“Essas situações provocam os gemidos da irmã terra, que se unem aos gemidos dos abandonados do mundo, com um lamento que reclama de nós outro rumo. Nunca maltratamos e ferimos a nossa casa comum como nos últimos dois séculos” (Laudato Si’ n. 53)

 

Depois de considerar o sentido de nossa existência diante de Deus (texto anterior), agora nos é pedido que façamos oração sobre os pecados estruturais da comunidade humana e sobre os nossos pecados pessoais, até que alcancemos a graça que nosso coração deseja. No exercício anterior, enchemo-nos de gratidão e assombro pela nossa existência, pelo amor da Trindade e pela comunidade universal de vida que nos sustenta.

No entanto, contemplando o cenário da Criação, vamos também tomando consciência que perdemos o sentido da corrente única da vida e de sua imensa diversidade. Esquecemos a teia das inter-dependências e da comunhão de todos com a Fonte originária de tudo.

Por isso, em nossa oração, situados diante da Bondade infinita do Criador, vamos implorar sua misericórdia por termos sidos negligentes no “cuidado da Casa comum”, plena de beleza e harmonia; misericórdia que nos chama a uma “metanoia”, ou seja, para uma conversão nos nossos relacionamentos com a Mãe natureza, tal como ela foi criada. 

Todos somos filhos e filhas da Terra. Mais ainda, como humanos, somos a pró-pria Terra em seu momento de sentimento, de pensamento, de amor e de veneração. Historicamente cometemos um sacrilégio: rompemos a aliança fundamental de todo o universo, a solidariedade cósmica pela qual nunca existimos sozinhos, mas co-existimos e inter-existimos uns pelos outros, com os outros e para os outros. Separamo-nos da comunidade planetária, colocando-nos acima de todos os seres, ao invés de vivermos a comunhão com eles.

Na perspectiva bíblica, o pecado aparece em primeiro lugar como a ruptura de uma aliança com o Criador, com os outros e com as criaturas. Cometemos um pecado ecológico. Ficamos surdos e mudos diante das mil mensagens que nos vem de cada ser e do universo inteiro. O pecado se mostrou como uma força de desintegração do ser humano com sua Fonte Original, como força de desintegração do ser humano consigo mesmo e, por fim, como força de desintegração com o Todo. 

Por trás da palavra “pecado” se esconde o drama da existência humana. Esse drama mostra-se trágico, pois revela uma aparente situação insolúvel que dilacera o coração e estraçalha a esperança humana.

A experiência do pecado é de desvio de rota, de frustração da própria vocação, experiência que nos desumaniza e nos faz viver uma existência vazia; com isso passamos a viver exilados, desterrados, solitários...

Nossa comunhão sagrada com a natureza, nossa fonte de vida e de significado, foi substituída por um profundo desespero. De fato, temos lavrado nosso próprio “inferno”.

Hoje constatamos as chagas ecológicas estampadas por toda parte e os próprios seres humanos deformados pela miséria e exclusão. Não levamos em consideração a vulnerabilidade dos equilíbrios vitais dos ecossistemas. Nesse sentido crescem as situações em que os seres vivos e o próprio ser humano encontram-se fragilizados e ameaçados em sua sobrevivência e desenvolvimento.

A degradação do ambiente natural e social fragiliza e ameaça o próprio ser humano.

Buracos na camada de ozônio, mutações climáticas provocadas pelo efeito estufa, enchentes diluvianas, secas prolongadas e devastadoras, desertificação de imensas áreas, erosão de solos férteis, desaparecimento de florestas devido ao desmatamento e às chuvas ácidas, rios assoreados e poluídos devido ao esgoto doméstico e aos detritos industriais, ar irrespirável pela presença de monóxido de carbono e outros gases venenosos, poluição sonora e visual das grandes cidades, crescimento e acúmulo de lixo urbano e industrial, esgotamento das fontes de energia não renováveis e dos lençóis freáticos de água, extinção continuada e crescente de espécies vegetais e animais, pondo em risco a biodiversidade e o equilíbrio dos ecossistemas são pecados do nosso dia-a-dia...

