“Na casa de meu Pai há muitas moradas” (Jo 14,2)
O contexto do Evangelho de hoje faz parte do chamado discurso de despedida de Jesus, depois da última ceia. O ambiente está carregado: a traição de Judas, o anúncio da negação de Pedro, a revelação da sua partida. Apesar do temor e da inquietação pairando no ar, Jesus diz coisas que nunca dissera antes: palavras condensadas, luminosas, mobilizadoras...; palavras como raios que rasgam a escuridão e iluminam a noite da vida.
Em primeiro lugar, Jesus tenta quebrar o clima pesado, convidando os seus amigos à calma, à confiança e revelando que na casa do Pai há muitas moradas; não se trata de um lugar, mas do horizonte do amor de Deus; são as Moradas do Amor. Todos estamos envolvidos por este amor providente e cuidadoso do Deus Pai e Mãe; no seu coração cabem todos. Também poderíamos traduzir assim: na família de Deus há lugar para todos, talvez de formas diferentes, por caminhos diversos, mas há lugar abundante. A casa de Deus é ampla. Todos os seres humanos são chamados a fazer parte da família do mesmo Deus.
Mais ainda, a partir da afirmação do Mestre Eckhart “Deus está em sua casa em nós; nós somos os estrangeiros”, podemos dizer que quem realmente habita “nossa casa” não é o “eu”, mas Deus. Caminhamos para a morada de Deus sendo morada do mesmo Deus. Do Pai-Mãe viemos, no Pai-Mãe vivemos e ao Pai-Mãe voltamos. Esta é a experiência suprema da vida.
Esta morada interior é o espaço de transcendência, de oração, de admiração, de mistério, de silêncio; morada aberta e acolhedora, ambiente da comunhão, da comunicação, da intimidade; é a partir desta morada carregada de presenças que se vai ao Pai (Grande Morada).
Nessa direção podemos acrescentar que Jesus fez o caminho para que possamos percorrê-lo com Ele. Jesus não fez caminho para deixar-nos para trás, mas para lançar-nos para novas metas, abrindo nossos olhos e nosso coração para novas moradas do amor, porque Deus é sempre maior.
É nesse contexto de despedida que Jesus se atreve a dizer “eu sou”, mas não um eu isolado em si (um eu sem Deus, um eu sem os outros), mas um eu aberto ao Pai (um eu-caminho) e dirigido a todos que queiram acolhê-lo (um eu-expansivo, que se faz verdade e vida para todos). O “eu” de Jesus se faz caminho, um caminho de Deus, um caminho no qual a verdade se revela e a vida se abre.
Eu sou o caminho, a verdade e a vida. Estamos diante de um dos textos mais densos, referidos ao ser de Jesus. Não se conhece na história das religiões uma afirmação tão audaz. Jesus se oferece como o caminho que podemos percorrer para entrar no mistério de um Deus Pai. Ele nos faz descobrir o segredo último da existência. Ele pode nos comunicar a vida plena que todo coração humano aspira.
O conceito de “caminho” supõe um destino, o Pai. O conceito de “verdade” pressupõe um conteúdo, o mesmo Jesus. Dos três termos, o único absoluto é “Vida”. Porque possui a Vida, Jesus é verdade e é caminho.
Caminho, Verdade e Vida: três grandes carências existenciais; elas apontam para o sentido da existência; expressam as três grandes buscas do ser humano. Três dimensões que nos humanizam. Não são necessida-des periféricas. Jesus se apresenta como resposta a estas buscas.
O ser humano é ser de travessia: é peregrino por natureza, busca um horizonte, desloca-se em direção a uma plenitude. Jesus se faz o centro deste Caminho. Ali onde alguém faz o caminho como Jesus fez (peregrino entre os mais pobres e excluídos) está deixando transparecer em sua vida o rosto do Pai. Por isso, quem o vê, quem vive como Ele (em amor aberto à vida) viu o Pai da vida. Trata-se de “ver a Jesus” (esta é a experiência pascal), mas de vê-Lo caminhando consigo, assumindo Sua verdade, vivendo na dinâmica de Sua vida.
O ser humano busca a verdade; antes que “ter” verdade, ele quer “ser verdade”. Jesus afirma: “eu sou a verdade”, e não “eu tenho a verdade” (poderia fechá-lo diante da verdade do outro, caindo no fundamentalismo). O importante não é ter a verdade, mas ser verdadeiro. A pessoa verdadeira pode entrar em ressonância com a verdade do outro. Jesus é verdadeiro, revela o que é mais nobre em seu coração, não usa máscara, é pura transparência do rosto do Pai.
Quando Jesus diz “eu sou a verdade”, está identificando essa verdade de Deus com o caminho mesmo da vida humana. A verdade não está na ciência abstrata, nem nas teorias mais ou menos racionais, nem nos sistemas fechados... A verdade é a vida humana, como extensão do mesmo ser de Deus.
Ao dizer “eu sou a verdade” Jesus nos capacita também para dizer “nós somos a verdade”, não contra alguém, mas a favor de todos. Nós somos a verdade, os que caminhamos e vivemos no amor, sabendo que em nossa vida se expressa a vida do Pai. Nós somos a verdade, em um nós aberto, como Jesus, aberto a todos os que vão e vem, de um modo especial os mais pobres, os excluídos de todos os sistemas de “verdade” do mundo.
O ser humano aspira vida plena; Jesus viveu intensamente; “morreu de tanto viver” – vida expansiva, voltada para os outros, compromisso com a vida. Plenificação de todas as dimensões da vida: corporal, afetiva, social, intelectual...
Ser seguidor de Jesus é fixar o olhar n’Ele, pois Ele é o centro do nosso caminho; ao caminhar com Ele, vamos nos revelando e a partir d’Ele vamos descobrindo nosso ser verdadeiro (que nos abre para acolher a verdade presente em cada ser humano – verdade que vai além das verdades religiosas, políticas, racionais).
Quem se descobre verdadeiro e sem máscara, vive profundamente, alarga sua vida a serviço dos sem-vida. Esta é a via da humanização; e quanto mais nos humanizamos, mais nos divinizamos.
Por isso, Jesus, o homem radical, deixa transparecer o rosto do Pai: “quem me vê, vê o Pai”. Esta nossa busca começa no retorno ao interior, onde o Senhor nos habita e nos move. Podemos então afirmar que a busca de Deus e o encontro com Ele, a partir de Sua iniciativa, coincidem com a busca e o encontro de si mesmo, de modo que buscar a Deus é buscar-se a si mesmo, na própria interioridade.
Podemos entrar dentro de nós mesmos porque em nós está a dimensão de eternidade, a dimensão “divina” que nos situa acima do vai-e-vém das coisas, acima do tempo e da contingência, embora estejamos enraizados nela e caminhemos sobre a faixa da história fugaz.
Texto bíblico: Jo 14,1-12
Na oração: É no mais íntimo que se reza ao Senhor. É no mais profundo da interioridade que se escuta o Senhor. Deixe-se invadir pela luz e pela vida d’Aquele que “armou sua tenda entre nós”.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
Diretor do Centro de Espiritualidade Inaciana - CEI
“Eu sou a porta. Quem entrar por mim será salvo; entrará e sairá e encontrará pastagem” (Jo 10,9)
“Entrar” e “sair” pela porta: aí está a experiência de viver a vida ressuscitada em toda a sua plenitude e de “saborear” a existência em toda a sua promessa. Nela está o ritmo do andar, o desejo da busca, a estratégia para viver com sentido, o segredo do ser.
“Entrar” e “sair”, ou seja, viver cada momento na totalidade de seu sentido e na profundidade de sua presença. “Entrar” e “sair” em cada evento cotidiano significa experienciá-lo por completo.
Nosso problema é que vivemos de modo incompleto. Não vivemos totalmente. E vivemos nossa vida de modo incompleto porque vivemos cada situação de modo incompleto. Não “entramos” por inteiros em cada situação, em cada vivência, em cada atividade... e não “saímos” totalmente de nenhuma.
Sempre de modo incompleto, sempre com hesitação, divididos entre diferentes afazeres, com um pé numa margem e outro pé na outra. Não é estranho que fique o sabor duvidoso de fazer tudo pela metade, de não nos entregar totalmente a nada, de não viver a vida em sua plenitude, porque não vivemos cada situação em sua totalidade.
A porta é uma realidade e é um símbolo. “Entrar” e “sair” pela Porta que é o próprio Cristo Ressuscitado, desata em nós a consciência de sermos “portas abertas em nossa interioridade”.
A experiência de “entrar” e “sair” da porta da interioridade é preparação para “entrar” e “sair” com leveza alegre em cada circunstância da vida, para viver cada momento em sua totalidade vital.
Minha casa é onde estou, quando vivo plenamente onde me encontro em qualquer momento, quando estabeleço contato com tudo o que está ao meu redor, quando não sou estrangeiro nem hóspede em nenhum lugar, pois o mundo é o meu lar, o momento presente é minha existência.
O ser humano “pós-moderno” perdeu a direção da interioridade; dentro dele há um “condomínio” onde portas se fecham, chaves se perdem, segredos são esquecidos... e mergulha na mais profunda solidão estéril. Vive perdido fora de si mesmo e não consegue colocar as grandes perguntas existenciais: “de onde venho? quem sou? para onde vou? quê devo fazer?...”
Muitos já não conseguem mais recolher-se e voltar para “dentro” de si, para recuperar o centro gravitacional de sua vida, o ponto de equilíbrio interior. As instituições (família, educação, religião...) também foram, ao longo do tempo, descuidando das vias de acesso ao interior, permanecendo na superfície...
Vivemos um contexto social e cultural no qual se constata um modo de vida que não favorece o contato profundo consigo mesmo, com os outros, com o Criador. Seduzido por estímulos ambientais, envolvido por apelos vindos de fora, cativado pela mídia, pelas inovações rápidas, magnetizado por ofertas alucinantes... o ser humano se esvazia, se dilui, perde a interioridade e... se desumaniza. Tudo se torna líquido: o amor, as relações, os valores, a ética, as grandes causas... (cf. Bauman).
Somos vítimas da chamada “síndrome da exteriorização existencial”. Temos dificuldades de introspec-ção, silêncio, reflexão, contemplação... Não aprendemos a velejar nas águas da interioridade.
Vivemos a “era do vazio”, “tempos de inércia e passividade”, em que a superficialidade se apresenta como ideal de vida e as grandes aspirações se reduzem ao consumismo e ao narcisismo. Tudo convida ao descompromisso e à mediocridade. A vida pós-moderna apresenta-se cada vez mais como um caminho sem meta, um vagar à deriva, sem horizontes. Esta desarmonia interna é exteriorizada gerando uma desarmonia na relação com os outros, com a natureza e com o Criador.
O caminho de nossa vida entra em colapso, pois não sabemos para onde vamos porque não sabemos onde “estamos”.
* Até quando estarei vivendo em um lugar e almejando outro?
Estou onde estou. Vivo onde vivo. Esta é a minha casa.
No caminho do Seguimento percebemos que há portas que já se abriram e que nos permitem transitar pelos caminhos da vida; há portas que devem manter-se fechadas, para deixar para trás estilos auto-centrados que nos afastam de Jesus e dos outros; por fim, há outras portas que devem se abrir, para que um novo ar renove nosso interior e nos encha de fé, esperança e amor.
“Abrir portas” é abrir-nos às novas possibilidades, ao futuro, ao encontro, à vida expansiva... Sabemos, por experiência, a alegria que nos acompanha quando nos abrem uma porta, cruzamos o umbral e nos chega o abraço, a acolhida e nos é oferecido o dom de uma amizade.
Para reavivar a graça pascal precisamos:
- Abrir a porta da caridade e da misericórdia, sendo agentes transmissores da bondade e da ternura de Deus; abrir esta porta e mantê-la aberta, mesmo que entrem fortes ventos ou pessoas inesperadas;
- Abrir a porta para o novo, o diferente, superando toda suspeita, preconceito e medo; porta que nos possibilite compartilhar e aprender com todos os homens e mulheres de boa vontade para assumir os desafios mais cruciantes da humanidade de hoje;
- Abrir a porta aos pobres, reforçando a simplicidade como modo de vida e a solidariedade como proposta ousada;
- Abrir a porta do encontro que é a chave de nossa cultura; que passemos e ajudemos a passar da chave da separação e da distância à chave da proximidade e do encontro;
- Abrir a porta da comunicação direta, simples, inclusiva, transparente, próxima e fraterna.
- Abrir a porta para denunciar a desigualdade social e econômica que produz tanta dor e tantas vítimas;
- Abrir a porta que nos leve a um compromisso com a ecologia, o meio ambiente e o cuidado da natureza;
“Eis que estou à porta e bato; se alguém ouvir minha voz e abrir a porta, entrarei em sua casa e cearei com ele e ele comigo” (Apoc. 3,20). O convite é todo feito de ternura, de desejo e de liberdade, introduzindo-nos num movimento interior.
Como sempre é Deus quem toma a iniciativa. O Espírito procura entrar para fecundar, recolocar em ordem, restaurar, unificar.
Texto bíblico: Jo 10,1-10
Na oração: que saibamos discernir, diante de tantas portas que temos atrás de nós, junto a nós e diante de nós, qual deve ser nosso proceder. As portas não se abrem e nem se fecham sozinhas; é preciso uma chave e ela está em nossas mãos. Cabe a cada um decidir: que a casa do nosso coração seja a casa da humanidade.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
Diretor do Centro de Espiritualidade Inaciana
“... e conversavam sobre todas essas coisas que tinham acontecido” (Lc 24,14)
Cléopas e seu companheiro decidem ir embora porque está insuportável continuar vivendo no lugar onde Jesus sofreu a paixão e foi crucificado. A experiência da convivência com Ele e do seu seguimento tinha aberto para eles horizontes novos e mudado radicalmente o rumo de suas vidas.
Agora vão embora de Jerusalém porque, com a morte na cruz e a sepultura do Mestre, morreram e foram enterradas todas as suas esperanças.
Afastam-se da companhia dos outros discípulos porque o sonho acabou, porque não esperam mais nada, porque querem esquecer tudo. Querem sepultar a história de sua relação com Jesus, o Nazareno, que tinham seguido com tanta generosidade e tanto entusiasmo, e refazer suas vidas longe do lugar onde tudo aquilo havia acontecido. Entregaram suas vidas a um ideal que os fascinou, e fracassaram totalmente.
No entanto, tudo o que havia acontecido com Jesus continua presente na memória e no coração deles.
Conversavam o que significou para eles o encontro com Jesus, a convivência com Ele, o fascínio exercido sobre eles pelo anúncio do Evangelho e pela esperança da libertação de Israel.
Conversavam também sobre a crucifixão e a morte de Jesus: uma conversa triste, sem sentido, uma conversa de fracassados que não leva a lugar nenhum.
Aquele que fez a experiência de conviver com Jesus, que foi cativado por Ele, não consegue mais, mesmo que queira, esquecê-lo. No fundo do coração dos discípulos há um grande vazio que, inconscientemente, querem preencher “conversando”.
Mas o diálogo não é pacífico: não conseguem encontrar uma explicação para “o que aconteceu com Jesus”, não estão de acordo sobre o sentido dos acontecimentos.
Porque estão interiormente confusos, estão também divididos, não se entendem, “discutem entre si”, (talvez um jogando a culpa no outro por tê-lo envolvido nesta aventura fracassada).
É justamente no meio desta “conversa”, triste e sem esperança, que o Ressuscitado se manifesta. Ele os acompanha ao longo da estrada com sua presença silenciosa, comunga com a tristeza deles e só então toma a iniciativa de uma conversa com os dois, recorrendo à pedagogia da “pergunta”.
Sua pergunta toca no ponto nevrálgico da dor e os faz explicitar os motivos da tristeza refletida em seus rostos e da preocupação que carregavam no coração, e que faziam tão lentos os seus passos.
A pergunta desencadeia uma longa resposta, carregada de pormenores sobre como os discípulos compreendiam os acontecimentos que viveram. A pedagogia amorosa de Jesus deu certo. Os discípulos abrem o coração e contam ao peregrino “o que aconteceu a Jesus de Nazaré”. Na resposta dos discípulos estão contidos os temas essenciais do Kerigma cristão; mas esse conteúdo é relatado como uma tragédia irreparável. O que aconteceu com Jesus não é contado por um coração ardente e exultante, mas por um coração ferido, desiludido e triste.
Jesus não vem ao encontro dos dois discípulos para explicar algo. Vem procurá-los onde estão, para só depois partir com eles, de onde eles se encontram, em direção a um novo momento. O aproximar-se, o caminhar juntos um bom trecho do caminho, a escuta atenta, antes e depois de perguntar, a própria pergunta..., tudo isso estabelece um clima de confiança, um colocar-se em pé de igualdade, um falar com, que não é mais um falar a alguém.
Na conversa com o peregrino, os discípulos foram se encontrando em sua identidade profunda, que tinha sido desfigurada de tal maneira que já não se sentiam seguidores daquele Jesus que, em outros tempos, tinha plenificado suas vidas.
Para falar com alguém é fundamental conhecer o que esse alguém pensa, experimenta em seu dia-a-dia, seu trabalho, sua maneira de encarar a vida e o mundo.
