“Também Jesus e seus discípulos tinham sido convidados para o casamento” (Jo 2,2)
A festa está profundamente enraizada no coração do ser humano; ela proporciona o diferente, o novo, o exuberante, o utópico; revela o “homo ludicus” que brinca, canta, dança, transborda emoções, reúne companheiros em comunidade e celebra a vida.
A festa é ruptura com a monotonia e com a rotina da vida; é um momento no qual se deixa levar pela vida em vez de “carregá-la” nas costas como um fardo. É a própria vida, despojada do peso do cotidiano e vivida em plenitude; a festa é um “sim à vida” porque significa mergulhar na profundidade da existência, assumindo o que há de prazeroso, de positivo e de belo, para expressá-lo com alegria.
A festa é celebração comunitária de experiências e acontecimentos da vida. As circunstâncias podem ser variadas (casamentos, nascimentos, padroeiros, conquistas, colheitas, aniversários, datas importantes...), mas o essencial permanece: uma afirmação da vida, da amizade, da comunhão, e uma espécie de juízo de valor sobre nosso mundo e sobre nossa existência
Ao valorizar determinados acontecimentos, a festa constrói a comunidade a partir de suas raízes e de sua história em vista do futuro; ela torna público o horizonte social dos participantes. Fazendo a festa, a comunidade descobre que foi a festa que a fez. Ela sim, recria a comunidade, recriando os participantes.
Festejar não é ocultar as tensões, os conflitos... mas, ao contrário, é um meio de assumi-los e superá-los.
Nas bodas de Caná, a novidade está numa nova forma de presença de Jesus, que não se encontra interessado, em princípio, por fazer coisas, por resolver problemas, senão para traçar uma presença como convidado. Ele não está aí para “arrumar” as coisas, mas para escutar e compartilhar um momento festivo. Ele se encontra presente de maneira gratuita, num gesto de solidariedade que transcende e supera toda atividade.
Segundo o evangelista João, a primeira intervenção pública de Jesus, o Enviado de Deus, não tem nada de “religioso”. Não acontece num lugar sagrado (sinagoga ou templo). Jesus inaugura a Sua atividade profética "salvando" uma festa de casamento que podia ter terminado muito mal. Trata-se do "primeiro sinal", onde nos é oferecida a chave para entender toda a Sua atuação e o sentido profundo da Sua missão salvadora. Convida-nos a que descubramos o Seu significado mais profundo.
"Havia um casamento na Galileia". Assim começa este relato em que nos é dito algo inesperado e surpreendente. Este gesto de Jesus ajuda-nos a captar a orientação de toda a Sua vida e o conteúdo fundamental do Seu projeto do Reino de Deus. Enquanto os dirigentes religiosos e os mestres da lei se preocupam com a religião, Jesus dedica-se a fazer mais humana e leve a vida das pesso
Os evangelhos apresentam Jesus concentrado, não na religião mas na vida. Viver o “estilo de vida” de Jesus não é só para pessoas religiosas e piedosas. É também para quem ficou decepcionado com a religião, mas sente necessidade de viver de forma mais digna e ditosa. Porquê? Porque Jesus contagia a fé num Deus festeiro, que não complica nossa vida, mas nos move a confiar n’Ele, que com Ele podemos viver com alegria pois Ele nos atrai para uma vida mais generosa, movida por um amor solidário.
A espiritualidade de Jesus não é a espiritualidade do sacrifício, do pecado e da culpa, da busca da perfeição, mas é a espiritualidade da felicidade e da alegria para as pessoas. Com sua presença, participando das bodas, das refeições festivas e dos banquetes, Jesus anunciava e indicava um outro mundo diferente, onde partilha-se a vida, a convivência, a alegria, abrindo espaço à participação de todos, sobretudo daqueles que eram excluídos da religião. É a alegria contagiante do Evangelho.
Para Jesus, Deus se manifesta em todos os acontecimentos que nos impulsionam a viver mais plenamente. Deus não quer que renunciemos nada do que é verdadeiramente humano. Ele quer que vivamos o divino no que é cotidiano e normal. A ideia do sofrimento e da renúncia como exigência divina é antievangélica.
A cena das bodas de Caná da Galileia não se limita simplesmente à ausência de vinho. O assunto é outro: o relato tem que ser entendido na perspectiva do Reino, na dinâmica do tempo messiânico. O texto indica que havia aí, em um lugar da casa, seis talhas de pedra vazias. O texto enfatiza que estavam vazias. São vasos destinados a conter a água da purificação, ritual dos crentes judeus. Porém estão vazias, secas. Este símbolo indica que o modelo religioso que Jesus encontrou está ressecado, vazio.
A mensagem para nós hoje é muito simples, mas demolidor. Nem ritos, nem abluções, podem nos purificar. Só quando saborearmos o vinho-amor da festa e da partilha, ficaremos todos limpos e purificados. Só quando descobrirmos o Deus presente dentro de nós e nas nossas realidades mais cotidianas, seremos capazes de viver a imensa alegria que nasce da profunda unidade com Ele. Geralmente nos contentamos com as seis talhas de pedra para as purificações, preocupados com os ritos e as normas religiosas; esquecemos que o melhor vinho ainda não foi servido, pois está escondido no mais profundo de nós mesmos.
Na visão dos primeiros cristãos, que acabavam de se separar do judaísmo, a lei judaica, antes de ajudar, acabou dificultando a relação de Deus com seu povo. Por isso para eles era uma lei vazia, sem sentido, que somente gerava carga e não possibilidade de liberdade e de alegria. As talhas de pedra, destinadas à purificação, eram um símbolo que dominava a lei antiga. Esse modelo de lei criava com Deus uma relação difícil e frágil, mediada por ritos frios e carentes de sentido.
Com a presença de Jesus, a ritualidade, o legalismo, a norma fria e vazia, se transformam em vinho, símbolo da alegria, do júbilo messiânico, da festa da chegada do tempo novo do Reino de Deus. A atitude de Jesus, sem nenhum tipo de imposição, vai revelando uma nova imagem e um novo conceito de Deus. Deus deixou de ser esse ser estranho e distante, que atemoriza o ser humano com o peso da doutrina e das leis, mas que revela sua face misericordiosa, ou seja, o Deus que caminha com seu povo. Temos de eliminar, em nossa vida pessoal comunitária, com os sistemas religiosos desumanizantes, para conseguir entrar na dinâmica libertadora, inclusiva e festiva que Jesus inaugurou.
