“...vimos um homem expulsar demônios em teu nome, mas nós o proibimos, porque ele não anda conosco ” (Mc 9,38)
Toda autêntica vida humana é vida “com” os outros, é convivência, é compartilhar... E convivência implica respeitar e se alegrar com a diversidade, considerando-a riqueza. É maravilhoso que haja raças, costumes, cultura, religiões, formas de pensar... diferentes.
A diversidade nos permite enriquecer-nos, adquirir mais humanismo. Diferença é expressão inerente ao ser humano, é modo de pensar, de dizer, de trabalhar, de existir e de conviver.
Todos temos direito a ser singulares, direito a ser diferentes, direito a partilhar e receber dos outros. Daí a importância de aprender a ver o melhor em cada pessoa e em cada povo, superando as visões estreitas e fundamentalistas de todo tipo de racismo, xenofobia, desprezo, preconceito, intolerância, fanatismo....
Saber conviver com as diferenças é sinal de maturidade.
Historicamente, o ser humano sempre foi e é afetado por estes dinamismos de morte - fanatismo, preconceito, intolerância – que o levam a uma atrofia em sua humanidade, rompendo uma sadia relação com o outro diferente. Tais dinamismos negativos desvelam uma profunda insegurança pessoal. Um eu psicológico e espiritual não suficientemente integrado revelar-se-á carente de “seguranças absolutas”, que sustentem sua precária e instável sensação de identidade. Esta ameaça é a que se esconde por detrás das palavras de João, no evangelho de hoje: “nós o proibimos porque não é dos nossos”.
Diante da postura preconceituosa de João, Jesus reage: “Não o proibais, pois ninguém faz milagres em meu nome para depois falar mal de mim”. Aqueles que temem a diferença, amoitam-se no comodismo e na estagnação; tornam-se incapazes de viver a intercompreensão, a comunhão e o respeito recíproco. Desumanizam-se na solidão estéril e caem no fundamentalismo fechado, inimigo de toda diferenciação e cego em face da pluralidade. Aqui nasce a intolerância, que por sua vez gera o desprezo do outro diferente, e o desprego gera a agressividade que rompe a harmonia universal.
Aqueles que se fecham à diversidade se tornam preconceituosos, ou seja, dogmáticos e fervorosos fundamentalistas, com hostilidade e intolerância religiosa. Cegos para a verdade, eles preferem o autoengano ao conhecimento de fato; fincam pé naquilo que pensam que sabem, no que está estabelecido e normatizado; não se atualizam, não conseguem ver o novo e a necessidade de mudanças.
Ao tornarem absoluta uma verdade, se condenam à intolerância e passam a não reconhecer e a respeitar a verdade e o bem presentes no outro. Não suportam a coexistência das diferenças, a pluralidade de opiniões e posições, crenças e ideias. Daí surgem o conservadorismo radical, o medo à mudança, a violência diante da crítica, a suspeita, a vigilância, o controle autoritário...
Somos chamados a considerar a diferença como oportunidade, destacando a necessidade de estender pontes de diálogo e facilitar encontros com aqueles que são diferentes, tanto na Igreja como na sociedade.
Como seguidores de Jesus, fazemos parte da identidade da Igreja que é plural e diversa em seus membros, pelo qual é chamada à “comunhão na diversidade” (diferentes espiritualidades, liturgias, teologias...)
No entanto, a busca deste ideal se deparou, desde sempre, com diferentes desafios: dogmatismos, fechamento, sentimentos de superioridade, apego a normas, elitismo, legalismo, moralismo, etc...
A fé cristã em Deus, que é uno e trino, aparece como o primeiro fundamento para acolher a diferença. Também o exemplo de Jesus convida seus seguidores a sair de si mesmos, a acolher o outro como revelação de Deus. Essa fé se expressa no chamado “pluralismo comprometido”, ou seja, a busca, através de um diálogo honesto, de uma verdade, bondade e beleza sempre maiores.
Nós cristãos vivemos inseridos no interior deste mundo de identidades plurais. Como viver essa diversidade? Mais ainda: como conviver com elas na criação de um mundo mais justo e humano para todos?
Não podemos permanecer trancados em redutos que rejeitam as diferenças existenciais. A humanidade deixou de ser distante para tornar-se mais próxima, mediante as diferenças, os diálogos e as convergências.
Daí a importância e a urgência de aprender a valorizar o que é próprio e também o que é diferente, esforçando-se para não transformar as diferenças normais (geográficas, culturais, de raça, de gênero...) em desigualdades. É preciso educar e preservar as diferenças humanas.
Segundo o físico Andréi Sajarov “a intolerância é a angústia de não ter razão”.
É terrível quando alguém se aferra às suas próprias ideias e crenças, gerando fanatismos. O fanatismo cega e impede ver a verdade. O fanático se empenha em permanecer preso ao passado e bate de frente contra quem pretende abrir caminhos de futuro.
Quando alguém se fecha em suas ideias, é inútil mostrar-lhe a verdade. Quando alguém fecha sua mente aos demais é inútil mostrar-lhe a luz. Porque o fanático só crê em seus próprios pensamentos, só crê em suas próprias ideias, crê ser o único dono da verdade.
O fanatismo costuma ser o maior obstáculo para ver e acolher a verdade presente nos outros; o fanatismo costuma ser o maior obstáculo para ver a luz que os outros irradiam. Todo fanatismo é perigoso, mas o pior fanatismo é o religioso. Uma coisa é a fidelidade e outra é o fanatismo. O fanatismo fecha as portas a qualquer luz que venha de fora. Quantas vítimas do fanatismo da lei! E tudo em nome de Deus; e tudo em nome da religião; e tudo em nome da defesa da verdade.
Texto bíblico: Mc 9,38-43.47-48
Na oração: Despertar o eu profundo e universal é descobrir-nos como habitantes de um universo novo e espaçoso, onde a consciência expandida nos conduz ao encontro do “diferente” como chance de enriquecimento vital e de intercâmbio criativo.
Deus “se fez diferente” e é na “diferença” que Ele vem ao nosso encontro. Deixo-me surpreender pelo Deus da vida que rompe esquemas, crenças, legalismos... ou minha vivência de fé se reduz a um ritualismo fechado, impedindo sair de mim mesmo?
Pe. Adroaldo Palaoro sj
Diretor do Centro de Espiritualidade Inaciana – CEI
“Quem acolher em meu nome uma destas crianças é a mim que estará acolhendo” (Mc 9,37)
Sempre a mesma discussão e a mesma tentação: quem é o maior? quem é o primeiro? quem é aquele que manda?... O Evangelho de hoje nos situa em Cafarnaum, lugar onde são “desvelados” dois dinamismos opostos. De um lado, Cafarnaum como lugar onde o poder se torna competição e intriga, onde o seguimento se torna privilégio, onde palavras como serviço, entrega ou humildade soam vazias porque por de-trás delas há outras intenções menos evangélicas. E é tão difícil sair daí. É tão complicado deixar que a criança ocupe o centro, que os últimos sejam os primeiros. O impulso do poder e da vaidade vão se impondo a tal ponto que acabamos sufocando a criança que quer se expressar e deixar-se surpreender dentro de nós.
De outro lado, Cafarnaum é essa criança que é Boa Nova, que nos abre às alegrias e às surpresas, que crê no amor, que reconhece sua ignorância e não se importa porque para ela sempre são novas todas as coisas, que em cada amanhecer descobre novas oportunidades, que não entende os grandes porque sabe que o essencial está em outro nível, que pede porque se reconhece necessitada, que é vulnerável e não se envergonha de suplicar o cuidado, que vive em meio a sonhos, que espera nas promessas...
Cafarnaum de crianças sempre últimas. Cafarnaum bendita e generosa. Cafarnaum possível.
Qual das duas “cafarnaum” eu alimento?
Diante da oculta intenção dos discípulos de começar a construir uma nova comunidade sobre as bases do poder, a partir do maior e do primeiro, Jesus inverte esse modelo, pois Ele não precisa de seguidores que sejam os grandes nem os primeiros, mas de companheiros que queiram fazer-se últimos e servidores dos outros; Jesus destrói os desejos de poder dentro de seu grupo, e assim apresenta com realismo o que implica segui-lo no caminho do Reino.
Mais uma vez o Evangelista Marcos nos situa Jesus “em casa”, lugar de reunião da comunidade, onde Ele estabelece um diálogo com os Doze. O paradoxo é brutal: pelo caminho, enquanto seguiam a Jesus, iam discutindo para ver “quem era o maior entre eles”. Os Doze tinham interiorizado os critérios da velha sociedade, edificada a partir dos poderosos.
E Jesus, ao descobrir a má intensão dos discípulos, corta o mal pela raiz: “Se alguém quiser ser o primeiro, que seja o último de todos e aquele que serve a todos”. Depois, coloca uma criança no meio deles e a abraça. O gesto de Jesus e as palavras que o acompanham tornam-se chocantes e surpreendentes. O lugar central já não corresponde nem a Pedro nem a João nem a Tiago; no espaço central da Igreja, abraçada a Jesus, encontramos uma criança, ou seja, um ser humano que depende da acolhida e ajuda dos outros, um necessitado que nem sequer pertence ao grupo.
A comunidade de Jesus tem que ser servidora e acolhedora daqueles que são como aquela criança, dos desvalidos e dos que não contam. Quando numa comunidade surgem disputas pelo poder e pelos primeiros lugares, inevitavelmente nascem as divisões e se rompe a fraternidade
“Entrar no Reino” significa entender e compartilhar o projeto de Jesus, ou seja a “fraternidade universal” e o “amor que se faz serviço”, pois Ele veio “buscar” os últimos (enfermos, excluídos, pecadores).
Isso se revela impossível para quem rege sua vida por critérios de poder, prestígio, ambição... alimentando atitudes que separam, dividem ou geram competição. O poder deteriora relacionamentos, resvalando-se para o terreno pantanoso da competição, da suspeita, da intriga. A cultura do poder suga o “espírito” da vida de uma comunidade, minando a criatividade e fragilizando seus laços de convivência. Sorrateiramente esta tentação toma conta do coração humano e o petrifica, impedindo a expansão da vida em direção aos outros. Por isso Jesus quer que seus servidores saibam se colocar no final, para, a partir dali, acompanhar e ajudar os outros (especialmente os perdedores deste mundo), superando a lógica do mando e do poder.
Todos se encontram agora igualados, formando um corpo em torno à criança (que está no meio), a quem devem receber e servir. No lugar onde estava Ele, Jesus colocou uma criança (não um templo, nem uma bíblia, nem o código canônico...), de quem todos devem se aproximar, acolher e servir.
Jesus coloca uma criança no centro para que ali fique; os discípulos discutiam sobre esse centro, mas agora descobrem que está ocupado pela criança a quem Jesus a coloca de pé, convertendo-a em hierarquia máxima, em meio ao grupo onde Ele mesmo estava. Dessa forma, Jesus interpreta a autoridade a partir da ternura: a criança é importante porque está no centro da comunidade. Por isso, uma sociedade que não cuida e não protege suas crianças, é uma sociedade fracassada e não pode ser abençoada por Deus. Para muitos, é mais fácil confiná-las na prisão, lavando covardemente as mãos, “descartando-as” e não se preocupando em oferecer-lhes as mínimas condições para o seu crescimento e formação.
Com seu gesto e palavra, Jesus declara as crianças como coração e autoridade suprema da Igreja. Dessa forma, o que começava sendo uma pergunta hierárquica sobre o poder, entendido como sinal de Deus sobre o mundo (quem é o maior?), desemboca numa exigência ética de inversão do poder, de anti-hierarquia. A comunidade cristã não é um grupo de sábios doutores, uma sociedade de poderosos e influentes, uma associação de burocratas sacros, mas um lar para as crianças, um espaço onde os mais necessitados encontram acolhida e cuidado, um espaço de vida, dignidade e ternura.
A essência da Igreja consiste em abrir espaço de vida e crescimento, de afeto e ternura para com os mais necessitados, e de um modo especial para com as crianças. Eles, Jesus e a criança, constituem a verdade messiânica. Desaparecem os modelos de domínio (ser maior, ser primeiro), o maior e primeiro é a criança. A partir daí se pode falar de uma Igreja entendida como espaço de acolhida e como escola de vida para os necessitados e crianças. Aqueles que acolhem uma criança, oferecendo-a espaço para o abraço no centro da casa, esses são comunidade cristã.
Frente aos discípulos patriarcalistas que buscavam o domínio e o poder, Jesus eleva o modelo de uma Igreja que é família, lar materno a serviço dos mais desprotegidos.
Texto bíblico: Mc 9,30-37
Na oração: É preciso estarmos abertos para as surpresas de Deus! Entremos, pois, na casa em Cafarnaum, mas não de qualquer maneira. Estamos frente a um mistério santo. O “mistério” contemplado atinge as camadas mais profundas do afeto e do coração, gerando novidade em nossa vida cotidiana.
Há muito que ver em Cafarnaum, mas nem todos os olhares poderão acolher o que ali acontece. Há olhares opacos que não se alegrarão, olhares desconfiados que não o entenderão, olhares frios que não vibrarão com a novidade das palavras e gesto de Jesus... Somente os olhares dos pobres e pequenos se admirarão, e a paz do coração será sua recompensa.
“Ver de novo”, ver outras coisas diferentes daquilo que estamos acostumados a ver, é também “nascer de novo”. É preciso despertar a “criança interior” que há em nós, nossa capacidade de atenção à vida, de buscar com outros, de deixar-nos surpreender diante da presença despojada de Deus.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
Diretor do Centro de Espiritualidade Inaciana - CEI
“Se alguém me quer seguir, renuncie a si mesmo...” (Mc 8,34)
Todos nós somos habitados por um conjunto de “eus”, alguns conscientes, outros inconscientes. São os “pequenos egos” ocultos que habitam nosso interior. São elementos de nossa própria sombra, aos quais deveremos prestar atenção se quisermos avançar rumo a uma plenitude humana e espiritual.
A sombra é composta por um conjunto de pequenos “egos” que fomos alimentando no decorrer de nossa vida. Na sombra pode haver um ego vaidoso, orgulhoso, sozinho, assustado, ressentido, angustiado, irado, invejoso, triste, sensual, avarento, vítima, sádico... Trata-se de descobrir, pouco a pouco, esses pequenos “egos” reprimidos e inflados, nomeá-los e dialogar com eles. Neles se esconde a pessoa que teve de ocultar-se, negar-se ou até rejeitar-se para sobreviver diante dos outros.
Para sair dessa armadilha é necessário situar-nos em nosso “espaço interior”, aí onde nos identificamos com nosso “eu verdadeiro”, para perceber as coisas de forma adequada. Uma experiência espiritual profunda consiste em estar cada vez mais lúcidos com relação a ele; identificando-nos prazerosamente com nosso Eu verdadeiro vamos “desvelando” e conhecendo mais nossos “pequenos egos” ocultos.
Só podemos dialogar proveitosamente com nossos “egos” a partir de nosso “eu” verdadeiro (lugar da beatitude original). Desse diálogo brotam sentimentos de paz, abertura, espontaneidade, vitalidade, amor...
Quando experimentamos algum mal-estar existencial persistente, devemos desmascarar nosso pequeno “eu” sofredor (ressentido, desprezado, criticado, culpado...). A partir do melhor em nós, acolhemos e compreendemos esse mal-estar, ao mesmo tempo que a ele expressamos nossa compreensão e acolhida; nós nos humanizamos à medida que temos a coragem de descer ao encontro dos nossos “egos” e não permitimos que eles determinem nossa vida. Cada vez que nos reduzimos ao “ego”, bloqueamos o fluir da vida, e apenas sobrevivemos na superficialidade de nós mesmos.
É aqui que se situa a afirmação de Jesus que fecha, como chave de ouro, toda a cena do evangelho de hoje: “Quem quiser vir comigo, renuncie a si mesmo, tome sua cruz e siga-me”. É um ponto chave do ensinamento de Jesus, ou seja, o convite a entrar na lógica do dom, do descentra-mento do eu, da entrega gratuita, da superação da mera reciprocidade.
É a lógica aberta pelo Reinado de Deus, que alarga o horizonte da vida humana, enriquece as possibilida-des de atuação e aumenta a criatividade no serviço. A lógica do dom implica deixar-se conduzir por Deus, conhecido através de Jesus, que é entrega de vida, misericórdia, perdão, amor infinito.
Uma consideração superficial destas palavras de Jesus deu margem a uma apresentação do cristianismo como a religião que enfatizava a dor, a renúncia e a negação da própria vida e da própria identidade. Mas Jesus não buscava a dor e nem negava a vida. Suas palavras não são uma exaltação do sofrimento, mas expressam uma grande sabedoria: elas buscam “despertar” a pessoa para sua verdadeira identidade, para que assim ela possa assumir uma atitude acertada diante da vida.
O horizonte de toda pessoa é precisamente a vida e a plenitude. Isso é o que todos, sabendo ou não, buscamos. E buscamos isso em tudo o que fazemos e em tudo o que deixamos de fazer. Como acertar?
Jesus oferece uma resposta carregada de sabedoria, na linha daquela que foi dada por todos os mestres e mestras espirituais: para caminhar na direção da vida, é necessário “desapegar-se” do ego.
“Renunciar a si mesmo” ou “negar-se a si mesmo” é não se reduzir ao eu superficial ou ego. Só quando nos desapegamos do ego, tomamos consciência de nossa identidade mais profunda, a vida que somos. Essa é a Vida de que fala o Evangelho, a mesma Vida que Jesus vivia, com a qual Ele estava identificado (“Eu sou a Vida”) e que buscava despertar em nós.
“Renunciar a si mesmo”: não se trata de negar o que somos, mas o que pretendemos ser e não somos.
No mais profundo de cada um de nós habita uma pretensão básica de querer “ser deus” – “sereis como deuses”. É o pecado de raiz já dos nossos primeiros pais. É a tentação de querer ser outro, de não aceitar ser dependente, de não se aceitar como criatura, como humano (frágil e limitado)...
“Renunciar a si mesmo” é não deixar que o impulso para a vaidade, a soberba, o poder... predomine; não deixar que o centro seja o “eu”, mas Deus. Isso implica em “descer”, humildemente, ao próprio húmus.
Se não venço essa pretensão de “bastar-me a mim mesmo”, não posso seguir Jesus Cristo.
O seguimento de Jesus implica, pois, um descentramento, um esvaziamento do “nosso próprio amor, querer e interesse” (S. Inácio). Para poder viver o Evangelho de uma maneira inspirada, deveríamos deixar ressoar profundamente em nós essa expressão tão forte de Jesus: “negar-se a si mesmo” para poder viver com mais plenitude e transparência.
“A negação de si” enquanto negação do que nega a vida. “Negar-se a si mesmo” é deixar de se identificar com a tirania das mensagens de nossos pequenos “egos”, que se refletem em nossa própria linguagem e auto-imagem. “Negar-se a si mesmo” é um conselho sábio: significa negar o que na realidade “não é”, despertar-se da ilusão e do engano, deixar de girar em torno de um suposto “eu” que não existe, para viver a comunhão com todos e com tudo e agir assim de um modo mais coerente.