Os discípulos de Emaús falaram de sua realidade, do jeito como a entendiam. Agora Jesus pode dar um passo a mais com eles. Agora sim, porque expuseram sua maneira de entender os fatos, porque fizeram sua análise da realidade, porque mostraram, por sua conversa, onde estavam as raízes de seu desânimo, de sua tristeza, de seu medo, de sua falta de esperança. Agora sim, Jesus pode pensar em ajudá-los. Agora podem partir do ponto em que estão em direção a um novo futuro.
Sejam quais forem as provações, os fracassos, as decepções, as feridas que sofremos, elas não serão capazes de destruir a nossa relação dom Jesus. Por isso, por um ou outro caminho, mais cedo ou mais tarde, o Senhor virá ao nosso encontro, entrará em diálogo conosco, reacenderá o fogo em nosso coração até fazê-lo arder, abrirá nossos olhos para que possamos reconhecê-lo.
A conversação é uma experiência profundamente humana de proximidade, de conhecimento, de intercâmbio, de ternura... um encontro entre caminhantes que vão compartilhando histórias de vida, esperanças e frustrações, vontade de construir e sonhar...
Na conversação, o que importa é a pessoa do outro e não os problemas que apresenta... ela é o lugar privilegiado de encontro e descoberta misteriosa do Outro (Deus).
A conversação nos liberta da solidão e do fechamento, fazendo-nos crescer na transparência.
A conversação reforça os laços, criando a comunidade dos “amigos no Senhor”.
A arte da conversação é um caminho pedagógico, um processo gradual que requer de nós uma capacidade de escuta, de acolher e deixar-se tocar pelo que o outro é, não só pelo que diz; uma capacidade de olhar com profundidade para reconhecer uma história santa, um caminho de salvação. É reconhecer no outro o que há de verdadeiro, bom e belo, e descobrir como o dinamismo de Deus atua no seu coração.
Texto bíblico: Lc 24,13-35
Na oração: Depois de contemplar longamente os dois discípulos no caminho, tristes, abatidos, decepcionados e totalmente desorientados, dirijamos o “olhar sobre nós mesmos”.
Trazer à memória nossos ideais, sonhos e projetos que fracassaram, fazendo desaparecer o brilho de nossos olhos, apagando o ardor de nosso coração e a alegria de viver.
- Pela conversa a pessoa manifesta quem ela é. “Onde está sua conversa, aí está seu coração”.
- Quais são suas conversas? Elas animam os outros, eleva-os, “aquecem seus corações?...”
Pe. Adroaldo Palaoro sj
Diretor do Centro de Espiritualidade Inaciana
“Não deixe que o trabalho sobre a mesa tampe a vista da janela. Estamos mergulhados numa lógica de mercado que não nos deixa perceber que o mais grave no mundo do trabalho é a desumanização; aflora, nesta situação, toda a negatividade do trabalho como experiência de exploração, frustração, medos, fadigas, falta de sentido...
Todos conhecemos pessoas que perderam a saúde e a alegria de viver pelo fardo do trabalho. Por tudo isso, o trabalho é um dos espaços que mais precisa ser humanizado e evangelizado. Precisamos alimentar uma outra relação com o trabalho no sentido de assumi-lo como cooperação com o Deus trabalhador e com tantas pessoas tocadas pela sua graça. Uma relação que permita nos distanciar das cargas, ativismos, tarefas estressantes... e viver o trabalho com humor e criatividade.
Uma relação que nos ajude a desfrutar do trabalho, apesar da sua intensidade. Poderíamos assumir um tipo de trabalho mais semelhante ao do artista, que se esmera em sua peça musical, literária ou pictórica, mas que se enriquece e se expande na sua obra.
Por meio do trabalho poderemos conhecer nossa própria interioridade projetada sobre a obra e, ao mesmo tempo, a obra realizada torna-se o espelho do nosso próprio rosto; contemplar-nos a nós mesmos no trabalho realizado e, com júbilo, podermos exclamar como o Criador: “E viu que era bom!”
Nesse sentido, o melhor seria chamar o trabalho de “labor”, e o ato de trabalhar de “elaborar”. O ser humano se elabora como tal, ao mesmo tempo que elabora a natureza. Ele luta, cansa-se, afadiga-se, esforça-se, esmera-se... mas o trabalho o rejuvenesce, fornece-lhe energia e entusiasmo, alegra-se com o fruto... Ele vive e delicia-se do e com seu trabalho.
Com isso, o trabalho deixa de ser suportado como um mal menor, como se fosse uma carga inevitável que unicamente proporciona os meios necessários para sobreviver. De fato, a verdadeira vida não se limita ao descanso do final de semana, dos feriados prolongados, das férias... O ser humano revela-se “pessoa” no ato criativo. “Trabalhar descansadamente”, eis o desafio.
A sociedade atual reclama de nós formas de vida que revelem como é possível desfrutar da beleza do trabalho. A grande questão está em promover um ritmo de vida que garanta a maturidade profissional, o crescimento espiritual, o discernimento, a união com Deus, o espírito de comunhão, o trabalho partilhado.
Na espiritualidade cristã buscamos a inspiração e o sentido para o trabalho cotidiano; como cristãos, deveríamos ser capazes de evangelizar a sociedade precisamente naquilo que nos é mais característico: sem afastar-nos dela, mostrar um jeito sério e comprometido de trabalhar, mais humano e evangélico.
Evangelizar o mundo do trabalho significa escutar o Criador que nos convida mais à fecundidade (criatividade) do que à eficácia. Convém não confundir uma com outra. Enquanto a eficácia quebra as pessoas e não respeita as comunidades, a fecundidade/criatividade acomoda-se aos ritmos naturais e faz crescer a comunidade. “Sede fecundos!”, convite do Criador que continua ressoando em nosso interior.
Alimentados e alicerçados na certeza de que o “ruah” (Espírito) paira sobre as águas da criação e da história, poderemos mergulhar no ritmo da criação e re-criação da Vida verdadeira que Deus quer para seu povo, sem que a angústia do ativismo nos devore e nos paralise.
O problema, portanto, não é a sobrecarga como tal, mas como encará-la de maneira discernida e inteligente, de sorte que o acúmulo de trabalhos não nos torne, paulatinamente, militantes da generosidade doida, desenfreada, de vidas esmagadas por um ativismo desumano.
A presença de Deus no mundo é ativa e dinâmica: Deus ama atuando em nossa história. Tudo está sendo construído e reconstruído por Deus. Deus trabalha em todas as coisas. Ele é a força inesgotável de onde brota todo o trabalho do mundo. Deus continua fazendo tudo novo.
Diante do “Deus trabalhador” o ser humano responde com um trabalho criativo; ele se sente chamado a trabalhar a serviço do Senhor, para sua maior glória.
Esta é a espiritualidade da colaboração, ou seja, o trabalho é a colaboração do ser humano ao Deus tra-balhador; pelo trabalho a pessoa está louvando o Pai, está salvando o mundo e está crescendo em graça.
Louvor sem trabalho é alienação;
Trabalho sem louvor é escravidão.
Trabalho que se faz com amor; Amor é servir, trabalhar: trabalhar com a mesma intenção de Deus; trabalhar com Deus na mesma direção, fazendo as mesmas obras que Deus está fazendo, ou seja, aperfeiçoando a Criação.
Encontramos aqui o fundamento para uma teologia do trabalho: toda atividade seja ela qual for, é redendora, se a motivação é evangélica, se ela está orientado para o Reino.
Não é o trabalho que nos faz importantes, mas somos nós que fazemos todo e qualquer trabalho ser importante, quando ele é realizado na perspectiva do Reino de Deus. Todo trabalho é nobre, seja ele o de cinzelar estátuas ou o de esfregar o chão.
A alegria do trabalho está no fato de perceber o sentido e a intenção presentes nele: para quê? para quem?
O que importa é a atitude. E a atitude que ajuda e que salva é “fazer o que precisa ser feito”, com entrega sincera àquilo que se faz. A identificação com aquilo que fazemos é o caminho para a paz interior.
Textos bíblicos: Mt 13,54-58 Mt. 20.1-16
Na oração: - dar sentido de amor e profundidade ao trabalho diário;
- através do trabalho, servir a Deus por puro amor;
- ser contemplativo na ação: o trabalho como lugar do encontro com Deus.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
Diretor do Centro de Espiritualidade Inaciana
“Jesus entrou e, pondo-se no meio deles, disse: a paz esteja convosco” (Jo 20,19)
“Olhar o ofício de consolar que Cristo nosso Senhor exerce” (S. Inácio).
Consolar é o que define a ação do Ressuscitado transformando a situação dos seus discípulos: a tristeza se converte numa alegria contagiosa, o medo em valentia e audácia, a negação de Cristo em profissão de fé e martírio... Não se trata de um ato pontual senão de um “ofício” que definirá para sempre a atividade de seu Espírito no mundo.
Nos relatos das aparições de Jesus Ressuscitado, esta experiência de ficar consolado aparece muito evidente, porque se passa da angústia do túmulo vazio à consolação na presença d’Aquele que vive; é a passagem da ausência desconcertante à presença significativa.
O Ressuscitado se aproxima como Presença viva que dá Vida: deixa-se ver, caminha, fala, interpela, corrige, anima, comunica paz e alegria. Em uma palavra, presenteia seu Espírito. Sua maneira de fazer-se presente é pessoal, personalizante, identificadora: de nome a nome, suscitando recordações e experiência comuns, fazendo vislumbrar projetos de futuro.
Outra vez Jesus recria a comunidade que depois da Paixão estava se desintegrando; e seus discípulos experimentam novamente o chamado e o envio, a serem testemunhas e cúmplices do Espírito, porque vivem a certeza existencial de que o Crucificado é o Ressuscitado, que a morte foi vencida, que Deus está constituído como Senhor.
Em meio à dor, os discípulos aprendem a confiar em Deus e a não deixar-se levar pela tristeza. A alegria não começa quando acabam as dores; a alegria é uma opção de vida, expressão da confiança em Deus, que faz possível enfrentar o sofrimento com esperança. A alegria não suprime o sofrimento, mas lhe dá sentido. A alegria não desconhece o sofrimento, senão que o enfrenta com confiança.
Nas cenas evangélicas das aparições, o efeito da presença do Ressuscitado sobre os discípulos termina sempre em reconhecimento, chamado e envio, em restauração de uma vocação e missão. Jesus ressuscitado exerce sobre eles um específico “ofício de consolar”, cujo efeito é iluminar o caminho pelo qual, em seu nome e com Ele, eles hão de percorrer. O “ofício de consolar” é a marca do Ressuscitado, é força re-criadora e reconstrutora de vidas despedaçadas. Jesus “ressuscita” cada um dos seus amigos, ativando neles o sentido da vida, reconstruindo os laços comunitários rompidos, e sobretudo, oferendo solo firme a quem estava sem chão, sem direção...
O “ofício de consolar” de Jesus é personalizador: com Madalena, a conversa é mais afetiva;
com os discípulos de Emaús, a conversa é mais teológica;
com os discípulos à beira-mar, sua conversa é de pescador.
O verbo “consolar” tem, no hebraico, um sentido mais amplo e forte que em português, porque, mais que animar a alguém abatido, expressa a ação eficaz de conseguir com que desapareçam os motivos de seu abatimento. Neste sentido, consolar não é tão somente acompanhar senão também inclui a ação de dar esperança, uma esperança fundada, capaz de produzir uma mudança radical no estado de ânimo do outro.
Em nosso uso habitual, a palavra “consolação” e o verbo “consolar” apontam para um profundo e rico significado: revelam um tipo de proximidade e comunhão com o outro capaz de transmitir-lhe compreensão, alento, acolhida, impulso... ou seja, uma transmissão de energia que desperte nele suas próprias capacidades de reação diante de uma situação de tristeza, de fracasso, de desespero ou sofrimento...
Consolação e consolar são a linguagem e ação de Deus no ser humano, comunicação do Criador com a criatura, iniciativa de Deus que, quando é recebida como dom gratuito e como escuta disponível, nunca deixa a pessoa consolada no mesmo lugar ou situação onde estava antes.
A consolação de Deus é sempre dinamizadora daquilo que é divino no ser humano. Por ser manifestação da comunicação do Espírito de Deus ao espírito humano, gera sempre na pessoa, amor, alegria, fé, entusiasmo..., e termina sempre em missão.
Deus nos consola para que possamos consolar.
Na consolação, Deus nos chama a ser seus colaboradores. A consolação que recebemos do Senhor não nos é dada tendo em vista um desfrute narcisista e fechado deste dom espiritual, mas tem a finalidade de capacitar-nos para o “ministério da consolação”.
É um dom para a missão; se não se exerce, ou seja, se alguém se apropria dela como coisa pessoal, morre. Dessa consolação de Deus, da qual nós mesmos e nosso mundo tanto necessitamos, somos chamados a fazer-nos receptores e mediadores.
Trata-se de uma consolação que é pura graça, que não está ao alcance de nossa mão dá-la a nós mesmos, nem dá-la aos outros, mas da qual podemos ser agradecidamente receptores e gratuitamente mediadores. Com isso, a consolação pode estender-se a outros muitos rincões da existência humana.
É tempo de auto-compreender-nos e atuar frente aos outros como enviados a exercer ativamente o “ofício de consolar”, tendo sempre presente que a consolação verdadeira pertence somente ao Espírito, já que não é outra coisa que a gratuita auto-comunicação do Deus trinitário à humanidade. É Ele mesmo quem deseja compartilhar conosco este ofício, o ofício de consolar.
Em 2Cor. 1,3-7 S. Paulo fala da consolação de Deus como dom para uma missão. Somos pois consolados em nossas tribulações para poder consolar os outros nas suas. Trata-se de uma experiência transbordante, expansiva, que nos impulsiona em direção aos outros. O consolo que recebemos está destinado a transbordar-se para os outros em forma de comunicação de alegria intensa e de gratidão.
A gratuidade é o habitat natural da consolação e do consolado.
Todos somos chamados a exercer este “ofício de consolar” de Jesus; a experiência da Ressurreição nos move a “descer” junto à realidade do outro (seus dramas, fracassos, perda de sentido da vida...) e exercer este ministério humanizador, ou seja, ministério entre iguais, “vida que desperta outra vida”.
É vida plenificada, iluminada, integrada... pela experiência de encontro com o Ressuscitado e que flui em direção à vida bloqueada, necrosada... ativando-a, despertando-a... É movimento expansivo da vida. Assim como a consolação é o canal privilegiado pelo qual Deus se comunica e atua em nós, o ofício do consolo” é o canal por onde flui a vida: acompanhar os solitários, tecer relações de fraternidade, “estender pontes”, oferecer solo firme...
“Ofício” vem de “oficina”: lugar da criatividade, do novo, do surpreendente... e não da repetição mecânica. Por isso, não há um molde para consolar a todos igualmente. Há profissionais onde este ofício é mais fácil: terapeuta, educador, assistente social, médico, acompanhantes espirituais, sacerdotes... Mas todos somos chamados a viver este ofício, não como evento, mas como hábito permanente de vida. É por onde flui a Ressurreição.
Texto bíblico: Jo 20,19-31
Na oração: recorde situações onde você foi o mediador da consolação de Deus.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
Diretor do Centro de Espiritualidade Inaciana - CEI
“Maria Madalena foi ao túmulo de Jesus, bem de madrugada, quando ainda estava escuro...”
“Faz escuro, mas eu canto” (Thiago de Mello)
Ainda não é dia, mas amanhece um novo tempo; ressoam como ditas para nós as palavras do profeta Isaías: “Algo novo está nascendo; não o vês?” (43,19). É tempo de esperança e de saída de nossos esconderijos. Páscoa é movimento: é ainda de madrugada mas podemos sentir o movimento das pessoas no evangelho de hoje: Maria Madalena corre, Pedro também, João se adianta... até a pedra do sepulcro se move. Não é pressa, nem ansiedade, tão próprios de nosso tempo. É outra coisa, algo que impulsiona a partir de dentro. É vida que quer tocar tudo e oferecer uma mudança, uma possibilidade nova; é vida que se abre para a luz, como no início da Criação. É a vida do Vivente que abre caminho.
“A pedra da entrada do túmulo é removida” e amanhece uma nova consciência planetária, uma nova espiritualidade, uma nova maneira de viver o mistério de Deus, uma concepção novidosa do ser humano, uma nova mentalidade, uma nova maneira de ser Igreja...
Amanhece um novo mundo, heterogêneo, descentralizado; um novo humanismo, um novo movimento cultural. Brota um novo despertar a partir de uma maior lucidez e consciência dos problemas mundiais e uma escuta afinada diante do clamor unânime de que outro mundo é possível.
Amanhece também uma fome de espiritualidade, entendida como fome de profundidade, interioridade, silêncio, experiência de unidade. Se é autêntica, essa experiência desperta a compaixão e a coragem na busca da justiça e no compromisso contra toda exclusão social, econômica, racial, sexual, religiosa...
Jesus de Nazaré ofereceu a seus contemporâneos uma novidade radical que poucos foram capazes de acolher. Seremos nós capazes de viver hoje essa radical novidade e transmiti-la ao nosso mundo?
A Páscoa desata ricas possibilidades no interior de cada um e no coração da realidade na qual estamos inseridos. Ela aponta para o novo humanismo que amanhece e que não será mais de submissão, nem de bloqueio de mudança, nem exclusões, mas de impulso à criação, à inovação, à criatividade...