Texto bíblico: Jo 2,1-11
Na oração:
“Festeje a fé que torna Deus luz e garantia para os nossos caminhos; festeje a esperança que transporta os seres ao novo do amanhã; festeje o amor que os torna fonte de crescimento e união. Ao festejar o mistério que o carrega e atrai, será capaz de transformar o dever em prazer, a dor em dinamismo de renovação e a convivência em promessa que se há de revelar graça onipresente. Enxergue em tudo a dádiva e repouse do cansaço; celebre a festa em clima de gratidão e nunca deixará de ser motivado para um novo entusiasmo, recompensado também em ritmo de morte-ressurreição”. (F. Cláudio V.B.)
Pe. Adroaldo Palaoro sj
“E, enquanto rezava, o céu se abriu e o Espírito Santo desceu sobre Jesus...” (Lc 3,21-22)
Terminado o ciclo natalino, somos convidados a fazer o caminho com Jesus durante sua vida pública. Liturgicamente, este longo percurso contemplativo é conhecido como “Tempo Comum” (este ano seguiremos o Evangelista Lucas), tempo de intimidade e de identificação com Aquele que é nossa referência e inspiração na nossa maturidade cristã.
Ao inaugurar a vida pública de Jesus, o Batismo significa o alvorecer dos novos tempos, o novo início para toda a humanidade, a Nova Criação: “O Espírito de Deus pairava sobre as águas” (Gen. 1,2). A fé da comunidade cristã vê no batismo de Jesus uma ação definitiva de Deus em favor da humanidade.
À luz deste acontecimento “fontal”, situado no início da vida pública de Jesus, deve ser visto tudo o que vai ser relatado em continuação nos Evangelhos. Com o batismo de Jesus, começa uma nova era na história do mundo, na história da intervenção salvífica de Deus em favor da humanidade.
A “abertura dos céus” que se rasgam significa a abertura de novas relações entre Deus e a humanidade, o início de um novo diálogo de Deus com o ser humano, um novo tempo de graça, de novos dons dados por Deus a todos. Jesus é o lugar do novo, definitivo e pleno encontro de Deus com os homens, dos homens com Deus e dos homens entre si. “Jesus sai das águas elevando consigo o mundo que estava submerso, e vê rasgarem-se e abrirem-se os céus que Adão fechara para si e sua posteridade” (S. Gregório Nazianzeno).
Segundo os estudiosos da Cristologia, em Jesus, a tomada de consciência de quem era Ele e qual era sua missão, foi um processo de contínuo discernimento que não terminou nunca. O relato do batismo está nos falando de um passo a mais, ainda que decisivo, nessa tomada de consciência. Nesse sentido, o Batismo de Jesus é um acontecimento fundamentalmente vocacional. É muito provável que Jesus, já adulto, vivesse com uma inquietação em seu coração, conectado com seu desejo profundo, e uma pergunta estivesse ressoando com força no seu ser mais íntimo; essa mesma pergunta com a qual cada um precisa conectar, em algum momento da vida, e que faz brotar as decisões mais cruciais:
“Quem sou? Para quê nasci? Quê sentido quero que minha existência tenha?...”
Depois de ter passado trinta anos de sua vida no anonimato em Nazaré, dedicado aos trabalhos cotidianos e simples de uma vida campesina, Jesus decidiu um dia deixar para trás suas pequenas seguranças e pôr-se a caminho em direção ao sul, junto ao rio Jordão, onde João estava batizando. Despediu-se dos seus e se lançou a uma aventura da qual não regressaria mais. Tomou uma decisão que se revelou central para sua vida e para a nossa.
Para Jesus, a experiência vivida no Jordão, funda sua vocação, ou seja, a partir de então compreende quem é Ele para Deus: o Filho Amado. Com essa consciência, configura todo seu ser e aposta plenamente por seu projeto de vida. Então, Ele experimenta a presença de Deus de um modo claro e contundente. Nesse momento, confirma-se tudo o que sentiu e viveu em toda sua vida em Nazaré: a profunda sintonia com Deus, experimentado como um Pai amoroso e próximo.
Agora Jesus sente que o Pai o chama a mudar o estilo de vida escondido. Ele está atento aos “sinais dos tempos” e sabe discernir nesses sinais a Vontade do Pai que o chama a mudar de caminho, a deixar sua terra, a lançar-se numa aventura. Começa uma vida itinerante, missionária, despojado de tudo.
A novidade de Jesus não cabia mais nos estreitos espaços de Nazaré, nem nos moldes da sinagoga e da religião oficial. Ele começou a buscar e transitar por outros espaços alternativos onde ativar a vida expansiva do Reino.
Jesus não se move preso à estrutura da sinagoga, mas está aberto à surpresa e ao dinamismo do Reino, que irrompe como graça no centro da vida mesma, surpreendendo a cotidianidade. Jesus vive sintonizado no Espírito, que se revela em meio aos tempos humanos como sua dimensão mais profunda e definitiva.
Jesus não foi um extra-terrestre que, por ser de natureza divina, estava dispensado da trajetória que todo ser humano tem de percorrer para alcançar sua plenitude. Geralmente não levamos a sério essa experiência humana de Jesus. Mas os primeiros cristãos tomaram muito a sério a humanidade de Jesus.
Todos nós, em um momento ou outro de nossa vida, sentimos o chamado a reorientar nosso caminho. Tivemos que tomar a decisão de deixar para trás os espaços e as pessoas conhecidas que formavam nosso entorno vital. Aventuramo-nos a estabelecer novas relações, novas práticas, novas formas de comunicação com nosso entorno, novas formas de pensar a mesma realidade. Caminhamos para o desconhecido, confiados na promessa e na fidelidade de Deus. Por Ele e n’Ele, Saimos a descobrir novos horizontes.
Ver a Jesus dirigir-se para o desconhecido, confiado somente na proximidade de seu Pai Deus, nos anima a empreender também um caminho novo cada dia, com a confiança de que Deus nos acompanhará e repetirá de novo o que o mesmo Jesus escutou no Jordão: “Tu és meu(minha) filho(a) amado(a), em ti ponho o meu benquerer”. E essa foi nossa entrada na fila da humanidade, em virtude da fé de nossos pais. Fomos acolhidos junto a outros, constituindo a grande comunidade dos seguidores de Jesus, reconhecidos como filhos e filhas do mesmo Pai, irmãos e irmãs de todos.
Viver nossa vocação batismal implica viver em contínua “operação saída”. Demasiados costumes conservados podem ser um forte herança, mas não deixam de ser um peso para quem precisa olhar longe e olhar bem. O discernimento implica investigar quê novos lugares nos quer conduzir o Espírito.