Não somos os pequenos “egos” que acreditamos ser. Precisamos despertar dessa ilusão e entrar em contato com nosso verdadeiro Eu, nosso Ser e, a partir dele, olhar a vida, olhar nossa atividade e olhar os outros, a fim de viver em sintonia com quem somos em profundidade. É esse o modo de “ganhar a vida”.
Precisamos des-velar (tirar o véu) de nossos “pequenos eus”, detectar e reconhecer seus dinamismos sombrios e atrofiadores, para podermos caminhar, com mais naturalidade e leveza, para além de nós mesmos. Do contrário, eles travarão nossa vida de uma maneira tirânica.
É saudável reconhecer esses “eus” e dialogar com eles, pois de outra forma eles se fixarão em nós como rigidez ou nos transformarão em fanáticos. Rigidez e fanatismo, dureza e intolerância, legalismo e moralismo... indicam a existência de “eus” inflados que atrofiam nossa existência.
Por isso “renunciar-se a si mesmo” não é mutilar-se, nem buscar sacrifícios, nem anular-se..., mas é descer até “o dinamismo de vida” (a força germinadora) que pulsa no próprio coração, ansioso de plenitude, de vida e de amor.
A afirmação de Jesus, portanto, nos faz descobrir que por detrás do “renunciar-se a si mesmo” pulsa o desejo de desprender-se do “ego desumano” para poder expandir a vida em direção a uma ousada criatividade.
Texto bíblico: Mc. 8,27-35
Na oração: Orar é aproximar-me da “verdade que me faz livre”; livre para ser “eu mesmo”, chegar a ser aquilo a que sou chamado a ser.
Por isso a oração cristã é também descoberta do “eu”, da minha própria realidade pessoal, do mistério que a habita. É nessa experiência divina que “descubro-me a mim mesmo”. Começo, então a descobrir o meu ser (único, original, sagrado...) quando “mergulho” no misterioso relacionamento com Deus e quando permito que o “mistério experimentado” se torne fonte de minha identidade.
Mais ainda, saberei melhor QUEM sou eu, esquecendo-me de mim mesmo, aceitando perder-me, deixando que o Amor me liberte de meu pequeno ego.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
Diretor do Centro de Espiritualidade Inaciana - CEI
“Abre-te! Imediatamente seus ouvidos se abriram, sua língua se soltou...” Mc 7,35)
O Evangelho de hoje nos diz que os pagãos também foram destinatários da presença inspiradora e salvadora de Jesus: Ele saiu da região de Tiro, passou por Sidônia até o mar da Galiléia e atravessou os limites da Decápole. É uma das pouquíssimas vezes que vemos Jesus fora de seu país, na região dos pagãos, em meio às pessoas de outra religião.
Com efeito, vemos, em primeiro lugar, como Jesus não está entre os pagãos com uma atitude “apóstólica”, não o vemos preocupado em catequizá-los, nem fazer proselitismo religioso: não procura converter ninguém à sua religião, à fé israelita no Deus de Abraão. E tampouco faz discursos religiosos, nem o vemos proclamando uma doutrina, ensinando e divulgando as santas máximas de sua mensagem. Simplesmente “cura”. Em outras palavras: “faz o bem”, não fala sobre o bem; realiza atos, não ditos.
Não podemos dizer que Jesus passou pelo território pagão com indiferença, ou com os olhos fechados, pois ali também ele se encontrou com uma humanidade sofrida e excluída. Por isso, trouxeram-lhe um surdo-mudo e lhe pediram que lhe impusesse as mãos sobre ele.
O texto faz referência a um percurso corporal: de Jesus são nomeados as mãos, os dedos, a saliva, os olhos e a respiração; do surdo-mudo, os ouvidos e a língua. No começo do relato o surdo-mudo aparece fechado em seu silêncio e em sua solidão, levado diante de Jesus por outros e logo afastado deles pelo mesmo Jesus. Dir-se-ia que não só está atado e travado por seu problema de comunicação, mas também impedido para tomar iniciativas e decisões livres.
O contato com Jesus, em intensa proximidade corporal, e a força de seu imperativo “abre-te”, soltam-lhe todas suas ataduras e lhe permitem de novo pronunciar sua própria palavra. Como por um efeito contagioso, todos os presentes se põem a proclamar o ocorrido e escutamos seu rumor admirado, como um eco das palavras de Deus na criação: “Ele tem feito bem todas as coisas”.
“Abre-te”: esta é a única palavra que Jesus pronuncia em todo o relato. Expressão que desata as palavras emudecidas no interior daquele homem; expressão que desbloqueia a voz e os ouvidos, ou seja, restaura nele a capacidade da comunicação, de escutar e responder. Por isso, esse imperativo não está dirigido somente aos ouvidos do surdo mas ao seu coração.
Jesus, com sua presença terapêutica, destrava interioridades. Ele assumiu uma estratégia terapêutica de “inclusão”. Ao curar fisicamente uma pessoa, Jesus busca fazer emergir um ser humano mais sadio e inteiro, a partir de suas raízes, a partir de seu coração, centro e fonte das decisões. Jesus se compromete com a saúde radical e integral do ser humano, e devolve às pessoas a saúde de seu corpo, de suas emoções, projetos, relações e abertura ao outro.
Poderíamos dizer que Jesus ativa no surdo-mudo a dom de “empalavrar”, ou seja, “pôr em palavras” tudo o que estava oculto em seu interior. Sabemos que a palavra abarca todas as expressividades humanas; mas ela não se reduz à oralidade: a gestualidade, a linguagem corporal, a expressão dos sentimentos, as atitudes éticas... tudo isso também faz parte da palavra humana. As palavras são, ao mesmo tempo, pensamento, sentimento, ação... São humanizadoras, por excelência.
A cura do surdo-mudo nos convida a deixar que Jesus continue realizando com cada um de nós seu gesto criador, como fez Deus na primeira manhã da criação, modelando com suas mãos e insuflando seu alento, curando nossa surdez e gaguejamento.
A mesma palavra dirigida ao surdo-mudo “Abre-te”, pode ressoar hoje em nossos ouvidos e em nosso coração, convidando-nos a destravar dimensões importantes de nossa vida, para assim podermos continuar realizando pequenos gestos criadores e oferecendo sinais de vida, também entre aqueles que não compartilham nossa fé.
O quê precisa ser desbloqueado em nossa vida? Talvez alguma capacidade adormecida, ou algum recurso interior que permanece latente; talvez um novo sonho ou projeto, uma abertura para crescer em comunicação com os outros, uma “palavra” diferente que expresse o sentido de nossa existência...
O contexto pós-moderno no qual vivemos nos motiva a considerar a importância e o sentido da “palavra”, a prestar atenção ao seu dinamismo e à sua força expressiva e criativa. Sem dúvida, em nosso momento atual, a palavra cada vez tem menos relevância, cada vez é menos significativa. Banalizamos as palavras, adocicamo-las, manipulamo-las ou as submetemos a um violento esvaziamento de significados, segundo nossa conveniência.
Portanto, “cuidar a palavra é cuidar o mais específico do ser humano, enquanto que é através dela como se expressa nosso mistério” (Melloni, sj). É preciso novamente dar oportunidade às palavras, pois viver é a arte de saber lidar com as palavras.
Cada palavra tem seu impacto interior, algumas evocam e fazem presentes não só as ressonâncias imediatas, senão que nos conduzem às profundas e estremecedoras experiências. Temos a nobre tarefa de aproximar a palavra à experiência, para resgatá-la da insignificância, do anonimato, fazê-la inédita, consciente e poder assim confrontá-la com a Palavra que, feito carne, entrou em nossa experiência histórica.
"Mas você sabe que a pessoa pode encalhar numa palavra e perder anos de vida?" (Clarice Lispector).
De fato, na cena do evangelho de hoje, Jesus desencalha palavras e mobiliza o homem para ir desfrutando palavras novas, inspiradoras, que rompem a sua solidão e expandem a sua vida em direção aos outros e em direção ao grande Outro.
“Em algumas narrativas, certos vocábulos abrem grutas, cofres e corações. Sim, algumas palavras ajudam o barco a flutuar: “esperança”, “amanhã”, “utopia”. Pode-se também passar uma estação com algumas delas, como se pode passar uma temporada num determinado lugar, num certo corpo, num certo amor. Certas palavras são como hotéis: nelas fazemos pernoite, mas outras demandam moradia maior, são grutas ou catedrais que exigem contemplação” (Affonso Romano de Santana).
As palavras são feitas à nossa medida e adquirem vida quando as pronunciamos, convertendo-se assim em um prolongamento de nós mesmos, de nossos sentimentos e de nossos valores. As palavras são o reflexo de nosso viver e sentir, de nossas misérias e grandezas; são a “alma” de quem as pronuncia ou as escreve. Com elas não estamos sozinhos; com elas podemos transcender nossa pobre realidade.
As palavras se desgastam quando nos afastamos do contato originário com a realidade, quando nos distanciamos dos acontecimentos que nos alcançam, quando renunciamos a sentir e saborear as coisas internamente, quando não nos deixamos afetar pelos matizes quase infinitos da dor de nosso próximo. Por isso é importante progredir no caminho do silêncio, no qual nos educamos na escuta autêntica do nosso coração, que é a única capaz de fazer emergir palavras carregadas de vida e de sentido.
E como já disse alguém “as palavras são caminhos para encontrar as coisas perdidas”.
Texto bíblico: Mc 7,31-37
Na oração: nas profundezas do silêncio de seu coração e sob a ação do Espírito, “escave” palavras inspiradas que serão portadoras de vida junto àqueles que lhe são mais próximos.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
Diretor do Centro de Espiritualidade Inaciana - CEI
“De nada adianta o culto que me prestam, pois as doutrinas que ensinam são preceitos humanos”
Era uma vez um mosteiro no qual se respeitava escrupulosamente o silêncio. Mas cada dia, justamente às seis horas da tarde, quando os monges iniciavam a oração das Vésperas, aparecia um gato pela porta da igreja, miando fortemente.
Diante da insistência e intensidade dos miados, o abade tomou uma decisão: pediu a um irmão que, das seis às sete da tarde, amarrasse o gato em uma pilastra que havia na entrada do mosteiro, longe da capela onde eles rezavam. E assim fazia o irmão, todas as tardes.
O tempo passou. O abade faleceu e veio substituir-lhe um monge de outro convento distante, que logo percebeu o que cada tarde se fazia com o gato. E pediu para continuar a repetir o mesmo rito. Meses depois faleceu o gato. Imediatamente, o novo abade chamou o irmão e lhe disse: “Compre outro gato o quanto antes para amarrá-lo, cada tarde, das seis às sete horas, na coluna da entrada da igreja”.
Este antigo conto mostra uma tendência bastante habitual no comportamento humano. Começamos fazendo algo porque nos parece útil, mas logo absolutizamos essa ação, convertendo-a em um rito ao qual atribuímos valor por si mesmo, à margem de sua utilidade. Quando isso acontece, dá a impressão que o único motivo que nos leva a manter uma ação ou um comportamento é que “sempre se fez assim”. Se, além disso, a esse comportamento lhe é atribuído um caráter “religioso”, acrescenta-se outra razão poderosa para perpetuá-lo. E se, finalmente, a “autoridade religiosa” atribui a si o poder de controlá-lo e de vigiar seu cumprimento, temos todos os ingredientes tanto para o imobilismo como para situar a ação prescrita acima inclusive do valor e do bem da pessoa.
Tudo isto está presente na cena evangélica de hoje. A atuação de Jesus é perigosa, pois Ele ensina a viver com aquela liberdade surpreendente.. Convém corrigi-la. Os fariseus e doutores da lei vigiavam rigorosamente o cumprimento das normas rituais: lavar as mãos antes de comer, a maneira certa de lavar os copos, jarras e vasilhas de cobre...
Provavelmente, tais normas surgiram como uma medida de prevenção higiênica. O erro acontece quando se absolutiza e se acaba declarando “impuras” (religiosamente) às pessoas que não as cumprem. Desse modo, o que poderia ser uma prescrição saudável terminou se convertendo em uma arma de poder e em um pretexto gravemente discriminatório.
Pretextos desse tipo foram utilizados (e se utilizam) com frequência, na sociedade e na Igreja, para estigmatizar determinadas pessoas ou grupos. E a autoridade, religiosa ou civil, se converte em “polícia das consciências”, acusando, condenando ou inclusive eliminando aqueles que se afastam da norma prescrita. “Quem sou eu para julgá-los?” (Papa Francisco).
Será que Deus complica tanto nossa vida com o peso das normas, proibições, culpas...?
Mais uma vez, frente às armadilhas da religião, a atitude de Jesus é claríssima. Custa-nos entender como há pessoas que professam ser suas seguidoras e continuam absolutizando normas, ritos, crenças..., acima do bem das pessoas, às quais não duvidam em anatematizar e desqualificar do modo mais veemente. No entanto, o culto que agrada a Deus nasce do coração, da adesão interior, desse nosso centro íntimo de onde nascem nossas decisões e projetos.
Em toda religião há tradições que são “humanas”: normas, costumes, ritos, devoções... que nasceram para ajudar a viver a experiência religiosa em uma determinada cultura. Podem fazer bem; mas podem causar muito dano quando nos dispersam e nos afastam da Palavra de Deus. Elas nunca devem ter a primazia.
Não podemos esquecer nunca do que é essencial.
Neste sentido, Jesus foi um “transgressor” porque sua missão estava centrada em “destravar” a vida das pessoas pelo peso das tradições e ritos religiosos. Suas palavras, tomadas de Isaías, apontam diretamente para o coração: “Este povo me honra com os lábios, mas seu coração está longe de mim. De nada adianta o culto que me prestam, pois as doutrinas que ensinam são preceitos humanos”.
Tais palavras teriam que se converter, para o seguidor de Jesus, em um questionamento sempre atual. Onde creio encontrar Deus? Nas normas, nos ritos, nas crenças... ou no coração e na vida? Sem dúvida, o comportamento pessoal será radicalmente diferente se identificamos a Deus com nossas crenças e ritos ou se o experimentamos no mais profundo de nosso ser e no serviço em favor da vida. No primeiro caso, haverá fanatismo-legalismo-moralismo; no segundo, respeito-amor-compaixão-serviço.
O decisivo é o “lugar” onde vivemos a experiência de encontro com Deus. É verdade que o próprio Jesus nos advertiu que Ele não veio a este mundo para “suprimir” a Lei e os Profetas, ou para acabar com a “religião”, mas para transformar qualitativamente, para “levar à plenitude” a antiga religião (Mt 5,17).
Em outras palavras, o que Jesus deixou claro, com sua forma de viver e com seus ensinamentos, é que o centro da religião não está nem no templo, nem nos rituais, nem no sagrado, nem na submissão às normas religiosas, nem nos dogmas e suas teologias, mas que está na práxis, numa ética, num projeto de vida, numa forma de viver, que se centra e se concentra na bondade para com todos de maneira igual, no amor sem limitações nem condicionamentos, no serviço gratuito e generoso. Isso se traduz e se realiza no respeito à vida humana, na defesa da vida, da dignidade e dos direitos de todos.
Isto quer dizer que Jesus deslocou a religião, tirando-a do templo, dos sacerdotes e seus hierarcas, separando-a dos ritos, antepondo-a ao sagrado. E a colocou no centro da vida. Mais ainda, a ampliou e a estendeu à vida inteira, não reduzindo-a a determinados momentos da vida, a espaços separados, a gestos privilegiados, a objetos e personagens com quem é preciso manter uma relação de abaixamento e submissão. É assim como Jesus revela e expressa a “humanização de Deus”.
Seu modo livre de ser e viver nos revela “a humanidade de Deus”.
Texto bíblico: Mc 7,1-8.14-15.21-23
Na oração: sua vivência cristã está mais centrada no cumprimento de normas, ritos, leis... ou no serviço e cuidado para com os outros? Seu “culto” a Deus é expressão de um compromisso ou um rito vazio, assumido por imposição e medo?
Sua experiência de encontro com Deus só se dá nos momentos de celebração ou no ritmo da vida?
Pe. Adroaldo Palaoro sj
Diretor do Centro de Espiritualidade Inaciana - CEI
“Esta palavra é dura. Quem consegue escutá-la?” (Jo 6,60)
“Pai, dê-me uma palavra!” Invocação desconcertante e de grande simplicidade que parecia romper o austero silêncio dos desertos do Egito, Palestina, Síria, Pérsia, nos inícios do séc. IV da era cristã.
Visitantes ocasionais ou irmãos inexperientes na fé, movidos não por uma simples curiosidade mas desejosos de dar nova orientação às suas vidas, costumavam dirigir-se a um “ancião do deserto” para pedir-lhe um ensinamento que, nascido de sua experiência de vida no Espírito, pudesse se tornar de valiosa ajuda na senda das pegadas do Senhor; uma palavra para a vida que, exigida pela experiência cotidiana, pudesse dotá-la de um sentido; uma palavra proveniente do exterior mas meditada e acolhida no coração, para que pudesse se tornar semente de uma vida reconstruída e expansiva; uma “palavra de vida” capaz de ecoar até nas camadas mais profundas do próprio ser, mobilizando o ouvinte a uma existência mais identificada com o seguimento de Jesus Cristo.
Em todos nós habita a pretensão de deixar uma “marca” e permanecer de alguma maneira na memória dos outros, e aqueles que nos cercam podem desejar também receber uma palavra nossa, agora que a experiência de vida nos capacitou para oferecê-la. Qual será então essa palavra ou palavras que desejaríamos dizer? Por que demorar mais no momento de elegê-las, de acariciá-las internamente, de preparar o modo de dizê-las e de chegar a pronunciá-las, mais com atitudes e gestos que com os lábios?
Podemos evocar os nomes de homens e mulheres de Deus (pais e mães, educadores, fundadores de congregações...) e detectar neles quais foram as palavras de vida que pronunciaram em sua maturidade de vida, o legado que deixaram, o testemunho que passaram às seguintes gerações. Aqueles que conviveram com eles(elas) certamente perceberam o testemunho da bondade, da largueza de coração e a sabedoria que irradiavam.
O Evangelho de hoje(21º Dom TC) pode ser uma estupenda ocasião para esquecer velhas palavras desgastadas pelo uso, pronunciadas para afirmar nosso ego ou para conseguir aprovações alheias... e substitui-las por palavras essenciais, nascidas do espírito, que saem do coração e se dirigem ao coração dos outros, fazendo ressoar neles um eco da expressão proferida por Pedro: “A quem iremos, Senhor? Tu tens palavras de vida eterna”.
Ele sente que as palavras de Jesus não são palavras vazias nem enganosas. Junto a Jesus descobriram a vida de outra maneira. Sua mensagem lhes abriu à vida eterna. Com quê poderiam substituir o Evangelho de Jesus? Onde poderiam encontrar uma Notícia melhor de Deus?
Pela primeira vez Jesus experimenta que suas palavras não tem a força desejada. No entanto, não as retira senão que reafirma mais ainda: "As palavras que vos falei são espírito e vida. Mas entre vós há alguns que não creem” (Jo 6,63). Suas palavras parecem duras mas transmitem vida, fazem viver pois contém Espírito de Deus.