Este novo humanismo exige o cultivo de uma nova disposição: flexível, capaz de acolher a novidade contínua e, ao mesmo tempo, lúcida para discernir e viver integradamente o amor a si mesmo, ao outro, à criação e a Deus.
Estamos todos fartos de palavras que nos soam vazias, repetitivas, estereotipadas..., que nos deixam frio o coração e indiferente nossa cabeça. Nosso tempo requer, não pregadores que convidam a crer, mas pessoas que impulsionam a encontrar-se com o Mistério da Vida. Precisamos de mistagogos e testemunhas.
Mistagogos: homens e mulheres que, porque fizeram o caminho, podem convidar, orientar e ajudar a outras pessoas a buscar por si mesmas, a introduzir-se no umbral desse mistério amoroso que chamamos Deus: o mistério no qual vivemos, respiramos, somos.
Testemunhas: homens e mulheres que, através de suas vidas façam visível o Deus de Jesus.
- testemunhas da paixão de Deus pelo perdido, pelo pequeno, pobre e simples, pelo abaixo da história;
- testemunhas do Deus-relação sem exclusivismos nem dominações;
- testemunhas da entranhável misericórdia de nosso Deus;
- testemunhas do Deus da vida, de seu Ser-cuidado para com sua criação;
- testemunhas de sua presença discreta no coração da realidade;
- testemunhas do Deus festivo, boa notícia.
Como? Deixando-nos empapar pela Ressurreição de Cristo e permitindo o nosso corpo ser um corpo de ressuscitados. A Ressurreição “entra pelos sentidos”. Então:
- nossos olhos não só ficarão fascinados por perceber Sua presença, senão que, como os Seus olhos, olharão a dor do povo, se converterão em lugar de encontro. Serão olhos que ao olhar reconhecem e devolvem dignidade, perdoam, animam, levantam, amam;
- nossos ouvidos se farão sensíveis para descobrir a presença do Mistério na cotidianidade da vida; saberão distinguir, apesar dos ruídos, os gritos de dor e os cantos de alegria do povo; saberão escutar respeitosos e atentos;
- nossa boca saberá falar e calar como linguagem de amor; denunciará com valentia; cantará a boa notícia; compartilhará com satisfação o que dá sentido à própria vida, e se fechará à maledicência; aprenderá a degustar, na vida cotidiana, os sabores do reino e oferecerá aos outros essa sabedoria;
- nossas mãos serão capazes de colaborar no nascimento da vida nova que ilumina todos os rincões do mundo. Serão mãos que compartilham, acariciam, levantam, curam, ajudam a demolir os muros da separação e da exclusão;
- nossos pés se converterão em samaritanos e peregrinos, companheiros de viagem que não trilham os caminhos da violência mas abrem caminhos de paz. Serão pés dançantes, festivos, que sabem desfrutar da vida simples, do prazer compartilhado;
- nosso coração será cada dia mais amoroso, grande, sem mesquinhez, sem ressentimentos, casa aberta, misericordioso, compassivo, será um coração de carne, não de pedra;
- nossas entranhas saberão estremecer-se de dor e de prazer, não permanecerão indiferentes, serão entranhas sempre fecundas, geradoras de vida nova para as gerações futuras;
- nossa pele será lugar de toques curadores, lugar para o encontro, nunca para a “alergia” dos outros.
Quando tudo isto for verdade em nossos corpos, nos acontecerá o mesmo que aconteceu com Jesus; que aqueles que vivem ao nosso lado dirão: “o que vimos com nossos olhos, o que ouvimos com nossos ouvidos e tocamos com nossas mãos é que o Deus dos cristãos é amor e vale a pena crer n’Ele” (cf. 1Jo. 1,1). No meio da noite, apesar da tormenta, seremos como estrelas que iluminam, âncoras centradas em Jesus e em seu Reino, barcas com velas soltas ao vento do Ruah, vínculos que unem, pontes que se fazem lugar de encontro, testemunhas visíveis do Deus Invisível. Presença de Ressurreição.
É a aurora do novo dia que varre os espaços interiores para deixá-los limpos e novos diante da nova realidade que surge no horizonte. É Novo Tempo, Nova Criação.
Bênção da aurora que é sempre nova, sempre cheia de luz e de vida, sempre inédita, sempre diferente. Cada aurora é uma “entrada” em um novo dia, e para “entrar” no dia que se inicia é preciso “sair” do dia que passou. Quando tudo “ocorre pela primeira vez” é quando “tudo é eterno”.
Texto bíblico: Jo 20,1-9
Na oração: Desfazer obscuridades e tecer liberdade, nutrir a vida de compaixão e amizade; celebrá-la e oferecê-la de verdade, orar... Não é esse o movimento de Ressurreição? Não é isto que o evangelista João quer destacar quando escreve que Madalena “saiu correndo”, que Pedro e João “corriam juntos”?
O que está travado em mim que impede o movimento em direção à Vida?
Pe. Adroaldo Palaoro sj
Diretor do Centro de Espiritualidade Inaciana - CEI
O “Deus sempre maior” se desvela e ao mesmo tempo se vela(oculta) a nossos olhos.
Tanto na vida cotidiana dos cristãos como também na liturgia, o Sábado Santo é um dia triste, cinzento, desapercebido, quase esquecido. Seu centro é o sepulcro; é um dia sem liturgia, em silêncio, não acontece nada, recorda a solidão do sepulcro, a tristeza das mulheres e dos discípulos, a desilusão diante do fracasso.
Todos, em algum momento de nossa vida, temos atravessado ou atravessamos períodos de tristeza, luto, frustração ou fracasso de projetos ou expectativas. Momentos de sofrimentos físicos, morais ou espirituais, situações de carência de sentido da vida e de injustiças flagrantes vão marcando nossa existência.
A experiência do “Sábado Santo” é uma experiência tipicamente humana e cristã e aqueles que passaram por ela são luz e consolo para os outros.
Como seguidores de Jesus, vivemos nossos Adventos, Natais, Quaresmas, Páscoas e Pentecostes; também vivemos nossas Sextas-feiras santas. É preciso também aprender a viver os Sábados Santos.
O Sábado santo é seguramente o tempo da Igreja e da liturgia que nos cabe viver mais largamente em nossa vida: há um silêncio angustiante de Deus diante das injustiças do mundo, diante da violência, da fome, da enfermidade, da destruição da natureza, da morte... Deus parece dormir, se cala, escuta-se o silêncio de Deus...Para muitos, não há nada além do sábado de sepultura; esse sábado não teria nada de “santo”, seria o sábado do fracasso e do sepultamento daquele que culpavelmente se viu privado de vida. O desconcerto diante da Sexta-feira santa pode chegar a tal ponto que não resta esperança, nem razão para a missão.
O Sábado Santo, no entanto, nos impulsiona a entrar em outra concepção do tempo e em outro modo de viver. Neste dia, toda a Igreja sente um peso profundo que não a deixa ainda desfrutar da vida. Estar à espera ou em chave de sábado santo, é um estado difícil... em tensão. É o dia da paciência, o dia da esperança freada, o dia em que a esperança é acrisolada pelo fogo.
Nosso Sábado não é simplesmente um final. É um convite à fé. A atitude criativa e crente é confiar muito mais no Deus que, parece, se ausentou de nossas vidas. Na verdade, toda a realidade está cheia da Presença ausente de Deus. A ausência é a linguagem do amor: dinamiza, impulsiona a progredir no conhecimento da pessoa amada e a esperar o encontro com ela.
Na relação com Deus acontece o mesmo. O movimento do encontrar-se-afastar-se, o lamento da separação e a dor da ausência gera um insaciável desejo de busca e espera vigilante d’Aquele que em qualquer momento pode fazer-se presente.
Com sua Presença e sua Ausência Deus mesmo nos vai educando o coração. O velar-se-desvelar-se de Deus fortalece a confiança e nos leva não colocar a segurança em nosso pobre amor, senão no d’Ele. A Ausência ajuda a manter viva a sede de Deus, buscando-O por novos e obscuros canais. Podemos assim transitar por caminhos desconhecidos só com esta sede de Deus por luz. Deus nos convida sempre a romper as fronteiras do lugar onde habitamos para poder crescer no Amor.
O Sábado Santo irrompe no itinerário do crescimento espiritual porque ir pelo caminho da configuração com Cristo supõe passar por ele. Grande parte de nossas vidas é constituída por longos “sábados santos”. É na vivência deles que se dá um aumento de percepção e compreensão da experiência de Deus. Apesar da dor e da provação, temos a certeza da “fonte que mana e escorre”. São momentos de aprendizagem em “deixar Deus ser Deus” na nossa própria vida, para que Ele continue sendo nosso verdadeiro Centro e assim todo nosso ser e agir possa ser para sua glória e louvor. Eles nos preparam para que possamos nos aproximar de Deus com todas as capacidades de comunhão abertas.
O ocultamento de Deus neste dia é só provisório. Em nós pulsa a “teopatia” (paixão por Deus). E nosso Deus não nos vai defraudar. E esperamos porque “cremos n’Ele”, esperamos o melhor de sua bondade. O Espírito ficou sem Palavra, mas já sussurra; Ele paira sobre nosso “caos” interior para ali estabelecer o “cosmos”, a harmonia e a beleza da vida. Algo grande está prestes a acontecer.
O Sábado Santo, na realidade, constitui um momento de purificação no qual nos é oferecida a oportunidade de desprender-nos de tudo aquilo que em nossa mente e em nosso coração confundimos com Deus. Nele, Deus nos transforma em seu Amor.
É no Sábado onde podemos concentrar toda nossa atenção em Deus como nosso Tudo, sem que outra coisa possa dispersar-nos. A fidelidade a Deus é a condição da união com Ele. No Sábado da espera somos convidados a exercitar-nos na fé, na esperança e no amor. O Sábado, sem a certeza de que é a antessala do Domingo da Ressurreição, é só morte e convoca à morte.
No Sábado Santo somos todos terra de penumbra. Nela se antecipa a esperança do dia de Páscoa. Como as mulheres, vamos ao sepulcro, levando aromas. Aberto à expectativa diante do amanhecer que traz notícias, o Sábado se converte em um tempo fecundo. Cheio de sombra, é verdade, mas fecundo porque refaz nossas forças, nos convoca ao essencial e nos confirma no que queremos ser: homens e mulheres de fé.
Como seguidores de Jesus somos testemunhas não do fracasso, mas de ricas e surpreendentes possibilidades. Com tudo, apesar de tudo e com o peso de tudo, sabemos que o Sábado não é uma espera inútil, é uma espera fecunda. Sábado Santo é tempo não só de espera senão de esperança, é deixar que o grão de trigo morto comece a dar fruto, é tempo de um inverno que fará possível as flores da primavera, é tempo de imaginar, de criar, de abrir-se a algo novo e inesperado, de sonhar um mundo melhor e uma igreja nazarena. O Sábado Santo é, ao mesmo tempo, sepulcro e mãe, como diziam os antigos Padres da igreja ao falar do batismo.
Este espaço de silêncio não é de morte mas de vida germinal, é noite que aponta para a aurora, é momento de semear, é tempo de crer que o Espírito do Senhor, criador e doador de vida, está fecundando a história e a terra para sua maturação pascal, para a nova terra e o novo céu.
Ainda mais, este tempo é necessário, imprescindível para que deixemos de nos olhar para nós mesmos e nos abramos aos primeiros reflexos de Ressurreição que estão chegando, inclusive de lugares que não costumamos olhar.
Texto bíblico: Lc 23,50-56
Na oração: fazer memória dos Sábados Santos (perdas, fracassos, lutos...) como tempo de maturação da própria vida e como possibilidade de surgimento do novo.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
Diretor do Centro de Espiritualidade Inaciana - CEI
“Os homens nunca fazem o mal tão completamente e com tanto entusiasmo como quando o fazem por convicção religiosa” (Blaise Pascal)
“Essa é a única morte que nos pode dar força diante das outras mortes” (Libânio)
Todas as mortes são para nós um absurdo, porque a morte é o nada que entra na nossa história, e seria nada mesmo, se não houvesse essa morte de Jesus que deu sentido a todas as outras mortes. Só por isso valeu a morte de Jesus. Diante dos sofrimentos e da morte somos convidados a olhar para este Homem que assumiu a morte para estar conosco, para estar ao nosso lado; é nessas horas que vamos encontrá-Lo.
Sexta-feira Santa é convite a entrar e mergulhar no mistério desse Homem que, ao mesmo tempo, assumiu nossa humanidade ao extremo e nos mostrou a face misericordiosa de Deus Pai.
Jesus não escapou de nenhuma experiência nossa, Ele não fugiu das experiências que tecem o nosso cotidiano, Ele as viveu a cada dia de modo humano. E de repente essa experiência humana chega a seu extremo, ao extremo da dor e do sofrimento.
Carregar a cruz não é um ato dolorista nem um ato suicida, é um ato de entrega da própria existência.
Ao contemplar o Crucificado, muitos questionamentos vão surgindo:
* a Cruz é sinal de solidariedade ou sinal de poder, sinal de libertação ou sinal de opressão, sinal de rebeldia ou sinal de submissão, sinal dos vencidos ou sinal dos vencedores...?
* Perguntamo-nos se é a Cruz dos condenados deste mundo ou a cruz dos que condenam, a Cruz dos crucificados da terra ou a cruz dos que continuam crucificando como em outro tempo crucificaram a Jesus?
A primeira coisa que descobrimos ao contemplar o Crucificado do Gólgota, torturado injustamente até à morte pelo poder político-religioso, é a força destruidora do mal, a crueldade do ódio e o fanatismo da mentira. Precisamente aí, nessa vítima inocente, nós seguidores de Jesus, vemos o Deus identificado com todas as vítimas de todos os tempos. Está na Cruz do Calvário e está em todas as cruzes onde sofrem e morrem os mais inocentes. A partir da Cruz, Deus não responde o mal com o mal; Ele não é o Deus justiceiro, ressentido e vingativo, pois prefere ser vítima de suas criaturas antes que verdugo.
O Crucificado nos revela que não existe, nem existirá nunca um Deus frio, insensível e indiferente, mas um Deus que padece conosco, sofre nossos sofrimentos e morre nossa morte.
Despojado de todo poder dominador, de toda beleza estética, de todo êxito político e de toda auréola religiosa, Deus se revela a nós, no mais puro e insondável de seu mistério, como amor e somente amor.
Nós cristãos contemplamos o Crucificado para não esquecer nunca o “amor louco” de Deus para com a humanidade e para manter viva a recordação de todos os crucificados da história.
Jesus não morreu por vontade divina nem para expiar nossos pecados, senão que foi condenado como herege e subversivo, por elevar a voz contra os abusos do templo e do palácio, por colocar-se do lado dos perdedores, por ser amigo dos últimos, de todos os caídos.
Na contemplação da Paixão fazemos memória comovida de Jesus, e ao “fazer memória” confessamos que Ele está vivo, revivemos Sua vida, O ressuscitamos na vida. Não buscamos argumentos lógicos e dog-máticos, mas sinais de vida em toda Sua vida e também em Sua morte. Descobrimos, como afirma a teóloga Mercedes Navarro, que “Jesus morreu de vida”: de bondade e de esperança lúcida, de solidariedade alegre, de compaixão ousada, de liberdade arriscada, de proximidade curadora...
“Morreu de vida”: isso foi a Cruz, e isso é a Páscoa. E é por isso que tem sentido recordar Jesus, olhando nas chagas de sua Cruz as pegadas de sua vida.
Os relatos dos evangelistas nos recordam que nós cristãos somos seguidores de um Crucificado.
A leitura orante do relato da Cruz de Jesus nos faz abrir os olhos para ler também nossa própria vida e a vida de toda a humanidade. Não se trata meramente de uma referência externa, presa ao passado, mas de uma mensagem de sabedoria permanente, que transcende o tempo e o espaço.
“Porque os judeus pedem sinais, os gregos procuram sabedoria, ao passo que nós anunciamos Cristo crucificado, escândalo para os judeus, loucura para os pagãos, mas para aqueles que são chamados é Cristo, força de Deus e sabedoria de Deus” (1Cor. 1,22-24)
Situar-se, pois, diante do Crucificado, acarreta diversas conseqüências para nossa vida; podemos destacar as seguintes:
Denúncia: a Cruz nos fala de uma aliança de poderes, religioso e político, que acabaram cruelmente com a vida de um inocente. Isso ocorreu com Jesus e, por desgraça, ocorre ao longo de toda a história humana. Crer no Crucificado implica denunciar ativamente todo tipo de opressão contra os inocentes.
Compromisso: para nós que cremos em Jesus, todo e qualquer “crucificado” – seja qual for o motivo de sua cruz – é alguém sagrado, que suplica nossa compaixão ativa e nossa solidariedade eficaz. Como diz Jon Sobrino, não podemos crer no Crucificado de um modo coerente se não estamos dispostos a fazer descer da cruz aqueles que estão nela.
Esperança de vida: a Cruz – que se completa com a mensagem da ressurreição, com a qual forma um único acontecimento – proclama que a Vida não morre; que, inclusive naquelas circunstâncias nas quais parece que tudo é fracasso, a Vida abre caminho; nenhuma morte é o final.