Levamos anos em que, em lugar de ir, voltamos. Temos medo frente às “novas saídas”. Há uma preferência por permanecer no seguro, no conhecido, no de sempre. Buscamos as mais sofisticadas razões para “não sair”, para manter nossos “centros” e situar-nos naqueles espaços que nos dão segurança e nos permitem realizar nossos próprios sonhos e não tanto os de nosso Deus.
Quando a vida cristã não se põe em movimento de saída, ela se mundaniza e se asfixia. A Exortação do Papa Francisco nos convida a “sair”, em atitude de “intimidade itinerante”: “quando se toma gosto do ar puro do Espírito Santo, que nos liberta de estar centrados em nós mesmos, escondidos em uma aparência religiosa vazia de Deus” (EG, 97).
Tanto mais intensa será nossa vivência batismal quanto mais nos leve para “fora” de nosso próprio centro, de nosso próprio mundo e de nosso modo habitual e fechado de viver.
Nessa “saída de si” encontramos o termômetro de toda vida espiritual: “Sair de si” é olhar a própria vida de outro ângulo, de outra perspectiva... para encontrar um “sentido” maior que nos escapa. A “saída de si” é humanizante e humanizadora, porque faz emergir tudo o que é humano em nós. É ir mais além daquilo que nos é próximo, próprio ou afetivamente perto. É ir aos “aforas” de nossa vida, de nosso mundo, de nossas coisas de sempre.
Assim, pois, tanto mais real e verdadeira será nossa resposta amorosa ao carinho de Deus quanto mais expansiva se faz nossa vida, deslocando-nos em direção às fronteiras de nossa vida pessoal e comunitária. Algo teremos de suspeitar quando, no fundo, por mais propósitos que façamos, não saímos nunca do mesmo lugar. No Batismo comprometemos nossas certezas, nossos valores, nossa confiança básica, nossa fé. Esta atitude requer a maturidade de saber fazer a “travessia”, de romper com os muros das idéias fixas, atitudes fechadas, situações estreitas... De sedentários nos convertemos em nômades do “sentido”, buscadores de uma realidade totalizante que nos ultrapassa e que está sempre além.
Texto bíblico: Lc 3,15-16.21-22
Na oração: Lucas nos diz expressamente: “e enquanto orava...”; porque só a partir do interior pode-se descobrir o Espírito que nos invade. Se assim o fazemos e se damos uma oportunidade ao Espírito de Deus, descobriremos nossa própria vocação... e, quem sabe, veremos o Cristo em silêncio, do nosso lado.
A experiência do encontro com Ele junto ao Jordão, desvela nosso rosto, transforma nossa vida, abre caminhos e nos compromete com a causa do Reino.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
“Quando entraram na casa, viram o menino com Maria, sua mãe”. (Mt 2,11)
Em sua misericórdia, Deus sempre nos surpreende, sempre excede nossas estreitas expectativas, para abrir caminho a partir de nossas fragilidades. Só o amor misericordioso de Deus nos reconstrói por dentro, destrava nosso coração e nos move em direção a horizontes maiores de busca, responsabilidade e compromisso.
A força criativa da sua misericórdia põe em movimento os grandes dinamismos de nossa vida; debaixo do modo paralisado e petrificado de viver, existe uma possibilidade de vida nova nunca ativada. E foi nas “fendas da humanidade” que o menino Jesus revelou o novo rosto misericordioso do Pai. A fragilidade de uma criança aponta o Deus presente e atuante nos meandros de nossa história, de nossas feridas, de nossos fracassos..., Aquele que não tem vergonha de se aproximar e de se misturar com a pobreza e a fragilidade dos seus filhos; o Deus misericordioso mergulha e santifica toda nossa existência. Ele se revela como um “Deus errante”, que corre ao encontro daqueles que estão em busca.
Nesta festa da Epifania, a imagem de Deus que nos transparece é a d’Aquele das portas sempre abertas. Esta imagem se fez visível na Gruta de Belém, simples estábulo sem portas ou portões, que só servia para guardar as ovelhas e protegê-las da chuva e dos perigos. Por isso, carecia de portas. Deus nasceu em um espaço sem portas. Por isso, quando os Magos chegaram, não precisaram tocar a campainha, nem abrir a maçaneta e esperar que alguém, pela abertura da porta, lhes perguntasse: quem são? de onde vem? quê buscam?...
Simplesmente chegaram e entraram, porque tudo estava aberto.
É impressionante a descrição que Edith Stein faz, quando um dia, ainda antes de se converter ao cristianismo, entrou na catedral de Francfurt.
“Entramos por alguns minutos na catedral e, enquanto permanecíamos ali dentro num silêncio respeitoso, entrou uma mulher com a sacola de compras. Ajoelhou-se em um dos bancos. Permaneceu nessa postura o tempo suficiente para rezar uma breve oração. Aquilo era algo completamente novo para mim. Nas sinagogas e nas igrejas protestantes que eu havia visitado só se entra para os atos litúrgicos da comunidade. Mas aqui alguém pode entrar numa igreja vazia, durante as horas de trabalho de um dia qualquer da semana para manter uma conversação familiar. Jamais pude esquecer isto”.
A presença dos Magos em Belém foi um pouco como a visita de Edith Stein à catedral de Franckfurt. O mais maravilhoso de Deus é que as portas lhe causam repugnância. Ele as quer sempre abertas para que todo aquele que queira “vê-lo”, falar-lhe e adorá-lo, não precisa nem chamar, nem tocar a campainha, nem marcar visita com hora fixa. Deus está aberto sempre e a todos. Não faz distinção de pessoas.
O Menino Jesus não se fixou se um Mago era negro, o outro branco e o outro amarelo. Nem se assustou vendo o quão grande eram os camelos. Simplesmente os recebeu com um sorriso. Por isso, esse encontro é conhecido como festa da Epifania, da manifestação, da revelação do Deus de “portas abertas” ao mundo. Revelou-se como o Deus de todos e para todos.
A mulher que entrou na Catedral de Franckfurt, seguramente que vinha ou ia às compras, porque entrou com sua sacola; não a deixou à porta da catedral, por respeito. Também com a sacola se pode falar com Deus. Não sabemos de que falaram, ela e Deus. Possivelmente de quão caras estão as coisas e que com certeza o dinheiro não ia dar para encher a sacola de compras. E Deus se sentiu lisonjeado com aquela visita. Os outros tinham entrado por simples curiosidade turística. E mesmo assim, alguns deles saíram diferentes, como a Edith, que ficou impressionada e tocada em sua alma por esta disponibilidade de Deus.