Jesus não perde a paz; o fracasso não lhe inquieta. Dirigindo-se aos Doze, lhes faz a pergunta decisiva: “Vós também vos quereis ir embora?”. Não os quer reter pela força; deixa-lhes a liberdade de decidir. Seus discípulos não devem ser servos mas amigos. Se quiserem, podem voltar às suas casas.
As palavras tem um peso no anúncio e na atividade missionária de Jesus; não são neutras. Como um raio x que transpassa, as palavras proferidas por Ele iluminam os recantos mais profundos do ser humano; como um refletor em noite escura, ela reacende a esperança onde tudo já perdeu o sentido; como a chuva em terra seca, ela desperta novidades na vida, sacode as consciências adormecidas, põe em questão as atitudes de indiferença e de fechamento...
No encontro com a realidade dos pobres e excluídos, Jesus extrai palavras provocativas, previamente cinzeladas e incorporadas no seu interior, onde elas revelam dinamismo, sentido e alteridade; sua palavra brota de uma vida interior fecunda e conduz a uma vida comprometida.
A palavra de Jesus desencadeia nos ouvintes uma crise: eles têm de se decidir porque com a palavra d’Ele se dá uma divisão entre luz e trevas, vida e morte... Jesus pronunciou uma palavra que tinha peso e que colocava em crise a situação social, religiosa, política e humana da época. A crise que Jesus provoca em seus seguidores com o discurso do “Pão da vida”, arranca-os de seu horizonte limitado e estreito para elevá-los a um horizonte amplo, próprio de Deus. Suas palavras jamais deixam as coisas como estão. Elas não se limitam a transmitir uma mensagem; elas tem uma força operativa, desencadeiam um movimento, provocam uma mudança...
O mundo está repleto de “papos” vazios, confissões fáceis, palavras ocas, cumprimentos sem sentido, louvores desbotados e confidências tediosas, palavras enfeitadas e vazias, sem alma, nem paixão. Vivemos cercados de “palavras vãs”, condenados a uma civilização que teme o silêncio (há demasiado ruído em nós e em torno a nós). Fala-se muito para dizer bem pouco. Às vezes temos a sensação de que as palavras nos saturam: nas aulas, na televisão, nos jornais, nas liturgias, na Internet... há demasiado palavrório. Carecemos de poesia.
Sem dúvida, em nossa sociedade pós-moderna, a palavra cada vez tem menos relevância, cada vez é menos significativa. Atrofiamos as palavras, adocicamo-las, manipulamo-las ou as submetemos a um violento esvaziamento de significados segundo nossa conveniência.
Vivemos hoje uma “crise gramatical”, ou seja, temos cada vez menos palavras. O leque de palavras carregadas de sentido é muito limitado. Daí a dificuldade de encontrar palavras para nomear a experiência de Deus, para expressar as grandes questões da vida, para dar sentido a uma busca existencial.
Vivemos tempos de “fratura da palavra” e, portanto, “fratura de sentido”. E a raiz disso tudo está na carência de uma interioridade, lugar da gestão das palavras de sabedoria que inspiram nossa vida.
As palavras perdem força e criatividade quando não nascem do silêncio. Quem sabe articular silêncio e palavra é um verdadeiro artífice da vida.
Texto bíblico: Jo 6, 60-69
Na oração: diante de Deus, fazer o seguinte exercício: imaginar que vão ser apagadas todas as palavras de nosso vocabulário, exceto três que é preciso escolher para expressar-se e andar pela vida. Tem que ser palavras essenciais para cada um, e que é preciso elegê-las com calma, sem forçar nada, experimentando uma depois de outra até encontrar aquelas que melhor expressarão a própria experiência pessoal, de fé, de relação...
Observar como se sente ao pronunciá-las diante das pessoas com as quais vai se encontrando e imaginar o que lhe diria Jesus se você as dissesse a Ele.
Cave palavras nas minas do seu silêncio, e deixe que o Espírito diga a “palavra” misteriosa, diferente, reveladora de sua verdadeira identidade. Somente o silêncio poderá gerar “palavras de vida”.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
Diretor do Centro de Espiritualidade Inaciana - CEI
“Maria levantou-se e dirigiu-se apressadamente...”
Quando Deus entra e atua na história das pessoas, move-as para irem “apressadamente” ao encontro dos outros, para serví-los nas suas necessidades, para comunicar a alegria pela salvação recebida, e para alegrar-se com os outros pelas graças que elas receberam.
Com a expressão “apressadamente” Lucas quer sublinhar a atitude interior de fé e de prontidão de Maria.
Sua “pressa” não nasce da ansiedade que não encontra repouso nem pode descansar no presente, mas é a expressão de mobilidade e de um amor serviçal que busca ser eficaz.
Sua “pressa” está dinamizada pelo fervor interior, pela alegria e, sobretudo, pela fé. Quem foi “agraciada” por Deus não fica só contemplando as maravilhas que Deus realizou nela, mas sai para proclamá-las. Quem tem consigo o Sal-vador não o pode guardar só para si.
Maria foi “assunta ao céu” porque “levantou-se apressadamente” em direção ao serviço; ela foi “assunta” porque assumiu tudo o que é humano, porque “desceu” e se comprometeu com a história dos pequenos e marginalizados. Por isso, Deus a engrandeceu plenamente.
Realiza-se em Maria a situação final prometi-da a toda humanidade: “ser um dia de Deus e para Deus”; Maria o é desde o início (imacu-lada) até o final (assunção), através de uma fidelidade servidora de toda sua vida.
Em Maria resplandece o projeto divino sobre a criatura humana: a dignidade do ser humano aparece plenamente iluminada neste destino supremo já realizado na Virgem Maria. Ela deixou-se envolver pelo Espírito – assumida e transformada – no seio da Trindade Vida.
A Assunção não é um privilégio excepcional de Maria, mas a imagem de nosso próprio destino. Crer na Assunção alimenta a esperança; por isso Maria é o ícone da esperança. Como disse Pio XII ao proclamar o dogma da Assunção: “o essencial da mensagem é reavivar a espe-rança na própria ressurreição”, ou seja, em sermos assumidos inteiramente no seio do Mistério original de toda vida. Por isso, a festa da Assunção é nossa festa, pois fala de uma fidelidade duradoura, de um além que se faz sempre mais próximo e presente, de uma vida ainda a caminho da plenitude; enfim, ante-cipação do destino último de nossa vida.
Nesse sentido, o cântico de Maria é um resumo de todas as esperanças de Israel e, ao mesmo tempo, uma expressão condensada da fé, da esperança e do amor da Igreja, o novo Povo de Deus.
Maria canta agora a realização das esperas e das esperanças, cantadas nas horas de júbilo e nas horas de pranto, pelo povo de Israel. A esperança se realiza no encontro, que impele a sair, a caminhar, a ir ao encontro, narrar aos outros o fogo que se acendeu por dentro. As promessas do Magnificat não são uma utopia nebulosa. Elas estão fundamentadas na esperança-certeza da fidelidade amorosa de Deus.
A esperança é caminho e meta, posse e dom, destino e encontro, antecipação e cumprimento, expectativa e busca, risco e certeza, ousadia e liberdade. A esperança é brasa, é pés; o ser humano-esperança é o peregrino que caminha, é o artífice que tece o seu próprio existir.
“O coração do cristão é inquieto, está sempre em busca, em espera: esta é a esperança...
porque a esperança é aquela que faz caminhar, faz abrir estradas...” (Massimo Cacciari)
O ser humano que espera não tem certeza, não fica seguro, não está satisfeito. Mas a esperança tem fun-damento; não é uma ilusão e nem uma utopia; não é um sonho impossível e nem uma lembrança irre-cuperável; não é só futuro, mas permanece, disfarçadamente, presente; não é uma morada, mas um senti-mento sempre inédito. Não há esperança na solidão das próprias seguranças e das próprias expectativas.
Poderíamos acrescentar que uma humanidade, incapaz de cultivar a esperança, não merece ser olhada, porque lhe faltaria a única razão pela qual vale a pena existir. Sem a esperança, a humanidade perde a iniciativa. Embota-se. A esperança é o canto que desperta coragem frente os corredores escuros da história.
A vida sem desafios não é real; mas a vida sem espera, sem desejo, sem paixão, sem esperança, não é vida.
A esperança mora onde a deixamos entrar: onde lutamos, onde convivemos com o outro diferente de nós, onde a fragilidade e a transição podem desorientar, onde as trevas parecem mais fortes que a luz, onde a vida parece ser ameaçada pela morte, onde a violência pensa levar vantagem, onde o caminho é íngreme, onde a espera se confunde com a angústia...
Mas não basta ter esperança. É preciso ser esperança. O ser humano vive de esperança, acredita na espe-rança, mas, sobretudo é esperança. A esperança leva a querer algo mais. É “antecipação criadora”; ela tem “rosto novo”. É madrugada e não crepúsculo. Jamais “envelhece”. É o futuro que ainda pode ser con-vertido em história nova.
É Assunção: vida plena antecipada. Celebrar o mistério da Assunção de Maria é também um convite a viver nessa dinâmica do compromisso e não da resignação, da esperança solidária e não da “espera passiva”.
Este mistério celebrado por toda a Igreja é um mistério profundamente enraizado no coração do ser humano, que quer viver sempre, permanecer, ser imortal. Por isso somos convidados a continuar nesse “deslocamento” contínuo a serviço da vida. Assunção é missão.
Texto bíblico: Lc. 1,39-56
Na oração: Quem ocupa o centro da cena, do começo ao fim, é a figura de Maria. Nela devem concentrar-se, portanto, nosso “olhar, escutar, observar”.
Nenhum outro texto nos revela de maneira tão densa e tão profunda a vida interior de Maria, os pensamentos e os sentimentos que invadem sua alma, a consciência de sua missão, sua fé e sua esperança, sua experiência de Deus, enfim.
Contra uma concepção cada vez mais “econômica” do mundo, contra o triunfo do possuir, do ter, da escravidão das coisas, o Magnificat exalta a alegria do partilhar, do perder para encontrar, do acolher, do admirar, da felicidade da gratuidade, da contemplação, da doação.
O ser humano, e todo o seu ser, transforma-se então em louvor de Deus. O Magnificat, é o canto das escolhas caprichosas de Deus, que tem um“fraco” pelos pobres, por todos os infelizes e os oprimidos; poder e riqueza não gozam de nenhum prestígio aos seus olhos.
* Rezar as “marcas salvíficas” de Deus na própria história pessoal. Não podemos esquecer o que Deus fez ao longo da história da salvação e o que fez particularmente por nós na história de nossa vida.
* Quê esperanças carrego em meu interior?
Pe. Adroaldo Palaoro sj
Diretor do Centro de Espiritualidade Inaciana - CE
“Eu sou o pão vivo descido do céu. Quem comer deste pão viverá eternamente” (Jo 6,51)
Com esta afirmação lapidar, Jesus está se manifestando como o Enviado de Deus; mas não usa como sinal o legado poderoso, os atributos régios, os resplendores, as armas, os tronos, as vestes nobres: usa como sinal o pão, ou seja, vida que se desfaz em favor dos outros. Vida expansiva para que outros vivam.
Jesus compreendeu-se a si mesmo no pão, compreendeu-se no vinho, ou seja, ser para os outros alimento e alegria. Grãos e espigas moídos para alimentar; uvas pisadas para expelir o saboroso vinho. Jesus é reconhecido no pão que “desce” e desaparece nos outros, dissolvendo-se no mais íntimo de cada um, despertando alento, dando calor, força e sentido a partir de dentro.
Jesus Cristo, ao fazer-se pão, acolheu tudo quanto é humano e desta maneira tudo redimiu. Em sua humanidade, Ele alimentou e saciou nossas carências mais profundas; ao mesmo tempo, ativou e despertou outras grandes “fomes”: comunhão, compaixão, solidariedade...
Com estas duas palavras, “descer” e “subir”, o Evangelho de João descreve o mistério da Redenção realizada por Jesus Cristo. Se com Jesus quisermos subir ao Pai, temos primeiro que descer com Ele à terra, afundar os pés na nossa própria condição humana.
Todo aquele que pensa que para aproximar-se de Deus tem que se afastar do humano, deforma a própria imagem de Deus, que em Jesus “desce”, faz-se pão para alimentar e humanizar a todos. O caminho para aproximar-se de Deus é o caminho que Deus fez para aproximar-se do ser humano: “humanizar-se”. Não há outro caminho. Esse caminho nos dá medo, porque nossos instintos de “eudeusamento” são mais fortes que a simplicidade própria do humano. E a humanidade de Jesus nos assusta porque des-vela tudo o que há de mais desumano em nós e nas nossas relações.
Nós “subimos” a Deus quando “descemos” à nossa humanidade. Este é o caminho da liberdade, este é o caminho do amor e da humildade, da mansidão e da misericórdia; é o caminho de Jesus também para nós.
O coração, a quem não é estranho nada do que é “humano”, alarga-se, enche-se do amor de Deus, que transforma todo o humano. O caminho da humildade é o caminho da transformação.
Ao fazer, junto com Jesus Cristo, o caminho da “descida”, o ser humano vai ao encontro de sua realidade e coloca-se diante de Deus para que Ele transforme em amor tudo quanto existe nele, para que ele seja totalmente perpassado pelo Espírito de Deus.
“Descer” e “subir”, portanto, são imagens para descrever o processo de transformação realizado por Jesus no interior de cada um de nós. Não podemos “subir” se não estivermos dispostos a “descer” com Ele ao nosso “húmus”, às nossas sombras, à condição terrena, ao inconsciente, à nossa fraqueza humana.
Jesus curava e ensinava, alimentava (partilhava os pães) e anunciava a chegada do Reino (paz plena, vida partilhada), fazendo-se “alimento” para os outros. Esta é a verdade, a revelação emocionante, a grande novidade deste evangelho de João, que recolhe o que há de mais profundo da mensagem e da vida de Jesus: para dar alimento é preciso fazer-se alimento.
Jesus não só ensina e dá o alimento, mas Ele mesmo “desce” e se converte em alimento. Esta é a sua novidade “teológica”, sua novidade humana, a verdade mais profunda da Eucaristia: compartilhando o pão de Jesus (em memoria de sua vida e de sua morte), seus discípulos descobrem que Jesus mesmo é alimento e que eles devem se fazer alimento uns para os outros.
Jesus Homem se faz “pão”, humanidade convertida em alimento para os outros. A Vida Eterna não se revela num gesto de pura interioridade, mas no encontro e comunhão de uns com outros... Quem crê nos demais, quem compartilha com eles a vida (fazendo-se eucaristia) tem a vida eterna, porque Deus é Comunhão de Vida e porque Jesus é a revelação mais alta desse Deus entre nós.
Nesse contexto é preciso dizer que o verdadeiro alimento é a vida mesma do ser humano: Jesus se fez alimento para os outros, saciou a fome de justiça e amor. Ele é o alimento que gera vida nova no mundo, vida oferecida e compartilhada. Um alimento “subversivo” porque subverte a tradicional “ordem” das coisas. “Eu sou o pão da vida”. Antes de partir o pão, Jesus parte-se a si mesmo, faz-se alimento. Toda sua vida foi entrega. Sua vida inteira dá significado ao partir, compartilhar e repartir o pão da vida.
Porque Jesus é “pão descido do céu” e porque compartilhamos sua vida, também nós podemos e devemos “descer” e sermos comunhão de vida. Neste sentido, todos somos pão de Eucaristia. Cada ser humano é “pão vivo, descido do céu” para outro ser humano; cada homem, cada mulher é revelação de Deus, pão de vida eterna para os outros. Por viver neste nível, por entregar-se e compartilhar a vida neste plano, os homens e mulheres “não morrem”, tem vida eterna.
E é isso que, no nível mais profundo, somos todos. Todos somos Vida, todos somos “pão de vida”. Somos pão quando alimentamos o outro na esperança, no perdão, na acolhida, na compaixão, no compromisso... Sim, podemos multiplicar o pão da festa, da alegria, o pão da justiça, o pão da ajuda fraterna... Quanto pão para ser dividido! “Tornar-nos pão” significa “descer” em nossa própria condição humana para expandi-la em atitudes de serviço, partilha, solidariedade...
Ser “pão para a vida” é confessar que ser seguidor de Jesus é ser-para-os-demais, é comprometer-se a ser fermento de unidade, de amor, de paz, é consumir-se para que outros vivam. Se nossa participação no “pão da mesa” não colocar em questão nossos egoísmos, nossos preconceitos, nossas rivalidades, nossos complexos de superioridade..., não tem nada a ver com o que Jesus quis expressar com o “discurso do Pão da Vida”.
Aproximar-nos do Pão da Vida para sermos “pão de vida” constitui-se como o momento mais “subversivo” que podemos imaginar: fazemos memória do que Jesus foi durante sua vida (pão para os outros) e nos comprometemos a viver como Ele viveu (“fazer-se pão para os outros”).
Ao comer o pão e beber o vinho “fazendo memória”, estamos prolongando um “estilo de vida”, fundamentado no modo de viver de Jesus. O que quer dizer é que fazemos nossa Sua vida e nos comprometemos a nos identificar com o que foi e fez Jesus. Tomar o pão e o vinho da Eucaristia é fazer memória de uma presença que nos compromete.
Texto bíblico: Jo. 6,41-51
Na oração: Ser pão em Cristo: os ingredientes de minha massa. Ao “amassar” a minha vida para querer ser pão... de quê sou feito?
A farinha é o que dá consistência e firmeza ao pão, brindando-o com diferentes formas e estruturas. Minha farinha é aquilo sobre a qual me sustento. É essa voz, no mais íntimo de mim mesmo, que me confirma: “sou eu”. É tudo aquilo sobre a qual posso deter-me sabendo que se trata de terra firme onde colocar-me de pé e levantar-me. É minha palavra, aquela que me pronuncia. É feita de meus valores, minhas crenças, minhas certezas; é o que creio sobre Deus, sobre o mundo, sobre minha identidade; é aquilo que assumo como bandeira de minha existência, aquilo que me faz seguro, confiável, sólido; é aquilo que permanece, atravessando a passagem do tempo e o embate de diferentes tormentas em minha vida.
A farinha é também aquilo que creio sobre mim mesmo, minhas firmezas, minhas convicções: é a imagem que tenho de mim, através de minhas circunstâncias ricas e frágeis, e que constitui minha verdadeira identidade.
Rezar a “farinha” de minha existência.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
Diretor do Centro de Espiritualidade Inaciana - CEI
“Esforçai-vos não pelo alimento que se perde, mas pelo alimento que permanece até a vida eterna e que o Filho do homem vos dará” (Jo 6,27)
Com o evangelho de hoje iniciamos a reflexão sobre o Discurso do Pão da Vida, que se prolongará durante os próximos domingos. Depois da multiplicação dos pães, o povo foi atrás de Jesus; tinha visto o milagre, comeu com fartura e queria mais! Procurou o milagroso e não buscou o sinal e o apelo de Deus que nele se escondia.. Quando o povo encontrou Jesus em Cafarnaum, teve com ele uma longa conversa, chamada Discurso do Pão da Vida, um conjunto de sete pequenos diálogos que explicam o significado da multiplicação dos pães como símbolo do novo Êxodo e da Ceia Eucarística.