Ensinamento: como viver a própria cruz? Para começar, sabemos que, a rigor, não podemos chamar “cruz” a todo sofrimento. Há sofrimentos evitáveis, em nós e nos outros, contra os quais teremos que lu-tar; há outros inevitáveis, que precisamos acolhê-los e dar-lhes sentido; e há outros, que são consequência de uma opção de amor fiel: estes são a “cruz”, pois são a opção construtiva que admiramos em Jesus: aqui é importante assumi-los lúcida, paciente e confiadamente. Assim vivida, a Cruz é fonte de vida; tal é a mensagem do Crucificado: “viver como Deus quer o que Deus não quer”.
Textos bíblicos: Mc 15,21-41 1Cor. 1,18-25
Pe. Adroaldo Palaoro sj
Diretor do Centro de Espiritualidade Inaciana - CEI
“Cristo monumentou a Humildade quando beijou os pés dos seus discípulos” (Manoel de Barros)
O gesto do “lava-pés” é paradigmático para todo seguidor de Jesus Cristo; constitui um dos gestos mais expressivos da missão e da identidade para aqueles que exercem algum serviço em sua comunidade.
É revelação e ensinamento. É amor e mandamento. É gesto-vida, gesto-horizonte, gesto-luz...
Não podemos amar o outro e olhá-lo de cima. Não se trata também de se “humilhar”, de se colocar “abaixo” de seus pés, mas de cuidar de seus pés para que esse outro possa se manter de pé, para que ambos possam estar face a face e caminhar juntos.
Jesus sabia que seus discípulos tinham pés frágeis, pés de argila. Amar alguém não é querer que ele fique deitado a seus pés, mas é querer que ele se mantenha de pé, na plenitude de sua grandeza. Amar alguém é querê-lo com os pés “livres, leves e soltos”. Lavar os pés é gesto de humanização e gesto humanizante. É devolver ao outro a dignidade e capacidade de dar destino à sua vida.
A cena do lava-pés revela profundidade e delicadeza, mútuo dom e acolhimento, comunhão e cuidado. É um gesto profético, repleto de generosidade e de humildade.
O Evangelho de S. João substitui a instituição da Eucaristia pelo Lava-pés. O gesto escandaloso de Jesus revela um enfoque nem sempre percebido em seu sentido profundo. Ele revela aos apóstolos um “novo ângulo” ou um novo modo de ver as coisas: não a partir do lugar dos comensais, mas a partir da pers-pectiva de quem não está sentado à mesa. O gesto de Jesus nos convida a deslocar-nos, ou seja, ocupar o lugar da pessoa que não participa da mesa. Quê novidade percebemos a partir deste lugar?
Jesus deixa transbordar os segredos de seu coração. Ele revela o rosto de Deus, que é Amor.
Ninguém serve a Deus, a não ser do jeito de Jesus, isto é, lavando os pés, amando até o fim.
Mistério da Encarnação: Deus abraçando e sendo encontrado junto aos pés dos seus filhos(as).
“Levanta-se da mesa” – “senta-se à mesa”: movimento de partida e de chegada; mesa que se projeta no serviço, mesa que faz memória festiva, mesa do encontro...
O “descendimento” do Senhor aos pés dos discípulos, fazendo-se servidor, transforma o status da servidão (“o servo não sabe o que faz seu senhor”) em fraternidade (“não vos chamo servos, mas amigos).
Deste modo se mostra o verdadeiro senhorio de Jesus: a possibilidade de restabelecer a igualdade entre as pessoas através da superabundância de um amor que se derrama, sem reservas, para todos. Este gesto provocativo de serviço e despojamento d’Aquele que é “Senhor” desperta em cada seguidor o desejo de considerar suas qualidades e capacidades como veículos de doação, não de poder ou de manipulação. A partir deste “ousado gesto” já não se justifica nenhum tipo de superioridade, mas somente a relação pessoal de irmãos e amigos.
A reação de Pedro expressa bem o escândalo que este gesto produz, porque Jesus revela que a autoridade - ser Senhor – é um serviço, não uma dominação.
Pedro fica desconcertado e em dilema. Sua imagem do Messias seguro e vencedor não combina com a vulnerabilidade de um servo.
O gesto do lava-pés é repleto da “espiritualidade do cuidado”.
O cuidado é um diálogo de presenças, não só de palavras. São seres “vulneráveis” que dialogam.
O cuidado é expressão de ternura e delicadeza. É atenção às pessoas; é gesto de inclusão.
O cuidado é gesto amoroso para com o outro, gesto que protege e traz serenidade e paz.
O amor é a expressão mais alta do cuidado, porque tudo o que amamos cuidamos. E tudo o que cuidamos é um sinal de que também amamos. Cuidar é envolver-se com o outro ou com a comunidade de vida, mostrando zelo e preocupação. Mas é sempre uma atitude de benevolência que quer estar junto, acompanhar e proteger; é ter espírito de gentileza e ternura para captar e sentir o outro como outro, como original, e acolhê-lo na sua diferença. O Lava-pés nos pede vestir a toalha da simplicidade, da ternura acolhedora, da escuta comprometida, do serviço desinteressado...
Lava-pés não é teatro, mas modo habitual de proceder e de estar no mundo.
Texto bíblico: Jo. 13,1-17
Na oração: Como posso vivenciar, no cotidiano, a beleza e o cuidado revelados no gesto do lava-pés?
Pe. Adroaldo Palaoro sj
Diretor do Centro de Espiritualidade Inaciana - CEI
“Trouxeram o jumentinho e puseram sobre ele suas vestes, e Jesus montou” (Mt 21,7)
No Domingo de Ramos, ao fazer memória da entrada de Jesus em Jerusalém, costumamos realizar procissões triunfais, com palmas e cânticos, com os sacerdotes revestidos de preciosos ornamentos...
No entanto, convém recordar como Jesus se situou frente a isso que chamamos triunfo.
Um triunfo e um êxito retumbante é o que esperavam todos aqueles que o seguiam desde a Galileia; esperavam um novo Davi poderoso, o rei por excelência, o ungido, o conquistador, o unificador, o que iria devolver a Israel a soberania, a paz, a abundância, o predomínio sobre as demais nações... Aquele que faria com que todas as nações viessem adorar a Deus em seu santo Templo de Jerusalém, o Messias, luz das nações e glória de seu povo Israel.
Mas Jesus frustra esta expectativa: durante toda sua vida pública Ele se empenhou em afastar-se dessa imagem triunfal, evitou a propaganda e a fama de curador poderoso, pediu para manter oculto seus milagres, fugiu daqueles que queriam fazê-lo rei, anunciou repetidas vezes que seu fim era a rejeição, a perseguição, a condenação por parte dos poderosos e a morte na cruz.
A subida a Jerusalém é penosa, marcada por conflitos e os discípulos cada vez mais distantes do pensamento do Mestre pois disputavam entre eles quem ficaria à direita ou à esquerda no Reino. Jesus passou a vida inteira desmontando a ideia de triunfo e êxito que imperava no povo e em seus amigos. Com sua “entrada em Jerusalém”, Jesus desconcerta a todos. Seu gesto provocativo revela que não podemos compreender sua missão com base no poder e na força que se impõem, pois onde há poder não há amor e nem misericórdia.
Os poderosos tem pavor daquele que vem sem nada, despojado de tudo, sem poder, anunciando a chegada do Reino, ou seja, de uma humanidade diferente, fundada na verdade e na solidariedade verdadeira. Ele queria entrar na cidade oferecendo uma mensagem de pacificação e um programa de libertação, como fizera durante sua estadia na Galileia. Deixa transparecer que a salvação de Deus não vem do triunfo político, da aclamação social, da imposição dos de cima, da opressão por parte da religião...
Por isso, como mensageiro de paz, chegou Jesus a Jerusalém montado num jumentinho. Não precisava de soldados e nem de instituições de violência para se defender. Sem armas de guerra, sem um possante cavalo, sem poderes e nem ambições..., mas montado num jumentinho de paz, um jumentinho emprestado e novo, não domado, pois Jesus não possuía nem um jumentinho.
O “êxito” de Jesus consiste no fato de ser capaz de ir até o final, de ser coerente com a proposta de vida, de ser fiel à vontade do Pai; seu êxito consiste em não querer triunfar e dominar como todos esperavam.
Este gesto escandaloso de Jesus, ao entrar em Jerusalém, também desmonta toda pretensão de triunfo e êxito presente tanto no mais profundo de nosso ser como na estrutura eclesial. Nada mais contrário ao seu seguimento do que querer triunfar sobre os outros, lutando por poder, prestígio, influência social, espetáculo, carreirismo...
Este é o “vírus” que a todos infecta; todos perseguimos o triunfo, todos buscamos o êxito frente às aspirações e propósitos que vamos assumindo ao longo de nossa existência. Todos, em um grau maior ou menor, de uma maneira ou de outra, buscamos o êxito e lutamos, às vezes com muito custo, para evitar o pólo oposto: o fracasso. E na luta por obter triunfo e êxito nos esforçamos, nos identificamos com determinados modelos, elaboramos estratégias, passamos por cima dos outros... Em resumo, todos gastamos importantes quantidades de energia para não nos esbarrarmos em possíveis fracassos.
Brilhar diante dos outros, levar vantagem em tudo, alcançar a fama e o reconhecimento público, aparecer nos meios de comunicação social, ser relevante ou influente no próprio grupo social ou institucional, conquistar uma posição de poder e prestígio..., aparecem em nossas sociedades como uma das metas mais importantes a alcançar na vida. Daí a proliferação de recursos que são oferecidos no mercado para a conquista de tal propósito e as ansiedades que essa mesma busca provoca.
Contudo, no horizonte da Paixão de Jesus, o fracasso também tem seu lugar. O fracasso constitui a outra face do êxito, sua contrapartida. Não é possível, por isso, tratar sobre o êxito sem estar fazendo continua referência ao fracasso.
O que é único e original na tradição cristã é isso: “O que é a Cruz, senão a história de um fracasso?” Fracasso de um ensinamento, fracasso de uma pregação, fracasso do amor a todos os seres, amor esse que não foi reconhecido. Jesus transformou este fracasso em um caminho para a ressurreição.
Quando pensamos em nossas vidas, quando as vemos pelo seu exterior, percebemos inúmeros fracassos. Mas, em segredo, podemos pressentir que estes fracassos, estas dificuldades são, talvez, a nossa maior sorte. Porque através deles nos libertamos de nossas ilusões sobre nós mesmos. Eles tendem a nos deprimir, mas também podem ser uma ocasião para nos fazer mais humanos e humildes.
Através dos fracassos nos aproximamos de nosso ser essencial e original, onde estão os dinamismos capazes de transformar estes mesmos fracassos em caminhos de realização e crescimento.
O fracasso pode ser percebido como chance para crescimento ou amadurecimento, ou pode ser integrado à luz de outras experiências positivas. Aprendemos mais pelos nossos fracassos do que pelos nossos êxitos. Nossa existência é constituída de momentos de luta e de coragem, de sonhos e de esperança, de vitória e de derrota. Este é o material com o qual são construídas as histórias e as vidas.
O fracasso, que em muitas ocasiões nos provoca medo, insegurança, mal-estar... é um espaço perfeitamente adequado para iniciar o movimento para uma maior expansão de si.
Mais ainda, muitas vezes são os fracassos que nos levam a iniciar uma mudança em nossas vidas, para uma maior realização pessoal e, portanto, para uma maior satisfação interior.
Para muitos, os fracassos os afundam num abismo de impotência e agressividade; para outros, ao contrário, os fracassos os convertem em seres incrivelmente sensíveis, compassivos, humildes...
Os fracassos nos revelam aspectos novos de nós mesmos e nos ajudam a conhecer-nos mais.
“Há coisas que não se compreendem enquanto não se esteja definitivamente derrotado” (Péguy)
Os fracassos tem poder de revelação: ser o que a pessoa é e nada mais que aquilo que é. A experiência dos fracassos nos une a todos, nos iguala, é fonte de comunhão... Graças aos fracassos, a pessoa vai quebrando, pouco a pouco, seu instinto de posse, a autoafirmação de si, a prepotência, a soberba...
Texto bíblico: Mt 21,1-11
Na oração: Fazer memória da entrada de Jesus em Jerusalém implica descer com Ele à nossa cidade interior e ali esvaziar toda busca de poder e prestígio, desalojar tudo aquilo que se alimenta de êxito e triunfo, e assim destravar a vida verdadeira que quer se expandir.
“Descer” com Jesus nos humaniza interiormente e nos move a viver uma relação mais humanizadora com os outros, fundada na compaixão, na acolhida e no compromisso solidário.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
Diretor do Centro de Espiritualidade Inaciana - CEI
“Eu sou a ressurreição e a vida. Quem crê em mim, mesmo que morra, viverá” (Jo 11,25)
Há em todos nós um desejo insaciável de vida. Passamos os dias e os anos lutando por viver, nos agarrando à ciência e, sobretudo, à medicina, para prolongar esta vida biológica. Sabemos que a morte é a realidade mais universal: todos morrem; mas nem todos sabem viver.
E o que é a vida? Como viver? Tem sentido viver? Há “vida antes da morte”?
A vida humana, antes que saberes e idéias, é prazer e sofrimento, alegria e tristeza, companhia e solidão, tato e contato com alguém a quem queremos, entrega e generosidade, liberdade e esperança... Por isso, na vida humana, é tão determinante a sensibilidade, o afeto, a ternura, a bondade, a compaixão, tudo o que gera amor, carinho e doação de uns para com outros.
Em todas estas situações o que está em jogo é a vida. Não “outra” vida, mas a “vida”.
Para o evangelista João, a “vida” é uma totalidade, que é já a vida presente, a vida atual, uma vida que tem tal plenitude que, com toda razão, podemos chamá-la de “vida eterna”, porque transcende os limites deste mundo; uma vida com tal força e tão sem limites que nem a morte mesma poderá com ela.
Quem não encontra a Deus “nesta” vida, não O encontrará jamais. Mais ainda, se é certo que o Deus que Jesus nos revela nós O encontramos na vida, disso se segue que Ele se “fundiu com a nossa vida”, essa vida que nos entra pelos sentidos, divinizando-a, fazendo-a eterna. Ou seja, encontramos Deus, antes de tudo, pelo que vemos e sentimos, pelo que apalpamos com nossas próprias mãos, por tudo aquilo que, ao senti-Lo, se faz vida em nós. “Deus entra pelos sentidos”.
Por isso, o sinal decisivo de que alguém crê no Deus de Jesus está na vida que leva. Ou seja, está em se viver ou não viver como viveu aquele Jesus de Nazaré. Isso quer dizer que o sinal de que uma pessoa encontrou o Deus de verdade é que ela se relaciona com os outros como se relacionou Jesus, que sente o que Jesus sentiu, que vive o que Jesus viveu.
Quando alguém se deixa invadir pelo humano, quando uma pessoa se humaniza de verdade e é sensível à dor do mundo, significa, então, que Deus entrou pelos seus sentidos. E é justamente quando, de verdade, se encontra com o “Deus desconcertante”, o Deus que Jesus de Nazaré nos revelou.
Nos Evangelhos há uma constante: Jesus é apresentado como Aquele que é a Vida, o único que pode dar a Vida definitiva. Jesus é um bió-filo – amigo da vida.
A insaciável sede de vida eterna enraizada no mais profundo do coração de todos os seres humanos só pode ser saciada por Aquele que é a “Ressurreição e a Vida”.
Os diversos relatos de “retôrno à vida” vão mostrar a vitória de Jesus sobre a morte, vitória que se realizará plenamente na Sua Ressurreição, à qual está indissoluvelmente vinculada a ressurreição de todos.
No texto evangélico do 5º Dom da quaresma, Jesus, na força do Espírito, comanda a ação: pede às pessoas que afastem a pedra e que soltem as amarras de Lázaro, para que ele possa andar. A ação de Jesus é expansiva pois mobiliza as pessoas para que, por meio de sua cooperação, a vida seja destravada.
A vida com as amarras da fome, da exclusão, da violência... não pode ser chamada de vida. Diante de uma sociedade que se especializa em impor pesadas pedras e faixas imobilizadoras, defender a vida é caminhar na contramão de tudo que nos diminui como seres humanos.
Há ainda aqueles que vivem a resignação do “quarto dia”, o dia da morte da esperança (para o judeu, o 4o. dia representava o começo da decomposição do corpo). Essas pessoas também precisam ser desamarradas da falta de perspectivas, da falta de esperança, da descrença na vida, da falta de fé n’Aquele que venceu para sempre a morte com todas as suas amarras.
Com uma autoridade, soberana e amiga, a ordem de Jesus é dada com voz forte, com um grito... Esta é a mensagem central que o evangelista João quer transmitir: a verdadeira vida consiste em ouvir a Voz do Enviado pelo Pai para dar a vida ao mundo; o importante não é o maravilhoso, mas mostrar e compreender que Jesus tem a autoridade de dar a Vida. Jesus desata as ataduras, as amarras da morte; elas mantém os homens cegos, mudos e surdos, atados e asfixiados. Seu lugar não é entre os mortos, mas entre os vivos. Eles precisam ser libertados e soltos por ordem de Jesus para que possam seguir seus caminhos, viver suas vidas livremente, voltar à comunhão com os outros. Não foi só Lázaro que saiu das suas faixas.
Todos os que estavam enclausurados em seus hábitos, presos em suas memórias, sufocados e conformados pela mediocridade, todos os que preparavam túmulos antes da hora de seu último suspiro... todos ouviram esta voz: “Saia!... Saia daí, vão além de vocês mesmos, a caminho!”
