentalidade inclusiva porque, no fundo, entendeu que tudo estava relacionado e que as coisas e as pessoas espreitam o mesmo horizonte.
Na 2ª. Semana dos EE alimentamos nossa relação com Deus e com a Criação; ou, formulando de maneira mais adequada, nossa relação com Deus passa através da natureza. Pedimos a graça do conhecimento interno de Jesus, aquele Jesus que sempre manteve uma relação íntima com a Criação. Seu ministério começou com quarenta dias no deserto e terminou no horto do Getsêmani; Ele viveu experiências místicas na montanha (a transfiguração) e nas águas do Jordão (batismo). Seus relatos e parábolas utilizam as imagens da natureza para explicar o Reino de Deus. Este é o Jesus com quem nossa relação se faz mais profunda.
É impressionante que o núcleo central das parábolas de Jesus é formado por imagens que “ligam”, que integram e comprometem. O fermento da relação é que constitui o material do Reino de Deus. É precisamente o sentido particular da relação pessoal de Jesus com a Trindade, com os demais seres humanos e com o mundo que nos permite descobrir o significado espiritual da dimensão da “relação”.
O relato da Encarnação nos faz ser conscientes da atitude da Trindade na sua relação com o cosmos. Em Jesus Cristo, nos fazemos conscientes da conexão que há entre todos os seres humanos e destes com todas as demais criaturas e com o Criador. Ele não só tornou próximo um Deus cujo próprio ser é relacional (cerne da doutrina cristã da Trindade), mas revelou que o caminho para a plenitude e a transformação consiste numa correta e justa relação e conexão entre todos os seres. Na verdade, Ele chamou o ser humano a sair de seu mundo fechado, de seu isolamento e padrões alienados de relacionamento para expandir-se em direção a uma nova forma relacional com tudo o que existe; tal relação é a concretização do sonho do Reino de Deus.
Isto significa que o discípulo de Jesus deve apresentar um estilo de vida completamente contrário à ética do individualismo consumista e do domínio competitivo do mundo atual. O olhar de Jesus sobre a Criação, tal qual o apresenta Mt. 6,26-36, se alimenta de sua relação com o Pai; trata-se de um olhar e de um receber que se faz abandono confiante ao Pai.
A primeira atitude diante da Criação é a de reaprender a olhar, a observar: “olhai”. Ele nos chama a um olhar novo e ao mesmo tempo antigo sobre a Criação: o da maravilha diante de uma natureza dada para acender em nós o assombro, a emoção e o encanto. No fundo, trata-se do mesmo olhar que Deus, segundo Gen. 1, teve diante de sua criação (“... e Deus viu que era belo, bom”). A natureza dada desperta o olhar receptivo daquele que a acolhe como dom e como promessa.
A primeira relação do ser humano com a Criação, portanto, não é a da posse, nem a da pergunta pelo seu porquê, mas a da acolhida em seu ser dado. A forma dessa acolhida é a maravilha de sua presença e o temor diante de sua possível perda. Essa é a primeira experiência que todos fazemos. Todos os bens da Criação são recebidos por nós deste modo, ou seja, como dons. A confissão no Deus Criador não é, portanto, em sua origem, da ordem do conceito, mas da acolhida da Criação como dada a nós.
Mateus nos indica ainda que o olhar ao qual nos convida Jesus leva ao reconhecimento Daquele que é fonte do dom. De novo aqui, mais que se perguntar pelo porquê do mundo, Jesus nos convida a reconhecer o Doador que cuida assim dos pássaros do céu e reveste de tal glória os lírios do campo.
A Criação como realidade doada, convida à compreensão de sua origem, não para dominá-la e manipulá-la, mas para tornar o dom uma benção fecunda para todos.
No fundo, trata-se de reconhecer que a Criação “dada-a” é “doada-por”. Ela deve, por isso, ser recebida como fecundidade, não como algo que é objeto de conquista e domínio. Isso fundamenta não um fazer produtivo, mas um agir compartilhado: “trabalhar com” o Criador, levando a Criação á sua plenitude.
Segundo o relato bíblico, a primeira vocação do ser humano é a de ser jardineiro, pois recebeu do Criador a missão de cuidar e preservar a Sua “vinha”: lugar onde os homens, as mulheres e as crianças convivem em harmonia e compartilham os frutos abundantes das videiras.
Existimos para acariciar a terra, para prepará-la, para fertilizá-la, para cuidá-la, para torná-la bela.
Mas que coisas horríveis fizemos com a vinha que herdamos!
Quando observamos vinhas outrora verdejantes e agora destruídas ou entulhadas de lixo, uma sensação de violação, de tragédia, quase de sacrilégio, se manifesta no nosso interior. E uma voz ecoa das profundezas da destruição: “Quê fizestes de minha vinha?”.
O cuidado e a beleza da vinha impõe-se ao desejo consumista desenfreado, pois somos jardineiros e não exploradores.
O que caracteriza essa nova atitude é o cuidado em lugar da dominação, o reconhecimento do valor de cada criatura e não sua mera utilização humana, o respeito por toda forma de vida e os direitos e a dignidade da natureza, não sua exploração.
Assim, o exercício do cuidado, por parte do ser humano, deve significar respeito à ação criativa divina, contribuir com o crescimento e a evolução, garantir a sua continuidade, cuidar e fazer da vinha uma fonte de bênçãos, ou seja, de comunhão com ela e, a partir dela, harmonia interior, comunhão com as outras pessoas e estreitamento de relações com o próprio Criador.
Quem sabe, um dia, os seres humanos olharão novamente para a vinha do Senhor com olhos encantados e sofrerão ao vê-la violentada pelos vândalos que a estupram em nome do crescimento econômico.
Textos bíblicos: Mt. 21,33-43 Is. 5,1-7
Na oração: Este sentido profundo nasce do uso que fazemos de nossa imaginação na oração para contemplar cenas da vida de Cristo no Evangelho. Nela, somos convidados a entrar na cena como se formássemos parte do mundo natural: a semente plantada, a tumba de Cristo de pedra talhada, o azeite que unge os pés de Cristo, a água que lava os pés dos apóstolos, as flores, os pássaros... Tais contemplações provocam em nós sentimentos de gratidão e nos impulsionam à ação em favor da Criação. A contemplação destas cenas nos dá valor e um novo tipo de humildade reverencial pelo dom da criação – as mesmas virtudes que Jesus cultivou seguindo a Vontade do Pai.
A combinação desta nova linguagem de imagens, junto ao assombro e à graça da criação, tem o poder de plenitude. Ao entrar na contemplação adotando o ponto de vista da terra, experimentamos uma profunda sensação de harmonia e de cura.
- assumir gestos de cuidado para com o meio ambiente: reduzir, reciclar, reutilizar, replantar...
Pe. Adroaldo Palaoro sj
01.10.2020
“Mas somos chamados a tornar-nos os instrumentos de Deus Pai para que o nosso planeta
seja o que Ele sonhou ao criá-lo e corresponda ao seu projeto de paz, beleza e plenitude” (Laudato Si’ no. 53)
O exercitante, depois de alcançar uma experiência de grande bondade, compaixão e misericórdia, sente seu coração cheio de gratidão, desejo e generosidade, e pergunta a si mesmo o “quê poderia fazer” para responder a semelhante amor compassivo e criativo de Deus.
Neste momento de transição entre a 1ª. e 2ª. Semanas S. Inácio lhe propõe o “Exercício do Reino”.
O objetivo do Exercício do Reino é chegar a fazer-nos discípulos(as) de Jesus para a reconstrução da comunidade universal de vida. A contemplação nos ajudará a responder melhor ao chamado de Jesus Cristo (EE. 91-98) e unir-nos a Ele na grande missão de trabalhar por um mundo melhor, de intensa beleza, diversidade e a complexidade. Ao “pessimismo cósmico” opõe-se o “otimismo cósmico” próprio da nossa vocação: procurar e despertar a “esperança cósmica”.
No exercício do Reino, ter Jesus diante dos olhos que nos convida a unir-nos à sua missão e nos diz: “Meu desejo mais profundo é mostrar a beleza de nossa terra e levar todos os nossos semelhantes à libertação e à realização. Eu te peço que aprecies todos os membros da comunidade, a matéria e os seres vivos, e que cooperes com eles para cumprir este desejo profundo. Se queres seguir-me nesta missão, deverás estar disposto a trabalhar e sofrer comigo, e espero que todas as pessoas de bom coração, juízo e razão se ofereçam totalmente para realizar comigo esta missão. Eu te peço também que demonstres amor e humildade, e trabalhes para procurar e sentir a beleza e o verdadeiro parentesco com toda a comunidade de vida”.
Segundo o relato bíblico, a primeira vocação do ser humano é a de ser jardineiro, pois recebeu do Criador a missão de cuidar e preservar a Sua “vinha”: lugar onde os homens, as mulheres e as crianças convivem em harmonia e com-partilham os frutos abundantes das videiras.
Na perspectiva bíblica, a vinha aparece sempre como aliada do ser humano; ela nos ensina a viver em harmonia com a água, com a terra e com todos os seres, numa relação de aliança, de gratuidade...
A primeira relação do ser humano com a Vinha, portanto, não é a de dominação arbitrária e exploradora, mas a da acolhida e da gratuidade, por ela ser dada em herança.
No fundo, trata-se de reconhecer que a Vinha “dada-a” é “doada-por”. Ela deve, por isso, ser recebida como fecundidade, não como algo que é objeto de conquista e domínio. Isso fundamenta não um fazer produtivo, mas um agir compartilhado: o ser humano é chamado a “trabalhar com” o Criador, cuidando da Vinha para que ela seja fecunda e alimente a alegria de todos.
A vinha é dada por Deus em função da vida. Por isso a Vinha é sagrada e é lugar de contemplação e encontro íntimo com o Criador; ela é o teatro da glória de Deus, isto é, da manifestação da presença divina.
O cuidado e a beleza da vinha impõem-se ao desejo consumista desenfreado, pois somos jardineiros e não exploradores. Existimos para acariciar a terra, para prepará-la, para fertilizá-la, para cuidá-la, para torná-la bela.
Os profetas sempre insistiram neste ponto: quando o povo guarda a aliança com Deus e respeita a terra, esta torna-se fértil e generosa. Quando as pessoas rompem a aliança com Deus e se afastam d’Ele, a vinha fica estéril.
A vinha não é o lugar para a espoliação e a devastação, mas para o louvor e o serviço a Deus.