O drama do ser humano é perder a memória de que é parte do todo: seu instinto de posse e domínio o leva a romper a relação cordial com todas as criaturas, caindo num devastador vazio existencial. A “centração em si mesmo”, sem levar em conta a rede de relações que o envolve, provoca a quebra da “re-ligação” com tudo e com todos. Este é o veneno que corrói o ser humano por dentro: petrificação de sua interioridade, a perda do gosto pela verdade, pelo belo e pelo bem, o extravio da ternura e da transcendência, a atrofia da comunhão com o todo cósmico...

Diante da Misericórdia reconstrutora de Deus, devemos tomar consciência de que o ser humano está procedendo de maneira destrutiva contra a natureza e contra si mesmo, produzindo um verdadeiro colapso ecológico e humano. Há uma crise ecológica que se alastra rapidamente, corroendo o equilíbrio vital que sustenta a Criação toda.

A natureza está sendo “desnaturada” e o ser humano “desumanizado”. Esta crise aponta para um ser humano doente e a doença consiste justamente na separação entre o ser humano e a natureza, no esquecimento de seu parentesco e solidariedade.

A crise ecológica é a própria crise do ser humano. Nossa “oikós” (casa) está em ruínas, devido à maneira como a habitamos. Arrancamos pedaços dela para satisfazer nossos interesses individuais e não nos damos conta que estamos destruindo nosso próprio habitat.  “O ser humano transformou o Éden num matadouro e o Paraíso ocupado num paraíso perdido” (E. Wilson)

Em termos inacianos, podemos qualificar tudo isso de desolação comunitária: o lugar pós-moderno do inferno. Conquistamos demais e cuidamos de menos. A ameaça provém da atividade humana altamente depredadora da natureza.

No entanto, a experiência cristã afirma: o ser humano é resgatável. Ele não está condenado definitiva-mente à condição de pecador; ao contemplar o universo desolado e devastado, a misericórdia de Deus faz brotar do seu interior uma “exclamação de admiração com intenso afeto” (EE. 60).

Na oração, considero a fidelidade com que o sol ilumina a terra para que a vida se desenvolva e se multiplique; a fidelidade com que a rotação do planeta nos traz a noite e o repouso. Recordo como a água limpa, o ar e a boa alimentação me sustentam cotidianamente; como a madeira das árvores me protegem dos rigores do tempo, como as fibras das plantas e dos animais me servem de abrigo; recordo como os micróbios produzem antibióticos para curar-me. Fico admirado e assombrado diante da generosidade da natureza que me proporciona todas as coisas boas em abundância.

Assim também, o amor, os cuidados e os sacrifícios de muitas pessoas e criaturas fazem minha vida mais fácil e enchem-na de alegria.

Louvo a misericórdia da Trindade que me re-cria a cada momento e revela Seu rosto nas criaturas.  

Podemos parafrasear o no. 60 dos Exercícios Espirituais de Santo Inácio de Loyola, dizendo:

“Quando contemplo a maravilhosa harmonia da criação, fico admirado que ela não tenha se voltado contra mim, considerando-me uma nódoa no conjunto de sua beleza. Quando me fecho em mim mesmo, a terra continua me sustentando e o sol se nega a me queimar como a um plástico. Quando expresso violência, as flores me oferecem sua fragrância. Quando eu me afasto de Deus e dos outros, o ar continua entrando em meus pulmões e a luz ilumina meus olhos... Apesar de estar totalmente fora de sintonia com tanta beleza, a natureza inteira está sempre disposta a me perdoar, a me reconquistar e a me embelezar. Do meu coração brota uma exclamação de admiração com intenso afeto”.  

Textos bíblicosOs 2,9-10.16-25   Rom 1,18-32    Is. 24   Ef 6,10-13

Pe. Adroaldo Palaoro sj

10.09.2020