Para fazer-se presente neste mundo, Deus não se impôs a dar-nos doutrinas e a ensinar-nos verdades, mas se fez presente na vida de um Homem que nasceu pobre, que viveu entre os pobres e que morreu de tanto viver. Só nele encontramos uma esperança de vida mais além da vida. Só nele buscamos luz e força para viver uma vida diferente, ditosa, com sentido...
“Retirai a pedra”, disse Jesus diante do sepulcro de Lázaro. “Retirai o que impede o sopro de Deus de entrar em vossos túmulos. Abri o que está fechado em vós”. Quando Jesus pede que se retire a pedra do sepulcro de Lázaro, Marta aflige-se: “Senhor, cheira mal; já é o quarto dia...” Jesus faz pouco caso disso; Ele veio para entrar onde cheira mal, para abrir o que está trancado, para fazer retornar à vida o que está morto.
Viver humanamente consistirá em deixar o Espírito circular livremente em todos os cômodos de nossa morada, arejando-os, ventilando-os, religando-os, dando-lhes vida, reorientando-os. A missão do Espírito é ajudar-nos a fazer a travessia, o mergulho interior, tanto nas sombras como nas zonas de luz, até ao centro de nós mesmos. O Espírito procura entrar para fecundar, recolocar em ordem, restaurar, unificar.
Afastar a pedra da entrada do túmulo é colocar Deus em seu devido lugar em nossa vida. É retornar a Ele, vivendo plenamente nossa humanidade e deixando-a vivificar pelo Espírito. Trata-se, dessa maneira, de experimentar a salvação em todas as zonas de nosso ser, de recompor-nos, reajustando-nos às leis fundamentais da vida.
Texto bíblico: Jo 11,1-45
Na oração: deter-se para contemplar o coração de Jesus comovido, sacudido, diante da dor e da morte. Jesus foi “traído” pelo seu afeto. Aquele que é o Senhor da Vida, o vencedor da morte, tem um coração que ama como o coração do irmão mais fiel; assim é o coração de Jesus: feito com as fibras da fortaleza e da coragem entrelaçadas com as fibras da compaixão e da ternura.
Chamado para consolar uma família desolada, toma uma decisão difícil, pondo em risco a própria vida e se faz presente em meio à tragicidade da morte para comunicar vida a um amigo morto. Com esse coração, Jesus nos ama a todos e a cada um; com um amor singular, pessoal, único, eterno.
- O que ainda existe para ser descoberto em sua vida? Há espaço para o novo?
- Ou está tudo amarrado, costurado nas bordas, selado contra qualquer surpresa?
Pe. Adroaldo Palaoro sj
Diretor do Centro de Espiritualidade Inaciana - CEI
“Jesus cuspiu no chão, fez lama com a saliva e ungiu os olhos do cego” (Jo 9,6)
O evangelho de hoje (4º Dom. Quaresma) nos coloca diante de um cego de nascimento: não conhecemos seu nome, só sabemos que é um mendigo, que pede esmola nas proximidades do templo. Estava sentado, imóvel, não podia caminhar nem orientar-se por si mesmo, dependendo sempre dos outros. Sua vida transcorre nas trevas. Trata-se de um ser humano quebrado na sua dignidade.
Este ponto de partida é chave para ressaltar o ponto de chegada. Jesus vai lhe dar a mobilidade e a independência, o reconstruirá como ser humano por inteiro. Jesus vê na cegueira uma ocasião para a manifestação da atividade salvífica de Deus. As obras que Deus realiza consistem em libertar o ser humano de sua inatividade, dar-lhe mobilidade, capacidade de acção…
Repetindo o gesto do Criador, Jesus mistura a terra com sua saliva, simbolizando a criação do homem novo, composto pela terra-carne e pela saliva-Espírito. Com o uso do barro, Jesus reproduz simbolicamente a Criação do ser humano. Ao “amassar o barro” Ele prolonga o sexto dia da Criação. Com o gesto de “ungir os olhos com o barro” Jesus recria o homem, reconstrói o “vaso quebrado”.
O que era cego revela a nova identidade de ser humano reconstruído pelo Espírito: ele agora é um ungido, encontrou-se a si mesmo – “Ele afirmava: sou eu”. Ao afirmar “sou eu”, ele descobre a transformação que se realizou em sua pessoa e quer que os outros a vejam.
O que na verdade importa é que este homem estava limitado e carecia de toda liberdade antes de encontrar-se com Jesus. Agora descobre o que significa ser pessoa e se sente completamente realizado. O Espírito o capacitou para desatar todas as possibilidades de ser “humano”.
O horizonte que se abre para ele é indescritível. O mundo mudou radicalmente. Sua vida, escondida e dependente, agora está cheia de sentido. Perde todo medo e começa a ser ele mesmo, não só em seu interior, mas também na relação com os outros.
A espiritualidade quaresmal possibilita a transformação do eu, e o faz mergulhando a pessoa em sua própria condição humana, sob a ação do Espírito. Constituída de argila, como vaso nas mãos de um ceramista, a criatura humana recebe o sopro ou hálito divino. É a própria Vida de Deus, o seu sopro vital, que faz surgir o humano do húmus da terra. É o Espírito de Deus, inspirado no ser humano, que o torna realmente humano.
Cada pessoa é portadora deste sopro de Deus e desta força amorosa que o impulsiona à plenitude. O sopro de Deus impresso no mais profundo de nosso ser, está enfaixado pela fragilidade da argila. Somos a grande combinação resultante do sopro de Deus e a argila que nos configura. Cada um de nós é a força criativa de Deus impressa em cada coração.
O respiro ou hálito é o símbolo da presença do Criador em nós. Pelo sopro do próprio Deus, somos “elevados” à condição de imagem e semelhança d’Ele. Então, tornamos “criaturas abertas ao Espírito” e, mais ainda, “criaturas habitadas pelo Espírito”; somos argila, mas argila aberta ao céu.
Somente a ação criativa e contínua de Deus é capaz de costurar novamente os pedaços de nossa história; ao mesmo tempo ela nos faz descobrir a beleza e a harmonia desses mesmos pedaços. Tal qual o oleiro, o Senhor nos cria e nos recria continuamente. Nada é desperdiçado. Suas mãos de artista não jogam fora nenhum pedaço de nossa existência vivida, e sim, compõe e recompõe continuamente, num desenho novo, o que nos foi dado viver.
A experiência de nossa própria fragilidade pode converter-se em experiência de Deus, do Deus rico em misericórdia, e até o passado mais fragmentado está aí para dizer que Ele desenhou nosso ser na palma de suas mãos.
Assim, o passado em pedaços adquire um significado totalmente diferente, e cada acontecimento se torna fragmento de um plano amoroso, escrito no coração do Criador. O ato divino de costurar os pedaços de nossa história não significa somente juntar os cacos, como se no passado existissem somente derrotas e fracassos a serem anotados e aceitos. Deus acolhe e dá um sentido a todas as vivências e experiências; só Ele consegue juntar até as contradições e inconsistências da vida, dando coerência e unidade ao todo existencial e, com isso, fortalecendo a identidade e originalidade de cada um.
A partir da ação livre e amorosa de Deus, nós nos tornamos livres à medida que damos um significado ao nosso passado, que está sempre aí presente, à espera de um novo olhar e de uma nova luz.
Aqui se expressa exatamente a liberdade responsável, sinal da dignidade altíssima do ser humano, quando ele se torna sujeito de sua própria existência, reapropria-se da sua vida já vivida, inclusive as fragilidades e limitações, inserindo-as num contexto harmonioso de sentido.
Essa “leitura” da vida com um olhar marcado pela contemplação, significa colocar toda a vida dentro da totalidade de Deus, deixando que ela seja iluminada por esta Presença capaz de explicar cada realidade. Tudo o que está envolvido pelo mistério é banhado pela Luz do Criador. É um contínuo renascer; é um prolongamento da Criação: “faça-se a luz”, “façamos o ser humano”.
Repetir o gesto criativo de Deus significa tomar nas mãos os “fragmentos” daquilo que foi vivido, trazê-los das profundezas onde sempre estiveram confinados, colocá-los sobre a mesa, tocá-los, revirá-los, contemplá-los, aceitá-los, revivê-los, recriá-los... Com a argila de nossa existência, aquecida pelo calor do Espírito de Deus, podemos transformá-la em material de uma nova experiência de vida.
Não se trata de sufocar a vida, mas de torná-la leve e luminosa, mantendo límpida a sua fonte, livrando-a da camada de sentimentos negativos. Na vivência do tempo quaresmal, temos de levar a sério e acolher compassivamente a nossa própria condição humana, a nossa fragilidade de argila, para que o Sopro de Deus, sem encontrar resistências, possa nos modelar segundo sua promessa. Aqui o caminho para Deus é “descer” em direção à nossa própria realidade e viver a comunhão universal.
Texto bíblico: Jo 9,1-41
Na oração:
Na experiência espiritual nos é pedido que mergulhemos no “chão da vida”, como as raízes na obscuridade da terra, na presença do silêncio. O movimento de enterrar profundamente as raízes possibilita alcançar a seiva, o pulsar da vida e o equilíbrio. Somos terra. Temos a Terra dentro de nós. Somos a própria Terra que na sua evolução chegou ao estágio de sentimento, de compreensão, de vontade, de responsabilidade e de veneração. Vivificados pelo Espírito, somos Terra que pensa, sente e ama.
Sentir que somos Terra faz-nos ter os pés no chão e viver em comunhão com a comunidade das criaturas.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
Diretor do Centro de Espiritualidade Inaciana- CEI
“A água que eu lhe der se tornará nele um manancial que jorra para a vida eterna” (Jo 4,14)
O tempo quaresmal possibilita redescobrir as profundezas da pessoa humana, as coisas ocultas no seu interior, para assim poder ajudá-la a conhecer-se, crescer e gerar novos modos de se relacionar consigo mesma, com os outros, com o meio ambiente e com Deus.
Em outras palavras, diríamos que este tempo desvela, por um lado, uma realidade interna machucada, ferida, vulnerada, mas também, por outro lado, um potencial, um dinamismo, um “poço” de possibilidades, um conjunto de forças positivas... São os dois rostos do coração da pessoa humana.
Isso quer dizer que a pessoa toda é movida, no seu viver, por uma mistura dessas duas faces do seu coração: a ferida e o poço, o medo e os desejos...
É a mistura dessas duas realidades que faz que cada pessoa seja ela mesma. É o interagir da parte vulnerada com o potencial de possibilidades que vai dando identidade à pessoa e onde ela pode ir descobrindo qual é o sentido da sua vida e qual é a sua missão na história. Por isso, quando a pessoa se faz mais consciente dessas realidades do seu interior, quando se dá conta daquilo que brota da sua parte vulnerada e a integra, quando se dá conta da riqueza que existe no seu poço e a potencializa..., passará a se conhecer, a crescer e a descobrir a sua verdade mais profunda e, ao mesmo tempo – ao se tornar uma pessoa modificada por dentro – a modificar as estruturas da história.
O evangelho de hoje é um relato eminentemente teológico. É uma catequese que convida a um seguimento de Jesus que traz a ‘água viva”, o dom capaz de saciar o desejo humano. Essa água a encontramos em nosso próprio interior, como um manancial que brota incessantemente.
No texto aparece um significativo jogo de palavras: sempre que a mulher fala, ela fala de “poço”; no entanto, Jesus e o próprio narrador se referem ao poço como “manancial”. Jesus faz a mulher cair na conta que é preciso abrir-se a esse “manancial” novo, que lhe vem através d’Ele e que “jorra em seu interior” de um modo permanente.
O encontro com Jesus fez a samaritana viver uma verdadeira “páscoa”, passando de sua vida trivial e dispersa à responsabilidade de anunciar a outros Aquele com quem havia se encontrado. Como uma água que jorra, uma torrente de gratuidade percorre a cena e transfigura a mulher. Ela foi sendo conduzida até sua própria interioridade através de um paciente processo que a fez passar da dispersão à unificação, da exterioridade à interioridade, da solidão à comunhão com os outros.
Ela entra em cena como “uma mulher da Samaria” e sai dela como conhecedora do manancial de “água viva” e consciente de ser buscada pelo Pai para fazer dela uma adoradora. Sua identidade transformada a converte em uma evangelizadora. Como bom pastor que conhece suas ovelhas, Jesus faz a mulher sair do deserto da superficialidade e vai guiando-a para a profundidade e autenticidade, para a terra do dom da água viva.
Como “expert” em humanidade, Jesus mostra-se profundamente atento e interessado pela interioridade de sua interlocutora, lhe faz descobrir o manancial que pode brotar do mais profundo dela mesma e lhe revela também a interioridade de Deus como Pai que busca adoradores em espírito e em verdade.
Vamos agora, a partir do encontro de Jesus com a samaritana, percorrer a nossa parte brilhante, essa rica interioridade que pouco conhecemos, pois, lamentavelmente, poucas vezes nos permitimos entrar nela e, inclusive, poucas vezes temos alguma consciência de que existe, de que é a mais profunda, valiosa e autêntica de nós mesmos.
Abre-se, então, a possibilidade de reconhecer e fazer um caminho de redenção, acolhendo e potencializando o poço da positividade e das energias vitais. Este é o caminho que leva a desenvolver plenamente a dimensão humana: limpar a ferida a partir do próprio manancial. Isso significa que o crescimento pessoal é um compromisso que só é possível quando se nutre com a água do próprio poço, a água que nasce do manancial interior.
O nosso manancial interior alimenta o poço das nossas qualidades, das nossas potencialidades e faz que se revele, no exterior, o rosto positivo do nosso coração.
E o que é o manancial?
O seu manancial é aquilo que existe em você que é inalterável, inesgotável, o que o(a) salva nos momentos mais difíceis, o que lhe dá mais intimidade. Se você entrar no seu manancial encontrará, além do seu potencial máximo, outras duas realidades que seguramente passam despercebidas no cotidiano de sua vida: a consciência e a água viva.
Em primeiro lugar, no manancial que o(a) identifica se encontra uma voz que é a voz do seu ser que está crescendo, uma voz que lhe indica o que lhe faz bem, o que lhe ajuda a ser verdadeiro, o que o(a) empurra para a integração e, ao mesmo tempo, o(a) leva a gerar o bem, a veracidade, a integridade...
Isso é a sua consciência.
Por outro lado, nesse manancial se encontra também uma água viva, que é a presença atuante e transformante do próprio Deus, lá no âmago da sua intimidade mais profunda. Essa dupla descoberta faz você ser capaz de levar a sério a sua vida e dar-se conta de como, na vida mesma, na sua própria vida, está inscrito, no mais fundo do manancial, algo que tem a ver com a solidariedade, algo que se refere à metáfora da “água” e do “poço”: a água não serve para si mesma; é para as outras realidades, para as outras pessoas. É isso que significa “ser pessoas para os demais”.
Há qualidades que nos identificam: a cor da pele, a altura, a cor dos olhos... o nosso gênero, inclusive a nossa profissão. Mas o manancial nos oferece aquilo que nos faz únicos em meio à caravana humana com a qual caminhamos pela vida.
O que nos faz pessoas únicas são essas forças no nosso interior que nos tornam capazes de superar os piores momentos das nossas vidas; essas forças que nos tiram das piores trevas e nos devolvem à existência. Essas forças não são as mesmas para todos.
Para algumas pessoas será o desejo de viver e ser livre. Para outras, será o desejo de servir, o amor a alguém, a atenção aos necessitados... Essa combinação de um punhado de qualidades, de potencialidades, de “desejos” é o que fundamentalmente nos faz ser nós mesmos.
Essa experiência do manancial se faz não com ideias, mas vivenciando-a; não porque nos disseram, mas porque verificamos que, na realidade, essas forças e potencialidades constituem, de fato, o nosso manancial. De tal modo que se faltasse alguma dessas forças, ou dinamismo, nós não nos reconheceríamos.
Nossos desejos nos constituem, ou melhor, fazem-nos seres inusitados, distintos, únicos. Devemos prestar muita atenção à força que os desejos profundos têm na descoberta do nosso manancial.
Texto bíblico: Jo 4,5-42
Na oração: como a samaritana, também diante de nós se apresenta uma alternativa: continuar buscando água e justificação em poços secos e esgotados ou eleger “vida eterna” e deixar-nos arrastar pela oferta de transformação proposta pelo Jesus que nos busca. Ele deseja ampliar nossa existência e comunicar-nos alegria e plenitude. De quê tenho sede? Onde busco saciar minha sede?
Pe. Adroaldo Palaoro sj
Diretor do Centro de Espiritualidade Inaciana- CEI
“E foi transfigurado diante deles; o seu rosto brilhou como o sol e suas roupas ficaram brancas como a luz” (Mt 17,2)
O ritmo frenético e estressante da sociedade atual, e sobretudo o culto à novidade, ao efêmero, ao superficial, impedem recuperar a dimensão de profundidade em nossa vida diária. Vivemos mergulhados num contexto caracterizado pelo imediatismo, pragmatismo, interesse e voracidade. Em tal contexto há tanta superficialidade e tanto narcisismo que a vivência da profundidade, do silêncio, da admiração... se tornam estranhos para nós. Tal situação nos des-figura e nos desumaniza.
A festa da Transfiguração vem nos dizer quem somos realmente no nível mais profundo. Ela nos revela nosso verdadeiro ser essencial e nos faz caminhar em direção à nossa própria humanidade.