A vinha não foi dada em herança para o consumismo, mas para a vida; não é para que uns poucos se apropriem dela como donos, mas para todos abrigar e alimentar; ela não é campo para a guerra, mas para a convivência fraterna, a solidariedade, a justiça e a paz. Somente a vivência dessa relação do ser humano com a vinha possibilitará novas relações sociais e ambientais, o novo tempo de paz e justiça.
Os homens e as mulheres de todos os tempos e lugares trazem, como que enraizados nas fendas mais profundas de sua alma, sonhos de rara beleza. São desejos de convivialidade, de superação da dor e da solidão, sonhos de fraternidade e da harmonia cósmica...
Era certamente nessa direção que Jesus apontava ao falar do Reino de Deus como o mundo das esperanças e possibilidades. “Um outro mundo é possível”.
O que caracteriza essa nova atitude é o cuidado em lugar da dominação, o reconhecimento do valor de cada criatura e não sua mera utilização humana, o respeito por toda forma de vida e os direitos e a dignidade da natureza, não sua exploração.
Assim, o exercício do cuidado, por parte do ser humano, deve significar respeito à ação criativa divina e contribuir com o crescimento e a evolução da natureza em todas as suas dimensões; igualmente, cuidar e
fazer da vinha uma fonte inesgotável de bênçãos, ou seja, de comunhão com ela e, a partir dela, crescer em harmonia interior, comunhão com as outras pessoas e estreitamento de relações com o próprio Criador.
Como seguidores(as) d’Aquele que veio “trazer Vida, e vida em plenitude”, somos convocados a desenvolver uma consciência criatural, em que a Criação deixa de ser vista como objeto de domínio. Ela é um dom de Deus que deve ser acolhido com reverência, respeito e louvor.
É nesse momento dramático que uma nova cosmologia se revela inspiradora. Em vez de “dominar” a natureza, situa-nos no seio dela em profunda sintonia e sinergia.
Enfim, a imagem bíblica da Vinha aponta para uma relação de acolhida agradecida e reconhecida, pois ela é o lugar no qual não só existimos, mas somos chamados a uma plenitude de vida, em aliança e comunhão com o Deus Trindade.
Somos todos “lavradores” encarregados de tornar a vinha fecunda. Quem sabe, um dia, olharemos novamente para a Vinha do Senhor com olhos encantados e sofreremos ao vê-la violentada pelos vândalos que a estupram em nome do crescimento econômico.
Textos bíblicos: Lc 10,1-12 Gen 2,1-17 Mc 3,7-19
Na oração: - O exercício do Reino deve afetar o mundo dos desejos, aspirações, sonhos, esperanças...
- quais são seus sonhos? Quê esperanças você carrega no coração? A quê você se anima a gastar sua vida? Que medos o(a) paralisam?
- assumir gestos de cuidado para com o meio ambiente: reduzir, reciclar, reutilizar, replantar...
- Peça a Deus para que lhe conceda a graça de poder responder com generosidade ao apelo de Jesus para dedicar-se a promover o bem-estar ecológico. Ofereça todo o seu ser com palavras como estas:
“Eterna fonte de todo criado, na presença de Tua bondade infinita, de Tua Mãe e de todos os santos do céu, eu me ofereço a Ti com tua graça e tua ajuda. Desejo de todo coração e decido... …(escrevo).
Tenho consciência daquilo que eu gostaria de fazer para colaborar contigo em promover um aumento da beleza e do parentesco na comunidade universal de vida, bem como ser um defensor da vida, sabendo que isto pode me acarretar situações de afronta, de incompreensão e de perseguição. Peço a graça de poder chegar a servir-te melhor, sempre que seja Teu desejo admitir-me neste estilo de vida. Amém!”
Pe. Adroaldo Palaoro sj
25.09.2020
“O Criador não nos abandona, nunca recua no seu projeto de amor, nem se arrepende de nos ter criado. A humanidade possui ainda a capacidade de colaborar na construção da nossa casa comum” (Laudato si’ n. 13)
No princípio era a Misericórdia e a Misericórdia é o nome bíblico de Deus. Por ela tudo foi criado.
Deus é Criador e das suas “entranhas de misericórdia” faz brotar novidades surpreendentes em meio ao “caos”. A Criação aparece então como um grande gesto de Misericórdia e todas as expressões de vida tornam-se a história da fidelidade dessa misericórdia gratuita. E foi do transbordamento da misericórdia divina que brotou a vida, pois a misericórdia é sempre criativa, original: ela cria e recria continuamente e desencadeia um movimento expansivo em direção à plenitude.
Segundo os relatos da Criação, a Misericórdia é criadora, é poeta, é pintora, é cantora – é irradiante, expansiva. Deus é Pai-Mãe e artista da Criação: sua obra é eternamente “obra aberta”, possível de ser revisitada, contemplada, admirada... Um universo que é fecundado pela Misericórdia de Deus é um universo abençoado, salvo e seguro.
A misericórdia é a luz e a chave de nossa vida tão preciosa e frágil, de nosso pequeno planeta tão vulnerável, do universo imenso e interrelacionado e do qual fazemos parte.
Todo o Universo é um suspiro do amor misericordioso.
As concepções judaica e cristã do mundo e do tempo rompem com a visão cíclica dos gregos antigos, desenvolvendo mais uma perspectiva histórica de um tempo aberto ao futuro e no qual há lugar para a novidade. Muitos textos bíblicos falam da criação como um processo e que deve, sim, recomeçar cada vez que o ser humano a corrompe. “O Senhor criou algo novo sobre a terra” (Jer. 31,22)
A misericórdia fecunda o universo e o torna fecundo. Conforme o Gênesis, Deus dá à terra e ao mar capacidade para produzir vegetais, animais e peixes, segundo a sua espécie.
A Criação não é só criada; é co-criadora, geradora de vida, pois cria, protege, sustenta... Ela prolonga e participa do ato criador de Deus, pois em tudo encontramos “faíscas” de misericórdia.
Segundo Walter Kasper “o testemunho de toda a Escritura, a misericórdia é o atributo de Deus que ocupa o primeiro lugar na autorrevelação de Deus na História da Salvação; é o lado visível e operativo para fora da essência de Deus, que é amor”.
Na Sagrada Escritura o termo “rahamim” traduz o caráter “generoso” da misericórdia: um amor com potência regenerativa: aproxima, perdoa, resgata, cura, refaz. É amor que reconstrói a vida.
“A misericórdia é o segundo nome do Amor”.
A expressão “rahamim” é sintetizadora de sentimentos de compaixão, misericórdia, pela força criadora de afirmar a vida em meio ao caos.
O coração de Deus é o de um Deus com “entranhas de misericórdia”, entranhas que se comovem e que O fazem sair e transbordar-se como amor terno sobre a Criação e sobre a humanidade. Nesse sentido, a Criação é o transbordamento da misericórdia divina.
As páginas do AT estão cheias de afirmações e de atitudes de misericórdia de Deus, inclusive com respeito a todos as criaturas. Todas elas são fruto do Amor de Deus, e portanto de sua misericórdia.
A Criação inteira tem um centro habitado pela Misericórdia e Ternura de Deus, que sustentam a Aliança do Criador com a Criação e com a Humanidade inteira; ao mesmo tempo, é a Misericórdia que move o ser humano a viver a aliança relacional com todos e com tudo.
Por isso, somos “seres orbitais”. Como planetas, vivemos em busca de um Sol em torno do qual gravitar. Estamos sedentos da luz da misericórdia. Na cotidiana convivência com os nossos semelhantes e na relação amorosa com todas as criaturas, somos todos quais partículas localizadas no espaço; porém, quando nos deixamos banhar pela misericórdia divina, somos onda que se propaga, todo o nosso ser flui e, de fato, estamos lá onde o nosso coração nos arrebata.
Só a Misericórdia é capaz de deter a dinâmica da ruptura das relações. E nesta Misericórdia não está só Deus, mas também as demais criaturas, o cosmos inteiro.
Ou seja, graças a uma “conspiração misericordiosa” da Criação, não fomos aniquilados pelo caos do pecado, senão que existe uma consistência relacional e solidária no mundo criado por Deus que faz com que não sucumbamos, ainda que façamos todo o possível por perder-nos.
Deixar-nos conduzir pela Misericórdia leva a sairmos de nós mesmos e a abrir-nos à contemplação sobre qual é o verdadeiro modo de ser e de existir que restaura a imagem e semelhança originais e que devolve ao mundo sua condição paradisíaca.
Movidos pela misericórdia reconstrutora, é urgente refazer o caminho de volta, como filhos pródigos, rumo à ”comunidade universal de vida” e restabelecer a re-ligação com o Todo e com todos.
Se há algo que caracteriza nosso tempo é a nova consciência de ser rede-comunhão-interconexão-unidade. Encontramo-nos em um tempo surpreendente: as espetaculares inovações tecnológicas nos convidam a entrar numa inimaginável rede de informações, imagens, conexões... Nosso planeta está dotado de uma complexíssima textura de comunicações.
“Deixar-se enredar pela misericórdia” é implicar-se na vida daqueles que dela mais precisam, ser presença misericordiosa em situações de fronteira, colocando nossas energias, nossa formação, nossa vida a serviço... para criar, alimentar e sustentar os laços humanos, o cuidado com a natureza, o fortalecimento das relações sociais, a criação de estruturas políticas e econômicas que tornem possível a solidariedade entre todos os seres humanos e aponte para um mundo fraterno e justo.
Este tempo pede de nós cristãos “uma espiritualidade da conexão”, da busca da experiência da Unidade, de estender pontes entre culturas, raças, sexos, crenças religiosas, ideologias, de romper fronteiras a partir da não-violência, de criar redes que inter-atuam. Precisamos sair de nossos pequenos círculos para criar vínculos com tantos grupos e organizações sociais, movimentos ecológicos que buscam outra globalização, a globalização da solidariedade, da misericórdia, da partilha...
Este novo mundo que emerge pede de nós uma nova espiritualidade das relações misericordiosas: chegou a hora de renunciar às relações de poder; de dominação-submissão, para viver relações humanizadoras com a marca da “misericórdia”, reflexo do Deus Misericórdia em quem cremos. Isso tornará possível que a comunidade universal de vida deixe transparecer os valores evangélicos de justiça, amor, paz, cuidado, libertação...