O Deus da Epifania não é o Deus das portas fechadas; tampouco o Deus a quem é preciso marcar visita previamente. É o Deus das portas sempre abertas a todos; é o Deus que sempre está disponível a receber-nos; é o Deus que nunca está ocupado para atender-nos; é o Deus sempre acolhedor de todos nós, levemos ouro, incenso e mirra, ou simplesmente levemos uma sacola de compras. Por isso, todos os dias deveriam ser “Epifania”, Deus com as portas abertas de seu coração misericordioso, pronto a nos receber a todos e a nos aceitar como somos. Deus que a cada dia nos diz: “Passai por aqui, a porta está sempre aberta”.
É altamente significativo e simbólico que a abertura do Jubileu da Misericórdia tenha começado com o destravamento das portas das igrejas em todo o mundo. Mais significativo ainda foi o gesto do papa Francisco de abrir a Porta Santa do Ano da Misericórdia em Bangui, na África, antes mesmo de fazê-lo em Roma, sede central do Cristianismo.
O Santo Padre declarou Bangui a capital espiritual do mundo no dia 29 de novembro, dando início ao Jubileu da Misericórdia a partir daquela cidade, marcada pela miséria e pela violência. Como os Magos, também nós nos dirigimos primeiramente aos palácios de nossa sociedade do bem-estar e aos Herodes contemporâneos, até que nos damos conta de que ali não encontramos o que estamos buscando, que ali se anula e se anestesia a vida, essa vida de Deus que quer crescer em nós. Somente quando nossos olhos se abrirem, descobriremos assombrados que não há nada que não seja sua epifania, que não é que Deus não se manifeste, senão que nos faltam olhos para descobri-lo.
O Espírito que sopra desde a África, com a abertura da Porta Santa, nos abre então a porta para palmilhar a estrada deste Novo Ano rumo a um mundo marcado pela luz da Misericórdia.
Os Magos do Oriente são o símbolo de tantos homens e mulheres que, em qualquer parte do mundo, a partir de outras sendas e tradições espirituais, se perguntam, buscam e caminham. Uma lenda os apresenta como um rei jovem, outro ancião e outro negro, querendo significar que todos os âmbitos do ser humano se fazem patentes ao longo do caminho, até poder encontrar o Menino e adorá-lo.
Segundo esta lenda, os magos perdem a estrela justamente antes de chegar, e foram os pastores, as potências do coração, aqueles que lhes ensinaram o caminho. O ouro do amor, o incenso de nossos desejos e a mirra de nossas dores e daquilo que cura as feridas são entregues Àquele que nos deu tudo primeiro.
Texto bíblico: Mt 2,1-12
Na oração: A obscuridade e as dúvidas pairam sobre nosso presente e nosso futuro. A situação social que vivemos é certamente muito confusa. Por isso buscamos uma luz, uma estrela para orientar-nos. Precisamos de uma luz que dê sentido e orientação à nossa vida.
Uma vez que a Luz do Menino nos toca, já não podemos seguir pelo mesmo caminho; o caminho da epifania é agora o nosso caminho: descobrir o amor e manifestá-lo. Descobri-lo onde não esperávamos e levá-lo a outros por onde ainda não sabemos. Como cegos tocados por uma luz que nos indica os modos: em vulnerabilidade, em pobreza, em humildade, em alegria.
Ao celebrar a Epifania ou manifestação do Senhor devemos nos perguntar se vamos caminhando para onde essa luz nos leva, ou se permanecemos instalados no caminho. Somos portadores desta nova luz para que ela também chegue aos rincões do mundo e a todos os seres humanos. Quando todos se abrirem a ela, certamente se envolverão na construção de uma sociedade fraterna onde a justiça e a paz se abraçarão e permanecerá vivo o mistério do Natal.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
“E todos os que ouviram os pastores ficaram maravilhados com aquilo que contavam” (Lc 2,18)
Mais um novo Ano de Graça se inicia, agora sob o impacto de uma proclamação: Deus é Misericórdia e nossa vocação cristã é viver misericordiosamente.
Embora a compaixão e a misericórdia não estejam na moda na sociedade ocidental, renovemos nossa vida para que ela seja mais intensa e expansivamente misericordiosa.
O Papa Francisco inaugurou um Ano Jubilar especial: júbilo e atitude compassiva da misericórdia que perdoa, renova e facilita a reconciliação. Duas razões que deveriam estar presentes em quem se diz cristão, algo tão natural no seguimento de Jesus Cristo: alegria pela experiência de que Deus nos ama com um coração misericordioso e misericórdia como conduta libertadora que nasce de tal experiência. Aqui nos encontramos envolvidos por uma mensagem que é essencial e decisiva no nosso “ser cristão”.
Ser misericordiosos e compassivos é a vocação à qual todos nós, seres humanos, fomos chamados, inclusive aqueles que ainda não experimentaram o dom da fé ou mesmo a perderam. É o caminho para conseguir uma convivência leve, acolhedora e aberta. As Bem-aventuranças vão nesta direção, abrindo espaço para que o Amor misericordioso de Deus se transforme em motor da história.
Misericórdia. É a primeira, a última, a única verdade da Igreja, de todas as suas doutrinas, cânones e ritos. É o critério de juízo de todas as religiões. E, - porque não dizer?-, também da política ou da gestão da vida pública com todas as suas instituições, partidos, programas e conferências climáticas. Ai das políticas sem entranhas, sem alma, sem misericórdia!
A misericórdia é a luz e a chave de nossa vida tão preciosa e frágil, de nosso pequeno planeta tão vulnerável, do universo imenso e interrelacionado e do qual fazemos parte.
Misericórdia, segundo sua etimologia, significa entranha, coração, ternura para com o desfavorecido. Por isso é um dos nomes mais belos de Deus, que é como dizer “coração da Vida” e de tudo quanto existe.
Quê é este Ano Jubilar especial que a Igreja celebra? O texto bíblico do Levítico 25 nos ajuda a compreender o que significa “jubileu” para o povo de Israel. A cada 50 anos os hebreus ouviam o alegre som do “jobel” (corneta de chifre de carneiro) que ecoava nas montanhas e nos vales, convocando a todos (“jobil”) para celebrar um ano jubilar. Neste tempo devia-se recuperar a boa relação com Deus, com o próximo e com toda a Criação, fundada na gratuidade. Era um ano do perdão, ou seja, os pobres ficavam livres de suas dívidas, os escravos recuperavam a liberdade, os camponeses obrigados a desfazer-se da propriedade de sua terra a recuperavam... Podiam respirar, podiam viver, era o jubileu.