Ao mesmo tempo, transfigurar é descentrar-nos e expandir-nos na direção do outro.
A Transfiguração possibilita cultivar um “olhar” que sabe ver em profundidade, descobrindo em cada ser humano, para além de suas aparências, um ser transfigurado, porque somos capazes de vê-lo em sua beleza e bondade originais; um olhar que sabe deixar-se impactar por tudo aquilo que nos cerca e é capaz de render-se diante do Mistério.
Tal experiência também nos confere um “olhar contemplativo” que nos faz descobrir que toda realidade já está “transfigurada”. Seguramente reacenderá em nós a capacidade de admiração, de assombro e de contemplação, para ver as pessoas e “todas as coisas criadas” para além do meramente superficial.
O relato da Transfiguração não é crônica de um fato histórico; é, muito mais, a experiência de fé dos discípulos que, com toda certeza, perceberam em Jesus uma “transparência” ou “profundidade” que os impactou profundamente.
Podemos expressar numa frase o significado do relato: “Jesus é transparência do divino”. Por isso, podemos dizer também que Ele é um homem transfigurado. Jesus viveu constantemente transfigurado. A transfiguração não foi um fato isolado na vida do Mestre de Nazaré, mas o ‘estado habitual de seu ser’. Não tem sentido pensar que essa plenitude de ser tinha que manifestar-se externamente (até nas vestes) com sinais mirabolantes; não quer dizer que Jesus precisou fazer espetáculo de luz e som pelos montes para provar quem Ele era.
Quê fazia de Jesus um “homem transfigurado?” E em quê se notava? Era sua bondade, sua compaixão, sua autenticidade, sua integridade e coerência, sua liberdade, seu projeto de vida, sua relação com o Pai... Ou seja, o que há de divino em Jesus está em sua humanidade. Sua humanidade e sua divindade se expressavam toda vez que se aproximava das pessoas, especialmente as mais excluídas e sofredoras, ajudando-as a reconstruir a própria humanidade ferida. A única luz que transforma Jesus é a do amor, e só quando manifesta esse amor ilumina. É no humano que Deus se deixa transparecer.
A raiz da mensagem do evangelho de hoje está em apresentar a Jesus como a presença de Deus entre os homens; por isso é preciso escutá-Lo. Sua humanidade levada à plenitude é Palavra definitiva.
Escutar o Filho é transfigurar-se n’Ele e levar uma vida como a sua, ou seja, empapar-nos do “modo” como Ele humanamente viveu e sermos capazes de descobrir a voz de Deus no grito desesperado de cada um dos seres humanos que encontramos em nosso caminhar. Jesus continua se “transfigurando” na montanha interior de cada um.
Nesse sentido, “subir” ao Tabor implica “descer” em direção à nossa própria humanidade. A Montanha nos “transfigura” , revelando nosso ser essencial. Todos estamos dispostos a “subir”, mas nos custa muito “descer”. Não haverá plenitude de humanidade enquanto os de cima não decidam descer, e os de baixo não renunciem subir passando por cima dos outros.
Este é o desafio: “subir” para “descer”, descer aos duros vales da vida com a luz do evangelho e encontrar-se com a vida real, com os pobres e sofredores de turno; descer e sentar-se na planície, dialogar, compartilhar... para poder acompanhar e curar os que mais sofrem neste mundo, ajudando àqueles que perderam o horizonte de sentido em suas vida.
Uma “Igreja do monte” não tem sentido se permanece fechada em si mesma, em seu legalismo, ritualismo, encerrada em seus sonhos de poder e de glória. Os três de cima (Pedro, João e Tiago) precisam descer ao vale obscuro da realidade para conhecer, por experiência real, direta, imediata, a dor real daqueles que vivem nas “periferias existenciais”.
Na “descida comprometida” ouvimos o diálogo de Jesus com seus discípulos. Não permaneceram “acima”, como queria Pedro. O voz do Pai os despertou do sonho e os colocou a caminho; a exigência da entrega de Jesus os faz descer da montanha e, à medida que se aproximam do vale do drama humano, eles vão crescendo na consciência de sua profunda missão: participação da missão e do caminho de Jesus.
Os visionários do monte pensam que encontraram a Deus, que viram seu mistério; por isso querem permanecer ali, fazendo três tabernáculos sagrados onde possam descansar para sempre com o Cristo transfigurado, sem mergulhar na paixão do mundo, sem passar pela complexidade da história, distanciando-se de todos os problemas deste velho mundo.
Quão fácil é cair na tentação de Pedro! Construir cabanas em um mundo sonhado, fora da realidade, para desfrutar de privilégios egoístas. É fácil seguir o Jesus glorioso, distanciando-se do fazer caminho com Ele junto aos mais sofridos.
No Jesus transfigurado encontramos, portanto, indicações que nos conduzirão a essa descoberta: a vivência do amor, a compaixão, a liberdade, a confiança, a experiência de Deus, a consciência unitária... Uma pessoa transfigurada é uma pessoa profundamente humana. Tudo o que é autenticamente humano é transparência de Deus. Somos todos “pessoas transfiguradas”, mas desconhecemos essa realidade surpreendente.
A transfiguração não é a condição de um “iluminado”, mas a realidade de toda pessoa que se desapegou de seu ego, até o ponto de descentrar-se e abrir-se à realidade do outro. Aqui ficam superados os velhos dualismos e as enganosas dicotomias que o divino e o humano se enfrentavam como realidades antagônicas.
Texto bíblico: Mt 17,1-9
Na oração:
Há gestos cotidianos que nos ajudam a descobrir em profundidade quem realmente somos: um abraço, uma mão que se estende, uma escuta atenta, um olhar sereno... São gestos humanizadores que nos recordam que somos seres transfigurados. Essa sensibilidade gestual deixa transparecer a luz que nos habita. Sem dúvida, esta é a linguagem de Deus, não a das palavras, mas a dos gestos, que dão conteúdo a tantas palavras já desgastadas. Ser transfigurado é prolongar e fazer chegar a todos os mil gestos do amor de Deus que nos fazem descobrir irmãos.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
Diretor do Centro de Espiritualidade Inaciana - CEI
“O Espírito conduziu Jesus ao deserto para ser tentado pelo diabo” (Mt 4,1)
Para entender melhor o contexto das tentações e o que há nelas de revelador, é preciso ter presente o texto que o precede e o texto que o segue. A cena imediatamente anterior é a do batismo de Jesus no Jordão. E o texto que segue fala do início da missão de Jesus nas periferias da Galiléia.
O batismo faz referência a uma experiência fundante de Jesus; nele proclama-se Sua identidade que consiste na revelação pública de ser o Filho amado do Pai. Jesus não é Filho para encerrar-se e viver em isolamento, mas para expandir a filiação.
E podemos entender sua marcha ao deserto, movido pelo Espírito, como uma necessidade imperiosa de “processar” essa revelação no silêncio e na solidão, de abrir espaço em sua interioridade para a solidificação do sentido de sua vida e a missão que devia realizar. O significado do deserto, portanto, não é prioritariamente o penitencial.
É o lugar privilegiado de encontro pessoal e de escuta da Palavra. Jesus é conduzido a ele para acolher a Palavra escutada em seu coração no momento de seu batismo. Poderíamos dizer que Jesus precisa tempo para assentar, nas profundezas de seu coração, uma Palavra que O descentrava para sempre de si mesmo e O situava à sombra da ternura incondicional de Alguém maior.
O que parece certo, teológica e historicamente, é afirmar que Jesus, depois do batismo, buscou o deserto para um tempo de discernimento, em oração, em solidão, diante do Pai que o proclamou seu Filho, sob o impulso do Espírito; de algum modo teve de refletir e discernir sobre qual seria seu estilo messiânico, qual caminho assumiria para realizar a missão em sua vida pública. É um tempo de busca, de conflito interior, de crise. A partir deste discernimento e opção, o messianismo de Jesus se manifesta como “diferente” daquilo que muitos esperavam em Israel.
Sob esta ótica, as tentações não são simplesmente uma prova na qual Jesus vence o maligno, não são tentações de ordem moral; as tentações não são uma prova a superar quanto um projeto que deve ser discernido e assumido.
A “crise” põe à prova sua atitude frente a Deus: como viver sua missão e a partir de quê lugar? Buscando seu próprio interesse ou escutando fielmente a Palavra? Como deverá atuar? Dominando os outros ou pondo-se a seu serviço? Buscando sua própria glória ou a vontade de Pai?...
Esta estadia no deserto como um tempo de discernimento e lucidez, fez com que Jesus tomasse plena consciência da sua relação filial e iluminou de tal maneira sua vida a ponto de se tornar impossível confundir Deus com os falsos ídolos que o tentador lhe apresenta: um “deus” contaminado pelas vazias pretensões do pior da condição humana: possuir, brilhar, ostentar, poder, exercer domínio... Estas tentações não são fatos isolados, no começo das atividades de Jesus, mas expressão do conflito permanente de sua vida e na realização de sua missão.
As tentações são, pois, expressão da oferta de dois tipos de messianismos, dois projetos, dois caminhos, dois estilos de missão que se opõem. A Jesus lhe é oferecida a possibilidade de um messianismo a partir do centro, a partir de cima, a partir do poder e do prestigio religioso e social, um messianismo triunfalista e glorioso, como aquele que muitos de seus contemporâneos esperavam.
De um lado, está o caminho da autossuficiência, da segurança, a partir do centro, um messianismo triunfalista, evitando conflitos com o poder político e religioso, alheio ao sofrimento do povo; uma lógica que supõe adaptação ao “sistema”, ser servido antes que servir. De outro lado está o caminho da solidariedade, a partir da margem e da periferia da sociedade política e religiosa, a partir do povo, a partir de baixo, vivendo a filiação e a confiança no Pai, em gratuidade, num estilo de simplicidade e pobreza alternativo ao “sistema”, optando por servir antes que ser servido; uma lógica de inclusão frente o sofrimento do povo, na linha do Servo de Javé e dos profetas de Israel.
O fato é que Jesus, para realizar sua missão como Messias, não se dirigiu à capital, Jerusalém, nem à importante província da Judéia. Logo após sua experiência de deserto, Jesus foi viver e desenvolver sua atividade, pregar sua mensagem, numa região distante, habitada por humildes camponeses e pescadores pobres, pessoas que, naquele tempo, eram consideradas uma população sem influência e de má fama.
Se efetivamente Jesus queria “evangelizar”, ou seja, comunicar uma “boa notícia” à sociedade de seu tempo, não buscou conquistar para si os notáveis e as classes influentes da sociedade de seu tempo, nem procurou os postos de privilégios, nem o favor dos mais influentes, e nem, muito menos, os que detinham o poder e o dinheiro. Para Jesus, o poder nunca é mediação para a libertação do ser humano; pelo contrário, toda manifestação de poder destrói o ser humano: deteriora relacionamentos, resvala-se para o terreno da competição, da violência, da morte...
Todos sabemos que as “mudanças profundas e duradouras” na sociedade não vem de cima, mas de baixo, a partir da solidariedade e da identificação de vida com os últimos deste mundo. Há uma esperança alentadora, que vem das periferias e das margens, que se empenham por imprimir um movimento novo à história; nele está a semente na qual Jesus viu o germe de uma vida diferente, nova e mais promissora. E Jesus foi o ponto de partida de uma profunda mudança na história da humanidade. Ele escolheu a lógica da solidariedade, a partir de baixo. Opôs-se às tentações de poder, de riqueza e prestígio através da obediência à Palavra de Deus que apresenta outra ótica, na linha profética de pobreza e humildade.
Na cena das tentações vemos Jesus reagindo da mesma forma que ao longo de toda sua vida, ou seja, centrado e aderido afetivamente ao que vai descobrindo como o querer de seu Pai: a vida abundante daqueles aos quais veio buscar e salvar. Não veio para preocupar-se com seu próprio pão, senão preparar uma mesa na qual todos possam sentar-se e comer. Jesus não quer “converter as pedras em pão”, mas mudar os homens, para que compartilhem o pão. Jesus sabe que o problema do pão é primordial e por isso o colocou no centro de seu projeto de reino, mas não na forma de meio para a imposição e divisão de classes, senão como expressão de comunhão. Não veio para ser carregado pelas asas dos anjos, monopolizar fama e “fazer nome”, senão dar a conhecer o nome do Pai e levar sobre seus ombros os perdidos, como um pastor leva a ovelha perdida.
Não veio para possuir, dominar ou ser o centro, mas servir e dar a vida. Sua autoridade é só para criar vida e para amar, para ensinar e curar, para abrir caminhos de esperança.
Conduzido ainda pelo Espírito, abandona o deserto; a partir desse momento, o veremos caminhando pela Galiléia, entrando em relação com as pessoas, anunciando o Reino, criando comunidade, buscando colaboradores, aproximando-se dos excluídos, entrando nas casas, acolhendo, curando, ensinando...
Texto bíblico: Mt 4,1-11
Na oração: deixar que o mesmo Espírito nos conduza para o Deus a quem Jesus experimentou no deserto: um Deus que não exige de nós proezas nem gestos espetaculares, mas somente nossa confiança e nosso agradecimento; um Deus que nos dirige sua palavra não para impor-nos obrigações ou para nos julgar, mas para alimentar-nos e fazer-nos crescer.; um Deus que não encontraremos nos lugares da prepotência ou da riqueza, mas nos lugares da pobreza e da exclusão.
Deixemo-nos batizar pelo nome novo que Ele sonhou para nós desde toda a eternidade. Nossa vida não está programada a partir do mercado, nem somos uma fotocópia do consumidor exemplar, nem um mero espectador, nem um súdito do deus “dinheiro”. Somos abençoados, somos seus filhos amados; não somos clones de ninguém, somos únicos e originais, e o Pastor nos conhece pelo nosso nome.
Que nesta Quaresma, aprendamos do Mestre a nos colocar no caminho em direção aos outros: como Ele, encurtemos distâncias, estendamos mãos, invistamos nas relações, façamos amigos, libertemo-nos de coisas e afeiçoemo-nos às pessoas, conjuguemos verbos como incluir, incorporar, tecer redes, acolher... e sentemo-nos com outros no banquete da vida.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
Diretor do Centro de Espiritualidade Inaciana – CEI
“E o teu Pai, que vê o que está escondido, te dará recompensa” (Mt 6,18)
Mais uma vez é Quaresma, e mais uma vez ressoa em nós o forte apelo à conversão.
Quando falamos de conversão, estamos nos referindo a um estilo de vida diferente, a uma mudança qualitativa de vida. A conversão tem muito a ver com as atitudes diante das coisas, das pessoas e de Deus; ela tem a ver com o êxodo ou saída de uma maneira de viver na qual se dava importância a determinadas coisas, para começar a dar importância a outras coisas. Conversão implica reservar-nos espaços e tempos para dar maior consistência à nossa vida, para perguntar-nos o que há de Evangelho em nossas vidas, para examinar quê lugar Jesus tem em nossos corações.
A Quaresma é, sobretudo, um tempo para reaprender a olhar; é um tempo para converter nossa visão à maneira de Jesus. Sabemos muito bem que o olhar de uma pessoa é uma porta aberta para o íntimo do seu coração. É no olhar maravilhado dos amigos que nos descobrimos compreendidos e amados por eles. Por isso, Deus é Aquele que olha, mas o seu olhar é Amor e traduz a infinita ternura do seu coração; seu olhar é cheio de misericórdia e perdão que nos salva; olha-nos com todas as nossas possibilidades e convida-nos a corresponder-lhe. O seu Amor não cessa de criar-nos, suscitando em nós momentos de ressurreição. Sob o Seu olhar existe sempre a possibilidade de renovação, de re-criação, de transformação
Estabelecida essa relação, as palavras tornam-se inúteis, porque compreendemos tudo no olhar de Deus.
“A contemplação cristã é trinitária, é o fogo de dois olhares que se devoram por amor”’. (P.Molinié)
No interior da Trindade as Pessoas divinas olham-se, acolhem-se e entregam-se num amor mútuo. Rezar é simplesmente participar dessa troca de olhares que se expande numa comunhão de amor.
O olhar de Deus é um olhar inovador, olhar comprometido que faz acontecer o novo, olhar que recria o ser humano, que abre futuro novo, que suscita comunhão com tudo, que abarca as fronteiras do universo e acolhe a humanidade inteira. Olhar não contaminado, sem veneno..., olhar sem rancor, sem julgamento.
Olhar inquietante que sonda a verdade... Olhar audacioso que desperta as consciências, sacode as velhas estruturas, derruba os muros da separação e da violência...
Quaresma é um tempo para deixar-nos olhar por Deus, para descobrir o olhar em cada irmão e aprendermos a olhar o outro como Deus olha... Porque um olhar seu, bastará para “converter-nos e crer no Evangelho”. Podemos considerar a Quaresma como “mística dos olhos abertos”.
No evangelho da liturgia de hoje (quarta-feira de cinzas), Jesus denuncia aqueles que mendigam um olhar sobre si mesmos; querem ser vistos, elogiados, serem o centro das atenções a partir de práticas religiosas puramente exteriores e que alimentam uma vaidade pessoal. Querem brilhar diante dos outros, com a falsa pretensão de uma vivência religiosa.