Nós cristãos somos chamados a articular redes e desarticular pirâmides; articular participação e desarticular hegemonias; articular os sonhos de outro mundo possível, e desmanchar teorias da “desigualdade natural”. A comunidade cristã articula redes de esperança. Essas redes somam forças, criam energias, estabelecem comunicação. Com isso, acontecerá um novo fluxo energético e pentecostal no interior da nossa “Casa comum”. O Espírito Santo também atua nos sites, bites, satélites... movendo a história na construção da grande rede da misericórdia solidária.
Textos bíblicos: Lc. 15,11-32 Jo. 8,1-11 Os 11 Is 65,17-25
Na oração: Recorde o que Deus sonhava com a criação do mundo: a felicidade dos primeiros pais; a terra não é inimiga do ser humano, mas é rica e generosa; tudo é de todos; há uma perfeita harmonia entre o ser humano e as criaturas; reina perfeita fraternidade: a humanidade como uma só comunidade...
Despertar o impulso para ser presença inspiradora e reconstrutora, diante de um mundo fragmentado e dividido.
Entrar no “fluxo” da misericórdia divina: ser canal por onde circula o amor misericordioso em favor dos outros.
Somos chamados a exercer o “ofício da misericórdia”.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
18.09.2020
“Essas situações provocam os gemidos da irmã terra, que se unem aos gemidos dos abandonados do mundo, com um lamento que reclama de nós outro rumo. Nunca maltratamos e ferimos a nossa casa comum como nos últimos dois séculos” (Laudato Si’ n. 53)
Depois de considerar o sentido de nossa existência diante de Deus (texto anterior), agora nos é pedido que façamos oração sobre os pecados estruturais da comunidade humana e sobre os nossos pecados pessoais, até que alcancemos a graça que nosso coração deseja. No exercício anterior, enchemo-nos de gratidão e assombro pela nossa existência, pelo amor da Trindade e pela comunidade universal de vida que nos sustenta.
No entanto, contemplando o cenário da Criação, vamos também tomando consciência que perdemos o sentido da corrente única da vida e de sua imensa diversidade. Esquecemos a teia das inter-dependências e da comunhão de todos com a Fonte originária de tudo.
Por isso, em nossa oração, situados diante da Bondade infinita do Criador, vamos implorar sua misericórdia por termos sidos negligentes no “cuidado da Casa comum”, plena de beleza e harmonia; misericórdia que nos chama a uma “metanoia”, ou seja, para uma conversão nos nossos relacionamentos com a Mãe natureza, tal como ela foi criada.
Todos somos filhos e filhas da Terra. Mais ainda, como humanos, somos a pró-pria Terra em seu momento de sentimento, de pensamento, de amor e de veneração. Historicamente cometemos um sacrilégio: rompemos a aliança fundamental de todo o universo, a solidariedade cósmica pela qual nunca existimos sozinhos, mas co-existimos e inter-existimos uns pelos outros, com os outros e para os outros. Separamo-nos da comunidade planetária, colocando-nos acima de todos os seres, ao invés de vivermos a comunhão com eles.
Na perspectiva bíblica, o pecado aparece em primeiro lugar como a ruptura de uma aliança com o Criador, com os outros e com as criaturas. Cometemos um pecado ecológico. Ficamos surdos e mudos diante das mil mensagens que nos vem de cada ser e do universo inteiro. O pecado se mostrou como uma força de desintegração do ser humano com sua Fonte Original, como força de desintegração do ser humano consigo mesmo e, por fim, como força de desintegração com o Todo.
Por trás da palavra “pecado” se esconde o drama da existência humana. Esse drama mostra-se trágico, pois revela uma aparente situação insolúvel que dilacera o coração e estraçalha a esperança humana.
A experiência do pecado é de desvio de rota, de frustração da própria vocação, experiência que nos desumaniza e nos faz viver uma existência vazia; com isso passamos a viver exilados, desterrados, solitários...
Nossa comunhão sagrada com a natureza, nossa fonte de vida e de significado, foi substituída por um profundo desespero. De fato, temos lavrado nosso próprio “inferno”.
Hoje constatamos as chagas ecológicas estampadas por toda parte e os próprios seres humanos deformados pela miséria e exclusão. Não levamos em consideração a vulnerabilidade dos equilíbrios vitais dos ecossistemas. Nesse sentido crescem as situações em que os seres vivos e o próprio ser humano encontram-se fragilizados e ameaçados em sua sobrevivência e desenvolvimento.
A degradação do ambiente natural e social fragiliza e ameaça o próprio ser humano.
Buracos na camada de ozônio, mutações climáticas provocadas pelo efeito estufa, enchentes diluvianas, secas prolongadas e devastadoras, desertificação de imensas áreas, erosão de solos férteis, desaparecimento de florestas devido ao desmatamento e às chuvas ácidas, rios assoreados e poluídos devido ao esgoto doméstico e aos detritos industriais, ar irrespirável pela presença de monóxido de carbono e outros gases venenosos, poluição sonora e visual das grandes cidades, crescimento e acúmulo de lixo urbano e industrial, esgotamento das fontes de energia não renováveis e dos lençóis freáticos de água, extinção continuada e crescente de espécies vegetais e animais, pondo em risco a biodiversidade e o equilíbrio dos ecossistemas são pecados do nosso dia-a-dia...
O drama do ser humano é perder a memória de que é parte do todo: seu instinto de posse e domínio o leva a romper a relação cordial com todas as criaturas, caindo num devastador vazio existencial. A “centração em si mesmo”, sem levar em conta a rede de relações que o envolve, provoca a quebra da “re-ligação” com tudo e com todos. Este é o veneno que corrói o ser humano por dentro: petrificação de sua interioridade, a perda do gosto pela verdade, pelo belo e pelo bem, o extravio da ternura e da transcendência, a atrofia da comunhão com o todo cósmico...
Diante da Misericórdia reconstrutora de Deus, devemos tomar consciência de que o ser humano está procedendo de maneira destrutiva contra a natureza e contra si mesmo, produzindo um verdadeiro colapso ecológico e humano. Há uma crise ecológica que se alastra rapidamente, corroendo o equilíbrio vital que sustenta a Criação toda.
A natureza está sendo “desnaturada” e o ser humano “desumanizado”. Esta crise aponta para um ser humano doente e a doença consiste justamente na separação entre o ser humano e a natureza, no esquecimento de seu parentesco e solidariedade.
A crise ecológica é a própria crise do ser humano. Nossa “oikós” (casa) está em ruínas, devido à maneira como a habitamos. Arrancamos pedaços dela para satisfazer nossos interesses individuais e não nos damos conta que estamos destruindo nosso próprio habitat. “O ser humano transformou o Éden num matadouro e o Paraíso ocupado num paraíso perdido” (E. Wilson)
Em termos inacianos, podemos qualificar tudo isso de desolação comunitária: o lugar pós-moderno do inferno. Conquistamos demais e cuidamos de menos. A ameaça provém da atividade humana altamente depredadora da natureza.
No entanto, a experiência cristã afirma: o ser humano é resgatável. Ele não está condenado definitiva-mente à condição de pecador; ao contemplar o universo desolado e devastado, a misericórdia de Deus faz brotar do seu interior uma “exclamação de admiração com intenso afeto” (EE. 60).
Na oração, considero a fidelidade com que o sol ilumina a terra para que a vida se desenvolva e se multiplique; a fidelidade com que a rotação do planeta nos traz a noite e o repouso. Recordo como a água limpa, o ar e a boa alimentação me sustentam cotidianamente; como a madeira das árvores me protegem dos rigores do tempo, como as fibras das plantas e dos animais me servem de abrigo; recordo como os micróbios produzem antibióticos para curar-me. Fico admirado e assombrado diante da generosidade da natureza que me proporciona todas as coisas boas em abundância.
Assim também, o amor, os cuidados e os sacrifícios de muitas pessoas e criaturas fazem minha vida mais fácil e enchem-na de alegria.
Louvo a misericórdia da Trindade que me re-cria a cada momento e revela Seu rosto nas criaturas.
Podemos parafrasear o no. 60 dos Exercícios Espirituais de Santo Inácio de Loyola, dizendo:
“Quando contemplo a maravilhosa harmonia da criação, fico admirado que ela não tenha se voltado contra mim, considerando-me uma nódoa no conjunto de sua beleza. Quando me fecho em mim mesmo, a terra continua me sustentando e o sol se nega a me queimar como a um plástico. Quando expresso violência, as flores me oferecem sua fragrância. Quando eu me afasto de Deus e dos outros, o ar continua entrando em meus pulmões e a luz ilumina meus olhos... Apesar de estar totalmente fora de sintonia com tanta beleza, a natureza inteira está sempre disposta a me perdoar, a me reconquistar e a me embelezar. Do meu coração brota uma exclamação de admiração com intenso afeto”.
Textos bíblicos: Os 2,9-10.16-25 Rom 1,18-32 Is. 24 Ef 6,10-13
Pe. Adroaldo Palaoro sj
10.09.2020
“Tudo está relacionado, e todos nós, seres humanos, caminhamos juntos como irmãos e irmãs numa peregrinação maravilhosa, entrelaçados pelo amor que Deus tem a cada uma das suas criaturas e que nos une também, com terna afeição, ao irmão sol, à irmã lua, ao irmão rio e à mãe terra”
(Laudato Si’, n. 92).
O núcleo da experiência bíblica é a tomada de consciência do Amor divino presente e atuante no mundo. Este mistério primordial da relação de Deus com a Criação constitui o centro mesmo da Revelação. A Criação aparece então como um grande gesto de Amor e todas as expressões de vida tornam-se a história da fidelidade desse Amor gratuito. A Criação é obra do Amor exagerado de Deus.
E foi do transbordamento do Amor divino que brotou a vida, pois o Amor é sempre criativo, original: ele cria e re-cria continuamente e desencadeia um movimento expansivo em direção à plenitude. E o Amor de Deus é irradiante e expansivo; por isso, tudo está habitado e perpassado por esse Amor. Tudo está inter-ligado, conectado e enredado pelo Amor. É o Amor que nos faz sentir a inter-dependência, pois ele mantém inter-conectados os fios da vida. Tudo é dom do Amor; o Amor está presente em tudo; ele continua trabalhando e re-novando tudo, e em tudo encontramos vestígios dele. Assim, um universo que é fecundado pelo Amor de Deus é um universo abençoado, salvo e seguro.
O amor é a força maior existente na Criação, nos seres vivos e nos humanos. Porque o amor é uma força de atração, de união e de transformação. O amor é a expressão mais alta da vida que sempre irradia e pede cuidado, porque sem cuidado ela definha, adoece e morre.