No Evangelho de hoje, os pastores, ao encontrarem o recém nascido deitado na manjedoura, viram nele o rosto da misericórdia: chegou para eles um novo Jubileu; por isso, “voltaram glorificando e louvando a Deus por tudo que tinham visto e ouvido”. Chegou para eles, e para todos os excluídos da história, um novo tempo, tempo de libertação do império e da religião, o cancelamento de suas dívidas, a mesa compartilhada com todos, a festa que nunca se acaba, a solidariedade humanizadora, a vida expansiva...
Nisto consiste o jubileu da Misericórdia.
Este é o convite que o papa Francisco expressa em sua Bula “Misericordiae Vultus”:
“Neste Ano Santo, poderemos fazer a experiência de abrir o coração àqueles que vivem nas mais variadas periferias existenciais, que muitas vezes o mundo contemporâneo cria de forma dramática. Quantas situações de precariedade e sofrimento presentes no mundo atual! Quantas feridas gravadas na carne de muitos que já não têm voz, porque o seu grito foi esmorecendo e se apagou por causa da indiferença dos povos ricos. Neste Jubileu, a Igreja sentir-se-á chamada ainda mais a cuidar destas feridas, aliviá-las com o óleo da consolação, enfaixá-las com a misericórdia e tratá-las com a solidariedade e a atenção devidas. Não nos deixemos cair na indiferença que humilha, na habituação que anestesia o espírito e impede de descobrir a novidade, no cinismo que destrói. Abramos os nossos olhos para ver as misérias do mundo, as feridas de tantos irmãos e irmãs privados da própria dignidade e sintamo-nos desafiados a escutar o seu grito de ajuda. As nossas mãos apertem as suas mãos e estreitemo-los a nós para que sintam o calor da nossa presença, da amizade e da fraternidade. Que o seu grito se torne o nosso e, juntos, possamos romper a barreira de indiferença que frequentemente reina soberana para esconder a hipocrisia e o egoísmo” (N. 15).
As consequências práticas do Jubileu da Misericórdia são imensas: que se eliminem as dívidas das pessoas e dos países explorados; que se abram as fronteiras aos imigrantes; que abramos as portas à misericórdia e os corações à esperança; que caminhemos, guiados pela ternura das entranhas, para a harmonia e o descanso da terra, para a libertação de todos os que vivem oprimidos; que situemos o amor e a misericórdia como centrais na vida cristã, como modo de ser essencial do cristianismo, e isso implica: amar e perdoar os outros, optar pelos pobres e por nossa casa comum a Mãe Terra, lutar pela justiça, mudar o sistema atual que só concentra riqueza, que exclui grande parte da humanidade e destrói a natureza, buscar estilos de vida alternativos ao atual paradigma tecnocrático patriarcal e consumista; que abandonemos a pastoral do medo, do legalismo e do moralismo, aproximando-nos do sacramento da Reconciliação como um espaço de misericórdia e não de tortura; que atualizemos as obras de misericórdia descritas em Mateus 25,31-46 com reformas sociais estruturais; que nos desloquemos e nos aproximemos dos lugares de sofrimento e dor: migrantes e refugiados, indígenas, camponeses, bairros periféricos, mulheres abandonadas, doentes, idosos, prostitutas, crianças de rua, drogados, inválidos, creches, cárceres...
Os textos bíblicos nos mostram as “três graças” da Misericórdia: sua operosidade, ela é uma obra eficaz; sua bem-aventurança: ela estabelece na terra o Reino do céu; sua alegria: ela alegra quem a exerce e quem a recebe.
No Documento de Aparecida, as tradicionais obras de misericórdia ganham nova feição, traduzindo-se em afirmação da dignidade humana, defesa incondicional da vida, promoção do bem comum, justa distribuição de renda, inclusão social, defesa dos direitos humanos, acesso aos bens culturais, salário justo e segurança alimentar (nn. 358-359).
Se recuperarmos as atitudes de misericórdia e compaixão, teremos entrado na vivência essencial do Evangelho. O decisivo é que a Igreja toda se deixe reger pelo “Princípio-Misericórdia”, sem ficar reduzida simplesmente a somar “obras de misericórdia”.
A misericórdia é para os audazes e criativos, capazes de revolucionar a existência com atitudes maduras de amor profético, alargando espaços onde imperam somente a doutrina, os esquemas rígidos e as retóricas de poder e de juízo daqueles que não se deixam conduzir pela força humanizadora da Misericórdia.
Texto bíblico: Lc 2,16-21
Na oração: Ao longo deste ano jubilar, deixemos nos inspirar pela oração de Santa Faustina, humilde apóstola da Divina Mi-sericórdia de nosso tempo:
“Ajuda-me Senhor, a que meus olhos sejam misericordiosos, para que eu jamais suspeite ou julgue segundo as aparências, mas que busque o belo na alma de meu próximo e acuda em ajudá-lo;
- a que meus ouvidos sejam misericordiosos, para que leve em conta as necessidades de meus próximos e não seja indiferente às suas penas e gemidos;
- a que minha língua seja misericordiosa, para que jamais fale negativamente de meus próximos mas que tenha uma palavra de consolo e perdão para todos;
- a que minhas mãos sejam misericordiosas e cheias de boas obras;
- a que meus pés sejam misericordiosos para que sempre me apresse em socorrer meu próximo, dominando minha própria fadiga e meu cansaço.
- a que meu coração seja misericordioso, para que eu sinta todos os sofrimentos de meu próximo”.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
“Olha que teu pai e eu estávamos, angustiados, à tua procura” (Lc 2,48)
Os laços de sangue e o ambiente amoroso e afetivo, próprios de uma família, deveriam ser pontos de apoio para aprender a sair de nós mesmos e ir ao encontro dos outros, com nossa capacidade de comunhão e de serviço. As relações familiares deveriam ser espaço de humanização e nos motivar a não nos deixar determinar pelo nosso individualismo e egoísmo. Se na família superamos a tentação do egoísmo amplificado, aprenderemos a tratar a todos com a mesma humanidade.
Não nos deve assustar o fato de que a família, hoje, esteja em crise. O ser humano está sempre em constante evolução; se assim não fosse, já teria desaparecido há muito tempo. Com o Evangelho da Infância na mão, devemos buscar dar resposta aos problemas que a família hoje apresenta. A Igreja não deve esconder a cabeça na areia e ignorá-los ou continuar acreditando que isso se deve à má vontade das pessoas.