O povo viu o que aconteceu, mas não chegou a entendê-lo como um sinal de algo mais alto ou mais profundo. Buscou pão e vida mas parou na superfície: a fartura de comida. No entender do povo, Jesus fez o que Moisés tinha feito no passado: deu alimento farto para todos no deserto.
Indo atrás de Jesus, eles queriam que o passado se repetisse. Mas Jesus pede que o povo dê um passo adiante. Além do trabalho pelo pão que perece, deve trabalhar também pelo alimento não perecível. Este novo alimento será dado pelo Filho do Homem; Ele traz avida que dura para sempre. Ele abre para todos um novo horizonte sobre o sentido da vida e sobre Deus.
Com frequência, a existência humana parece uma corrida em busca daquilo que nos sacia de um modo definitivo. Nesta corrida, entram elementos que nos são familiares: necessidade, ansiedade, vazio, busca, insatisfação... Todos eles, à primeira vista, remetem à percepção de nós mesmos como seres carentes. Seria, pois, essa carência aquela que desencadearia todo o processo de busca.
De fato, o ser humano é um ser insaciável, insatisfeito... vive eternamente buscando, muitas vezes sem saber o quê. Em contato com o seu interior, sente a necessidade de preenchê-lo a qualquer preço; na maioria das vezes, preenche-o com “coisas”: busca de poder, posses, prestígio, pão que se perde... e sente-se frustrado, porque nada lhe satisfaz. Só o Pão vivo pode preencher seu interior.
- “Mas a fome de Deus que eu levo comigo não conhece descanso: ela é exigente! Então eu sigo...
Ela é tremenda e persistente! Então eu sigo... cada vez mais para frente!
Ela é constante e forte! Então eu sigo... Até à morte” (C. de M. Doherty).
Todo ser humano é aventureiro por essência; com ardor, ele anseia por uma causa última pela qual viver, um valor supremo que unifique a multiplicidade caótica de suas vivências e experiências, um projeto que mereça sua entrega radical. Para dar sentido à sua vida e realizar-se como pessoa, o ser humano necessita da auto-transcendência, isto é, viver para além de si mesmo, de seus impulsos, caprichos, desejos...
Carrega dentro de si a fome do infinito, a criatividade, a capacidade de romper fronteiras, os sonhos, a luz.
Portador de uma força que o arrasta para algo maior que ele... não se limita ao próprio mundo; traz uma aspiração profunda de ser pleno, de realização, de busca do “mais”...
Ele é desafiado a deixar a superfície banal e navegar águas profundas da sua própria existência.
A conversa de Jesus com o povo, com os judeus e com os discípulos é um diálogo bonito, mas exigente. Jesus procura abrir os olhos das pessoas para que aprendam a ler os acontecimentos e descubram neles o rumo que deve tomar na vida. Pois não basta ir atrás de sinais milagrosos que multiplicam o pão para saciar uma carência corporal. Não só de pão vive o ser humano.
O empenho em favor da vida sem uma mística não alcança a raiz.
Enquanto vai conversando com Jesus, as pessoas vão ficando cada vez mais contrariadas com as palavras dele. Mas Jesus não cede, nem muda as exigências. O discurso parece um funil. Na medida em que a conversa avança, é cada vez menos gente que sobra para ficar com Jesus. No fim só sobram os doze, e nem assim Jesus pode confiar em todos eles!
É quase sempre assim: quando o evangelho começa a exigir compromisso, muita gente se afasta.
Jesus, com sua presença e seus ensinamentos, desperta outras “fomes”: transcendência, novas relações, horizontes abertos, mundo da partilha...
O discurso do Pão da Vida desvela esta realidade: o ser humano é surpreendente, inesperado, impre-visível... é pulsação original, é interpelação inquietante; é existência peregrina, é uma mina de significados e riquezas. Ele é seduzido pela liberdade que lhe escancara horizontes novos e lhe abre mares desafiantes. Ele é “espaço à vida aberta”. Há nele algo maior que o leva a ser mais verdadeiro, mais justo, mais criativo, mais arrojado, mais responsável.
Ele é chamado a superar medos, a escolher rumo construtivo, a definir sua identidade pessoal e a optar por causas humanas que o fazem transcender.
O ser humano pode transcender-se, ir além de si mesmo... E transcender não significa fugir da própria realidade, mas mergulhar na própria condição humana; “transcender é humanizar-se”.
O impulso de “ir além” é talvez o desafio mais secreto e escondido no ser humano. Ele se recusa a aceitar a realidade na qual está mergulhado porque se sente maior do que tudo o que o cerca.
Com seu pensamento, desejo e sonho, ele habita as estrelas e rompe todos os espaços.
Numa palavra, o ser humano é um projeto infinito; tem sentido de transcendência, projeta-se em muitas direções. Ele tem fome e sede de amplos horizontes.
“Entrar” no caminho de Cristo é viver em “terra de andanças”.
O discurso de Jesus toca naquilo que é mais humano em nós: mundo dos desejos, dos sonhos, as grandes intuições... Tal apelo vem ao encontro deste dinamismo humano para potencializá-lo e abrir uma nova perspectiva: aquela centrada na pessoa e no projeto de Jesus Cristo.
Desejamos, com intensidade, com fome, com paixão, com alegria e júbilo... Somos capazes de desejar com a urgência das crianças, com a impertinência dos adolescentes, com a intensidade dos jovens, com a perspectiva dos adultos e com a sabedoria dos anciãos. Desejamos porque estamos vivos e porque somos capazes de imaginar e sonhar: mundos melhores, vidas melhores, relações melhores...
O desejo é também um dos pilares nos quais se sustenta a fé. Crer é desejar.
O desejo nos ajuda a elevar o olhar para além do imediato; podemos sair do cotidiano, do mais prosaico, e lançar a vista e o coração ao que é possível mas que ainda não está presente. Se caminharmos com olhar fixo somente no imediato, no hoje, no aqui e agora, então nos faltará perspectiva para dirigir nossos passos para algum lugar que valha a pena.
Os homens e as mulheres de todos os tempos e lugares trazem, como que enraizados nas fendas mais profundas de sua alma, sonhos de rara beleza. São desejos de convivialidade, de superação da dor e da solidão, sonhos de fraternidade e harmonia... Era certamente nessa direção que Jesus apontava ao falar do Pão da Vida, como o mundo das esperanças e possibilidades. “Um outro mundo é possível”.
É preciso forte dose de ousadia e coragem para transcender-se, ir além de si mesmo...
Texto bíblico: Jo 6,24-35
Na oração:
* deixe-se conduzir pela “fome e sede” de Deus que está enraizada em seu coração;
* faça o possível para estimular esta fome, entregando-se a ela;
* esteja certo de que esta “inquietação” tem sua resposta no Amor de Deus, presente na Criação;
* Quê desejas, pensando a longo prazo?
* A quê aspiras na vida e nas relações de hoje?
Pe. Adroaldo Palaoro sj
Diretor do Centro de Espiritualidade Inaciana - CEI
“Jesus foi para o outro lado do mar da Galileia, também chamado de Tiberíades” (Jo 6,1)
O Evangelho de hoje nos traz esta revelação: não podemos resolver as coisas a partir desta margem, se não vemos as coisas também a partir da outra, sem arriscar-nos a fazer a travessia em direção a terras novas, ao encontro de outros povos e culturas, para aprender e compartilhar com eles a missão em favor da vida.
Frente àqueles que queriam fechar-se no interior da comunidade, João insiste que o evangelho devia expandir-se numa marcha arriscada de entrega criadora, descobrindo comunidades e formas de vida novas, para recrear, a partir delas, o Evangelho.
Afinal, Jesus desencadeou um “movimento” e o Evangelho não é para os que estão “sentados”, acomodados, como quem maneja o televisor com o comando à distância; não é o Evangelho para os que “esperam” a que outros “venham”, mas Evangelho para “fazer estrada”, viver em atitude de “saída” para buscar, sair ao “encontro”... É o Evangelho para velejadores ousados e que se sentem inspirados a “fazer a travessia”. Para proclamar o Evangelho é preciso sair dos lugares conhecidos, estreitos e rotineiros... e abrir-se às surpresas dos “lugares novos”.
“Passar para a outra margem”: esta deve ser a expressão chave que nos mobiliza e dá sentido ao nosso seguimento de Jesus. São muitos os que querem que a Igreja continue fechada em seu legalismo-moralismo-ritualismo, apesar do movimento ativado pelo Vaticano II e apesar dos insistentes apelos do Papa Francisco. Muitos querem que o cofre do Evangelho se conserve onde sempre esteve, sob sete chaves... Mas Jesus nos diz de novo e com veemência: “ide para a outra margem”. Ele nos convida e nos anima a ir “mais além” do conhecido e do trilhado, para o “outro lado”.
Como humanos tendemos a nos instalar, acomodando-nos naquilo que conseguimos. Facilmente nos acostumamos ao conhecido e nos deixamos embalar pela rotina que evita sobressaltos e nos confere uma certa sensação de segurança e conforto. E isto ocorre também com nossas ideias, crenças, atitudes, visões... Acostumados a ver a realidade a partir de uma determinada perspectiva, nos custa abrir-nos a outros ângulos novos ou desconhecidos.
Preferimos, quase sem nos dar conta, permanecer instalados “na margem” conhecida, habitual, costumeira. É a preferida de nossa mente e de nossa sensibilidade, pela simples razão de nos ser familiar e nos trazer tranquilidade. Trata-se de uma atitude em princípio compreensível, mas comporta um risco importante: ficar reduzidos a uma visão estreita e afogados em uma vida “normótica”, uma vez que nos fechamos a qualquer possível saída..., sobretudo quando atingimos um “bem-estar” que se prolonga.
Dizem que, ao pintar uma paisagem, os artistas a olham dobrando-se e pondo a cabeça entre as pernas abertas, por mais incômodo que seja a postura, porque assim se libertam da visão “oficial” do conjunto que todos vêem quando estão de pé, e descobrem novos ângulos, perspectivas não usuais e a surpresa do novo no molde antigo.
Isto acaba sendo a maneira de ver as coisas por outra perspectiva. É o segredo da arte, da vida e das decisões bem tomadas. Um enfoque novo sempre proporciona um ponto de referência melhor para uma avaliação independente, seja de linhas e cores, seja de opções e atitudes de vida.
Um ponto de vista novo, limpo e original é uma grande ajuda para uma sadia vivência do Evangelho.
Jesus, no Evangelho de hoje(17º Dom TC), convida os seus discípulos a saírem de seus lugares para ver as coisas a partir de um novo ângulo: o ângulo dos marginalizados. A mudança de perspectiva possibilita um novo olhar e abre caminho para perceber outros aspectos que a “visão acostumada” não capta.
A “outra margem” é a novidade do presente, a descoberta incessante, a amplitude sem limites. Mas só podemos começar a cruzá-la se estivermos dispostos a deixar nossos rotineiros pontos de vista e nossos caminhos trilhados, e nos entregar com docilidade à Vida – outro nome de nosso “mestre interior” -, para que ative em nós a coragem e a ousadia de abrir-nos ao diferente.
Na realidade, quando tudo na vida se torna fácil, é mais provável que nos instalemos em nossas seguranças. Somente quando nossa vida é sacudida e colocada em crise é que conectamos com outro anseio mais profundo. Tal anseio podemos considerá-lo também como a voz de nosso “mestre interior” que nos dá paz, mas que não nos deixa em paz. Se não o afogamos com compensações nem o calamos com nosso ruído, escutaremos sua voz que nos anima a cruzar a “outra margem”. Por isso, ao escutar estas palavras de Jesus, é provável que reconheçamos o “eco” que produzem em nosso interior, e que o convite a “sair” se torne familiar.
Se lemos os Evangelhos com um pouco mais de atenção veremos que Jesus está continuamente “passando para a outra margem” e convidando os seus seguidores a fazerem o mesmo. Isto nos move a pensar que esta travessia não é apenas geográfica, não se trata de voltar ao lugar de onde saiu. Tem que haver algo mais profundo, ao menos um impulso à não instalação. Nenhuma margem pode converter-se em lugar de parada, todas são lugares de passagem.
Com Jesus estamos continuamente passando para outra margem, fazendo contínuas travessias em direção ao outro, não permanecendo fechados em nós mesmo; passar em direção ao outro como passagem necessária para passar em direção a Deus. Aquele que se instala, se perde. Temos de buscar sempre novos horizontes. Qualquer conquista obtida graças a Jesus é só um prelúdio, o vislumbre de uma conquista que não perece, e que só se consegue quando nos desapegamos das conquistas parciais.
Texto bíblico: Jo 6,1-15
Na oração: Se somos seguidores de Jesus não deveríamos mais falar de “marginalizados”, pois essa linguagem indica que nos situamos no centro, “perto” de Deus e colocamos os outros distantes de nós e “longe” de Deus. Não se trata de buscar o outro entre os marginalizados, mas de deslocar-nos para a margem e colocar o outro no centro. Tal como Jesus, somos chamados a nos “fazer margem” para deixar-nos afetar e aprender com o outro que está do “outro lado”. O seguimento de Jesus é questão de deslocamento: em qual margem me situo? Aquela do centro, conhecida, que me dá segurança...? Ou aquela do diferente?
Pe. Adroaldo Palaoro sj
Diretor do Centro de Espiritualidade Inaciana
“Ao desembarcar, Jesus viu uma numerosa multidão e teve compaixão,
porque eram como ovelhas sem pastor” (Mc 6,34)
Mais uma vez, Jesus e seus discípulos fazem a “travessia” pelo mar, em direção à “outra margem”; a multidão sai caminhando ansiosamente por terra e os alcança. Jesus é ponto de confluência de todas as fomes, carências e desesperos. É o povo pobre das pequenas aldeias que está sofrendo grandes injustiças e muita violência. Não é gente das cidades importantes. Diz o texto de Marcos que saíram “de todos os povoados” e foram “correndo”, com pressa, com expectativa e esperança, ansiosos por encontrar-se com Jesus. A cena acontece em um “lugar despovoado”, afastado da vida cotidiana organizada segundo o pensamento da sinagoga e a lógica dominadora do império romano.
Ao ver a multidão, Jesus se comove até as entranhas, porque “eram como ovelhas sem pastor”. Como em outras passagens do Evangelho, Jesus muda o plano de descanso desse dia para acolher a dor que surge de repente em seu caminho. Contempla as pessoas, e em sua maneira de se aproximar do povo está já encarnado em gestos, palavras e olhares, o Reino que anuncia.
Movido por sua compaixão, Jesus “começou a ensinar-lhes muitas coisas”. Sem pressas, se dedica pacientemente a ensinar-lhes a Boa Notícia de Deus e o projeto humanizador do Reino. Não o faz por obrigação; não pensa em si mesmo; comunica-lhes a Palavra de Deus, comovido pela necessidade que as pessoas tem de um pastor.
Jesus não vive olhando para o céu, mas tem os olhos bem fixos na terra, na humanidade sofredora. Por isso, nada lhe escapa, observa tudo. Seu olhar não é neutro: deixa-se afetar por tudo e por todos. E a realidade sofrida tem forte impacto em seu interior, comovendo-o.
Os discípulos precisam aprender de Jesus como devem tratar as pessoas; nas comunidades cristãs é preciso recordar como era Jesus com essas pessoas perdidas no anonimato, das quais ninguém se preocupa.
A primeira coisa que o evangelista Marcos destaca é o olhar de Jesus. Não se irrita porque interromperam seus planos; olha a multidão tranquilamente e se comove. As pessoas nunca lhe molestam. Seu coração intui a desorientação e o abandono em que se encontram, como camponeses daquelas aldeias.
“A fé não só olha a Jesus, senão que olha a humanidade a partir do ponto de vista de Jesus, ou seja, com seus olhos: é uma participação em seu modo de olhar” (Lumen Fidei, n. 18).
Jesus nos convida, no Evangelho de hoje(16º Dom TC), a fazer um exercício especial da visão. Destravar nosso olhar focado em nós mesmos, em nossos interesses e apegos, para expandi-lo em direção aos outros.
Todos os Evangelhos estão perpassados, de ponta a ponta, por um olhar. O olhar de Jesus que chama, conhece, cativa, derrama ternura e misericórdia, que vela, que se antecipa, que revela, que denuncia, que confirma e, também, que restaura. Olhar que o move a um compromisso libertador.
O olhar de Jesus ativa a identidade das pessoas. Olha de uma forma única e singular a cada uma, e nesse olhar desvela quem ela é e ilumina o sentido de sua existência. O olhar de Jesus lança para frente, desperta a confiança, descarrega o peso da culpabilidade e “dá asas” à vida. Por essa razão seu olhar eleva e dignifica o outro, nunca o deixa no mesmo lugar, não só o coloca de pé, mas sempre o leva para mais além...
O olhar de Jesus é reflexo e prolongamento do olhar do Pai; Ele se fixa sobretudo nas pessoas concretas, mas com particular atenção aos mais pobres e necessitados, os quais eram invisíveis para a sociedade de seu tempo: os enfermos, as viúvas, as crianças, o estrangeiro...
Olhar a partir de Jesus, olhar como Jesus, olhar a partir dos olhos daqueles que sofrem... É um convite a iluminar nosso olhar, às vezes muito apagado pela mediocridade de nossa vida; outras vezes opaco pela falta de esperança em nossa capacidade de levar adiante a missão que Jesus nos confia.
O olhar de Jesus atinge o mais profundo de todos nós e transforma nosso coração; e nosso olhar cristificado nos leva mais além de nossos pré-juizos, nos conduz a um mundo novo de possibilidades inéditas, descobre e revela o melhor de cada um de nós.
Jesus insiste: quem não está alerta, quem não abre bem os olhos, quem não afina a vista, o mistério divino lhe ficará oculto. No descobrir, no “olhar” as pessoas às quais costumamos excluir de nosso campo visual cotidiano, começa o vislumbre, a visibilidade de Deus entre nós... É aí onde encontraremos suas pegadas.
A mística cristã é uma mística de olhos dolorosamente abertos. Temos de aguçar a visão para sermos capazes de contemplar a Vida de Jesus entrelaçada com a história do sofrimento das pessoas. Na Igreja precisamos aprender a olhar as pessoas como Jesus as olhava: captando o sofrimento, a solidão, o desconcerto ou o abandono que muitos sofrem. Somente este olhar solidário é que ativará a compaixão. Esta não brota da atenção às normas, à doutrina ou a atenção às nossas obrigações. Ela se desperta em nós quando olhamos atentamente aqueles que sofrem e são excluídos.
Expressão de fraternidade e vivida como serviço, a compaixão é a capacidade de situar-se no lugar do outro, de sentir e sofrer com ele. Comporta um “estremecimento” frente o sofrimento alheio e se traduz numa ajuda eficaz.
A compaixão é provavelmente o máximo grau de maturidade humana. Trata-se de uma das atitudes mais genuinamente humanas; não é casual que ocupe o lugar mais destacado nas grandes tradições espirituais. No budismo, especialmente, afirma-se que, enquanto alguém não seja capaz de pôr-se no lugar dos outros, não poderá alcançar a iluminação.