- O que é que nos une? O que é que nos põe em relação uns com os outros?
É a “comunidade universal de vida”, isto é, tudo o que existe, tudo o que vive e que tem sentido pelo fato de estar em relação, em comunhão, desde o mais ínfimo ser ao mais elevado. Pertencemos a uma comunidade cósmica de vida tal como foi criada e sustentada por Deus.
Há uma interação entre nós, seres humanos, e a natureza. Nosso corpo e nosso cérebro são compostos das mesmas partículas que tecem o brilho das galáxias que ardem nas profundezas siderais. Impossível estabelecer uma nítida separação entre o ser humano e o universo.
Somos quem somos somente na relação e por nossa relação com todas as criaturas e com o próprio planeta. Os acontecimentos da evolução estão inter-relacionados. É um desafio, para a experiência de oração, assumir que o mundo é um santuário que deve ser respeitado e cuidado, que é a morada de tudo, que foi a morada do Filho de Deus, e que continuará sendo a morada da Humanidade e da Criação.
A fé na Criação diz que no princípio do processo da evolução do cosmos há um amor criador. Os textos ligados à Criação falam de Deus como Pai, mas também como Mãe; devemos integrar, nesta visão de Deus criador, a dimensão feminina da Mãe Divina que sofre dores de parto e gera o Universo como ato de amor. Todo o Universo é um suspiro do amor misericordioso.
No poema da Criação (Gen 1) o verbo usado para “criar” (“qaná”) pode ser traduzido por gerar; a criação é uma espécie de parto divino. Deus diminui a si mesmo para que o Universo possa nascer.
A Palavra criadora e amorosa de Deus gera e sustenta toda a Criação. Isso significa que a ação criativa de Deus não diz respeito apenas à origem do mundo, mas à uma relação de aliança com esse Universo hoje. Não foi uma vez que Deus criou, mas continua permanentemente a “gerar”, a “dar à luz” tudo o que existe. Acreditar na Criação é ver por trás de cada ser do Universo o amor de Deus nele presente e atuante.
Para a Bíblia, a natureza é sagrada, porém não é divina. É de Deus e manifesta Deus. Podemos sempre encontrar Deus no contato com a natureza, mas ela é criatura e sacramento, não a divindade em si mesma; a natureza também é mãe geradora. Conforme o Gênesis, Deus dá à terra e ao mar capacidade para gerar vegetais, animais e peixes, segundo a sua espécie. A criação não é só criada. É co-criadora, participa do ato criador de Deus. Por participação, é também divina.
A Bíblia insiste que é criação de Deus para salientar que toda ela depende de um amor que a ordena. Esse amor é que a tornará ecológica, isto é, casa comum para todos os seres vivos.
A Criação não se completa com a chegada do ser humano, embora a criação do homem e da mulher ocupe o centro do segundo relato do Gênesis (Gen. 2). Deus cria a humanidade da argila da terra, indi-cando que a natureza do ser humano é a mesma da terra. O ser humano tem uma relação visceral com a terra (em hebraico: “adamá”), de onde veio e para onde volta. E o sentido de tudo é a vida.
Deus não criou o ser humano para ser senhor absoluto da criação, mas para “cultivar e guardar a criação” (Gen 2,15) com carinho e ser para com as outras criaturas como Deus é: amor e ternura.
A visão bíblica sobre a criação revela que existe uma pertença mútua, um parentesco cósmico, uma irmandade universal entre todos os seres. Fora de Deus, tudo é criatura. Todos os seres da terra são criaturas de Deus. Todos tem impresso em seu ser mais profundo a marca do seu Criador, uma dignidade própria e maravilhosa. Por isso o Universo é sagrado e é lugar de contemplação e encontro íntimo com o Criador. O Universo é o teatro da glória de Deus, isto é, da manifestação da presença divina. Por isso, no primeiro relato da criação, o cume está na instituição do “sétimo dia”, o shabat, o descanso divino ou, em termos mais precisos, a plenitude da relação gratuita e amorosa do Divino com o Universo.
O termo “shabat” significa descanso e, ao mesmo tempo, plenitude, realização profunda. Isso significa que a realização mais profunda das pessoas e da natureza está na gratuidade, não no seu aspecto utilitário. O sentido da celebração do sábado é novamente se conceber a si mesmo, e à criação, como parceiros da aliança de Deus. O sábado é completude da criação: o repouso, a festa, o coroamento da criação. O sábado faz o casamento entre Deus e a criação.
A instituição do sábado é um dos elementos mais ecológicos de toda a Bíblia. “O ano sabático é uma política ambiental de Deus com suas criaturas e com a terra” (J. Moltmann).
A Aliança com Deus é ligada à relação com a terra. Nessa visão de aliança, a Bíblia destaca que a criação tem uma bondade estrutural: “Deus viu tudo o que tinha criado e viu que tudo era muito bom” (Gen. 1,31). Em toda a Bíblia, a terra aparece sempre como aliada do ser humano; ela nos ensina a viver com a água, com a terra e com todos os seres do Universo uma relação de aliança, não de dominação arbitrária e exploradora. Os profetas do Primeiro Testamento insistiram em que quando o povo guarda a aliança com Deus e respeita a terra, esta fica fértil e generosa. Quando as pessoas rompem a aliança com Deus e se afastam d’Ele, a terra fica estéril.
Uma leitura deformada do livro do Gênesis deu margem a uma ruptura de harmonia com todos os seres da terra. “Sede fecundos e multiplicai-vos, enchei a terra e subjugai-a! Dominai sobre os peixes do mar, as aves do céu e todos os animais que se movem pelo chão” (Gen. 1,28).
O termo “subjugar” (“kabas”), na maior parte dos textos bíblicos é usado no sentido de “amparar”, “proteger”. Da mesma forma, o verbo hebraico usado para “dominar” (“radah”), é um termo usado para expressar o caminhar do pastor com o seu rebanho, conduzindo-o às pastagens, protegendo-o contra o ataque dos animais selvagens. “Dominar”, portanto, vem do latim “dominus”, que significa “senhor”.
Dominar significa exercer o senhorio sobre as demais criaturas, e este exercício do senhorio deve ser exercido à maneira do “senhor”, que é o próprio Deus. A narrativa da Criação nos mostra como Deus exerce o senhorio em relação à Criação: ele a cria, ordena o seu crescimento e a sua evolução, garante a sua continuidade, cuida dela e a abençoa.
Assim, o exercício do senhorio, ou a dominação, por parte do ser humano, deve significar respeito à ação criativa divina, contribuir com o crescimento e a evolução da natureza em todas as suas dimensões, cuidado com o meio ambiente e fazer dele uma fonte de bênçãos, ou seja, de comunhão com ela e, a partir dela, harmonia interior, comunhão com as outras pesso-as e caminho de conhecimento e estreitamento de relações com o próprio Criador.
Textos bíblicos: Gen 1 Dan 3,51-90 Sl 136(135)
Na oração: Durante o tempo de oração deixe que seu sentimento de “irmandade universal” se expresse como gratidão, assombro, louvor, admiração...
Pe. Adroaldo Palaoro sj
03.09.2020
A imagem de Jesus reprimindo o desejo de Pedro de que não aconteça nada de mal ao Mestre ao anunciar a ida para a entrega em Jerusalém é muito forte. Jesus diz: “Afasta-te Satanás”. O relacionamento com o outro, segundo o filósofo Emanuel Levinas (1906), é fundamental para deflagrar nossa identidade. O conceito de alteridade garante a possibilidade do “EU” e constitui uma fonte originária de todos os motivos morais. O “Eu Sou”, revelado em Jesus é conhecido em cada movimento da história da salvação, e nossa questão é: quem é o discípulo que deseja apenas o bem para seu Mestre?
Jesus havia levado os discípulos a Cesárea de Filipe, região pagã e contraditória. Lá perguntou: “Quem Eu Sou?” Expressão do Nome de Deus no Primeiro Testamento. Pedro acerta na resposta e recebe as chaves do compromisso do primado. Então, Jesus começa a anunciar os próximos passos. Era necessário cumprir o trajeto da entrega pela causa que viera realizar. É nessa hora que Pedro desvia o olhar para a defesa contra os enfrentamentos anunciados e comete o humano ato de fuga, jogando para Deus a responsabilidade que é nossa: “Deus não permita”.
Encontro muita gente que prefere terceirizar as responsabilidades dizendo que isso é coisa do diabo, ou Deus quis assim! O que é responsabilidade nossa, está nas nossas mãos, precisa ser compromisso nosso, não pode ser terceirizado. Mesmo quando o outro nos interpela e funda em nós sua experiência vital, o princípio da alteridade não é sinônimo de imposição para abrirmos mão daquilo que defendemos, abraçamos e acreditamos.
É isso que Jesus faz! Ele está em profunda comunhão e sintonia com o outro, esse frágil humano que revela a oportunidade de reafirmar sua essência divina e quando a causa é apresentada, a atenção precisa ser priorizada para não se perder. O “afasta-te Satanás” é para refutar a armadinha da divisão, procurando garantir a integridade do ser.
Entendo que aquele discípulo, somos nós! E precisamos nos manter firmes naquilo que acreditamos e buscamos realizar, para salvar vidas, para concretizar esperanças, para mantermos nossa integridade e não nos corrompermos por nenhum tipo de privilégio ou terceirização da nossa responsabilidade.
Pe. Evandro Alves Bastos
29.08.2020
Quando fomos quase todos para casa por causa da pandemia, foi amplamente propalado que apenas se mantinham em funcionamento os “serviços essenciais”. Fornecimento de água, eletricidade, gás, transportes, hospitais, segurança, recolha e tratamento de resíduos, hiper, super e minimercados, farmácias, bancos, correios, órgãos de comunicação social. Enfim, o que garantisse que a vida como a conhecemos não colapsaria completamente e que algum grau de segurança e de estabilidade estaria assegurado.
Naturalmente que nada foi normal dentro desse “grau mínimo”, desde a corrida ao papel higiênico (cuja procura aumentou 75% face ao período pré-pandemia e a outros bens de primeira necessidade), como o fermento (a moda de fazer pão e bolos lêvedos em casa pegou de estaca no confinamento).
Confesso que nunca estive muito preocupada com as faltas nos supermercados, não sei se por ser incauta, por acreditar na providência ou por confiar no eficaz funcionamento do mercado. Mas abasteci-me previdentemente de ibuprofeno (versões infantil e adulta) e livros para os habitantes de casa.
