Talvez o elemento cultural mais forte do presente seja a ferida. A própria pandemia — tal, como agora, a experiência devastadora da guerra, mesmo se localizada — deixam a descoberto uma vulnerabilidade global que não queríamos ver e obriga as sociedades, no seu todo, a fazer contas com feridas antigas e recentes. A vulnerabilidade associada à experiência humana pede, de facto, para ser lida como realidade mais intrínseca, transversal e vasta. Há um estrutural défice de cuidado, que vem de muito longe e de muito fundo. Não admira, por isso, que a necessidade de reconhecer a ferida, de a narrar, de colocá-la no centro do debate público, de a atender e de lhe fazer justiça se tenha tornado uma aspiração tão forte do nosso tempo. A ferida é um património e uma responsabilidade que pertence a todos. Recordo o que escreveu Hofmannsthal (1874-1929) num precioso livro que a Assírio publicou há uns anos e que passou, entre nós, praticamente despercebido, “Livro dos Amigos” (Assírio, 2002): “Ninguém pode dizer que se conhece profundamente se é apenas ela ou ele próprio, e não ao mesmo tempo também um outro.” De facto, não há futuro a não ser na reciprocidade eticamente qualificada entre a situação de quem fala e de quem escuta.
A história da dor é, infelizmente, quase sempre uma história submersa, negligenciada face aos discursos dominantes, remetida para as trincheiras de uma solidão que poucos ouvem. A ponto de se achar que é um inconsequente idealismo pensar a vitória sobre as diversas formas de mal. Na cela da prisão nazi, onde viveu os últimos meses da sua vida, depois de uma participação na tentativa fracassada de atentado contra Hitler, o teólogo cristão Dietrich Bonhoeffer (1906-1945) escreveu: “No curso das nossas existências, não falamos facilmente de vitória: é uma palavra que nos parece demasiado grande. Ao longo dos anos sofremos demasiadas derrotas, demasiados momentos de fracasso e fragilidade. E contudo, o espírito que habita em nós deseja o sucesso final contra o mal.” É verdade que o próprio Bonhoeffer foi enforcado, escassos dez dias antes de o campo de concentração ser libertado pelas forças aliadas, mas ele foi no terrível século XX (e o século XXI infelizmente não se está a revelar menos terrível) uma testemunha dos desejos do espírito contra a tirania do mal. O desejo desse espírito que pulsa dentro de cada ser humano é uma força que não se rende. E — para quem o quiser escutar — ele acentua a urgência de construir um novo pacto social, uma nova visão cultural partilhada, que seja capaz de introduzir e sustentar, no seu interior, dinâmicas de escuta, de encontro, de devolução de liberdade e de justiça, de verdadeira pacificação e de cura. Para isso, porém, precisamos de reaprender todos a ser coprotagonistas no artesanato interminável que é a construção da paz e de desenvolver a cultura do cuidado.
Em dias como estes que dramaticamente o mundo vive, onde assistimos às consequências do delírio do poder, é importante, por exemplo, rever criticamente o impacto das lideranças autoritárias, baseadas no brutal princípio da violência. O futuro precisa de líderes com maior consciência da vulnerabilidade da terra e dos seus moradores, capazes de dialogar com as necessidades reais das pessoas, mais empáticos do que autoritários, capazes de desenvolver formas de escuta e de corresponsabilidade, investindo na confiança em vez do controlo, promovendo a compreensão de que o lucro e a posse violenta, o consumo ou o domínio não são as únicas coisas pelas quais vale a pena lutar.
Dom José Tolentino Mendonça
In: imissio.net 01.04.23
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