Mas, o que favorece o emergir da compaixão? de onde ela nasce? O sentimento de compaixão se vê favorecido pela experiência da nossa própria necessidade, fragilidade ou vulnerabilidade. Sem dúvida, ao apalpar a nossa própria limitação, nos “reconciliamos” com nossa humanidade, nos fazemos mais “humanos”. E, a partir daí, pode crescer a capacidade de ativar a empatia para com o outro, particularmente quando se encontra em situação de necessidade e precariedade.
Neste sentido, pode-se dizer que a experiência e a acolhida da própria fragilidade nos humaniza, nos “suaviza” e nos sensibiliza diante da dor alheia. A partir daí, a compaixão pode abrir caminho. Além disso, o encontro com a compaixão de Jesus desperta a compaixão presente em nosso interior, mas abafada pelas preocupações e interesses do nosso ego.
A compaixão requer uma sensibilidade limpa e um afeto livre. Para poder “vibrar” com o outro, é necessário que nossa sensibilidade não esteja congelada nem petrificada; de outro modo, o sofrimento alheio chocaria contra nossa couraça, e seríamos incapazes de senti-lo. Por outro lado, é necessário também que tenhamos liberado nossa capacidade de amar: o bloqueio da mesma nos manteria fechados, impedindo-nos “sair” positivamente em direção à pessoa que sofre.
Texto bíblico: Mc 6,30-34
Na oração:
Senhor, faça que meus olhos sejam claros e simples,
Que meu olhar reflita teu olhar.
Que meu olhar transmita alegria, paz, confiança...
Que eu olhe a vida com assombro e descubra a beleza escondida.
Que eu olhe delicadamente o mistério de cada ser humano.
Que eu me deixe afetar pelo olhar de dor, de busca, de esperança de cada irmão.
Que Tu olhes, Senhor, com meus olhos, os meus irmãos mais necessitados.
Olha-me, Senhor, em silêncio, e faz com que teu olhar percorra toda minha vida.
Que eu volte à vida com o sorriso de Deus em meus olhos. Amém!
Pe. Adroaldo Palaoro sj
Diretor do Centro de Espiritualidade Inaciana - CEI
“Expulsavam muitos demônios e curavam numerosos doentes, ungindo-os com óleo” (Mc 6,13)
A experiência de saúde está profundamente unida ao anúncio e inauguração do Reinado de Deus. A vida saudável pede não só saúde física, mas saúde emocional, espiritual, integração social... Jesus, em sua pregação e realização do Reino, assumiu uma estratégia terapêutica que buscava fazer emergir o ser humano sadio. Com sua presença, despertava e ativava tudo o que era sadio em cada pessoa; esta era sua prioridade e não permitia que ela fosse solapada por outros interesses. Ele se interessava pela saúde como processo de crescimento da pessoa e onde há saúde o Reino faz-se presente
“Curar” e “libertar” eram atividades prioritárias na atuação de Jesus. As verdadeiras curas e milagres de Jesus eram, antes de tudo, gestos de humanização evangélica, que mostravam que o dinamismo final do Reino implicava a destruição da enfermidade e da dor. As curas eram sinais libertadores, sinais da presença e proximidade do Reino. Jesus não pregou saúde, mas gerou saúde, transformando a vulnerabilidade em possibilidade e provocando mudanças de atitudes e formas diferentes de viver.
Ao acessar o Evangelho de hoje, reconhecemos essa intuição original. O horizonte do envio dos discípulos não é outro que o de favorecer a vida. A “autoridade sobre os espíritos imundos” significa o compromisso em favor da vida e das pessoas, frente àquelas forças que tendem a travar e danificar a mesma vida. A partir desta perspectiva, a “missão” pode reencontrar seu verdadeiro sentido. Enviados em favor da Vida, os discípulos sabem muito bem qual é o encargo que Jesus lhes confia. Nunca O viram governando a ninguém; sempre O conheceram curando feridas, aliviando o sofrimento, regenerando vidas, destravando os medos, contagiando confiança em Deus.
A novidade de Jesus consiste justamente em afirmar que existe um caminho para encontrar a Deus que não passa pelo Templo. Desse modo, reconhece-se a vida como lugar privilegiado da Sua Presença. Para Jesus o mais urgente era remediar o sofrimento daqueles que careciam de uma vida digna e plena. Porque o Deus que Ele nos revelou não é o Deus que nos complica a vida com normas e leis, senão o Deus que se humanizou para humanizar nossa vida. E assim nos indicou que só quando nos fazemos mais humanos, nos fazemos mais semelhantes a Ele que, para aliviar o sofrimento humano, se comprometeu e se identificou com os que mais sofrem.
Jesus, presença visível da misericórdia e com a força da torrente que jorra para a vida eterna, “chama a todos e a cada um em particular” para que toda a nossa vida esteja exposta ao seu amor curador e a prioridade do seu Reino relativize todo o resto. Ele quer fazer de nós discípulos e discípulas, apaixonados por Ele e pelo seu Reino.
Ele se aproxima de cada um de nós para curar as nossas feridas, nos convida a ir com Ele aos lugares onde a vida está mais em perigo e a confiar na força secreta da compaixão e da esperança teimosa. Ele que no grão enterrado debaixo da terra já contempla a espiga, revela-nos as possibilidades de vida que se escondem onde parece que a morte tenha dito a última palavra. Ele é o que dá a água viva, o samaritano que cura as feridas, o vencedor da morte, o oleiro da nova Criação.
Só Ele que, ao revelar seu rosto no rosto de tantos excluídos e sofredores, é capaz de despertar o “samaritano” que todos carregamos e que permanece “adormecido” em nosso interior. Por isso, quando o Evangelho de Marcos relata o encargo missionário que Jesus comunicou aos seus discípulos, diz que Ele lhes deu “autoridade para expulsar demônios e para curar toda sorte de males e enfermidades”.
É importante salientar que não se trata de uma “autoridade doutrinal”, para afirmar verdades e condenar erros, senão que se trata de uma “autoridade terapêutica”, para curar doenças e aliviar o sofrimento humano. Jesus, submergindo-se no mar da dor, assume o infortúnio dos inocentes, dos perdedores, das vítimas; Ele experimenta que o amor é paixão.
Tudo se resume em dar vida, erradicar as dores, devolver a dignidade aos que a perderam. Jesus, o “terapeuta do Pai”, continua passando diante de cada um de nós, parando e fazendo um chamado que desperta comoção e compaixão. Sua presença provocativa e seu chamado exigente colocam em questão nosso costume de nos refugiar no mundo asséptico das doutrinas, na tranqüilidade de uma vida ordenada, satisfatória e entorpecida, na segurança de horários imutáveis e de muros de proteção, longe do rumor da vida que passa longe de nós e das lágrimas, dos gritos daqueles que sofrem e morrem nas periferias deste mundo.
Escutar e seguir Seu chamado implica abandonar a estreiteza de nossos caminhos e deixar o nosso coração bater no ritmo dos doentes e marginalizados, vítimas da desumanização de nossa sociedade. O importante não é pôr em marcha novas atividades e estratégias, senão desprender-nos de costumes, estruturas e dependências que nos estão impedindo ser livres para contagiar o essencial do Evangelho, com verdade e simplicidade.
Como evitar que a aventura, na qual um dia nos embarcamos, nascida de uma paixão pelo Senhor e pelo seu Reino, transforme-se num tedioso cumprimento de normas e costumes? Estamos, talvez, experimentando a frustração de não ter acertado na rota da busca da vida plena e transbordante na qual quisemos investir as nossas melhores energias: sentimo-nos cansados de palavras sem significado e sentimos fome de proximidade, de presença, de compromisso.
Como Igreja, temos perdido esse estilo itinerante que Jesus propõe. Seu caminhar é lento e pesado; não acertamos o passo para acompanhar a humanidade; não temos agilidade para deslocar-nos em direção à margem sofredora; agarramos ao poder e às estruturas que tiram a mobilidade; enredamos nos interesses que não coincidem com o Reinado de Deus. É preciso uma profunda conversão e voltar à essência do Evangelho: compromisso com a vida.
Não estaremos desperdiçando as nossas forças para conservar atitudes arcaicas e nos deliciamos com um estilo de vida que nos atrofia? Não chegou, talvez, o momento de deixar de repetir aquilo que fazíamos antes, e de abrir-nos àquilo que está diante de nós, à novidade que o Espírito está criando?
Felizes de nós se deixarmos afetar pela capacidade de mobilização desse Samaritano!
Texto bíblico: Mc 6,7-13
Na oração: “Abandonai o vosso mundo de realidades virtuais, sacudi a poeira das vossas sandálias; apagai os computadores nos quais conservais cuidadosamente organogramas, hábitos rotineiros, regulamentos, ativismos, visões distorcidas da realidade... e saí pelas estradas e encruzilhadas para escutar o rumor das pessoas reais e para alargar a vossa vida no contato com elas. Não eviteis as estradas perigosas, porque a novidade aparece sempre fora dos lugares seguros, protegidos e convencionais.
A vida que abraçastes é uma paixão, uma aventura, um risco, um itinerário que deve ser percorrido com os olhos e com os ouvidos abertos e no qual a única bússola que guia para a meta é a da misericórdia e a da ternura.
Deixai que o imperativo: “Vai e faze tu a mesma coisa” vos abale. Diante de vós estão abertos os grandes caminhos da adoração e da compaixão, que desembocam na “vida eterna”.
Felizes vós que escolhestes percorrê-los!”.
(cf. Dolores Aleixandre – Buscadores de poços e caminhos).
“Um profeta só não é estimado em sua pátria, entre seus parentes e familiares” (Mc 6,4)
Ao longo de nossa vida encontramos pessoas que nos “dão asas”, nos incitam a desbloquear o melhor de nós mesmos e nos sentimos melhores em sua presença. É como se diante de seus olhos pudéssemos recriar continuamente nossa vida, pois nos mostram horizontes próprios que não podíamos nem imaginar. É um imenso presente receber isto e poder também ativá-lo nos outros.
Também sabemos que pode acontecer o contrário. Nós nos acostumamos a fazer uma imagem dos outros, os classificamos e os etiquetamos: inteligentes ou incompetentes, profundos ou superficiais, simpáticos ou cansativos... e os enquadramos dentro de uma aparência que nos custa muito modificar, atrofiando nossos olhos para perceber a novidade surpreendente que pode brotar no outro.
Algo parecido experimentou Jesus com as pessoas de seu povoado. As perguntas levantadas – “como conseguiu tanta sabedoria”; “Ele não é o carpinteiro, filho de Maria...?”; “Suas irmãs não moram conosco?”... – manifestam a simplicidade e a veracidade do processo de maturação de Jesus. Seu caminho humano é tão humano que custa acreditar. É mais um entre tantos, como as pessoas comuns entre as quais convivia, sem apresentar-se nada de especial, crescendo pouco a pouco.
E Jesus não pode fazer nada em Nazaré, pois ali lhe “cortaram as asas”. Ele era muito conhecido para eles, muito comum, muito igual... O problema de fundo está em que quando uma pessoa não se ajusta àquilo que a sociedade e seus parentes e amigos esperam dela, essa pessoa cai em desgraça. A “conduta desviada” de Jesus tem um custo muito alto e acarreta enorme rejeição e sofrimento.
No texto do Evangelho de hoje, os conterrâneos de Jesus, em lugar de abrir-se à novidade que se revela diante de seus olhos, optam por recorrer a etiquetas com as quais desqualificá-lo. Desse modo, colocam em seus olhos uma espécie de filtro que os impede ver em profundidade. Jesus “admirou-se com a falta de fé deles”, ou seja, de sua incapacidade para ver mais além, de sua resistência em conectar-se com o Novo que se faz visível, da ignorância na qual decidiam permanecer instalados.
O relato de hoje está nos falando da humanidade plena de Jesus, que aparece como um entre tantos, filho de uma mulher chamada Maria, de uma família conhecida, simples carpinteiro, sem títulos e sem privilégios. Por isso é tão difícil aceitá-lo como profeta enviado de Deus. No entanto, todo o cristianismo posterior vai depender, de algum modo, desse “curriculum” de Jesus.
Ao contrário das pessoas de seu povoado, Jesus, ao longo de sua vida e, sobretudo, através de seu “ministério terapêutico”, revelou a capacidade de despertar a autoria em cada pessoa, de devolver-lhe sua dignidade, de remetê-la a si mesma, de ajudá-la a conectar-se com seu ser mais profundo para poder “abrir as asas” e voar em direção a largos horizontes. Do mesmo modo, com sua presença instigante, Ele ativava e fazia vir à tona o que de mais humano havia nas pessoas. Frente os doentes, pobres e excluídos, Jesus os desafiava a serem mais humanos, pois via neles a nobreza interior que carregam.
Hoje, Jesus continua inspirando caminhos mais humanos numa sociedade que busca somente bem-estar, afogando o espírito e matando a compaixão. Ele pode despertar o gosto por uma vida mais humana em pessoas vazias de interioridade, pobres de amor e necessitadas de esperança.
Diante de Jesus “destravador de asas”, somos também chamados a ser presença “ativadora de asas” para aqueles com os quais convivemos e nos encontramos cotidianamente, renovando a confiança nas pessoas, apostando no melhor que cada um conserva em seu coração. Às vezes é difícil viver tal atitude com aqueles que nos cercam, pois nos encanta o grande, o importante, o notável, o solene, o que impressiona e chama a atenção, o que se impõe e causa admiração...
Mas, o que é simplesmente humano, o que é comum com todos os humanos..., precisamente isso é o que tantas vezes menos valorizamos, e é isso o que mais necessitamos, pois é o que mais humaniza a vida, a convivência, a sociedade.
Somos “educados” para sermos importantes, mas não para sermos simplesmente humanos. Daí, a consequência mais perigosa que todos arrastamos. O poder nos seduz; a glória nos seduz. Queremos, a todo custo, ser importantes, destacar, ser notáveis... Tais sentimentos nos rompem por dentro e destroçam nossa própria humanidade.
Quando isso acontece, o milagre – a novidade – é impossível; só fica a rotina do sempre visto e conhecido.
O ser humano “abre suas asas” quando matura suas potencialidades, multiplica suas capacidades, extrai riqueza e criatividade das profundezas de seu ser...
Sabemos que toda pessoa se transforma a partir de seu interior. Mas é através da ação e da presença instigante do outro que ela se sente motivada a transpor obstáculos no seu cotidiano e revelar-se criativa, que sonha e faz o futuro, que apaixona-se pelo que aprende, pelo que cria e realiza.
O vínculo entre as pessoas e o sentimento de pertencer e de ser respeitado em suas potencialidades, limites e necessidades levam as pessoas a reencontrar a essência de sua condição de vida. Só seremos nós mesmos quando alguém nos descobre, nos acolhe, nos aceita... respeita nossa verdadeira identidade. O outro é a realidade que nos permite tomar consciência de nós mesmos e de nossa nobreza. A mediação do outro é muito importante para que possamos nos conhecer melhor e sentir que não estamos sozinhos nos reveses da vida.
Os seguidores de Jesus com sua presença humanizadora, são promotores de habilidades para a vida; com sua presença inspiradora, “dão asas” e despertam nas pessoas as potencialidades do humano que habitam em cada uma delas, levando-as a experimentar condições ousadas de crescimento e realização; na convivência cotidiana, interagem com as pessoas e conseguem extrair delas o melhor, fomentam o papel ativo delas, incentivam-nas a desenvolver sua autonomia e dar asas à sua imaginação.
Texto bíblico: Mc 6,1-6
Na oração:
Deixe-se atrair para além de si mesmo pois a vida ainda está muito à sua frente. Mire alto, bem mais alto onde habita o Espírito que deseja renovar o ritmo de seus passos. É Ele que destrava as ricas possibilidades latentes em seu interior.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
Diretor do Centro de Espiritualidade Inaciana - CEI
“E vós, quem dizeis que eu sou?” (Mt 16,15)
A Pedagogia de Jesus é a da pergunta que “des-vela”, que nos coloca diante do mistério de nossa vida, de nossas opções, de nossa fé...; pergunta que nos move a entrar no mais profundo de nós mesmos e encontrar-nos com a fonte que mana e corre. É através das perguntas que Jesus nos abre acesso às nossas reservas interiores de criatividade e imaginação.
De fato, a força criativa de suas perguntas, põe em movimento grandes dinamismos de vida do ser humano; debaixo do modo paralisado e petrificado de viver, existe uma possibilidade de vida nova nunca posta em movimento. Jesus, ao destravar a interioridade de cada um, reconstrói “pessoas quebradas” e presas ao passado. As perguntas que Ele faz consistem em libertar o ser humano de sua inatividade e dar-lhe capacidade de ação. Isso implica em abandonar a estreiteza da vida e deixar o coração bater no ritmo do seu coração compassivo.
São as perguntas que, com frequência, nos despertam. Se deixarmos de nos perguntar, o fogo vai se apagando. As perguntas são como a lenha que adicionamos ao fogo. As grandes perguntas permanecem dentro de nós, como uma brasa ardendo. Quando nos perguntamos a nós mesmos, algo se inquieta dentro de nós, o fogo se aviva, brota um impulso que nos desinstala e nos move a buscar o novo. Quem tem medo das perguntas, acovarda-se e fecha-se numa vida sem criatividade e sem busca. Quem não se pergunta é porque quer viver tranquilo, sem necessidade de mudança alguma.
Há perguntas inofensivas, fáceis de responder e que não nos comprometem. O problema está quando nos fazem perguntas nas quais nos sentimos implicados. Há perguntas que parecem ser de pesquisas; e há perguntas que nos desvelam por dentro. Há perguntas secundárias sobre as quais podemos dizer qualquer coisa. E há perguntas essenciais que nos movem a falar de nós mesmos. E essas perguntas doem porque são perguntas que desnudam o fundo de nosso coração. São perguntas que nos implicam naquilo que somos realmente.
O perguntar é ousado, instigante; perguntar contém desafio, provocação; leva dose de irreverência. “Perguntar é mergulhar no abismo” (Exupèry). As perguntas tem uma força que não encontramos nas respostas. Somente enquanto perguntamos por Alguém, palpita em nós um impulso, um interesse que não se apaga enquanto não sacia nossa curiosidade.
A pergunta é movimento; e só quando pergunta é que emerge a novidade, pois a pergunta ativa a busca por uma resposta criativa. Mais ainda, perguntar põe em crise certas convicções, ideias fechadas, modos arcaicos de viver...e nos mantém em busca permanente.
É neste nível que surge a pergunta de Jesus aos discípulos, na região de Cesaréia de Filipe. Ele não pergunta aos seus discípulos sobre o que pensam a respeito do Sermão da Montanha ou sobre sua atuação curativa juntos aos doentes da Galiléia. Para seguir Jesus, o decisivo é a adesão à sua Pessoa. Por isso quer saber o que eles pensam e sentem, depois de um tempo de convivência com Ele.