Em jeito de provocação ou de aforismo, foi sendo insinuado que a circunstância provocava a distinção entre o que é essencial e o que é meramente acessório, entre o que realmente importa para o funcionamento da sociedade e o que é dispensável. Mas o óbvio rapidamente veio à tona e nele amarrada a certeza da “utilidade do inútil” (roubando a Nuccio Ordine o título – e não só – de uma obra muito aconselhável). Com teatros e cinemas fechados, com milhares de eventos culturais cancelados, a cultura, em múltiplas expressões, é uma das protagonistas da quarentena. O que seria de nós nestes dias sem filmes, sem séries, sem música, sem livros, sem wikipedia, sem priberam, sem receitas de culinária, sem poesia?
Não vivemos só das linhas escritas antes disso tudo mas também das que se escreveram durante estas semanas. Inventaram-se concertos online, criaram-se diários gráficos. Os coros cantaram a partir de muitas casas, os bailarinos dançaram coreografias trinchadas em palcos improvisados. Em cada casa, as tintas encheram telas e papéis. Barro e plasticina ganharam novas formas. Profissionais e amadores a fazer o que nos torna mais humanos porque é isso que nos distingue dos não-humanos.
Confesso: não li os dois livros que comprei para mim. Entre as edições disponibilizadas gratuitamente, as playlists geradas para diferentes ocasiões, as exposições virtuais, os folares e a massa fresca, afinal não foi preciso. E o ibuprofen também não.
É possível sair disto mais humanos. Muito graças à cultura e ao que ela transforma em nós, longe da discussão sobre o que é útil e inútil.
Cito Henry Miller, afirmado e reconhecido descrente e anti-cristão: “A arte, como a religião, não serve para nada a não ser para mostrar o sentido da vida”.
Clara Almeida Santos
In: opontosj.pt 05.06.2020
A situação da catequese no Brasil sempre foi tema de grande interesse, em nossa Igreja. Desde 1978, com a realização de um seminário de reflexão sobre a catequese, já se pensava em um roteiro ou temas fundamentais de seus conteúdos para a pastoral catequética. Em 1980, a nível nacional, nas orientações pastorais para a catequese da 18ª Assembleia Geral da CNBB também constava um pedido de elaboração de roteiros com temas que assegurassem a transmissão da Mensagem catequética. Vamos lembrar que naquele ano o Brasil recebeu a visita do Papa João Paulo II que então nos dizia: “A Catequese é uma urgência”.
Nas Assembleias gerais da CNBB nos anos seguintes: 1981 e 1982 também estiveram em pauta a discussão sobre as orientações para a catequese no Brasil, bem como a importância de um roteiro ou temário de conteúdos básicos para a catequese. Assim, o documento “Catequese Renovada: Orientações e conteúdos”, aprovado pela 21ª Assembleia Geral da CNBB, em 15 de abril de 1983 é fruto de todas essas reflexões e resposta aos anseios de todos os catequistas do Brasil.
Como podemos perceber, este anseio permanece nos dias atuais. Continuamos inquietos e em busca de conteúdos, de formas e métodos para bem realizar os trabalhos catequéticos. Voltemos o nosso olhar para esse documento “Catequese Renovada: Orientações e conteúdos”, e vejamos: as riquezas que ele nos traz já foram todas extraídas? Esgotadas? Aproveitadas? Sabemos que não.
Mesmo passado muito tempo de sua elaboração ele continua sendo muito importante para a nossa caminhada catequética. Continua fazendo parte do nosso itinerário de fé. Além das orientações gerais que nos ajudam a permanecer firmes no caminho traçado pelos nossos Bispos, ainda contamos com vários Temas Fundamentais para que a nossa catequese, nas bases, seja, além de renovada, também transformadora.
A grande força motriz que vai ajudar a dar o impulso para o desenvolvimento da nossa catequese, fazendo dela um processo permanente e transformador, está na concepção do que pensamos sobre ser a catequese, ou seja, uma catequese que tenha como principio a “interação entre fé e vida” e leve em consideração o papel fundamental da comunidade como catequizadora. O princípio de interação entre fé e vida é para nós um modelo catequético, fiel a Jesus Cristo, à Igreja e à pessoa humana, e procura, dentro do contexto latino-americano e sobretudo brasileiro, privilegiar a opção preferencial pelos pobres. Isto provoca notáveis alterações não só em termos metodológicos, mas também no conteúdo da catequese.
É na comunidade cristã que se vive as relações fraternas, celebra a Eucaristia, trabalha o exercício da escuta da Palavra, recebe os ensinamentos de Jesus, vive-se o testemunho, organiza a catequese, elabora os conteúdos, a forma e a metodologia da catequese para o seu bom desempenho.
Diz o documento “Catequese Renovada” que uma comunidade animada pela fé, sustentada pela esperança, exercida através da caridade fraterna, faz da sua própria vida, parte do conteúdo da Catequese. A verdadeira educação da fé se dá a partir dos acontecimentos da vida, de modo que a mensagem catequética ressoe continuamente na vida dos catequizandos, e mais ainda, na vida e caminhada da comunidade de fé.
Então, para uma boa fundamentação da Catequese vamos retomar o estudo do Documento nº. 26 da CNBB “Catequese Renovada: Orientações e conteúdo”. Como sugestão de uma boa caminhada catequética para os tempos atuais, Dom Joaquim Mol, nosso bispo e assessor do Secretariado Arquidiocesano Bíblico-Catequético de Belo Horizonte – SABIC, nos convida para retomarmos o estudo desse. Ele nos orienta para a realização de um estudo do qual possamos tirar suas principais ideias, partilhar em pequenos grupos de whatsApp e ir construindo um saber catequético que muito nos auxiliará nas transformações da catequese depois da pandemia. Transformações estas que já se manifestam a partir das novas experiências que estamos passando com a diversificação de formas e métodos criativos já elaborados para manter viva a prática catequética junto aos catequizandos.
O documento “catequese Renovada é constituído de 4 partes orientadoras: 1. A catequese e a comunidade na história da Igreja (dimensão comunitária da catequese). 2. Princípios fundamentais para uma catequese renovada (parte teológica, expondo o tema da revelação e sua relação com a catequese); 3. Temas fundamentais para uma catequese renovada (um roteiro: é a parte mais longa); 4. A comunidade catequizadora (a catequese dentro da caminhada da comunidade).
A parte referente aos temas fundamentais apresenta uma riqueza extraída de uma larga experiência das reflexões produzidas por vários documentos do pensar catequético. Os temas apresentados no documento serão inspiração para o nosso fazer catequético hoje. É tarefa do catequista, cada um diante da sua realidade concreta, abstrair dos conteúdos apresentados, a arte de construir a interação entre fé e vida.
Podemos dizer que a catequese, hoje é um grande e importante movimento missionário dentro da Igreja. Seu objetivo é a educação da fé de toda a comunidade melhorando a qualidade de vida cristã. Sua primeira exigência é a fidelidade ao plano de Deus. Seu itinerário fundamental é a Bíblia ligando “fé e vida”. Assim, catequizar é fazer ecoar a Palavra de Deus a todos que desejarem ouvir. Fazer escutar e repercutir a Palavra de Deus para que haja transformação na vida das pessoas, uma visibilidade maior do Reino de Deus que Jesus pregou para todos e a experiência de uma vida comunitária. A fé cresce e amadurece é no seio da comunidade.
Que todos nós, catequistas e comunidades evangelizadoras, possamos renovar nossas experiências catequéticas, atualiza-las, realiza-las com inspiração catecumenal, redescobrindo novas pistas e formas para o caminhar catequético.
Neuza Silveira de Souza. Coordenadora do Secretariado Arquidiocesano Bíblico-Catequético de Belo Horizonte-MG
07.07.2020
Igreja quer que beleza, arte, literatura e música estejam mais presentes na catequese
O novo Diretório para a Catequese, apresentado esta quinta, dia 25/06/2020 no Vaticano, coloca «a via da beleza como uma das “fontes”» da transmissão da fé, num «momento de transição cultural» marcado especialmente pela consolidação dos meios digitais.
«Uma nota de particular valor inovador para a catequese pode ser expressa pela via da beleza sobretudo para permitir conhecer o grande patrimônio de arte, literatura e música que cada Igreja local possui», declarou o presidente do Conselho Pontifício para a Promoção da Nova Evangelização, responsável pelo volume.
O arcebispo italiano D. Rino Fisichella sustentou esta orientação nas palavras do papa Francisco na exortação apostólica “Evangelii gaudium”, sobre o anúncio do Evangelho, para quem «anunciar Cristo significa mostrar que crer n’Ele e segui-lo não é algo apenas verdadeiro e justo, mas também belo, capaz de preencher a vida de um novo esplendor e de uma alegria profunda, mesmo no meio das provações».
«Nesta perspectiva, todas as expressões de verdadeira beleza podem ser reconhecidas como uma vereda que ajuda a encontrar-se com o Senhor Jesus … Torna-se necessário que a formação na “via pulchritudinis” esteja inserida na transmissão da fé», refere o número 167 do documento de Francisco.
O volume, que já tem concluída a tradução em português(será publicado no Brasil pelas Edições CNBB), é publicado quase quatro décadas após o primeiro Diretório para a Catequese, e praticamente 25 depois do segundo, tendo requerido cerca de cinco anos de trabalho, com a participação de mais de 80 especialistas de vários países.
«A Igreja está diante de um grande desafio que se concentra na nova cultura com a qual se vai encontrando, a cultura digital», acentua D. Fisichella (embora, neste momento, não esteja disponível uma versão digital do Diretório), depois de destacar «o processo de inculturação que caracteriza de modo particular a catequese».
O responsável alerta que é preciso «libertar a catequese de algumas armadilhas que impedem a sua eficácia», surgindo, à cabeça, o «esquema escolar, segundo o qual a catequese de iniciação cristã é vivida no paradigma da escola. A catequista substitui a professora, a sala da escola dá lugar à sala de catequese, o calendário escolar é idêntico ao da catequese».
O segundo erro a evitar «é a mentalidade segundo a qual a catequese é feita em vista da recepção de um sacramento. É óbvio que, quando a iniciação tiver terminado, se venha a criar um vazio para a catequese».
O prelado identifica, ainda, um fenômeno conhecido pela maioria dos agentes ligados à catequese, que consiste na «instrumentalização do sacramento por parte da pastoral, pelo que os tempos do sacramento da Confirmação são estabelecidos pela estratégia pastoral de não perder o pequeno rebanho de jovens que ficou na paróquia, e não pelo significado que o sacramento possui em si mesmo na economia da vida cristã».