Como cristãos, temos a obrigação de fazer uma séria autocrítica sobre o modelo de família que encontramos hoje. Jesus não sancionou nenhum modelo, como não determinou nenhum modelo de religião ou organização social. O que Jesus revelou não faz referência às instituições, mas às atitudes que os seres humanos deveriam ter em suas relações com os outros.
Não basta defender de maneira abstrata o valor da família. Tampouco é suficiente imaginar a vida familiar segundo o modelo da família de Nazaré, idealizada a partir de nossa concepção da família tradicional. Seguir a Jesus, às vezes, pode questionar e transformar esquemas e costumes muito enraizados em nós. A família não é para Jesus algo absoluto e intocável. Mais ainda. O decisivo não é a família de sangue, mas essa Grande Família que, nós seus seguidores, devemos ir construindo, escutando o desejo do único Pai-Mãe de todos.
O Evangelho de hoje deixa claro que Maria e José tiveram de aprender isso, não sem problemas e conflitos. Seus pais “não compreenderam as palavras que lhes dissera”. Só aprofundando em suas palavras e em seu comportamento diante de sua família, descobrirão progressivamente que, para Jesus, o primeiro é a família humana: uma sociedade mais fraterna, justa e solidária, tal como o Pai deseja.
Iniciado no templo de Jerusalém, o evangelho da Infância também se encerra neste ambiente, que é o coração espacial da encarnação. De fato, como dirá Jesus na sua última entrada na cidade santa, as pedras de Jerusalém gritam.
É a primeira iniciativa independente e consciente do adolescente Jesus: Ele está cortando muitos vínculos com um só gesto; não pede permissão aos seus pais, pois vive em sintonia profunda com o Pai. À medida que Jesus vai crescendo em idade, cresce também nele a consciência da sua relação com o Pai celeste. E, a partir dela, toma decisões por sua conta, sem consultar seus pais terrenos; decisões que não os surpreendem, mas que os fazem sofrer. O filho é um mistério para a mãe. Embora feita com todo o carinho de um coração de mãe, a pergunta de Maria – “Meu filho, porque agiste assim conosco?”- mostra sua perplexidade diante do comportamento de Jesus.
É a segunda estadia de Jesus no templo, depois da visita da circuncisão. Trata-se do seu ingresso oficial na comunidade hebraica, inaugurando sua maioridade. É nessa ocasião que Jesus pronuncia as primeiras palavras registradas pelos evangelhos. E a primeira palavra, na prática é “Pai”, dirigida a Deus; “Pai” será também a última palavra pronunciada por Jesus, ainda em Jerusalém, mas no novo templo do Calvário: “Pai, em tuas mãos entrego meu espírito” (Lc. 23,46).Jesus voltará a Jerusalém outras vezes; aí vai morrer e ressuscitar, porque Jerusalém é o sinal da vida e da morte, das lágrimas e da beleza, do sangue e da luz. Em Jerusalém, Jesus encontrara alegria e dor, morte e vida, acolhimento e rejeição; Jerusalém é a cidade da história humana e da história salvífica: lá está a “casa” do templo, a “casa” do Senhor, e a “casa” da dinastia de Davi, da qual descende o Cristo.
Nas primeiras palavras de Jesus temos a afirmação condensada do que será a sua vida, a revelação do seu mistério mais profundo. A relação com o Pai é, com efeito, a que determina todas as suas atitudes e ações. Para Jesus é uma “necessidade” realizar na história concreta de sua vida o desígnio salvífico do Pai. Ela tem uma prioridade absoluta. Sobrepõe-se a todos os outros deveres, inclusive ao dever sagrado da piedade para com os pais.
Porque não se pertence a si mesmo, Jesus também não pertence a seus pais terrestres. Ele – sua pessoa, sua vida e sua missão – pertencem inteiramente ao Pai. Estas primeiras palavras de Jesus nos revelam onde está o centro de sua identidade e de sua missão: na sintonia e na comunhão com o Pai.
Na “perda e encontro” de Jesus no Templo se condensa toda sua vida, que é buscar a Vontade do Pai. Mas Jesus não é somente este jovem que decide “perder-se” no templo; é todo cristão que busca a Vontade de Deus; somos todos nós, convidados a “perder-nos” na busca de Deus, de seu Reino, da missão que Ele tem reservada para nós.
Hoje só há uma condição para poder entrar em sintonia com o coração do Pai: sentir-se “perdido”, como Jesus, buscando o bem dos demais, o serviço da Igreja, do Reino de Deus... Diferentes maneiras de expressar nosso chamado a servir.
Hoje, certamente Jesus não se “perderia” nos Templos (tão vazios) mas nos grandes centros, nos grandes shoppings, onde estão os novos sacerdotes, sem história e sem futuro, fazendo sacrifícios nos grandes altares do consumo. Ali poderíamos encontrá-Lo arguindo sobre a humanidade, criticando-os por fazer destes lugares um templo fechado, um verdadeiro bunker, um mercado de privilegiados, que fecha as portas aos irmãos mais pobres e necessitados.
Igualmente, Ele se “perderia” buscando os filhos do Pai abandonados à sua sorte, excluídos, perdidos nas ruas fedidas, explorados nos lugares de trabalho e sem nenhum tipo de segurança social. Hoje Jesus se “perderia” de novo em nossas peregrinações, se perderia nos “novos templos”. E é ali onde podemos encontrá-Lo. É a partir dali que Ele nos convida a encontrar a vontade de Deus nos imigrantes, nos excluídos, nos irmãos e irmãos que arriscam tudo para dar vida, uma vida, às vezes mínima, sem privilégios, nem extras, para que suas famílias vivam com um mínimo de oportunidade.
Texto bíblico: Lc 2,41-52
Na oração: Para inverter a “solidão desumanizante” na qual muitas famílias estão mergulhadas, é fundamental “re-tecer vínculos”. Para isso é preciso re-aprender a dizer e a ser “nós”, sem que ninguém fique sobrando. E, na família, há espaços onde isto se pode viver, fazer visível e viável.
Somente uma vivência familiar humanizada nos capacita para construir “comunidades de solidariedade”.
- Usando a imaginação, coloque sua família junto à Família de Nazaré: há aspectos comuns? Discrepantes?
- O que é preciso ativar para que sua família seja o rosto visível da Família de Jesus?