Jesus propõe a pergunta fundamental, “e vós, quem dizeis que eu sou?”; uma pergunta exigindo que eles se examinem a sério, que tomem consciência do que pretendem, que explicitem as reais motivações que os levam a segui-lo. Responder à pergunta “Quem sou eu para vocês?” é fazê-los comprometer com um novo estilo de vida, é assumir o novo caminho com Ele, é arriscar-se numa aventura.
A pergunta é desafiadora, e não simples curiosidade e inquietação, e se dirige a todos. Cada um tem de dar sua resposta. Ela exige uma tomada de posição, um ato de fé.
É importante para Jesus saber o que as pessoas pensam d’Ele. Mas é possível que isso fosse apenas uma introdução para a segunda pergunta. De modo particular, a Jesus lhe interessava não tanto saber o que sabiam ou pensavam, mas “quê significava Ele para eles?”
É a pergunta que todos deveríamos nos fazer: não o quanto sabemos d’Ele, nem quê doutrinas ou teorias sobre Ele seguimos, nem qual é a nossa teologia sobre Ele. Para Jesus lhe interessa mais “o significado, o sentido de Sua Vida em nossas vidas”.
Muitas vezes a própria comunidade cristã está muito preocupada com a “ortodoxia doutrinal” e não se preocupa em fazer sua a Vida de Jesus. Há mais condenações doutrinais que condenações de falta de vivências. É preciso “mais evangelho e menos doutrina” (papa Francisco).
A fé implica ideias e doutrinas. Mas a fé não é crer em doutrinas; é crer em “Alguém”; e crer em Alguém que seja o centro de nossas vidas, em Alguém que inspira as nossas vidas, em Alguém que dê sentido ao que fazemos e como fazemos.
Começamos a ser cristãos quando nos deixamos impactar pela pessoa de Jesus e decidimos seguir seus passos e viver como Ele viveu. Podemos saber muita teologia sobre Jesus e ter uma vivência d’Ele muito pobre. O que importa é o “Jesus vida e na vida”.
Todos estamos seguros de que Jesus é o centro de nossas vidas, mas não nos atrevemos a nos questionar por dentro. Com isso, nosso seguimento vai se esvaziando e se tornando pura normatividade. Para aprofundar nossa fé em Jesus, é preciso nos perguntar constantemente por ela: quê significado Ele tem em nossas vidas? Quê implicações tem no nosso cotidiano o modo de ser e de viver de Jesus? Porque não basta dizer que cremos nele; é preciso perguntar-nos: em quê Jesus cremos e quem é Ele para nós? Tal pergunta nos conduz a uma identificação com o estilo de vida d’Ele.
Mas hoje, talvez num gesto de ousadia e atrevimento, poderíamos inverter as perguntas. No Evangelho, é Jesus quem pergunta e nós respondemos; agora somos nós que fazemos as perguntas a Jesus. Se Ele está interessado em saber o que os outros pensam dele, também nós estamos interessados em saber o que Ele pensa de nós: “Senhor, quê dizes, quê pensas de mim?”
Talvez, de início, possamos sentir um pouco de medo da verdade que Ele dirá sobre nós. Mas, pensando bem, podemos concluir que Jesus pensa melhor sobre nós que nós sobre Ele. E se nos dá vergonha responder às suas perguntas, certamente que Jesus não sentirá vergonha alguma em responder às nossas.
Aliás, nós estamos mais acostumados a perguntar a Deus que deixar-nos perguntar por Ele. Porque, em tudo o que nos acontece, nossa reação imediata costuma ser sempre: “Por quê, Senhor?”; “por quê aconteceu comigo?”; “por quê não me escutas?”... A agenda de Deus está cheia de nossas perguntas.
Texto bíblico: Mt 16,13-19
Na oração: - “Senhor, Tu quê pensas de mim como pessoa? Porque tu me deste a vida não para que a conserve atrofiada mas para que me realize humanamente e chegue a ser uma pessoa livre, madura e comprometida. Tenho amadurecido no amor, chegando a ser essa pessoa que Tu esperas de mim?”
- “Senhor, que pensas e dizes de mim como batizado(a) e teu(tua) seguidor(a)? Sou realmente essa imagem do(a) homem/mulher novo(a) nascido(a) de tua Páscoa?”
- Senhor, que pensas e dizes de mim como: jovem? esposo/a? trabalhador(a)...?”
Como Tu falas ao coração, melhor permanecer em silêncio, que é a melhor maneira de escutar-te.
Fala-me claro e fala-me forte!
Pe. Adroaldo Palaoro sj
Diretor do Centro de Espiritualidade Inaciana - CEI
“Passemos para a outra margem” (Mc. 4,35)
“Jamais conseguirei esquecer um certo refrão que ouvi uma vez ao amanhecer, no meio de uma multidão reunida na noite da véspera de uma grande festa:
- Levai-me até a outra margem, barqueiro!, dizia o refrão.
Mas qual o significado desse chamado universal? Sem dúvida alguma, ecoa a sensação que temos de não haver ainda chegado ao nosso destino. No entanto, haveria algo mais? Onde está essa outra margem? Seria algo diferente do que já possuímos? Estaria em outro lugar, além deste, onde estamos?
Não, claro que não. O lugar onde procuramos nosso destino está no próprio coração de nossa atividade. Estamos clamando para que nos levem ao próprio lugar onde já nos encontramos.
Na verdade, ó Oceano de prazer, esta margem e a outra que busco formam em ti uma única margem. Quando digo: “esta minha margem”, a outra me parece estranha, e, quando eu perco o sentido dessa plenitude que existe em mim, meu coração ansioso reclama “outra margem”. Tudo que possuo e tudo que me parece alheio espera para ver-se reconciliado por completo em teu amor. (Tagore)
O primeiro desejo de chegar à outra margem nasce de dentro, do coração, que sabe estar longe de seu centro e entende sua missão de busca e peregrinação interior, de colocar-se em movimento...
Sair da margem conhecida, “velha”, rotineira... para encontrar a nova margem: lugar de relação, de questionamento, de criatividade, de encontro com o novo e diferente…
A outra margem: lugar provocador, incitador, desperta curiosidade...
: aqui brotam as grandes experiências religiosas, as intuições, projetos, ideais vitais.
Caminhar para a outra margem é sair do centro, da segurança, da acomodação... e ir em busca das surpresas, das novas descobertas; implica arriscar, ter ousadia, não ter medo de caminhar para os “confins da terra”, para regiões desconhecidas em seu próprio interior...
Os poetas, artistas, místicos... são aqueles que fazem a experiência da “outra margem”, vislumbram o outro lado, tocam as raízes mais profundas do próprio ser.
O Evangelho começa com um forte apelo de Jesus dirigido aos seus discípulos, convidando-os a sair da sua rotina, a abrir-se para o novo, para o diferente, ultrapassando os próprios interesses e preconceitos. “Passar para a outra margem” exige mudança de atitude, pôr-se a caminho, êxodo, sair-de-si.
Jesus se encontra no lado de cá, na margem ocidental do lago de Genesaré, na Galiléia É a margem da vida regrada do judeu piedoso: a margem da Lei, da sinagoga, do Sábado..., tudo o que dá segurança aos judeus. No lado de lá do lago, encontram-se a Traconítide, a Decápole, terras não familiares aos judeus. É a margem dos pagãos, dos excluídos, do afastamento de Javé. Para surpresa e até escândalo, Jesus convida os seus discípulos a passar para a outra margem, para o “outro lado da humanidade”.
Jesus também nos convida a sair da nossa própria margem, para ir à margem do Outro e dos outros.
Ele não diz “passai para a outra margem”, mas “passemos”, “vamos juntos para a outra margem”.
Viver o seguimento é iniciar uma travessia, sem saber exatamente as tempestades ou calmarias que iremos encontrar, porque “o vento sopra onde quer”, como o Espírito. O seguidor de Jesus é “como quem está numa barca, no meio do rio e não rema constantemente, mas, às vezes, se deixa levar pela correnteza” (Péguy).
Isto supõe coragem para enfrentar o risco do diferente, disponibilidade, abertura ao novo.
Para quem inicia este Caminho Espiritual, seguindo as pegadas irrepetíveis do Cristo Jesus, a vida é sempre nova e surpreendente. “Empreendemos com a ajuda dos acasos/as travessias nunca projetadas/... em serviço de Deus e seus roteiros” (J.Lima).
O seguidor de Jesus não sabe o que há do outro lado. A ele lhe custa ver claramente. No entanto, consi-dera que a outra margem é talvez diferente, mas tão apaixonante como esta margem onde ele está; e então, decide animar-se a cruzar o mar.
Uma das teorias mais importantes descobertas atualmente defende que tudo o que é criativo surge quando saímos da nossa zona de conforto, ou seja, do lugar onde nos sentimos cômodos e seguros. Essa teoria levada ao campo da espiritualidade, quer dizer que devemos sair, como pessoas e como comunidade, de nosso espaço espiritual rotineiro e “normótico” para poder nos encontrar com Deus.
Deus não “cabe” nas nossas “margens” conhecidas; Ele está sempre além da nossa “zona de conforto”, instigando-nos a fazer contínuas e ousadas “travessias”.
Deus nos quer a cada um fora de nosso espaço de conforto para poder abraçar a missão original que Ele tem reservada para cada um de nós. Não devemos nos conformar com a espiritualidade que vivemos, devemos buscar como aprofundar nela, em cada palavra, em cada lugar, em cada gesto, em cada pessoa.
Todos os santos e santas foram pessoas que saíram de seu espaço de conforto, “transgrediram” o conhecido e rotineiro, fizeram a travessia…: nova visão, nova missão… Ser santo(a) é sair desse espaço e entrar no espaço de Deus. Cada um à sua maneira.
Em todo momento histórico, quando a Igreja e a sociedade são sacudidas por grandes mudanças, surgem homens e mulheres que rompem com esquemas e seguranças envelhecidos e se deixam conduzir pelo Espírito ao deserto, às margens, às fronteiras... fugindo de um ambiente e de uma ordem asfixiantes. A fronteira, para eles, passa a ser terra privilegiada onde nasce o “novo” por obra do Espírito. Uma vez passada a zona de conforto, situar-se na outra margem passa a significar colaboração com o Deus presente e ativo em toda situação humana. Isso vai gerar uma maneira nova de viver, um estilo de vida, um compromisso diferente, uma ação carregada de ousadia...
Em toda travessia há o despojamento, a pobreza, por vezes a fome e a sede, os caprichos das estações, a incerteza dos dias de amanhã. Há a liberdade do espírito, horizontes infinitos, sem limites nem constrangimentos; há o imprevisto, o acontecimento inesperado, favorável ou adverso, que é o melhor e mais seguro dos sinais de Deus, que comanda o ritmo da marcha, as paradas, as estadias, as partidas, as mudanças de rumo ou itinerário. Há o encontro com os companheiros que se mantém fiéis, amigos que ajudam, inimigos que espreitam, pobres que compartilham o mesmo pão.
Finalmente, a travessia aproxima o peregrino cada dia, a cada instante, da meta ainda escondida, mas certa. Ao voltar-se para trás, ele se dá conta de que o itinerário foi realmente maravilhoso, que a experiência o transformou, que está mais “puro”, mais “livre”, mais “autêntico”...; numa palavra, Deus, que está no têrmo, já palmilhava a travessia com Ele.
Texto bíblico: Mc. 4,35-41
Na oração: Preparar-se para a travessia
- Nas nossas vidas acontece algo de verdadeiro e belo quando nos dispomos a buscar dentro de nós mesmos a razão da nossa existência.
- A nossa vida é um êxodo, um sair constante de uma realidade para entrar em uma outra realidade nova. O peregrinar é o elemento determinante e com maior valor simbólico para toda a vida.
- Existem ainda céus por explorar, aventuras por empreender, pensamentos por experimentar e experiências por aceitar; falta-nos ainda muito por saber, por ver, por sentir, por desfrutar...
- No “mapa espiritual” de nosso interior ainda existe uma “terra desconhecida”, que proporciona interesse à vida, suscita curiosidade, nos põe a caminho... Grandes surpresas interiores estão à nossa espera, e a capacidade de continuar buscando é que dá sentido ao esforço e vigor à vida.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
Diretor do Centro de Espiritualidade Inaciana -CEI
“...e a semente vai germinando e crescendo, mas o agricultor não sabe como isso acontece” Mc 4,27
Conta-se que o notável pintor francês Renoir, já sexagenário e bastante afamado pela vitalidade que deu ao impressionismo, foi procurado por um jovem admirador interessado em aprender as artes do desenho. Porém, alegando um tempo escasso para tal empreitada, o apressado discípulo desejava saber quanto tempo duraria o aprendizado, pois ficara assombrado ao ver que o grande mestre fora capaz de fazer uma bela pintura com delicadas pinceladas, mas com uma rapidez espantosa.
Diz Renoir: “Fiz este desenho em cinco minutos, mas demorei 60 anos para conseguí-lo”.
Esta é a resposta de alguém que é um sábio consistente e que ultrapassa o senso comum e o óbvio, gerando o novo (em vez de produzir mera novidade). É a revelação da sabedoria daquele que consegue maturar, sem pressa, a experiência de vida.
Esse é o problema do mundo moderno: a agitação, a pressa e a preocupação se tornam um estilo de vida e acabam controlando nosso ritmo cotidiano, tornando-se fonte inesgotável de ansiedade. Em nosso padrão cultural, somos pressionados a mostrar o tempo todo que estamos ocupados e “produzindo” alguma coisa. Vivemos perdidos numa floresta de compromissos e atividades, incapazes de perceber alguma trilha estreita para poder andar e respirar. Mesmo com tudo que foi inventado para facilitar a vida – celular, internet, e-mail, mensagens instantâneas – parece que não temos tempo para nada.
Há muita inquietação por baixo das águas do cotidiano. Acuados pelo relógio, pelo ativismo, pela agenda, pela opinião alheia, disparamos sem rumo feito hâmsteres que se alimentam de sua própria agitação.
A pressa constante é mais um dos muitos transtornos que vem afetar nossa qualidade de vida. Quem sofre deste mal sente a necessidade compulsiva de cumprir tarefas durante 24 horas por dia e, se por algum instante, se encontra sem nada para fazer, se sente culpado. Além disso, a pressa, ao nos tornar superficiais, nos impede de perceber o verdadeiro valor e originalidade do trabalho próprio e dos outros. Quanto vale o trabalho de um artesão, uma cozinheira, um mecânico, uma professora, um palestrantes, um médico, uma cientista, um místico...?
O escritor alemão Lothar J. Seiwert, autor do best-seller “Se tiver pressa, ande devagar”, afirma:
“Se você negligencia suas próprias necessidades e trabalha até cair de cansaço, desprezando férias e lazer, se torna uma pessoa de difícil trato e uma ameaça para aqueles com quem convive, desperdiça o tempo por falta de atenção e cria um clima de tensão permanente”.
No fundo a questão é esta: qual o sentido e a direção daquilo que fazemos?
Para quê? Para quem? Qual é a intenção ou a motivação que está por trás de nossa ação?
Esta “dica” pode nos ajudar a superar a ansiedade e a pressa, harmonizando-nos com o “tempo” e fazendo as pazes com o relógio. Igualmente isso vale para viver e saborear, de uma maneira mais tranquila, as atividades cotidianas mais simples.
Normalmente, vivemos ações “insensatas”, ou seja, sem sentido, sem direção. Se fizéssemos uma faxina em nossos compromissos e deveres, boa parte desapareceria rápido no ralo do bom senso. Se examinássemos o baú de nossas prioridades, certamente a arrumação interior seria outra.
Vivemos uma quantidade de experiências rápidas, amontoadas, sem possibilidade de avaliação... O cotidiano torna-se convencional e, não raro, carregado de desencanto, pesado, estressante... Aliviar a vida, o coração e o pensamento... eis o desafio; não para inventar de acumular ali mais alguns compromissos estéreis e sem sentido.
Jesus e suas provocativas parábolas: Ele foi um grande artista na construção de parábolas tiradas do cotidiano. Através delas, Ele nos ajuda a “ver” no centro da realidade “o que os olhos não viram, os ouvidos não ouviram e o coração humano não percebeu”, ou seja, a realidade impensável do Reino de Deus no meio de nós, emergindo como dom.
As parábolas nos Evangelhos não são contos com uma finalidade moral, nem representam uma doutrinação; seu núcleo original busca, antes de tudo, interrogar, provocar, chamar a atenção sobre a realidade presente. Podemos afirmar que Jesus tem a pretensão, através desta linguagem, de provocar a quem o escuta e motivá-lo a uma tomada de posição frente à realidade. Não existe, na parábola, a intenção de pintar um quadro mais bonito da realidade, mas de utilizar o potencial do relato para que as pessoas se aproximem de uma dimensão sempre nova da existência.
Nas duas parábolas de hoje, Jesus revela que a única coisa que a semente precisa é de um ambiente adequado para destravar sua vitalidade. Ela foge da eficácia e dos resultados instantâneos. Não tem pressa.
As duas parábolas nos falam mais de aposta no futuro, de calma, de paciência, de realidade sujeita a inclemências de todo tipo, que de certezas ou finais previamente escritos. Igualmente elas nos desvelam que o resultado futuro não vem de fora, mas que vai se forjando por dentro.
Em cada uma das duas parábolas Jesus quer destacar um aspecto dessa realidade potencial dentro da semente. Na primeira, sua vitalidade, ou seja, a força, o impulso que tem para desenvolver-se por si mesma. Na segunda, nos é revelada a desproporção entre a pequenez da semente, quase imperceptível, e a enorme planta que dela surge, onde, inclusive as aves podem fazer seus ninhos.
Estas imagens nos fazem pensar que as coisas de Deus são de outra maneira e de outro ritmo.
Ao mesmo tempo, elas nos questionam: não vivemos hoje muito rápido? Tudo tem que ser prá já; temos perdido a paciência, o sossego, a paz. Fizemos do verbo “esperar” uma relíquia do passado. Tudo parece imprescindível. Tudo urge. Parece que muitas vezes é a agenda que controla nossa vida. E corremos o risco de esvaziar-nos e nos frustrarmos porque queremos correr muito esperando já os frutos quando temos apenas plantado a semente. Outras vezes sofremos porque não vemos os frutos de nosso esforço.
Mas é necessário a paciência do camponês para respeitar processos e colher os frutos no devido tempo. Oxalá saibamos aproveitar os dias, plantar a semente de algo bom, ativando, pouco a pouco, nossas capacidades no serviço aos outros; que saibamos celebrar a vida, preocupar-nos com coisas que verdadeiramente valem a pena e fugir de nossas manias, pressas e ansiedades. Deixemos as pressas de lado, pois o Amor e a Vida, isso sim, é o mais seguro.
Espere o momento
“Não apresses a chuva, ela tem seu tempo de cair e saciar a sede da terra;
não apresses o pôr do sol, ele tem seu tempo de anunciar o anoitecer até seu último raio de luz;
não apresses tua alegria, ela tem seu tempo para aprender com a tua tristeza;
não apresses teu silêncio, ele tem seu tempo de paz após o barulho cessar;
não apresses teu amor, ele tem seu tempo de semear, mesmo nos solos mais áridos do teu coação;
não apresses tua raiva, ela tem seu tempo para diluir-se nas águas mansas da tua consciência;
não apresses o outro, pois ele tem seu tempo para florescer aos olhos do Criador; não apresses a ti mesmo, pois precisas de tempo para sentir tua própria evolução”.