D. Fisichella lamentou que «durante demasiado tempo a catequese centrou os seus esforços em dar a conhecer os conteúdos da fé e na pedagogia com a qual os devia transmitir, descurando infelizmente o momento mais determinante que é o ato de cada um escolher a fé e dar o seu assentimento».
Por isso, este modelo de catequese «tem o seu ponto de força no encontro que permite que se experimente a presença de Deus na vida de cada um», permitindo «descobrir que a fé é realmente o encontro com uma pessoa, ainda antes de ser uma proposta moral, e que o cristianismo não é uma religião do passado, mas um acontecimento do presente».
Além da atenção prestada ao digital, o Diretório incide sobre a transmissão da fé na família, a crise ecológica e a necessidade do testemunho, além de desenvolver um catecumenato ligado ao matrimónio, entre outros temas.
Estão previstos, nos próximos meses, encontros com Conferências Episcopais de todo o mundo para apresentar os conteúdos do documento.
“Na era digital, vinte anos podem ser comparados, sem exageros, a pelo menos meio século”. A observação é de Dom Rino Fisichella, presidente do Pontifício Conselho para a promoção da Nova Evangelização, durante a apresentação nesta quinta-feira (25/06) na Sala de Imprensa da Santa Sé do “Novo Diretório para a Catequese”.
Considerar o que está surgindo
O documento nasceu da necessidade de levar em consideração "com grande realismo o novo que está surgindo, com a tentativa de propor uma leitura que envolvesse a catequese". É por esta razão que o Diretório apresenta "não apenas os problemas inerentes à cultura digital, mas também sugere caminhos para serem tomados para que a catequese se torne uma proposta que encontre o interlocutor capaz de compreendê-la e ver sua adequação com seu próprio mundo".
Recordar os Sínodos
“Viver cada vez mais a dimensão sinodal não pode nos fazer esquecer os últimos Sínodos que a Igreja viveu", explicou Fisichella. O presidente do Dicastério mencionou em particular o Sínodo sobre a Nova Evangelização e transmissão da fé de 2012, com a consequente Exortação Apostólica do Papa Francisco Evangelii gaudium, e o 25º aniversário da publicação do Catecismo da Igreja Católica, que afeta diretamente a competência do Pontifício Conselho para a Promoção da Nova Evangelização.
Conversão pastoral
"A evangelização ocupa o primeiro lugar na vida da Igreja e no ensinamento diário do Papa Francisco", observou o prelado: “Portanto, a catequese deve estar intimamente ligada à obra de evangelização e não pode ser separada dela. Ela precisa assumir em si mesma as próprias características da evangelização, sem cair na tentação de se tornar um substituto para ela ou de querer impor suas próprias premissas pedagógicas à evangelização”. Disso podemos ver o primado do "primeiro anúncio" e o vínculo entre evangelização e catecumenato, "como experiência do perdão oferecido e da nova vida de comunhão com Deus que se segue". Segundo Fisichella, "é urgente realizar uma 'conversão pastoral' a fim de liberar a catequese de certos laços que a impedem de ser eficaz".
O primeiro ponto pode ser identificado no esquema escolar, segundo o qual a catequese de Iniciação Cristã é vivida no paradigma da escola. O segundo é a mentalidade com a qual a catequese é feita a fim de receber um sacramento. Um terceiro é a instrumentalização do sacramento para o trabalho pastoral, de modo que os tempos do sacramento da Confirmação sejam estabelecidos pela estratégia pastoral de não perder o pequeno rebanho de jovens que não abandonaram a paróquia e não pelo significado que o sacramento possui em si mesmo na economia da vida cristã".
(Fonte: Agência Sir – M.N.)
Vatican News 25.06.2020
A maior parte de nós é muito mais forte do que julga! Todos temos mais forças para além daquelas que pensamos ter. É preciso confiar e levar as que conhecemos até ao limite, para descobrir que, afinal, não acabam onde julgávamos. Só os que se julgam fracos é que estão errados!
As tragédias são comuns. Este mundo também é feito de uma sequência de catástrofes. A nossa vida é ameaçada todos os dias. E nós vamos andando, sempre para diante. Só os que têm medo do amanhã é que estão errados!
Todos os dias superamos desafios, sem sequer festejarmos de forma conveniente essas nossas vitórias. Aliás, tendemos a condenarmo-nos do mal mais do que a celebrar os nossos sucessos. Só os que se julgam invencíveis em tudo é que estão errados!
Devemos escutar o que nos dizem as tempestades, pois podem ensinar-nos muito. Sobre o mundo e sobre nós. Sobre o nosso passado e sobre o nosso futuro. As adversidades e as dores podem ser grandes mestres. Só os que fecham os olhos e os ouvidos ao que as desgraças ensinam é que estão errados!
Em tempos desfavoráveis, todos temos um exemplo a seguir: a nossa vida. Reparemos em como já ultrapassamos tantas dificuldades, de todos os tamanhos. Entre muitos fracassos, a nossa história é também uma admirável coleção de sucessos face a tantas contrariedades. Quase que podemos dizer que quanto mais dura é a vida mais forte ela nos vai tornando. Só os que se julgam condenados à miséria é que estão errados!
Mas não há ninguém que esteja errado e não possa deixar de o estar!
Se o que há de pior nos bons momentos é que passam, é verdade que, da mesma forma, o melhor dos tempos piores é que passam! Só os que deixam de sonhar e de sorrir com fé no amanhã é que se condenam a noites e dias sem luz nem calor!
José Luis Nunes Martins
In: imissio.net 10.04.2020
Terei desaprendido a estar em casa?
É preciso recuperar a sabedoria e o gosto de estar em casa.
Parece que entramos num mundo de desconhecidos e estrangeiros que se sentam à mesa aguardando que lhes tragam por entre guardanapos e talheres uma promessa devida. Como se a família fosse um agregado e o irmão a hipótese de um parentesco.
De irmãos passamos a hóspedes numa família pouco hospitaleira e agora de receio hospitalar.
Deixamos de ser pares. Somos vizinhos da própria família. Os quartos passaram a moradias.
Talvez esteja a faltar um tédio saudável para tornar razoável esta relação.
Como se da sala de estar vivessem os finos, tremoços e imperiais e não houvesse no brinde o que nos resta de uma festa.
Que este tempo de regresso a casa reabilite o hábito e a habitação daquilo que um nos inscreveu na biografia.
Sejamos pois gratos àqueles que viermos a encontrar e a tropeçar na própria casa. Não são nossos vizinhos. É a própria família.
Pe. Nuno Branco SJ
Campanha da Fraternidade (CF). Uma forma que a Igreja Católica no Brasil encontrou de vivenciar a Quaresma. Há cinco décadas a Campanha (CF), coordenada pela Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) propõe temas que apontam para a necessidade de compromisso do cristão. Também propõe discussões e enfrentamento dos problemas que afetam os pobres: precariedade da saúde, do trabalho, educação, moradia, políticas públicas, entre outros já foram foco da CF.
O tema proposto em 2020 é Fraternidade e vida: dom e compromisso! Quatro palavras de profundo significado. Fraternidade: parentesco, solidariedade entre irmãos, harmonia entre humanos. Vida: tem conceito bem amplo, mas aqui interessa vida como existência. Dom: significa dádiva, presente. Compromisso: é responsabilidade. Assim a Campanha convida os cristãos para cuidar da vida! Vida nas suas diversas dimensões: pessoal, comunitária, social, ecológica, política.
Esse olhar atento precisa antes responder a indagações angustiantes: o que aconteceu conosco? Por que vemos e deixamos crescer tantas formas de violência, agressividade e destruição? Perdemos, de fato, o valor da fraternidade? “Olhai para a terra, veja quanta maldade” (samba enredo da Mangueira).
A CF 2020 toma como referência a parábola do bom samaritano (Lucas 10, 25-37). O sacerdote e o levita, desviam-se do homem ferido, pois não tinham tempo para ele. Mas o Samaritano aproxima-se da vítima dos salteadores e, movido pela compaixão, gasta seu tempo e dinheiro, ficando com ele na hospedaria. Paga todas as despesas e promete retribuir ao dono da hospedaria tudo o que gastasse para cuidar do homem ferido.
A postura do samaritano contém o centro do ensinamento de Jesus: o próximo não é apenas alguém com quem possuímos vínculos, mas todo aquele de quem nos aproximamos. Sentir compaixão é a chave para fazer a vontade de Deus, que ama toda a criação. Tempo de abertura ao mistério da dor e morte de Jesus. Sua entrega na cruz é o culminar do estilo que marcou sua vida. Somente contemplando o mundo com os olhos de Jesus, olhar samaritano, é possível acolher o grito que emerge das várias faces da pobreza e da agonia da criação.
O olhar do sacerdote e do levita são o da indiferença. Um olhar que gera ameaças a vida. E quais são? O aborto, a migração forçada e as guerras que geram milhares de crianças órfãs. O desemprego que atinge milhões de trabalhadores. O trabalho precário que chega a 41%. A desolação! 27 milhões não conseguem trabalho algum. A miséria que castiga mais de 15 milhões excluídos. O suicídio, quarta causa de morte entre jovens. Violência no trânsito: 19.398 mortes, só no primeiro semestre de 2018. Brasil é o quarto país no mundo em mortes por violência no trânsito. Fé em Deus e pé na tábua?
Feminicídio! Entre 2016 e 2018 foram mais de 3,2 mil mortes no país. No mesmo período, mais de 3 mil casos de feminicídio não foram notificados. Também são ataque à vida ideias como a pena de morte e o armamento. A meritocracia, o individualismo, o fundamentalismo religioso, o consumismo doentio que cria a cultura do descartável. A banalização do mal, chacinas, criminalização dos pobres, racismo, homofobia, ódio. Governo comprometido com os ricos e poderosos: em 2019 o lucro do banco Itaú foi de 10,2%, Santander 17% e Bradesco 20%. O Itaú lucrou um salário mínimo por segundo em 2019! Por segundo. O reajuste do salário mínimo foi de 0,1%.