Somos chamados a corresponder ao olhar de Deus através das chamadas “práticas quaresmais”: oração, jejum e esmola. Por detrás de cada uma destas práticas está o desejo de Deus de ver-nos mais livres: livres para olhar mais além de nós mesmos, para olhar como Deus olha, graças à oração; livres graças ao jejum, que ajuda a configurar nossa sensibilidade, que nos impulsiona a sermos críticos com certos excessos, com determinadas coisas que embora sendo supérfluas, exigem demasiada atenção e nos desgastam. Livres graças à partilha (esmola), para ir deixando de pronunciar a palavra “meu”, para configurar nosso tempo, nossas coisas, nossos dons, no horizonte das necessidades do outro.
Em primeiro lugar, a proposta por excelência para este tempo, e que não podemos esquecer, é a oração. Trata-se de abrir momentos de silêncio e escuta, para deixar retumbar dentro de nós as perguntas: “e tu, a partir de onde olhas? Como olhas? Em quê e onde estão fixos teus olhos?...”
O que a liturgia nos propõe para a Quaresma é que, a partir da intimidade com Deus na oração, sejamos capazes de olhar a partir de Deus, que fixando nosso olhar no Senhor Jesus, sejamos capaz de nos olhar com mais bondade, de olhar os outros com mais carinho...
Orar é ter acesso ao nosso “eu profundo” sob o olhar de Deus e desejar ser visto por Ele até as profundidades mais secretas do nosso ser. A verdadeira oração começará no dia em que descobrirmos esse olhar de amor, mas é necessário que Deus ilumine os olhos do nosso coração.
Só podemos “ver a face de Deus” deixando-nos iluminar pela luz dos Seus olhos. “Ver a face de Deus” é ter consciência de ser penetrado pelo Seu olhar e só n’Ele podemos contemplar a luz: “Na vossa Luz é que vemos a Luz” (Sl 35,l0).
Conheceremos então, a experiência espantosa em que desejar ver a Deus é ser visto por Ele, que perscruta as profundidades e os abismos. Nesse momento nascerá uma relação de intimidade em que olharemos a Deus, “olhos nos olhos”. Quem é capaz de olhar o próprio interior, sensibiliza-se para olhar de modo diferente a realidade que o cerca. O olhar, então, se expande e se faz contemplativo.
A pessoa contemplativa, movida por um olhar novo, entra em comunhão com a realidade tal como ela é. É olhar o mundo como “sacramento de Deus”. Um olhar capaz de descobrir os sinais de esperança que existem no mundo; um olhar afetivo, marcado pela ternura, pela compaixão e por isso gerador de misericórdia; um olhar que compromete solidariamente.
O olhar verdadeiramente humano não é um olhar de medusa, possessivo, mas um olhar contemplativo, que vê todas as criaturas e todas as pessoas, admirando-as e amando-as na singularidade do seu mistério. Um olhar gratuito e desinteressado que expande o ser humano numa atitude acolhedora de tudo que o rodeia; olhos que possibilitem o trânsito do olhar, revelando a interioridade e dialogando com o exterior.
A liturgia quaresmal nos propõe também o jejum. A novidade não está em reduzir o que comemos, o que ingerimos quase por intuição mecânica. Mas também o jejum tem a ver com o olhar, tem a ver com o olhar-se a si mesmo, tem a ver com fixar-se naquilo que nos alimenta. O jejum, pode ser talvez, a prática de olharmos com mais compaixão. Em outras palavras, afastar-nos de nós aquele olhar possessivo que nos destroça por dentro, que nos faz dano, que nos impede de sermos nós mesmos.
Com o jejum aprendemos a conhecer e a ordenar nossos diferentes apetites mediante a moderação do apetite fundamental e vital: a fome. Aprendemos, desta maneira, a regular nossas relações com os outros, com a realidade exterior e com Deus, relações muitas vezes motivadas pela voracidade. Ao mesmo tempo, o jejum nos desperta a “fome essencial”: fome de sentido, fome do Reino, fome em favor da vida.
Por fim, a outra prática quaresmal proposta é a esmola: dar do que temos e somos, e não o que nos sobra. Mas “dar esmola” tem a ver como olhamos àqueles que estão ao nosso lado. Tem a ver com presentear ao outro um olhar de proximidade, de consolo, de acolhida...
Com o olhar, podemos transformar uma pessoa, destruí-la ou reconstruí-la, aniquilá-la ou fazê-la renascer, restituí-la a si mesma e ao futuro ou afundá-la no seu passado.
É preciso purificar o olhar, cristificá-lo. Contemplar o rosto do outro é sentir sua presença, sem pré-conceitos e pré-juízos..., vendo nele o sinal da ternura de Deus. Passar da contemplação à acolhida: este é o movimento da oração dos olhos. Muitas vezes, o presente mais precioso que podemos dar a alguém é um olhar diferente; o futuro, a acolhida, o perdão, a alegria... dessa pessoa podem depender desse olhar novo, cheio de afeto e confiança.
Em muitas situações difíceis da vida, o que salva é o olhar. Esse é o sentido verdadeiro da esmola.
Texto bíblico: Mt 6,1-6.16-18
Na oração:
- torne o seu coração vulnerável ao olhar do Pai, receptivo a todo apelo que vem d’Ele, deixando-se tocar pelo inesperado, pela novidade, pela iniciativa amorosa de Deus.
- evangelizar o olhar: aprender a olhar como Jesus Cristo, ultrapassando as aparências.
- como você “olha” as pessoas, as coisas, os fatos, o mundo...?
Pe. Adroaldo Palaoro sj
Diretor do Centro de Espiritualidade Inaciana – CEI
“Portanto, não vos preocupeis com o dia de amanhã, pois o dia de amanhã terá suas preocupações”
(Mt 6,34)
Sabemos que a rivalidade e a competição, o desejo de poder e de resultados imediatos, a impaciência e a frustração e, acima de tudo, a angústia e o medo, criam suas exigências e preenchem todos os espaços vazios em nossa vida. A maioria de nós procura uma “ocupação”, e não espaço livre.
Quando não estamos ocupados, ficamos inquietos e ansiosos; ficamos até com medo quando não sabemos o que fazer agora, amanhã ou no ano que vem. Enquanto nossas mentes, nossos corações e nossas mãos estiverem ocupados, poderemos evitar o confronto com as questões dolorosas, às quais não queremos encarar. “Estar ocupado” tornou-se uma obsessão, um símbolo de status, e as pessoas incentivam umas às outras a manter o corpo e a mente em constante movimento. “Estar ocupado”, em contínua atividade, com agenda cheia, quase se tornou parte de nossa constituição. Aqui não há lugar para espaços contemplativos e gratuitos.
Isso explica por que o silêncio é tão difícil. Muitos dizem desejar o silêncio, a calma, a quietude, a oração pacificadora, mas não conseguem suportar tempos e espaços repousantes. Ficar sossegado é perigoso: pode parecer doença. Recolher-se dentro de si mesmo é uma ameaça.
Esse é o problema do mundo moderno: a agitação e a ocupação se apresentam como um estilo de vida e acabam controlando nosso ritmo cotidiano, tornando-se fonte inesgotável de ansiedade. Em nosso padrão cultural, somos pressionados a mostrar o tempo todo que estamos ocupados e “produzindo” alguma coisa. Vivemos perdidos numa floresta de compromissos e atividades, incapazes de perceber alguma trilha estreita para poder andar e respirar. Mesmo com tudo que foi inventado para facilitar a vida – celular, internet, e-mail, mensagens instantâneas – parece que não temos tempo para nada.
Há muita inquietação por baixo das águas do cotidiano. Acuados pelo relógio, pelo ativismo, pela agenda, pela opinião alheia, disparamos sem rumo feito hâmsteres que se alimentam de sua própria agitação.
No entanto, há um empecilho muito maior que a ocupação: trata-se da preocupação. A preocupação é sintoma de que temos nos desconectado de nossa interioridade, de nossa verdadeira identidade, e nos deixamos determinar pelo ambiente e pelas questões externas. Investimos naquilo que não somos e acabamos por nos afastar de nosso lar; perdemos a confiança em nós mesmos e em Deus.
Nossas preocupações evitam que tenhamos novas experiências e nos mantém nas trilhas conhecidas. A preocupação é a maneira medrosa de manter as coisas como estão; parece que preferimos uma certeza ruim a uma incerteza boa (por quê deixar o certo pelo duvidoso?)
As preocupações ajudam a manter o mundo pessoal que criamos e bloqueia possíveis transformações. Nossos medos, incertezas e hostilidades nos fazem preencher nosso mundo interior com ideias, opiniões, julgamentos e valores, aos quais nos agarramos como se fossem preciosas propriedades.
Em vez de olhar de frente o desafio de novos mundos que se abrem e atuar em campo aberto, escondemo-nos atrás dos muros de nossas preocupações. Elas expressam nossa falta de habilidade de deixar resolvidas as questões vitais que nos inquietam. Somos compelidos a arranjar qualquer solução ou resposta possível que pareça ajustar-se à ocasião.
A “preocupação”, quando se torna hábito de vida, tem o efeito desastroso de comprometer a capacidade de relação, dimensão fundamental que torna a existência fecunda e criativa. Segundo o Evangelho de hoje, a preocupação envolve duas necessidades básicas do ser humano: o alimento e o vestuário.
A preocupação que pode atormentar o coração do ser humano, o medo de perder aquilo que dá segurança e o temor de não ter acumulado suficientemente, fazem com que o alimento e o vestuário percam o seu significado mais amplo e a sua força evocativa.
Então, acontece que a preocupação com o alimento e com o vestuário prevalece sobre a própria vida, não mais acolhida como dom; do mesmo modo o corpo, não mais entendido como possibilidade e lugar de relação-encontro. Inevitavelmente, a dignidade da vida se degrada e a luz do rosto da pessoa se apaga.
Uma pessoa preocupada se dispersa num louco ativismo; com isso, ela se endurece e se resseca em seu dever, não sabe mais viver a gratuidade, acolher o imprevisto, gastar tempo em escutar seus desejos essenciais, deixar-se olhar, amar, receber a graça libertadora, a abundância dos dons de Deus. Vive alienada, dividida; estando ali, desejaria estar em outro lugar. O seu existir situa-se na ordem do “fazer”.
É cada vez mais desafiante criar espaço aberto e receptivo, onde algo novo possa acontecer a nós; do mesmo modo, é urgente oferecer um espaço onde as pessoas possam se desarmar, deixar de lado suas preocupações e ocupações, e ouvir com atenção as vozes interiores.
É salutar deixar ressoar em nós questões como essas:
Qual o sentido e a direção daquilo que fazemos? Para quê? Para quem?
Qual é a intenção ou a motivação que está por trás de nossa ação?
Esta “dica” nos ajuda a superar a ansiedade e a pressa, harmonizando-nos com o tempo e fazendo as pazes com o relógio. Normalmente, vivemos ações ‘insensatas’, ou seja, sem sentido, sem direção. Se fizéssemos uma faxina em nossos compromissos e deveres, boa parte desapareceria rápido no ralo do bom senso. Se examinássemos o baú de nossas prioridades, certamente a arrumação interior seria outra.
Aliviar a vida, o coração e o pensamento... eis o desafio; não para inventar de acumular ali mais alguns compromissos estéreis e sem sentido.
Jesus Cristo revelou que nossas preocupações impedem a vinda do Reino, ou seja, do novo mundo. Não podemos esperar que algo realmente novo aconteça se nossos corações e mentes estão tão cheios com nossas preocupações que sequer ouvimos os sons que anunciam uma nova realidade. Viver em conexão com o melhor que há em nós é sentir-nos livres, desprendidos e centrados no essencial: a busca do Reino e sua justiça. A busca do Reino é o “pão” da vida e a “roupa” da luz que nos envolve.
Deus constantemente nos surpreende no singelo, nas coisas simples da vida. Muitas vezes nós perdemos a capacidade de ver a sua ação nas pequenas coisas e ficamos esperando grandes sinais, grandes milagres. Cada instante é uma chance de percebermos esse amor providente e cuidador que Ele tem por nós. Se vivemos cada momento ordinário de forma extraordinária, certamente perceberemos a sua ação e seremos surpreendidos. Deixar-nos surpreender por Deus não implica uma atitude passiva, mas um olhar contemplativo, capaz de perceber sua presença criativa em tudo e em todos. Ter um olhar contemplativo é “encontrar Deus em todas as coisas e todas as coisas em Deus” (S. Inácio)
Deus é o princípio vital de tudo; as criaturas são o que são devido à presença de Deus nelas. O valor e o significado últimos de todas as coisas provém não delas mesmas, mas da presença de Deus em seu interior; todas as coisas são “santificadas” porque nelas está Deus. A pessoa contemplativa, movida por um olhar novo entra em comunhão com a realidade tal como ela é. Para o contemplativo, Deus é seu lar, e Deus está em todas as partes. O que Ele espera é que nos deixemos “surpreender por seu amor, que acolhamos as suas surpresas”.
Texto bíblico: Mt 6,24-34
Na oração: Jesus aponta para a verdadeira “preocupação”, o desejo que preside a todas as nossas ocupações. Pois, se a preocupação não está bem ordenada, todas as nossas ocupações carecerão de sentido e ficarão vazias. E a “preocupação” deve ser o Reino de Deus e sua justiça.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
Diretor do Centro de Espiritualidade Inaciana
“Sede perfeitos como o vosso Pai celeste é perfeito” (Mt 5,48)
Esta afirmação de Jesus “Sede perfeitos...”, tirada do contexto, tem gerado profundos sentimentos de culpa diante de Deus e uma frieza no relacionamento com Ele.
O Pai de Jesus Cristo, revelado como infinita ternura, misericórdia, amor, proximidade para com os pecadores não é vivido como Pai, mas como um juiz mal humorado, esquadrinhando nossa vida atrás de infidelidades, desobediências, fraquezas, e exigindo o cumprimento rigoroso das mínimas leis.
De fato, desde os primeiros anos de nossa infância somos impulsionados a buscar a perfeição. Este conceito assumiu um valor central na compreensão e na orientação da nossa vida; não só isso, mas assumiu também um caráter claramente sobrenatural: a vida divina exige que a pessoa procure a perfeição. Na experiência de fé, esta ideia se reforçou quando se passou a considerar a santidade como sinônimo de perfeição; o caminho da perfeição coincide com o caminho da santificação.
A perfeição se converteu, então, no termo normal da vida, o valor espiritual supremo, o elemento comum de todas as virtudes. Os manuais de espiritualidade passaram a destacar a perfeição como único ideal e a moral evangélica se reduziu à moral da perfeição; por séculos, a perfeição seduziu, modelou, dominou e controlou a existência dos cristãos.
O pior é que, em pleno novo milênio, ainda somos educados a perseguir a perfeição como finalidade suprema da existência humana. Do ideal de perfeição que nos séculos passados seduzia o espírito, passamos ao ideal de perfeição que seduz o corpo: seres belos, altos, magros... A sociedade atual valoriza pessoas dominadas pela eficiência, pelo sucesso a qualquer custo, pelo mérito, pela cobrança do “vencer sempre”... A vida cotidiana continua a ser invadida pelo ideal de perfeição através da permanente cobrança do “render ao máximo”, “produzir o máximo”, “nascido para vencer”... Tal fórmula se traduz em competição, rapidez, eficiência, tensão emotiva permanente, dedicação estressante ao trabalho porque “tempo é dinheiro”...
É necessário repetir sempre: o ser humano não é capaz de viver “perfeitamente”. Um tal credo não tem nada de humano, é uma “tortura inútil”. A perfeição conspira contra a vida interior, e ameaça, consequentemente, a humanidade do ser humano. A perfeição é uma falsa orientação, um caminho que vai em sentido contrário à nossa realidade. Assumindo a perfeição como objetivo da vida, o eu entra em contradição com a vida mesma, que é essencialmente limitada, frágil e pobre.
A procura da perfeição é um movimento que nega o ser humano como ser humano e põe em movimento uma visão desumana da vida, pois desconhece sua condição de criatura limitada. A busca de perfeição torna-se um projeto fechado dentro do próprio eu orgulhoso, que exige o máximo de si, o máximo de esforço para não falhar em ponto algum, uma vez que o “perfeccionista” está convencido de que somente será amado por Deus e pelos outros se for perfeito. Nesse esforço ele tende a contar exclusivamente consigo mesmo, prescindindo de Deus e dos outros.
A perfeição dialoga com um código de normas e de exigências, dialoga com a lei. O perfeccionista não suporta o pecado uma vez que ele vê o pecado não como uma ruptura de laços de amor, não em relação a um outro, mas em relação ao próprio ideal. A perfeição, humilhada pelo pecado e pelas fraquezas, tende a fechar a pessoa sobre si mesma, e fechá-la para Deus e para os outros. O Amor desaparece.
Como seguidores de Jesus, somos chamados a viver a santidade, em vez de centrarmos nossa vida na busca da perfeição, e a santidade está relacionada com compaixão, com misericórdia, com amor, com o convite que Deus nos faz: “Sede santos porque Eu sou Santo”.
Deus é Amor e nisso consiste a santidade de Deus. Trata-se, pois, de abrir-nos para o Amor, dentro mesmo dessa realidade nossa de criaturas limitadas, frágeis, pecadoras... Ora, essa capacidade de Amar nos é dada por Deus, é um dom de Deus.
A santidade, portanto, nos é dada por Deus e nos é dada agora:
- Somos amados por Deus, sem condições, agora, com todas as nossas imperfeições, pecados,
fraquezas, debilidades, limitações, traumas...