Textos bíblicos: Mc 4,26-34
“Domine a pressa, purificando-a pela mística da atenção a tudo e todos que compõem o seu existir”.
- Reze sua agenda cotidiana: ativismo? Pressa? Ansiedade? Tarefismo?...
Pe. Adroaldo Palaoro sj
Diretor do Centro de Espiritualidade Inaciana-CEI
“Se uma família se divide contra si mesma, ela não poderá manter-se” (Mc 3,25)
Segundo a tradição bíblica, o que mais nos desumaniza é viver com um “coração fechado” e endurecido, um “coração de pedra”, incapaz de amar e de crer. Quem vive “fechado em si mesmo”, não pode acolher o Espírito de Deus, não pode deixar-se guiar pelo Espírito de Jesus. Uma fronteira invisível o separa do Espírito de Deus que tudo dinamiza e inspira; é impossível sentir a vida como Jesus sentia.
O ser humano “dividido” é desfalcado, despojado de seu conteúdo humano, espoliado de sua densidade interior, assaltado por dentro. A “divisão” corrói a interioridade da pessoa e dissolve aquilo que é mais nobre em seu coração. Longe de uma humanidade dinâmica, operante, ousada... o que a pessoa deixa transparecer é uma humanidade neutra, apática, estagnada; é humanidade lenta, demorada, afogada na “normose”, estacionada na repetição dos gestos e dos passos. Ela gira em torno de si mesma e não consegue fazer um salto libertador. Isso tudo leva a pessoa a debilitar-se, provocando a redução da vitali-dade humana em vez de favorecer o crescimento pessoal.
Num coração petrificado e dividido o Espírito não tem liberdade de atuar; dessa resistência à ação do Espírito brotam as doentias divisões internas. São os dinamismos “dia-bólicos” (aquilo que divide) que se instalam em nosso interior, atrofiam nossas forças criativas e nos distanciam da comunhão com tudo e com todos. Com isso nos blindamos, tornando-nos rígidos, petrificados em nossas posições, crenças, valo-res... e não nos deixamos impactar pelo novo, pelo diferente.
Podemos soltar nossa necessidade de segurança e abandonar-nos totalmente ao Espírito para que possa nos guiar? Como desarticular as forças depredadoras do ego em nós? Como quebrar os ferrolhos de nossas intolerâncias, fanatismos, preconceitos, e estender as mãos para acolher o surpreendente e o novo?
Abrir as portas, quebrar os ferrolhos, abandonar as muralhas que nos protegeram, viver a vida e aceitar o desafio, ensaiar um canto, baixar a guarda e estender as mãos, desatar as asas e mover-se de novo a celebrar a vida e retomar os horizontes...; é isso que significa deixar-se “conduzir pelo Espírito”.
Em que consiste a gravidade do “pecado contra o Espírito Santo, revelado pelo Evangelho de hoje. Só há um pecado contra o Espírito Santo. Se o Pai é Vida, se o Filho é Verdade, o Espírito Santo é Amor. E o pecado contra o Espírito Santo é o pecado contra o amor.
O perdão, por sua vez, é crer no amor; o perdão é expressão de amor. E quem não crê no amor, não abre espaço para o perdão, porque simplesmente no crê no perdão. Permanece fechado dentro dos seus muros e não se abre à amplitude da vida. Quem não ama não perdoa e tampouco é perdoado quem não se deixa amar. O problema não está em Deus, pois Ele continua amando a todos. O problema está em nós, pois se não cremos em seu amor, nunca nos sentiremos amados.
Jesus, desde o seu batismo, foi apresentado como o Filho de Deus, a quem se devia dar ouvido. Ele foi constituído mediador da salvação divina oferecida a toda humanidade. Suas palavras e ações, porém, tinham como princípio dinamizador o Espírito Santo, força de Deus que atuava n’Ele.
A atitude de seus parentes, que o acusavam de louco ao verem as multidões acorrerem a Ele, e a interpretação dos mestres da Lei que viam nele o poder de Belzebu, chocava-se com a realidade da ação divina em Jesus. Isso significava negar que o Espírito Santo agia através de Jesus e atribuia ao demônio o que pertencia ao Espírito de Deus. Eis uma autêntica blasfêmia!
As acusações contundentes levantadas contra Jesus manifestam um fechamento à ação do Espírito. Assim como Jesus agia pela força do Espírito, do mesmo modo só quem se deixa iluminar pelo Espírito pode agir como Jesus. Quem se fecha ao Espírito, tornava-se incapaz de discernir a manifestação da misericórdia de Deus, em Jesus. Fechar-se para Jesus, portanto, significa fechar-se para Deus e, por conseguinte, tornar-se indigno de perdão.
Viver humanamente consistirá, então, em deixar o Espírito circular livremente por todos os cômodos de nossa morada interior, arejando-os, ventilando-os, religando-os, dando-lhes vida, reorientando-os. Precisamos nos abrir para uma verdade maior quanto à nossa humanidade, ou seja, que todos os nossos recantos merecem serem visitados, olhados, ouvidos e abraçados; que cada aspecto de nossa vida contém uma dádiva maior do que podemos enxergar e cada sentimento merece uma expressão saudável.
O Espírito nos faz fortes em nossa fragilidade e nos faz amadurecer quanto mais nos humanizamos. Seu modo de proteger-nos é abrindo-nos; seu modo de defender-nos é desarmando-nos.
Um dos aspectos mais empolgantes do ser humano é o fato de ter reservas inspiradoras, úteis e podero-sas que estão adormecidas, ansiando para sair da sombra e ser integradas ao todo da pessoa. Há uma imensa variedade de sentimentos maravilhosos esperando por uma oportunidade de se deslocarem no corpo, trazendo-nos novas sensações e novos níveis de felicidade, alegria e prazer. Precisamos nos desa-fiar a aceitar todas as facetas de nossa humanidade; do contrário, os personagens que foram expulsos do palco, agora reprimidos, se tornarão os orquestradores silenciosos de nossa vida secreta.
É preciso superar a “divisão diabólica” do nosso coração, para recuperar a densidade humana interna. Para isso, ele precisa “re-ordenar-se”, repensar a interioridade perdida, reconquistar a autodeterminação. Para viver um processo de humanização profundíssimo, é preciso despertar, pacificar-se, reencontrando, na própria história, pontos de referência fundamentais que vão situá-lo, corretamente, na condição de filhos e filhas de Deus.
É indispensável “unificar-nos” por dentro e descobrir que, sob a ação do Espírito, podemos nos inventar a cada dia, conduzindo conscientemente a vida em direção à plenitude e não arrastá-la pelo chão. Pessoa “dividida” é massa anônima empurrada pela multidão. Quem está “unificado” tem a coragem de redefinir-se, de eleger, de assumir-se; é alguém preparado para dar um salto arrojado e criativo. Trata-se de sermos dóceis para deixar-nos conduzir pelos impulsos do Espírito, por onde muitas vezes não entendemos e não sabemos. Como nosso Mestre interior, nos ensinará a deixar-nos conduzir para a bondade, para a doação, para a reconciliação e a alegria. Sua discreta presença nos move a acolher em nós nosso potencial de ternura, de cuidado e de resistência diante de todas aquelas situações e forças que desintegram a vida e nos dividem por dentro.
Textos bíblicos: Mc. 3,20-35
Na oração: É no mais íntimo que se reza ao Senhor. É no mais profundo da interioridade que se escuta o Senhor. Deixe-se invadir pela luz e pela vida d’Aquele que “armou sua tenda entre nós”.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
Diretor do Centro de Espiritualidade Inaciana -CEI
“Isto é o meu corpo” (Mc. 14,22), nos diz Jesus. Ele poderia ter dito: “Esta é minha vida, esta é minha história, eu mesmo...”. Mas diz: “Isto é meu corpo”; e, contido nele, sua maneira de estar na vida e de situar-se nela, seu modo de olhar, de sentir, de estar presente...
O único recurso de que Jesus dispõe é seu próprio corpo. Não tem outra riqueza nem outro dom que oferecer. Esse corpo era sua vida, feita doação.
Como o corpo da mulher, capaz de conter e alimentar com seu sangue a criatura que carrega dentro de si, o Corpo de Jesus é um corpo aberto e vulnerado, quebrado e repartido. Constantemente doado. No encontro com este Corpo podemos nos reconhecer e nos acolher mutuamente, criar comunidade, multiplicar e expandir o amor para que o sonho do Corpo doado se propague no mundo.
Jesus se revela, assim, como autoridade de amor, porque ofereceu seu “corpo”, isto é, sua vida, para que outros pudessem viver. Na multiplicação dos pães, nas refeições com pecadores e, sobretudo, na Última Ceia, Ele oferece aquilo que não pode ser comprado nem vendido: o pão do próprio corpo carregado de humanidade, o vinho de sua vida portador das energias alegres e criativas.
Comungar o pão e o vinho não é só aderir a Jesus, à sua pessoa e à sua mensagem; não é só experimentar sua intimidade, deixando-se transformar por Ele. Implica estar dispostos a comungar com todos, porque Jesus nunca vem só: “traz” com ele toda a realidade. “Não nos devemos envergonhar, não devemos ter medo, não devemos sentir repugnância de tocar a carne de Cristo” (Papa Francisco).
Corpo de Cristo são todos os homens e as mulheres, a humanidade inteira, pois nela se encarnou o Filho de Deus. Essa é a verdade cristã: que todos comam e bebam em amor solidário e real o pão de cada dia, o vinho da festa da vida.
Corpo do Cristo quer ser em especial a Igreja, comunhão daqueles que celebram expressamente sua festa e compartilham seu pão e seu vinho eucarístico, recordando a Palavra: “o Verbo se fez carne”.
Como é bom termos essa oportunidade de mais uma vez celebrarmos o “Corpo de Cristo”, que nos alimenta e nos faz repensar nossa postura diante dos corpos... tanto do próprio corpo, como do corpo do irmão e irmã que amam e sofrem ao nosso lado!
Como seria bom se pudéssemos olhar, valorizar, respeitar, amar, cuidar dos corpos dos nossos irmãos e irmãs mais necessitados com o mesmo amor e zelo que temos pelo Corpo de Cristo!... quem fizer isso a um menor dos meus irmãos, é a mim que o fizestes..., corpos, amor, respeito, doação.
Cristo/Eucaristia... perceber e amar a presença real de Cristo no corpo... do outro.
Celebramos o “Corpo de Cristo”, uma das celebrações mais ricas que nos faz pensar em seu conteúdo e simbolismo... Mas, como celebrar este “Corpo de Cristo” no meio de tantos outros corpos? Temos muito o que pensar e rezar diante dos corpos, tanto diante do Corpo de Cristo, como diante dos corpos que passam fome, que são explorados, que sofrem... Não esqueçamos isto: Corpo de Cristo... pão... comunhão, outro, fome, pão... partilha... celebração, amor, corpos...
Jesus Cristo nos fascina por ter a coragem de ser diferente em sua época, por ser Ele mesmo e estar profundamente integrado com seu corpo, colocando-o a serviço e crescimento do outro... do outro corpo.
Jesus, na vivência de sua corporalidade, destrava e dignifica os corpos dos outros: diante dos corpos doentes... cura; diante do corpo pecador... ama, perdoa, abençoa, encoraja; diante dos corpos esfomeados: alimenta, multiplica os pães; diante do corpo sem vida: “ jovem, levanta-te!” vida nova; diante dos corpos que exploram/roubam: protesta, recusa, não façam da casa de meu Pai um covil de ladrões; ai de vós, fariseus hipócritas, que se preocupam demais com as aparências dos “corpos”... e não vêm o interior.
Seu Corpo mesmo se apresenta como amor compartilhado. O Evangelho nos conduz assim ao princípio de todo amor, que consiste em doar o corpo, a fim de que outro viva. Corpo não é aqui o oposto a alma, exterioridade do ser humano, mas pessoa e vida inteira; é comunicação e crescimento, exigência de alimento e possibilidade de morte, fragilidade e grandeza daquele que enfrenta a violência destruidora e doa sua vida em amor, criando a comunhão com todos.
A celebração de “Corpus Christi” nos revela como será o futuro: uma humanidade reconciliada e fraterna; uma mesa para todos, na qual circularão o Pão e a Palavra; uma comunidade reunida em torno do Corpo Ressuscitado e participando de sua vida.
Ao aproximarmos d’Ele, a partir da experiência dolorosa de um mundo dividido e rompido, nossa esperança se refaz ao celebrar antecipadamente a realização do sonho de Deus sobre o mundo: ser pão compartilhado e presença real do amor de Deus para com os últimos.
Comungar o Corpo de Cristo e não comungar com o outro, é comungar a própria condenação. Não se pode comungar com o Corpo e o Sangue do Senhor sem entrar em solidariedade com corpos violentados, feridos, famintos... “Se em alguma parte do mundo há fome, nossa celebração da Eucaristia fica de algum modo incompleta em todas as partes do mundo” (Pe. Arrupe).
“Na Eucaristia recebemos a Cristo faminto no mundo. Não vem a nós sozinho, mas com os pobres, os oprimidos, os que morrem de fome na terra. Por meio d’Ele vem a nós esses homens e essas mulheres em busca de ajuda, de justiça, de amor expresso em obras. Não podemos, por conseguinte, receber digna-mente o Pão da Vida, se ao mesmo tempo não damos pão para que vivam aqueles que dele neces-sitam, sejam quais forem eles e onde quer que estejam” (Pe. Arrupe)
A Encarnação foi o caminho que a Trindade escolheu para se aproximar da humanidade e fazer história conosco. Nosso corpo humano, feito de barro – vaso frágil e quebradiço – tornou-se o lugar privilegiado da chegada e da revelação do amor trinitário.
“Não sabeis que o vosso corpo é templo do Espírito Santo, que habita em vós?” (1Cor, 6,19)
O nosso corpo é o “templo” santo e santificado, onde Deus Trino faz sua morada.
A Encarnação de Jesus não autoriza qualquer desprezo da corporeidade; pelo contrário, valoriza o ser humano na sua totalidade. Cuidar do corpo para recuperar a saúde, combater o stress, harmonizar mente e corpo, razão e emoção, isto é benéfico. A deturpação desumanizante do corpo aparece quando ele é visto como fim em si mesmo.
Temos muitas ofertas para o corpo: ginásticas, academias, cosméticos, bioenergéticas, yoga, dança, expressão corporal, cirurgias plásticas, implantes, massagem...
Cuidar sim, idolatrar não; é preciso caminhar para a superação do medo do corpo, mas sem idolatrá-lo.
Texto bíblico: Mc 14,12-16.22-26
Na oração: Sinta todo o seu corpo como um templo. E neste templo acolha o Sopro. Procure saboreá-lo internamente. E deixe atuar em você a força da inspiração e da expiração para que todo o seu corpo seja iluminado e plenificado. Deixe vir a Luz e que ela penetre nas partes mais dolorosas do seu ser. Sinta que você é um corpo de argila e também um corpo de diamante.
Simplesmente respire na presença d’Aquele que É.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
Diretor do Centro de Espiritualidade Inaciana-CEI
A liturgia nos convida, neste domingo, celebrar e viver o Mistério da Trindade. Aqui não se trata somente de uma verdade para crer, mas estamos diante do fundamento e do núcleo de nossa experiência cristã. Em vez do “Mistério da SS. Trindade” (talvez algo distante e estranho para nós), o importante é a experiência história do encontro com a atividade vivificadora “da Fonte” de vida (Pai), “da Rota” do Amor (Filho) e “da Respiração” da esperança, que pacifica, alenta e reconcilia (Espírito Santo).
Para facilitar a experiência da presença e ação da Trindade em nossas vidas, nossa proposta é contemplar a escultura da Irmã Caritas Müller (veja foto acima) que está numa casa de oração na Alemanha; toda obra de arte fala mais que muitas palavras. Todo artista capta detalhes do Mistério e nos oferece ricas possibilidades de acesso que a razão nem sempre consegue explicar.
Quem é o Pai-Criador, quem é o Filho Redentor, quem é o Espírito Santificador?
As definições apresentadas pelo “dogma da Trindade” não nos ajudam muito. No entanto, a identidade da Trindade se revela na sua ação salvífica. O Pai, no Filho e pelo Espírito Santo se preocupam com cada um dos seus filhos e filhas. Sua intenção é idêntica; atitudes e gestos o demonstram: uma mesma atenção, uma mesma paixão os move para o ser humano; um mesmo amor para com cada criatura humana brota das entranhas da Santíssima Trindade.
O interessante é que, ao observarmos a escultura, vemos que o ser humano está no centro. Trata-se da pessoa na sua total fragilidade e miséria, caída e sem forças...Essa pessoa está circuncidada pela misericórdia da Trindade. Em Deus o ser humano está no centro, para que o ser humano coloque Deus no centro da sua vida.
Mais uma vez, Deus escolhe para isso o caminho do Amor que se entrega, da inquebrantável misericórdia reconstrutora, da transbordante doação que dignifica cada ser humano.
Percebemos na escultura quatro círculos. O círculo expressa o caráter único de cada pessoa, tanto divina como humana. As Três Pessoas divinas e a pessoa humana encontram-se dentro de círculos. O círculo da pessoa humana está no centro da Trindade, e os círculos das Três Pessoas da Trindade encontram-se abertos em direção a este círculo central. Pela sua Encarnação, Morte e Ressurreição, o Filho é o mediador que introduz o ser humano no coração da Trindade.
É importante notar que os círculos não são fechados, pois as pessoas podem entrar no círculo das outras na medida em que seu amor é atuante e expansivo. O círculo central recolhe uma pessoa humana, que pode ser qualquer um de nós. Não dá para saber se é homem ou mulher, pobre ou rica, jovem ou velha e assim por diante. Parece sim se tratar de uma pessoa ferida nos caminhos da vida.
O círculo, como símbolo de realização, significa que o ser humano, em sua fragilidade e em sua miséria, é chamado à plenitude de vida e de realização. Logo nos vem a lembrança do Bom Samaritano. As três pessoas divinas estão debruçadas, com reverência, sobre a pessoa machucada. É patente que o Deus uno e trino comunga no mesmo sentimento de amor e compaixão. Tudo converge para esta revelação: o ser humano desfigurado e acolhido pela iniciativa amorosa da Trindade. O ser humano desfigurado é transfigurado pelo Amor Trinitário.
A Trindade Misericordiosa envolve a criatura humana por todos os lados. Toda a atenção de Deus está centrada sobre o ser humano.
O Pai (à direita), está carinhosamente inclinado, com um dos joelhos em terra, esforçando-se com cuidado para levantar a pessoa ferida. O sentimento do Pai é de ternura e cuidado, seu rosto se aproxima e beija o rosto inerte da pessoa ferida. Ele revela seu amor misericordioso no calor do abraço, que acolhe e regenera o ser humano. Morre o mal que foi feito e celebra-se a festa da vida nova.