O que fazer diante de tantos males? Os discípulos e amigos de Jesus estão a serviço da vida. Rompem com a indiferença e derrotam a Justiça. É preciso sentir a dor do outro e comprometer-se com o sofredor. Quem ama não acusa. Sua atitude é misericordiosa. Motiva a igualdade e a justiça. Superar a fome, o desalento social e econômico, a degradação do ecossistema e cultura do desperdício é responsabilidade de todos! A finalidade da vida cristã é promover a solidariedade na construção do Reino de Deus.
“Não tem futuro sem partilha nem messias de arma na mão” (samba enredo da Mangueira). Que todo ser humano tenha vida, e vida em abundância (João 10,10). A campanha é um convite ao olhar solidário. A missão do discípulo missionário de Jesus é revelar ao mundo o rosto da misericórdia e da justiça de Deus. Promover a justiça é um ato de fé. A caridade é o verdadeiro sentido da vida. A caridade social nos leva a amar o bem comum. A justiça jamais estará desvinculada da caridade.
A Quaresma é tempo para descoberta da ternura que revela o rosto materno do Deus apaixonado pelo ser humano. Estimula a amar, cuidar e a aceitar os outros. A quaresma deve estimular a Igreja em saída, aquela que vai as periferias sem medo de sujar as sandálias. Servir! Ver! Sentir compaixão e cuidar da vida é o autêntico Programa Quaresmal.
Pe. Élio Gasda SJ
A Campanha da Fraternidade “é um modo privilegiado pelo qual a Igreja no Brasil vivencia a Quaresma. Há mais de cinco décadas, ela anuncia a importância de não separar a conversão do serviço aos irmãos e irmãs, à sociedade e ao planeta, nossa Casa Comum. A cada ano um tema é destacado como sinal de que realmente necessitamos de conversão” (Texto-Base, Apresentação).
O tema da Campanha da Fraternidade 2020 é: “Fraternidade e Vida: Dom e Compromisso”, e o lema: “Viu, sentiu compaixão e cuidou dele” (Lc 10,33-34).
A Campanha nos convida “a olhar de modo mais atento e detalhado para a vida” (Texto-Base, Ib.). Ora, “olhando transversalmente as diversas realidades”, a Campanha “nos interpela a respeito do sentido que estamos atribuindo à vida em suas diferentes dimensões: pessoal, comunitária, social e ecológica” (Ib.).
Pela Palavra de Deus “tudo foi criado e no faça-se! (Gn 1,3), quando tudo passou a existir, a vida divina foi irresistivelmente comunicada como um transbordamento do Amor Trinitário. Todos os seres animados e inanimados, como efusão do amor de Deus, foram criados por amor. Nada escapa ou está fora desse amor. Assim, Deus vem ao nosso encontro, pois quer ‘comunicar a sua própria vida divina aos seres humanos, criados livremente por ele, para fazer deles, no seu Filho único, filhos adotivos’ (Catecismo da Igreja Cat., 52). Essa comunicação de Deus nos permite conhecê-lo e amá-lo e, assim, participarmos da glória amorosa da Trindade Santa” (Texto-Base. 22).
A vida “é um dom que recebemos de Deus e que somos chamados a partilhar em busca da plenitude” (Ib. 23). Que no tempo da Quaresma “possamos nos dispor a uma profunda conversão da cultura da morte para a cultura da vida” (Ib. 25). O objetivo geral da CF 2020 é: “Conscientizar, à luz da Palavra de Deus,
para o sentido da vida como Dom e Compromisso, que se traduz em relações de mútuo cuidado entre as pessoas, na família, na comunidade, na sociedade e no
planeta, nossa Casa Comum”.
Os objetivos específicos são:
- “Apresentar o sentido de vida proposto por Jesus nos Evangelhos.
- Propor a compaixão, a ternura e o cuidado como exigências fundamentais da vida para relações sociais mais humanas.
- Fortalecer a cultura do encontro, da fraternidade e a revolução do cuidado como caminhos de superação da indiferença e da violência.
- Promover e defender a vida, desde a fecundação até o seu fim natural, rumo à plenitude.
- Despertar as famílias para a beleza do amor que gera continuamente vida nova.
- Preparar os cristãos e as comunidades para anunciar, com o testemunho e as ações de mútuo cuidado, a vida plena do Reino de Deus.
- Criar espaços nas comunidades para que, pelo Batismo, pela Crisma e pela Eucaristia, todos percebam, na fraternidade, a vida como Dom e Compromisso.
- Despertar os jovens para o dom e a beleza da vida, motivando-lhes o engajamento em ações de cuidado mútuo, especialmente de outros jovens em situação de sofrimento e desesperança.
- Valorizar, divulgar e fortalecer as inúmeras iniciativas já existentes em favor da vida.
- Cuidar do planeta (a Mãe-Terra), nossa Casa Comum, comprometendo-se com a ecologia integral” (Ib. 25).
Acrescento - e destaco como sendo fundamental - mais um objetivo específico, que não se encontra no Texto-Base:
- Participar das lutas dos Movimentos Populares, Sindicatos de Trabalhadores, Partidos Políticos Populares e outras Organizações, para que - juntos e juntas - possamos dar passos concretos no caminho que leva à superação e à mudança do sistema capitalista neoliberal (ultraliberal): desordem estabelecida (institucionalizada, legalizada), sistema econômico iníquo, pecado social ou estrutural, pecado ecológico, pecado do mundo, reino do mal, antirreino de Deus.
Hoje - que, graças ao desenvolvimento das ciências sociais, temos a possibilidade de conhecer “cientificamente” como funciona a sociedade - precisamos “ver, sentir compaixão e cuidar” dos irmãos e irmãs - caídos nas mãos de assaltantes - não somente nas relações pessoais ou interpessoais, mas - também e sobretudo - nas relações sociais ou estruturais, combatendo as causas da situação de injustiça, exclusão e descarte em que se encontra a maioria do nosso povo.
Como exemplo de irmãos e irmãs caídos nas mãos do maior e mais perverso assaltante dos pobres, que é o sistema capitalista neoliberal - representado pelo Governo de Goiás - cito o despejo, em 16 de fevereiro de 2005, de 14 mil pessoas da Ocupação “Sonho Real” do Parque Oeste Industrial, em Goiânia.
Frei Marcos Sassatelli, frade dominicano, doutor em Filosofia (USP) e em Teologia Moral (Assunção - SP) e professor aposentado de Filosofia da UFG.
In: www.unisinos.br em 22.02.2020
Amar é aceitar e respeitar. Mais do que esperar por mudanças ou tentar que elas aconteçam, amar é receber o outro como ele é, não como alguém que poderá ser melhor, mas sim como alguém que é bom tal como é.
Amar supõe humildade, uma grande humildade, uma vez que nunca me posso julgar ser melhor do que ninguém, até porque, na realidade, não o sou.
O que devo então fazer? Dar espaço e tempo para que quem eu amo possa ser quem é. Amar não é impor condições, é o contrário, aceitar sem exigências.
Amando, entregamos ar puro à vida do outro. Amando, lançamos luz sobre as escolhas de quem amamos, não para as censurar, mas para as tentar compreender. E, ainda que não as compreendamos ou que, mesmo compreendendo, não concordemos com elas, jamais o amor nos incentivará a interferir nas opções do outro.
O ser humano concreto é sempre livre. Quem não respeita esta verdade não terá capacidade para amar.
Amar não é admirar tudo no outro, é sim entregar-me a alguém que, tal como eu, vive uma vida autêntica. Com medos, erros e outra forma de escolher os caminhos melhores.
Mas o que posso fazer? Com simplicidade e de forma sincera, expressar a minha perspetiva e as minhas conclusões. Mas também tenho o dever de lhe declarar, vezes e vezes sem conta, o que sinto: o amor, revelando sempre o facto de ele ser incondicional.
Escolher um caminho é escolher as suas consequências. Quem decide amar, e o amor é mesmo uma escolha, consente a existência de um outro, diferente de si, na sua vida. Isso implica muitos desencontros, mas se se respeitarem, então hão de ser felizes. Porque se encontraram um ao outro e a si mesmos.
Dois iguais não se amam. É sempre mau quando se tentam mudar um ao outro, quando lutam para que o outro se torne mais semelhante a si ou, até, quando julgam que amar é instruir o outro. Amar é aceitar alguém, defender e promover o seu ser. Mesmo nas questões em que se diferencia de nós.
Amar é reconhecer a mais profunda dignidade que há em cada ser humano. A sua absoluta originalidade. Somos todos muito parecidos, mas não haverá, em toda a humanidade, duas pessoas iguais. E isso é bom. Faz-nos a todos mais fortes, porque nos podemos entreajudar.
E tudo isto faz quem ama, não para ser amado, mas para ser feliz!
Há uma verdade absoluta no que diz respeito ao amor: A humildade é o preço do céu.
José Luís Nunes Martins
In: imissio.net 26.07.2019
Obs: ótimo texto para catequese com jovens e adultos.
Paulo obriga-nos a manter uma distância crítica em relação ao “naturaliter christianus” de que falava Tertuliano. Não, Paulo não é espontaneamente cristão, nem nós o somos. Ele chega ao cristianismo numa dramática contramão, quando nada o fazia prever, que comportou uma inversão total do seu destino.
Não é por acaso que Lucas o descreve «caído por terra» (Atos 22,7), atingido por uma cegueira funcional (como se tivesse de voltar a aprender o que significa ver), e conduzido por outros, pela mão (Atos 22, 11).
Nem é inopinadamente que a sua própria história o torna objeto de surpresa e desconcerto - «aquele que uma vez nos perseguia, agora está a anunciar a fé que em tempos queria destruir» (Gálatas 1,23), diziam os cristãos da Judeia.
O cristianismo em Paulo começa com a necessária operação de instauração, ou de re-instauração, do sujeito crente. Assim, a lição de Paulo é que nós não somos cristãos, mas sobretudo tornamo-nos, e obriga-nos a romper com o conformismo teológico de um cristianismo como dado adquirido, que se dá simplesmente como previsível.
Verdadeiro é o oposto: com Paulo, o crer torna-se regulado e modelado por uma experiência de transformação. Como ele próprio escreve na Segunda Carta aos Coríntios: «Nós todos que, com o rosto descoberto, refletimos a glória do Senhor, somos transfigurados na sua própria imagem» (3,18).
In Avvenire
Trad.: Rui Jorge Martins
Imagem: "Conversão de S. Paulo" (det.) | Caravaggio
Publicado em 10.07.2019 no SNPC
Ao longo do caminho surge uma figura humana, ferida, sofrida desfacelada. Está em meio ao lixo. Busca algo para comer. Não diz, mas grita por socorro. Está visivelmente destruído da condição de ser gente. Vive como um bicho, sujo, largado, pouco visto pelos outros. E trata-se de uma pessoa como eu, você, igual a todos nós. O que aconteceu? O que o fez tomar esse rumo? Caiu nas mãos de bandidos? Quem o vê? Alguém lhe estendeu a mão?