Pe. Adroaldo Palaoro sj
“Isto vos servirá de sinal: encontrareis um recém-nascido envolvido em faixas e deitado numa manjedoura” (Lc 2,12)
“Jesus Cristo é o rosto da misericórdia do Pai”. Frase de abertura da Bula “Misericordiae Vultus”, onde o Papa Francisco motiva toda a Igreja a celebrar o Jubileu da Misericórdia. E a festa natalina é uma ocasião privilegiada para o encontro com a Misericórdia de Deus que se tornou viva, visível e atingiu sua máxima revelação no rosto de uma Criança.
Neste Natal o convite é claro: abrir as portas da misericórdia para acolher uma Criança inocente, mansa e misericordiosa. É ela que ativará a faísca da misericórdia presente no interior de cada um de nós. Natal é Misericórdia que se expande, envolve toda a Criação e nos move a sermos mais ternos e humanos.
Ao aproximarmos de Belém para olhar e contemplar o rosto do Menino-Deus, acessaremos, ao mesmo tempo, o mais profundo do coração humano, carregado de misericórdia e bondade. A misericórdia humana é uma faísca divina que pode se atrofiar, jamais se apagar. São necessários alguns momentos densos para que esta chama seja ativada. A vivência do Natal é um deles.
Em Belém somos pacificados de nossas ansiedades e pressas de fazer mais e de conseguir mais, de nossa sede de poder e de vaidade; e se permanecemos em silêncio ali, diante da manjedoura, brotará em nós um desejo profundo de sermos mais humanos, de sermos aquilo que já somos, refletido no rosto aberto daquele Menino; ao mesmo tempo, brotará um desejo de venerar cada ser humano, de contemplá-lo em seu interior, esse lugar ainda não profanado em cada pessoa, o lugar de sua infância e de sua paz.
No momento em que o Verbo de Deus assume um rosto, todo ser humano chega à plenitude de sua realização: entra em comunhão com o Infinito e recebe uma dignidade infinita.
“Deus se humanizou”: tal expressão revela que a Misericórdia de Deus significa também ternura. Apareceu um Menino: apareceu a ternura e a doçura do Deus que salva. No rosto de uma criança se faz visível a Misericórdia que desce sempre mais abaixo, que nasce no ventre da terra e se faz terra fértil.
A verdadeira Misericórdia sabe desta ternura e desta reverência diante do outro; não é unicamente uma qualidade do modo de ser de Deus, senão o Ser mesmo que Ele é. É o que se entrega, amorosa e delicadamente, e que para isso desce sempre mais abaixo, nos extremos da condição humana.
Misericórdia carregada de humanidade: possibilitadora de tudo o que existe, discreta presença expansiva que ilumina todas as expressões de vida, Rosto que desvela todos os rostos e a todos dignifica. Abrir-se à dinâmica da ternura parece ser a grande aspiração de nosso tempo, marcado pela frieza nos relacionamentos, pelo preconceito que cria barreiras, pela prepotência que alimenta violências.
Somos ternos quando nos abrimos à linguagem da sensibilidade, entrando em sintonia com as alegrias e dores do outro; somos ternos quando reconhecemos nossa fragilidade e entendemos que a força nasce da partilha do alimento afetivo com os outros; somos ternos quando acolhemos a diferença que nos enriquece; somos ternos quando abandonamos a lógica da violência, protegendo os nichos afetivos e vitais (grutas) para que não sejam contaminados pelas exigências da competição e produtividade.
Este é o convite insistente do Natal: marcados pela ternura de Deus, viver misericordiosamente.
Na noite do Natal, a Misericórdia “desce” aos rincões da humanidade; uma intensa Luz brilha no interior da gruta e nos convida a olhar contemplativamente todo o universo e descobrir o significado do mundo. “Deus se fez mundo, a misericórdia se faz carne”.
A contemplação do Nascimento de Jesus nos impulsiona a fazer a travessia para o interior de uma Gruta: ali o Grande Mistério da Misericórdia se faz visível e revelador do sentido da existência humana. Trata-se de “entrar” nela com suavidade, de percebê-la e fazê-la descer até o coração, de convertê-la em matéria de consideração e oração silenciosa e surpreendida.
A contemplação desse Menino na Gruta revela que Deus, na sua Misericórdia, assumiu a aventura humana desde seus começos até seus extremos. Deus se fez “tecido humano”, revestiu o ser humano de sua própria glória, plenificou-o de sentido e de finalidade. No nascimento de Jesus é revelada a grandeza, a dignidade, o mistério inesgotável do ser humano. Nossa humanidade foi divinizada pela “descida” de Deus. “Sendo rico, Cristo se fez pobre para que nós participássemos de sua riqueza” (2Cor. 8,9).
Tudo isso é Deus na nossa carne quente e mortal. Um Deus que “adentrou” na humanidade e de onde nunca mais saiu; um Deus que agora pode ser buscado em nossa interioridade e em tudo o que é humano. Na pobreza, na humildade da própria história pessoal, inserida na grande história da humanidade, torna-se possível acolher o dom da Misericórdia de Deus visível na Criança de Belém.
“Em uma carne espiritual calosa, fossilizada, endurecida, Deus não pode vibrar. Deus vibra sempre no terno. O Natal evoca em nós aquele menino que fomos e aquela criança na qual, quando sonhamos, ainda captamos a presença de Deus... O menino é um olho aberto e maravilhado diante desta Presença” (A. Olivier).
A publicidade dos meios de comunicação, as cadeias de televisão vão nos impondo olhos para ver o de cima, o que conta, o que vale, o que impera. Enquanto que Belém arrasta nossos olhos para baixo, nos convida a olhar para o que não aparece, o que não conta, o que quase não se vê.
Em tempos de deslocamentos forçados para milhões de seres humanos, na era da tecnologia e da comunicação virtual, somos convidados a olhar o “reverso” da história para encontrar salvação, buscá-la sob o signo da debilidade em um entorno prepotente. O Natal nos aponta para o pequeno, o último... nos faz dirigir o olhar para a periferia, onde o coração de Deus armou sua tenda.
Deus pode ser encontrado não na estrada suntuosa do domínio e do poder, mas na estrada da doação, da partilha, da solidariedade... A única explicação da “descida” de Deus é sua “misericórdia compassiva”. A indigência e a fragilidade da humanidade atrai a plenitude da ternura e da graça de Deus. No Verbo feito homem nos é revelada a grandeza, a dignidade, o mistério inesgotável de todo ser humano.
Texto bíblico: Lc. 2,1-14
Na oração: A cena do Nascimento de Jesus pede tempo, presença, assombro... para deixar-nos afetar por ela.
- descer aos rincões interiores com a luz do Nascimento de Jesus; abrir espaço para que a luz chegue até os recantos mais escondidos; “nas cavernas interiores está escondido nosso verdadeiro tesouro”;
- nós nos humanizamos ao mergulhar na humanidade de Jesus.