Assim fez o pai que, no regresso do filho pródigo, o abraça, o cobre de beijos e o cumula de seu perdão.
Levantar, rodear de ternura, abraçar, acolhê-lo em seu seio de ternura, tal é o gesto de Deus-Pai para com o ser humano. Gesto de libertação que o coloca de pé, devolvendo sua dignidade.
Jesus, o Filho de Deus (à esquerda), ajoelha e se inclina profundamente. Ele se rebaixa à mesma condição do ser humano. Ele segura e sustenta com suas mãos os pés da pessoa ferida, lava-os, cura as feridas com carinho e beija seus pés. Beijo, gesto de intimidade e de ternura, que convida a pessoa a deixar-se amar. O amor liberta, põe o homem e a mulher de pé.
Jesus nos revela o maior serviço do amor, ao mesmo tempo que realiza o mais humilde serviço. “Eu vim para servir e não para ser servido”. O Filho revela o Deus Amor-serviço, que se põe aos pés da humanidade decaída para restaurá-la, e revela o caminho do serviço como caminha para a vida. Em Jesus Deus se abaixa para estar mais perto da miséria do ser humano. Não o olha a partir de cima, abaixa-se. Não vem ao nosso encontro em nossas perfeições, mas em nossas misérias.
É o que Jesus nos revelou durante toda sua vida e de maneira especial no gesto do lava-pés. Ele põe o centro de sua ação nos seres mais pobres e mais fracos, aqueles que não contam para nada, os descartados, os que sofrem e os pecadores. O ser humano, cada um de nós pessoalmente, é tão importante aos olhos de Deus que Ele o coloca no centro de suas preocupações.
O Espírito Santo, figura que desce do alto e se aproxima do ferido, tanto pode ser a figura de uma pomba, de chamas ou de mãos que trazem vida. O bico da pomba, como o Pai e o Filho, beija a pessoa e lhe transmite o Sopro de vida. Deus quer ter o ser humano, um ser vivente, como interlocutor, um ser capaz de responder seu chamado à vida. Deseja um ser vivente, capaz de amar e de assemelhar-se a Ele.
A Pomba de fogo, voa sobre o ser humano caído e o aquece. A relação entre a Pomba de fogo e o ser humano do centro recorda Pentecostes. Cheios do Espírito Santo, os Apóstolos, antes marcados pelo medo, se transformam em testemunhas audazes de Jesus e do amor de Deus.
Pai, Filho e Espírito se preocupam pela pessoa, criada do barro da terra. A pessoa, no centro, é a figura mais escura de todas. Cor da terra, de húmus, um ser criado por Deus, e que estaria sem vida, se esta não lhe fosse comunicada pelo Criador.
Ao experimentar esta acolhida restauradora, o ser humano é chamado a ser também presença da Trindade Amiga para seus irmãos, construindo a comunhão trinitária no mundo em que vive. Só corações solidários adoram um Deus Trinitário
Texto bíblico: Mt 28,16-20
Coloque-se no lugar do ser humano, no centro da escultura, e faça a experiência de ser acolhido e amado pelas divinas Pessoas trinitárias.
Coloque no coração da Trindade as pessoas que você sabe que precisam da graça desta experiência.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
Diretor do Centro de Espiritualidade Inaciana -CEI
“Soprou sobre eles e disse: Recebei o Espírito Santo” (Jo 20,22)
Há muitos ventos e ruídos ao nosso redor: o ruído alucinante das máquinas e das músicas metálicas; o ruído de tanta violência, gritos, maltratos, mentiras; o ruído da intransigência, intolerância, fanatismo, condenações, ameaças... Em meio à tempestade levantam-se ondas de dor e sem sentido, de medos paralisantes e dúvidas angustiantes, de mortes violentas e prematuras que fazem naufragar barcas cheias de sonhos. O planeta terra grita de um modo ensurdecedor: os últimos terremotos, os incêndios, os furacões, as inundações... nos avisam cotidianamente desse grito do Planeta que não queremos escutar.
Além disso, sopram outros ventos tempestuosos que nos ameaçam, arrastando tantas seguranças que nos sustentaram, tantos barcos nos quais subimos, tantos salva-vidas aos quais nos agarramos... As tempestades e as tormentas nos assustam, tem o perigo de nos converter em pessoas medrosas, buscadoras de seguranças próprias, fugitivas caminhantes para os lugares de calma.
No entanto, em meio à tempestade urge não perder a serenidade, não permitir que o ruído dos ventos nos vença, que os relâmpagos nos ceguem, que as ondas nos levem segundo seu capricho. Nas tempestades também é necessário “soltar amarras e içar velas”, ou seja, atrever-se a “viver no Vento”. Soltar as amarras e âncoras de nossos apegos, de nosso consumismo, nossa prepotência, afã de domínio, exclusivismos, fundamentalismos, patriarcalismo, machismo.... Precisamos perder o medo dos novos ventos e içar as velas da inculturação, da riqueza da pluralidade de culturas, religiões, raças, deixar-nos mover pelo vento dos movimentos de libertação (povos em desenvolvimento, negros, indígenas, os sem terra, os movimentos ecologistas, pacifistas, feministas...), acolher o vento que nos impulsiona em direção ao novo e diferente...
A barca de nossa vida naufragará na estreita calma de mares mortos se não formos capazes de desatar os antigos nós de marinheiros que impedem içar as velas para receber os novos ventos da história. “Velas que ao içar-se, se inflariam com o vento dos sinais dos tempos” (Pepe Laguna).
Ancorados na fidelidade a Jesus e a seu Reino, podemos consentir que os Ventos do Espírito levem todos os nossos velhos padrões mentais, ideias fixas e atitudes petrificadas, preconceitos e tudo o que já está caduco e que não nos impulsionam para a outra margem..., Este é o melhor legado que podemos oferecer aos nossos contemporâneos, sacudidos por tormentas que os afundam sem poderem vislumbrar um novo horizonte.
O Espírito insuflou e insufla vida em todas as etapas do universo, na evolução dinâmica para o novo. Ele suscitou ao longo da história, palavras desafiantes, caminhos ainda não percorridos, imagens novas. De fato, tudo se move e se renova: move-se o sol, a lua e a terra, o átomo e a estrela; move-se o ar, a água, a chama, a planta; move-se o sangue, o coração, o corpo, a interioridade. Tudo se move, nada se repete. Tudo é calma e dança, quietude e movimento. Em tudo move-se o Espírito de Deus, energia do amor, possibilitador da Vida. O Espírito é o Mistério que tudo move e tudo impulsiona em direção ao amor e à beleza. Deixemo-nos mover por Ele! Deixemo-nos levar!
Por seu sentido etimológico, “espírito” – “ruah” – na bíblia hebraica, se refere ao vento, ao ar que impulsiona, e ao alento ou a respiração que mantém a vitalidade dinâmica do ser humano. A “ruah” (porque “espírito” é feminino em hebraico) é um modo de descrever a Deus como impulso, alento, força... presença que perpassa tudo, e não se pode retê-la nem dominá-la.
Nós o sentimos soprar no mundo, no amor das mães, no trabalho sacrificado dos pais, na bondade, na ajuda, na ciência, na inteligência, na compaixão... Sentimos a presença do Vento de Deus, que infla as velas de nossas pobres barcas e as leva para outros horizontes. E, mais intimamente, o Vento de Deus é Alento, aquele que faz respirar, que tira o des-alento, o que anima, nos faz viver com ânimo.
Em Jesus de Nazaré vemos soprar o Vento de Deus como em nenhum outro. As angústias mais radicais do ser humano são reunidas e transformadas pelo sopro do Espírito: um sopro vital que possibilita a vitória da esperança contra o desespero, da comunhão contra a solidão, da vida contra a morte. A voz sopra onde quer, a Palavra vem do alto, o Espírito chega impetuoso rompendo o silêncio da morte. O Vento traz a vida, mas não se sabe de onde vem e nem para onde vai.
Quando experimentamos a desorientação, a fragilidade, a falta de sentido, damo-nos conta que precisamos de um novo Sopro que nos fará sonhar e nos deslocar para além de toda estreiteza da vida. O Espírito age de modo silencioso, mas com extraordinária eficácia: a sua força se mostra irrefreável. O seu sopro, penetrando nossos corpos, nos recoloca de pé e nos faz, finalmente, ressurgir.
A santa Ruah é a energia que cria solidariedade, reconciliação, que constrói e mantém a Grande Aliança.
Deixando-nos conduzir pelo Sopro do Espírito Santo, podemos realizar em nosso interior uma boa “ecologia do espírito”, ou seja, recuperar a utopia frente ao desencanto, promover o espírito de comunidade frente ao individualismo, cultivar a abertura ao outro frente ao preconceito cruel, impulsionar o compromisso frente à mera tolerância, apoiar a justiça frente ao puro assistencialismo, incentivar a criatividade frente ao mimetismo, fomentar a solidariedade frente ao autocentramento, promover o espírito de verdade frente à mentira, inspirar a fé frente a um horizonte sem sentido...
Neste dia de Pentecostes, nós, portadores da “Ruah”, tomamos consciência que o Espírito é movimento que transmite o sopro de vida (vento), reúne no Amor todos os povos (fogo) e comunica a todos o Amor universal (línguas). Nas trevas em que muitas vezes ainda tateamos, o Espírito é fogo que abrasa, ilumina e aquece, para que floresça em todos nós a plenitude de vida. Sua força é uma força humanizadora, libertadora e salvadora.
Texto bíblico: Jo 20,19-23
Na oração:
Santa Ruah, és o Amor do Abbá e de Jesus derramado em todos os corações, na humanidade, na natureza. Estás presente no mais íntimo de toda a realidade. Quão difícil para nós detectar tua presença, tua poderosa ação, tua misteriosa e infalível missão!
Santa Ruah, tu és o Ar que nos faz respirar, a causa de todas as nossas alegrias, a Surpresa de todas as nossas surpresas, a Beleza que permanentemente se revela e se expressa de mil formas, embelezando tudo.
Tu és o Espírito que estabeleces o cosmos em meio ao nosso “caos” provocado pelos maus espíritos que nos rodeiam e nos atacam. Tu és, Santa Ruah, que nos modela à imagem e semelhança do Abbá e de Jesus, fazendo de todos nós teu santuário vivente. Tu tens a missão trinitária de conduzir tudo a bom termo, de ir construindo conclusões, de rematar obras, de fazer emergir a bondade, a beleza, a verdade.
Tu és a Santa Ruah que santifica, que nos torna seres transparentes, luminosos, pouco a pouco habitantes de um novo mundo que não somos capazes de entender. É a ti, Santa Ruah, a quem irá se dirigindo nosso último suspiro. És tu, quem nos acolherá e nos levará para junto do Abbá e de Jesus.
És tu, Santa Ruah, quem nos purificará, nos recriará e nos santificará.
Em nome do Abbá, do Filho e da Santa Ruah. Amém.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
Diretor do Centro de Espiritualidade Inaciana – CEI
“Os discípulos então saíram e pregaram por toda parte” (Mc 16,20)
Esta cena final do Evangelho de Marcos está em íntima sintonia com todo o seu evangelho. De fato, os versículos hoje propostos à nossa oração falam do mandato de Jesus aos discípulos: “ide pelo mundo inteiro”. Em outras palavras, não há ruptura entre a missão de Jesus e a dos discípulos. O ministério de Jesus se prolonga no testemunho dos seus seguidores. E é importante não esquecer que Jesus continua caminhando nas estradas da humanidade, nos passos e ensinamentos dos seus discípulos. Isso nos leva a afirmar que a Ascensão de Jesus não nos priva de sua presença; pelo contrário, oferece-nos novos modos de senti-Lo e de encontrá-Lo. Começa, assim, definitivamente o tempo da comunidade cristã.
Os discípulos, portanto, darão sequência ao que Jesus fez, ampliando o campo de ação: Jesus anuncia o evangelho na Galileia; os discípulos, por sua vez, deverão fazê-lo pelo mundo inteiro e a toda criatura.
O seguidor de Jesus é impelido continuamente a uma vivência “fronteiriça”: arrancar-se, desinstalar-se, abrir-se a situações novas, assumir novos riscos, renovar-se sem cessar, adaptar-se às condições de tempo e lugar, tenacidade com uma boa dose de paixão…
A fronteira é espaço tenso e conflitivo; ali o Evangelho se faz mais transparente, o seguimento de Jesus se faz mais radical, a vivência cristã deixa de ser neutra e começa a ser conflitante. Dizer “fronteira” é como dizer novidade; fronteira significa lugares novos, experiências novas, desafios novos. Comporta emoção e descoberta, com sabor do risco, do perigo, da ousadia...
Na história da Igreja muitos homens e mulheres viveram em atitude de permanente êxodo e disponibilidade,numa espécie de itinerância interior e exterior que os converteu em vanguardas da história.
Os grandes desafios atuais exigem 'uma Igreja missionária toda em saída', reafirmou o Papa Francisco.
“A Igreja ‘em saída’ é a comunidade de discípulos missionários que ‘primeireiam’, que se envolvem, que acompanham, que frutificam e festejam. A comunidade missionária experimenta que o Senhor tomou a iniciativa, precedeu-a no amor e, por isso, ela sabe ir à frente, tomar a iniciativa sem medo, ir ao encontro, procurar os afastados e chegar ás encruzilhadas dos caminhos para convidar os excluídos. Vive um desejo inesgotável de oferecer misericórdia, fruto de ter experimentado a misericórdia infinita do Pai e a sua força difusiva (...) Com obras e gestos, a comunidade missionária entra na vida diária dos outros, encurta as distâncias, abaixa-se até à humilhação e assume a vida humana, tocando a carne sofredora de Cristo no povo”. (Evangelli Gaudium).
O evangelho de hoje conclui que os discípulos saíram e anunciaram por toda parte o que o Mestre anunciou: a boa notícia do mundo novo inaugurado com Ele. Este anúncio será acompanhado de “sinais”:
- os dois primeiros sinais (expulsar demônios em nome de Jesus e falar novas línguas) mostram que a ação dos discípulos é libertadora e comunicadora do mundo novo, eliminando tudo o que despersonaliza, oprime e marginaliza as pessoas, e libertando as pessoas de todo tipo de alienação.
- o terceiro e quarto sinais (pegar serpentes ou beber veneno mortal) falam dos confrontos e conflitos que aparecerão no caminho daqueles que, a partir da fé no Ressuscitado, vivem o compromisso com a vida: quem anuncia e realiza o projeto de Deus sofre oposições imprevistas e veladas (serpentes) ou evidentes e abertas (tentativa de matar os discípulos por envenenamento).
- o quinto sinal (impor as mãos sobre os doentes, curando-os); os discípulos, em estreita comunhão com a ação de Jesus, prolongam Suas mãos, curando, abençoando, levantando os caídos, sustentando os fracos.
Como o pe. Vitor Codina sj, podemos também nós, sonhar e permitir que a festa da Ascenção desate em nós um profundo dinamismo pascal e eclesial:
- passagem de uma Igreja poderosa, distante, fria, endurecida, medrosa, reacionária, da qual as pessoas se afastam e abandonam... a uma Igreja pobre, simples, próxima, acolhedora, sincera, realista, que promove a cultura do encontro e da ternura;
- passagem de uma Igreja moralista, legalista, doutrinária... a uma Igreja que vai ao essencial, que se centra em Jesus Cristo contemplado e seguido, que difunde o bom odor do Evangelho e convida a que todos coloquem Jesus Cristo no centro de suas vidas;
- passagem de e uma Igreja centrada no pecado e que fez do sacramento da confissão uma tortura e converteu o acesso aos sacramentos em uma alfândega inquisitorial... a uma Igreja da misericórdia de Deus, da ternura, da compaixão, com entranhas maternais, que reflete a misericórdia do Pai, uma Igreja sobretudo hospital de cam-panha que cura feridas, que cuida da criação, na qual os sacramentos são para todos, não só para os perfeitos;
- passagem de uma Igreja centrada nela mesma, autorrefencial, preocupada com o proselitismo... a uma Igreja dos pobres, preocupada sobretudo com a dor e o sofrimento humano, a guerra, a fome, o desemprego juvenil, os anciãos, onde os últimos sejam os primeiros, onde não se possa servir a Deus e ao dinheiro; uma Igreja profética, livre em relação aos poderes deste mundo;
- passagem de uma Igreja fechada em si mesma, relíquia do passado, com tendência a olhar para o próprio umbigo, com cheiro de mofo, que espera que os outros venham até ela... a uma Igreja que sai às ruas, que vai às margens sociais e existenciais, às fronteiras, aos que estão longe, mesmo sob o risco de sofrer acidentes; uma Igreja que seja semente e fermento, que abra caminhos novos, que vá sem medo para servir, uma Igreja ao ar livre, que sai às sarjetas do mundo, uma Igreja em estado de missão;
- passagem de uma Igreja que discrimina os que pensam diferente, os diversos, os outros... a uma Igreja que respeita os que seguem sua própria consciência, as outras religiões, os ateus, dialoga com não crentes... uma Igreja de portas abertas, atenta aos novos sinais dos tempos;
- passagem de uma Igreja com tendência restauracionista e que tem saudades do passado... a uma Igreja que considera que o Vaticano II é irreversível, que é preciso implantar suas intuições sobre a colegialidade, desclericalizar-se, evitar o centralismo e o autoritarismo no governo, caminhar em meio às diferenças, confiar maiores responsabilidades aos leigos, dar maior protagonismo à mulher...;
- passagem de uma Igreja com pastores fechados em suas paróquias, clérigos de despacho, que buscam fazer carreira, que estão no laboratório e às vezes acabam sendo colecionadores de antiguidades...a pastores que “cheiram a ovelha”, que caminham na frente, atrás e no meio do povo;
- passagem de uma Igreja envelhecida, triste, com gente com cara de velório, a uma Igreja jovem e alegre, fermento na sociedade, com a alegria e a liberdade do Espírito, com luz e transparência, sem nada a ocultar, com flores na janela e cheiro de lar, onde os jovens sejam protagonistas, pois são como a menina dos olhos da Igreja;
- passagem de uma Igreja ONG piedosa, clerical, machista, monolítica, narcisista... a uma Igreja Casa e Povo de Deus, mesa mais que estrado e tapete, que respeita a diversidade, onde os leigos, as mulheres, as famílias jogam um papel relevante. É a Igreja de Aparecida, de discípulos e missionários para que os nossos povos em Cristo tenham vida, uma casa eclesial onde reina a alegria.
Texto bíblico: Mc 16,15-20
Na oração: É Ele o Senhor que com seu chamado planta a Igreja em cada coração, filialmente configurado por e com seu Espírito. O seguidor descobre n’Ele o centro de sua vida e Ele o vai levando à Igreja, como os seus primeiros discípulos. Essa identificação progressiva com Ele desemboca na comunidade eclesial. Por isso, a Igrejaé o lugar dos identificados com Cristo. Ser de Cristo, trabalhar para Cristo, é não só ser da Igreja, senão ser Igreja, sentir-se Igreja.
Rezar a sua pertença e seu compromisso na comunidade eclesial
Pe. Adroaldo Palaoro sj
Diretor do Centro de Espiritualidade Inaciana -CEI
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