Enquanto o mundo consumista nos enganar com seus encantos e fantasias de felicidade, satisfação de desejos e criação de sobrepostos prazeres, não saberemos responder nem agir frente a miséria humana. É com a lente que usamos para ver o mundo que o construímos. Não veremos um universo humanizado ao nosso redor se não usarmos lentes de dignidade, de respeito, de humanidade. Preenchemos nosso tempo com afazeres que logo se desfazem, damos valor a objetos que não valorizam a mão de obra que o fez, desrespeitamos a história, destruímos os sentidos, matamos.
Algumas ações promovem ânimo e revigoram nossos desejos de sentido profundo: campanhas para salvar um hospital, mobilizações em defesa da comunicação da esperança e da vida, acolhimento de humilhados e excluídos. No entanto, outros movimentos parecem desconstruir a caminhada trilhada com tantos esforços: durezas de corações, silêncios forçados, ambientes de medo e repressão. O humano deixado pelo caminho segue sufocado. Passam tantos e não conseguem aliviar e cuidar. Não derramam azeite, perfume, amor para fraternalmente promover as conexões vitais. Quem passa adiante na atitude de desprezo também segue sem perceber que está sendo deixado pelo caminho do que pode dar sentido autêntico à vida.
Os tempos difíceis que hoje vivemos são das lacunas e vulnerabilidades internalizadas. Estamos samaritanos de nós. Precisamos nos cuidar para retomar a condição que nos capacita para cuidar do outro. Constantemente me vejo caído nas armadilhas do meu próprio assalto. Me deixo às margens da estrada, sem cuidado, sem me amar. Como serei capaz de amor outros se não derramar sobre mim o azeite do encontrar-me?
Pe. Evandro Alves Bastos
10.07.2019
Gosto de pensar que a mesma raiz etimológica une, em grego, o adjetivo “belo” (“kalós”) e o verbo “chamar” (“kaléo”). A beleza surge assim como um chamamento.
Cada vocação humana é a resposta à atração de alguma coisa (ou de alguém!) que nos chama. Sem este apelo fundamental, a nossa vida seria privada de motivação, e cada vez mais distante da sua realização autêntica.
A verdade é esta: se a alegria do encontro, se a surpresa de um enamoramento, de um «que belo!» gritado com o coração, não precede as renúncias ou os sacrifícios, estes não geram a não ser tristeza, rigidez, rigorismo e frustração. A vida não começa com a ética, mas com a estética. Avança não por obrigação, mas graça à força da atração.
Na vida não se segue em frente por decreto. Como na parábola de Jesus, o ponto de transformação é a descoberta da pérola oculta ou do tesouro no campo. Só assim experimentaremos que «onde está o nosso tesouro, aí estará também o nosso coração».
A vida humana não é estática, mas extática. A vida é êxtase, movimento, desejo de união ao objeto do amor. Consuma-se por uma paixão que germina de uma beleza capaz de nos iluminar.
Todavia, pertencemos a um tempo e a uma cultura que parecem ter renunciado à beleza. Para a redescobrir, teremos provavelmente de abraçar o silêncio e a lentidão dos caminhos menos frequentados.
D. José Tolentino Mendonça
In: Avvenire
Não há dias iguais, por isso não podemos deixar-nos cair na aparência de uma qualquer monotonia do tempo.
As pessoas mudam, revelam-se, deterioram-se e também se aperfeiçoam. Quase sempre de forma muito suave e subtil. Quem julga que conhece o outro está sempre enganado, porque nem sobre nós mesmos devemos ter grandes certezas.
Por tudo isso, importa que olhemos sempre o outro como se fosse a primeira vez. Até porque talvez o mais importante seja o que mudou desde ontem e não tudo o que se mantém.
Amar implica afirmar com clareza o que necessitamos e como nos sentimos. Não esperando que os outros compreendam bem o que não expressamos. Assim também devemos nós esperar as indicações do outro para saber o que precisa e o que se passa no seu íntimo.
Será sempre mais sábio e eficaz esperar pelo que o outro nos diz do que nos pormos a decifrar e a elaborar teorias a partir de sinais não evidentes. O amor não dá capacidades telepáticas a quem se ama. Mais, pensamentos e sensações, por mais intensos que sejam, não são o mesmo que factos, nem têm sequer de ser verdadeiros ou justos, ainda que eu os sinta como tal.
Por outro lado, importa estar atento à verdade do tempo.
A vida é cheia de surpresas, pelo que ninguém deverá ter grandes certezas a respeito do amanhã. Gerir o tempo como se ele fosse um recurso certo e inesgotável pode ser desastroso. Amar é uma dádiva plena, um caminho que se faz passo a passo. Amar é dar-se todo em cada momento, de acordo com o outro e conosco. Sem julgar que teremos um futuro imenso por diante.
Quem ama deve agir de acordo com isso. Os que são um mistério para os outros acabam por tornar-se um quebra-cabeças para si mesmos. As pessoas mais reservadas vivem fechadas em prisões emocionais que elas próprias ergueram.
Quem se esconde dos outros afasta-se de si. A confiança e a intimidade constroem-se através da partilha clara do que vai no coração e na razão de cada um.
Amar alguém é único. Sempre novo. A cada dia e a cada hora. Aprendendo sempre.
Amar alguém é aprender a amá-lo.
José Luiz Nunes Martins
28.06.2019
In: imissio.net
As buscas não param! O movimento parece menor, mas enquanto houver algum desaparecido: trabalhos de busca. Entre restos e destroços ainda aparecem documentos, máquinas, objetos os mais diversos. Tudo perdido, levado, arrasado.
De repente: Um corpo! Mais um, diminuindo a lista dos desaparecidos. Mais uma esperança para aliviar o coração de quem ainda não teve notícias dos seus mortos. Mais um alento ao coração sufocado pelo medo. Mais um corpo para ser investigado, pesquisado, localizado, e agora congelado, enquanto é comparado às listas de informações dos registros de desaparecidos.
“Aquele corpo é de quem? Aquele corpo quem é?”
“Na madrugada daquele dia”, enquanto todos ainda estavam adormecidos, o grito da mulher, apaixonada, que corre ao túmulo para chorar a saudade de seu amado, dizia: “Tiraram o corpo do meu Senhor, e não sabemos onde o colocaram?” O apelo era justo: um corpo roubado, desaparecido, levado sem informações claras. A inquietação era um incômodo angustiante. Muito medo, insegurança, sentimentos confusos e vazios. Não encontrar o corpo, não tocar, ver, despedir da materialidade para abrir-se ao sentimento mais humano, mais profundo, mais íntimo.
Aquele corpo era do Mestre. Aquele corpo havia sido preparado, guardado, sepultado com honras. E mesmo depois de desaparecido, seu sumiço trouxera uma expectativa de que algo de extraordinário poderia estar a acontecer. Havia sumido, podia ter sido roubado, levado para o desconhecido, mas Sua história tinha capítulos imprevisíveis, transcendentes e transformadores. O que vem depois estamos vivendo na fé até hoje.
E quando, hoje, um corpo é encontrado sem nome e identidade, tendo sido claramente levado pela ganância que arrasa com a vida e com os sonhos, de quem é? Quando um corpo é chorado porque pode ser de tantos que não são encontrados e soma-se à lista de tomados pelo medo, pelo silêncio, pelo sufocamento das esperanças: esse corpo é de quem?
Vem chegando a festa do Corpo Vivo! Do corpo dado em alimento sobre a mesa que querem dominar como privilégio de alguns. E Ele continua se oferecendo como sustento dos que esperam seus corpos valorizados. Ele continua, corpo vivo, pão de forças para os corpos cansados, tristes, desprotegidos, desencontrados. Ele conhece, sabe, identifica-se com nosso corpo porque sabe quem somos e escolheu nosso corpo para vir habitar e realizar seu plano de amor.
Pe. Evandro Alves Bastos
O barulho está na moda. Estão na moda os arraiais, as festas e todos os convívios que impliquem ruído em excesso. Refugiamo-nos em ambientes onde o volume pode ser ampliado para o máximo. De preferência, ampliado a ponto de não conseguirmos ouvir os que estão connosco. O barulho faz-nos esquecer do que nos preocupa e do que nos consome os dias. Faz-nos ouvir uma voz que não é a nossa e que não mora dentro de nós. Assim é fácil. O som distrai-nos. Abstrai-nos e deixa-nos ilusoriamente felizes. Durante o tempo em que não nos ouvimos, não precisamos de pensar, de lidar com assuntos mais ou menos difíceis.
O silêncio não está na moda o suficiente. Se estamos calados, haverá sempre quem pergunte se nos dói alguma coisa ou se há alguma nuvem a toldar-nos o pensamento. Se não dizemos nada, é porque amuamos. Porque estamos tristes. Porque estamos zangados. Porque estamos num dia não. O que não podemos é estar calados por estar.
Acaba por ser estranha e curiosa a forma como aceitamos o ruído que nos deixa surdos e rejeitamos e estranhamos o silêncio.
Carros. Buzinas. Música alta. Guitarras. Mensagens que caem no telefone. Notificações. Gente que fala do lado de lá da televisão sem dizer nada. Motores. Travagens. Obras. Máquinas. Bebés que choram na rua. Crianças que fazem birras demasiado audíveis. Portas que fecham. E que se abrem.
Falta-nos sossegar. Encontrar forma de querer tanto fazer silêncio como quem quer ir a um concerto, a um espetáculo ou a um arraial.
Falta-nos fazer marcha atrás. Dizer aos outros que estamos calados porque o barulho nos faz ficar velhos mais depressa e nos deixa mais apressados do que devia.
Falta-nos sentar num sofá, numa cadeira ou num banco como quem pousa. Como quem chegou onde devia ter chegado. O descanso também é um lugar e nunca lá está ninguém.
Falta-nos falar menos. Dizer menos sobre o que não sabemos.
Falta-nos olhar como quem diz coisas.
Falta-nos reparar como quem ama as coisas que vê e que, de alguma forma, também são suas.
Se o descanso é um lugar e nunca está lá ninguém,
Que tal irmos juntos e fazes-me companhia?
Marta Arrais
In: imissio.net
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