- e esse Amor de Deus sem condições, nos torna capazes de amar agora, de fazer o bem agora,
de servir agora, de ser santo agora, apesar de nossas imperfeições e fraquezas.
A santidade nunca é humilhada pelo pecado, porque um Outro nos acolhe e nos ama apesar de nosso pecado. A santidade é humilde porque nos faz descer em direção à nossa própria humanidade, aceitando-nos ser pobres, frágeis, limitados, pecadores… e acolhendo, na ação de graças, uma salvação que nos é oferecida gratuitamente pelo Deus que nos ama.
A santidade nunca leva ao fechamento em si mesmo, antes abre-nos para Deus acolhendo sempre o seu perdão e abre-nos para os outros no amor, no serviço e no dom.
Contrariamente à perfeição que dialoga com um código, a santidade dialoga com Alguém, com o Pai, com Cristo, constituindo-se nesse lugar privilegiado de liberdade aberta ao sopro do Espírito. Santidade não é um resultado que possa ser contabilizado; santidade é um caminhar. É nesse horizonte que devemos entender a afirmação “Sede perfeitos como vosso Pai celestial é perfeito” (Mt. 5,48); ela está ligada com o texto precedente pela partícula de consequência “portanto”.
Ora, o texto imediatamente antecedente fala precisamente do Amor sem limites do Pai. Assim poderíamos concluir que o discípulo de Jesus deve ser perfeito no Amor como o Pai celestial é perfeito no Amor. Ele ama a todos sem distinção, “fazendo nascer o sol e cair a chuva sobre maus e bons, justos e injustos”.
O Deus de Jesus, portanto, não é um juiz com um catálogo de leis que tem necessidade de mandar, controlar, verificar... Basta-lhe a misericórdia, o amor para com justos e injustos.. A misericórdia de Deus constitui a resposta à indigência do ser humano. Ela oferece a possibilidade de pôr de lado o julgamento, a violência e a condenação.
A misericórdia é a resposta de Deus ao delírio do ser humano de querer ser perfeito; é a única força capaz de detê-lo naquele processo de auto-divinização, própria do perfeccionista. Jesus propõe um modo de ser humano inseparável da misericórdia do Pai:
“Sede misericordiosos como o Pai é misericordioso” (Lc. 6,36)
Ser misericordioso “como” Deus constitui o mais elevado convite e a mensagem mais profunda que o ser humano recebe sobre como tratar a si mesmo e aos outros.
O caminho de Jesus não vai pelo terreno pantanoso da perfeição, mas pelo terreno firme do perdão, da compaixão e da não-violência.
Texto bíblico: Mt 5,38-48
Na oração: Quais são as “marcas” da perfeição impregnadas no seu interior pela formação familiar, pela religião, pela educação...
Pe. Adroaldo Palaoro sj
Diretor do Centro de Espiritualidade Inaciana – CEI
21.02.2013
“...se a vossa justiça não for maior que a justiça dos mestres da lei e dos fariseus...” Mt 5,20)
O Evangelho de hoje apresenta um tema complicado para os primeiros cristãos que eram todos judeus.
Como harmonizar a pregação e a práxis de Jesus com a Lei, que para eles era o mais sagrado. De fato, os judeus falavam com orgulho da Lei de Moisés. Era o melhor presente que haviam recebido de Deus. Em todas as sinagogas guardavam-na com veneração dentro de um cofre, depositado em um lugar especial. Nessa Lei podiam encontrar aquilo que precisavam para serem fiéis a Deus.
Jesus, no entanto, não vive centrado na Lei. Não se dedica a estudá-la nem a explicá-la a seus discípulos. Nunca o vemos preocupado por observá-la de maneira escrupulosa. Certamente, não põe em marcha uma campanha contra a Lei, mas esta não ocupa um lugar central em seu coração. Jesus não foi contra a Lei, mas foi além da Lei. Quis dizer-nos que sempre temos que ir mais além da letra, da pura formulação, até descobrir o espírito da lei. “A lei mata, o espírito vivifica” (S. Paulo).
Jesus busca a Vontade de Deus a partir de outra experiência diferente, ou seja, procurando abrir caminho entre os homens para construir com eles um mundo mais justo e fraterno. Isto muda tudo. A Lei já não é o decisivo para saber o que Deus espera de nós. O primeiro é “buscar o reino de Deus e sua justiça”. “Justiça” é um termo particularmente especial para Mateus, e que poderia ser traduzido como “ajustar-se a Deus” “sintonizar-se à sua vontade” – uma justiça que é infinitamente superior à Lei.
Os fariseus e escribas se preocupavam em observar rigorosamente as leis, mas descuidavam do amor e da justiça. Jesus se esforça por incutir nos corações dos seus seguidores outro talante e outro espírito: “se vossa justiça não superar a dos escribas e fariseus, não entrareis no reino de Deus” (v.20). Eles cumpriam a lei escrupulosamente, mas só externamente, e isso não os fazia melhores mas mesquinhos.
Os “fariseus” e os “escribas” são os típicos representantes de uma espiritualidade legalista, distante da realidade humana. Eles não percebem que, observando detalhadamente todas as leis, não estão pensando em Deus, mas, sim, em si mesmos. No fundo, não tem necessidade de Deus. Acreditam que, cumprindo perfeitamente todos os mandamentos por suas próprias forças, tem o direito de exigir de Deus uma recompensa. Estão menos interessados no encontro com Deus do que no cumprimento minucioso da lei.
O que mais lhes interessa é o cumprimento das normas e ideais que se impuseram a si mesmos.
De tanto se fixarem sobre as leis, esquecem o que Deus realmente deseja do ser humano, tornam-se frios, insensíveis... e assumem o papel de juiz para julgar o comportamento dos outros.
É preciso superar o legalismo que se contenta com o cumprimento literal de leis e normas. O empenho de Jesus consistiu em fazer as pessoas passarem de uma religiosidade externa a uma religiosidade interna, ou seja, passar de um cumprimento de leis a uma descoberta das exigências de nosso próprio ser. Nesse sentido, o Sermão da Montanha não é Lei, mas Evangelho.
Esta é a diferença entre a Lei e o Evangelho: a Lei deixa a pessoa abandonada às suas próprias forças, impõe-lhe preceitos que é preciso esforçar-se por cumpri-los, ameaça-a, premia-a, exige-lhe empenho…
O Evangelho, no entanto, coloca a pessoa diante do dom de Deus, faz-lhe conhecer seu Pai, converte-a em filho(a), transforma-a por dentro… e não a obriga a nada. No amor não há imposição, mas acolhida.
Deus só pode comunicar sua Vontade na intimidade do nosso coração. Em cada um de nós está a “marca” da presença de Deus. Essa presença é sua “vontade”.
Se fôssemos capazes de descer até o fundo do nosso ser e compreendê-lo no essencial, descobriríamos ali essa vontade de Deus; ali Ele está nos dizendo o que quer e espera de nós. A vontade de Deus não é nada diferente ou acrescentado ao nosso próprio ser, não nos vem de fora, senão que está sempre aí.
Esta é a razão pela qual tantos homens e mulheres foram capazes de descer até a “marca” de seu ser e descobrir o que Deus espera de um ser humano. A expressão desta experiência é Vontade de Deus, porque a única coisa que Ele quer de cada um de nós é que sejamos nós mesmos, ou seja, que cheguemos ao máximo de nossas possibilidades.
Quê significa, então, “cumprir a lei”?
Uma lei de trânsito, por exemplo, pode-se cumpri-la perfeitamente só externamente; ela é para facilitar o fluxo dos carros e pedestres. Quando falamos de “lei de Deus”, as coisas não funcionam assim. O objetivo desta lei é a mudança profunda de nosso ser até ajustá-lo ao que Deus espera de nós. Se não interiorizamos o preceito até o ponto de deixar de ser preceito e, se não nos convencemos de que isso é o melhor para nós, o mero cumprimento da lei nos deixa como estávamos, não nos enriquece nem nos faz melhores.
Quando buscamos a Vontade do Pai com a paixão com que Jesus a buscava, vamos sempre mais além do que dizem as leis. Para caminhar em direção a esse mundo mais humano que Deus quer para todos, o importante não é contar com pessoas observantes de leis, mas com homens e mulheres que se pareçam com Ele.
Aquele que não mata, cumpre a Lei, mas se não arranca de seu coração a agressividade para com seu irmão, não se parece com Deus. Aquele que não comete adultério, cumpre a Lei, mas se deseja egoisticamente a esposa de seu irmão, não se assemelha a Deus. Nestas pessoas reina a Lei, mas não Deus; são observantes, mas não sabem amar; vivem corretamente, mas não construirão um mundo mais humano.
Temos de escutar bem as palavras de Jesus: “Não vim abolir a Lei e os Profetas, mas dar plenitude” (v. 17). Não veio a lançar por terra o patrimônio legal e religioso do Primeiro Testamento. Veio para “dar plenitude”, alargar o horizonte do comportamento humano, libertar a vida dos perigos do legalismo.
Nosso cristianismo será mais humano e evangélico quando aprendermos a viver as leis, normas, preceitos e tradições como Jesus os vivia: buscando esse mundo mais justo e fraterno que o Pai quer. Cumprir só a Lei evita o castigo. Isso não é boa-notícia.
O amor nos faz humanos e essa é sua verdadeira recompensa. O amor não é um meio para alcançar um prêmio. É o caminho e a meta de todos os caminhos. As leis, normas religiosas são “andadores” que impedem uma queda; podemos precisar deles por um bom tempo. Mas o dia que aprendemos a andar, eles serão um grande estorvo. E se um dia pretendemos correr, será impossível. Quando chegarmos a um conhecimento profundo de nosso próprio ser não precisaremos de apoios externos para caminhar para a verdadeira meta. “Ama e faze o que quiseres” (S. Agostinho) ou “Quem ama cumpriu toda a Lei”.
No Evangelho de hoje há também um matiz que costumamos passar por alto e que é a essência da proposta de Jesus. O texto não diz: “Se tu tens alguma queixa contra teu irmão”, mas “Se teu irmão tem alguma queixa contra ti”. Trata-se de olhar a própria vida na perspectiva do outro. De fato, quão difícil é nos deter a examinar se nossa atitude prejudicou o irmão. Damos por suposto que quem falha é sempre o outro. A culpa é sempre dos outros.
Texto bíblico: Mt 5,17-37
Na oração: Diante de Deus, deixar aflorar os sinais de “farisaísmo”, presentes no seu cotidiano. Frente às limitações do outro, o que prevalece? O peso da lei ou a força da misericórdia?
Pe. Adroaldo Palaoro sj
Diretor do Centro de Espiritualidade Inaciana - CEI
10.02.2013
“Vós sois o sal da terra”; “vós sois a luz do mundo”
5º Dom. Tempo comum
A proclamação das Bem-aventuranças desemboca nesta constatação: quem as vive se converte automaticamente em “sal da terra e luz do mundo”. Trata-se de duas imagens profundamente eloquentes, que tem a ver com dois de nossos sentidos e que apontam para algo que todos aspiramos: o sabor e a luz.
As parábolas não precisam de explicação nem de comentário. Explicam-se por si mesmas. Exigem, isso sim, uma resposta vital do leitor ou ouvinte.
Se nos deixamos interpelar por elas, descobriremos uma nova dimensão da existência à qual somos convidados. Podemos aceitar o desafio ou rejeitá-lo. A parábola nos coloca frente uma alternativa: ou continuar como estávamos em nosso modo de viver, ou aceitar essa nova maneira de assumir a vida que elas nos sugerem.
O texto do evangelho de hoje constitui uma das mais claras afirmações evangélicas de que a missão dos discípulos no mundo faz parte de sua própria identidade. Neles aparecem os traços fundamentais que caracterizam essa missão. “Vós sois” diz Jesus e não “vós deveis ser”, ou “tendes que converter em...”, ou “tendes o sal”.
Eles são, querendo ou não, pela força do chamado que lhes foi dirigido. Sois. Esta palavra refere-se a toda sua existência. Quem segue Jesus Cristo, afetado pelo seu chamado, fica plenamente convertido em sal da terra e luz do mundo.
Devemos cair na conta de que não nos é pedido para salgar ou iluminar, mas ser sal, ser luz. O matiz tem sua importância. A missão fundamental de cada um está dentro dele mesmo, não fora. A preocupação de cada um deve ser alcançar a plenitude humana. Se é sal, tudo o que ele toca ficará temperado. Se é luz, tudo ficará iluminado ao seu redor. Com demasiada frequência cremos ser sal e luz, mas sem dar-nos conta de que temos perdido toda capacidade de salgar e iluminar, porque somos sal insosso e luz extinta.
Embora o sal e a luz não tem nada em comum, há um aspecto no qual coincidem. Nenhuma das duas é proveitosa por si mesma. O sal sozinho não serve para a saúde, só é útil quando acompanha os alimentos. A luz não é para ser vista; ela possibilita ter uma visão clara das coisas.
O sal e a luz tem duas formas diferentes de realizar sua ação: o sal remete a uma ação invisível; no entanto, próprio da luz é brilhar. De acordo com o texto, as formas de presença significadas pela luz e pelo sal não se eliminam; as duas são inseparáveis. Sal e luz são elementos expansivos; a importância não está neles mesmos, mas na relação com a realidade onde se fazem presentes: o sal realça o sabor dos alimentos; a luz revela a realidade escondida na escuridão.
O significado é tão simples como profundo: o sal serve para que os alimentos tenham seu sabor; a luz serve para que se possa ver o que já existe. Ambos tem uma só função: servir para que outras coisas sejam válidas, para que sejam o que são. Ser sal e luz é ressaltar e potenciar tudo o que é positivo na vida humana.
O simbolismo do sal aqui é extraordinário: ele não pode salgar a si mesmo. Sua capacidade não lhe é útil para nada. Mas é imprescindível para os outros. É para ser acrescentado a outro alimento, é para ressaltar seu sabor. O humilde sal é feito para os outros, para que os outros sejam eles mesmos. Ele garante o sabor, com a condição de que se dissolva.
O sal é um dos produtos mais simples, mas também mais imprescindíveis para nossa alimentação. Suas propriedades são principalmente duas: dá sabor à comida e conserva os alimentos.
O sal atua no anonimato. Se um alimento tem a quantidade precisa, passa desapercebido, ninguém se lembra do sal. Quando a um alimento lhe falta sal ou tem demasiado, então nos lembramos dele. Não se pode comê-lo diretamente. Se não há comida, o sal é simplesmente veneno. O que importa não é o sal, mas a comida temperada com sal. Quando a comida tem excesso de sal se faz intragável. A dose tem que estar bem calculada.
O tema da luz é muito frequente na Bíblia. Partindo de um dado experimental, descobre-se sua importância para o desenvolvimento da vida. Não só porque a luz é imprescindível para a vida, mas porque o ser humano não pode desenvolver-se na escuridão. Daí que a luz tenha se convertido no símbolo da vida mesma e de tudo o que a rodeia. Assim como a escuridão se converteu no símbolo da morte e de tudo o que a provoca.
A escuridão nos paralisa; tudo está aí, mas não podemos nem nos mover. A pequena luz põe as coisas em seu devido lugar, nos faz capaz de contemplar a beleza presente em tudo. É como o primeiro momento da Criação: “Faça-se a luz”, e a partir daí o caos foi se transformando em cosmos.
Um pouco antes Mateus nos havia dito que Jesus era “a luz que brilhou na Galileia” (4,16). Agora, afirma-se que é luz todo aquele que encarna o espírito das bem-aventuranças. Ou seja, somos luz, como Jesus, na medida em que, esvaziando-nos de nosso eu, permitimos simplesmente que a luz “passe” através de nós sem encontrar obstáculo.
“Deus é luz e nele não há treva alguma” (1Jo 1,5). Deus revela, potencia, ilumina, dá sabor. A pessoa que vive descentrada de si mesma torna-se um canal por onde passa a mesma luz divina. Não a impede, não a retém e nem se apropria dela, mas permite que a Luz divina ilumine tudo.
Ser luz, significa explorar nossas possibilidades humanas e espirituais e pôr toda essa riqueza a serviço dos demais. Devemos ter cuidado de iluminar, sem deslumbrar. Ninguém é “a” luz, senão que tem um pouco de luz. E todos compartilhamos mutuamente a luz que vem de Deus. Nossa pequena luz reforça e ativa a luz presente no outro.
Não podemos esquecer outro aspecto importante nas duas imagens usadas por Jesus. O sal, para salgar, tem que desfazer-se, dissolver-se, deixar de ser o que era. A lamparina ou a vela produzem luz, mas o azeite ou a cera se consomem.
No último parágrafo da passagem evangélica de hoje há um ensinamento esclarecedor. Como devemos ser sal e luz? “Para que vejam vossas boas obras e glorifiquem vosso Pai”. A única maneira eficaz para transmitir a mensagem é a ação, são as obras. Uma atitude verdadeiramente evangélica se transformará inevitavelmente em obras.
Texto bíblico: Mt 5,13-16
Na oração: “O amadurecimento da experiência e uma visão de fé mais profunda evidenciam a grande Luz que nos precede, acompanha e segue no percurso da vida”.
Deixemo-nos iluminar, levemos a Luz nas nossas pobres e frágeis mãos, iluminando os recantos do nosso cotidiano.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
Diretor do Centro de Espiritualidade Inaciana – CEI
04.02.2014
Página 33 de 38