Humanizando-se, Jesus desatou todas as possibilidades humanas presentes em cada pessoa.
Que a celebração do Natal faça emergir o que há de mais “humano” em cada um de nós.
Um “humano Natal” a todos!
Pe. Adroaldo Palaoro, sj
“Quando Isabel ouviu a saudação de Maria, a criança pulou no seu ventre...” (Lc 1,41)
Nos relatos do Evangelho de Lucas há duas mulheres, Maria e Isabel, que experimentaram profundamente o dom da gratuidade, e seu lugar de carência se converteu em lugar de abundância. As duas descobriram o dinamismo curador das relações e a riqueza que os contatos pessoais contêm.
As relações que nos constituem são o tecido pelo qual circula nossa abertura a Deus e por onde crescemos em humanidade, acolhendo e sendo acolhidos pelos outros.
Vivemos em um mundo hiperconectado, em contato permanente e presente, ao mesmo tempo, em todos os lugares. O mundo, nossa vida, se converteu num “chat” contínuo. No entanto, em meio a este “chat” universal, a conversação emudeceu; a maior parte de nossas “conversações” tornaram-se prisioneiras das telas (celulares, tablets, smartphones, internet). Corremos o risco de reduzir a comunicação à conexão. Banalizam-se os conteúdos da conversa, mas também são amputadas dimensões fundamentais da experiência da comunicação, sobretudo a presença física. Sem essa presença, sem o encontro pessoal, não é possível o diálogo e a verdadeira comunicação. Este empobrecimento da comunicação vivente com o outro, ou a atrofia e medo de um face-a-face, é sinal claro de uma profunda desumanização.
O “mistério da visitação” nos possibilita recuperar o sentido e o dinamismo de um encontro interpessoal. O encontro é uma realidade inter-humana dinâmica e, até certo ponto, tem algo de arriscado e imprevisível, derrubando todas as nossas prévias tentativas de controlá-lo.
Podemos planificá-lo preparando estratégias; podemos acolhê-lo cheio de expectativas ou, pelo contrário, sem elas, esperando uma mera formalidade, repetição de outras situações semelhantes; podemos nos mostrar desejosos ou desconfiados, seguros ou ansiosos... De repente, algo inesperado acontece, na outra pessoa, ou em nós mesmos, ou no contexto, convertendo aquele encontro numa situação única e original, afetando nosso viver ou transformando nosso eu profundo.
O evangelho de hoje nos apresenta uma visita inesperada: a visita daquela que não permanece fechada nem ensimesmada em seu mistério; a visita daquela que se sente impulsionada a sair de si mesma para colocar-se a serviço daquela que está necessitada de ajuda.
Uma visita alegre, espontânea e gratuita, porque cheia da experiência de Deus; Maria que faz Isabel sentir a alegria de uma maternidade não esperada. Isabel que faz Maria sentir as maravilhas que Deus realizou nela. Uma visita que se expressa em dois cantos de louvor e ação de graças: “Bendita és tu que acreditaste” e “Minha alma engrandece o Senhor”.
Há visitas que não significam muito: só servem para matar o tempo e “jogar conversa fora”. E há visitas que despertam vida, que faz saltar a vida que carregamos dentro de nós. Por isso, todos somos seres carentes de “mais visitações”. Visitações que despertem nossas possibilidades e sonhos, visitações que nos façam saltar de alegria, visitações que nos ajudem a reconhecer as maravilhas que Deus realiza em nós e nos outros.
À sombra do encontro entre Maria e Isabel e contemplando o modo de visitar e de ser visitado, agradecemos o tecido relacional que conforma nossas vidas. É um tempo para orar as relações, para considerar aquelas que precisamos continuar alimentando e aquelas que se romperam e que queremos reparar.
Agradecer as relações que nutrem nossa vida. Trazer ao coração as pessoas significativas que nos fizeram provar o sabor do amor em nós e seus bons efeitos. Recolher agradecidamente os pequenos gestos de amor, de carinho, de escuta, de confiança, de paciência... que tiveram conosco.
As duas mulheres se encontram em diferentes momentos vitais: Isabel na terceira etapa de sua vida, Maria quase na primeira, entrando na segunda. Uma é estéril e anciã, a outra, jovem e virgem, ambas portadoras de uma vida maior que elas mesmas, conhecedoras do mistério que crescia em seu interior.
Devido à sua gravidez, as duas se encontram fora da norma social, do estabelecido. Isabel é idosa para poder conceber, e Maria está grávida sem estar casada. Ambas deviam sentir não só alegria no abraço, mas também a comoção e as dúvidas: “quê vai acontecer?”, “como vamos ajeitar as coisas?”...
Elas apoiam-se mutuamente no momento no qual estão, na situação que atravessam; reconhecem-se e se confirmam; estabelecem um vínculo entre elas, aceitam-se mutuamente; não se julgam nem valoram em função do que a sociedade considera correto ou incorreto; compreendem o que significa para cada uma delas que algo novo está crescendo em seu interior.
Maria não vai só servir a Isabel; ela precisa de alguém que a partir de sua experiência lhe diga: “vai em frente, que isso é de Deus”. Necessita que Isabel a confirme e a bendiga. E Isabel, por sua vez, necessita agradecer o sonho de Deus que as duas compartilham e que se tornou possível.
Estas mulheres são um ícone preciosíssimo para cultivar as dimensões do diálogo intergeracional e a necessidade que temos de diálogo em todas as dimensões da vida, entre as culturas, entre as diversas tradições religiosas... O diálogo como caminho para a comunhão. Elas nos conduzem a agradecer a capacidade feminina, que homens e mulheres tem, de deixar transparecer o Mistério que nos habita, de despertar-nos uns a outros para essa Vida que nos habita e cuja presença reconhecemos.
Isabel e Maria se convertem cada uma em comadre, em parteira da outra; a partir de seus diferentes momentos vitais, vão se ajudar a esperar e a passar o processo do “dar à luz”. Na vida nova que está se gestando nelas, no secreto, anseiam em uníssono para trazer ao mundo algo de Deus que estava oculto. As duas sabem de espera e de dores de parto. O parto não é um fato isolado e acontece nele a contração e a relaxação, a dor e o prazer, a posse e o desprendimento, a tristeza e a alegria, o medo e a confiança. Isto que as parteiras mencionam como momentos do parto, do “dar à luz”, são momentos de nossa vida, de nossas relações. Todos nos reconhecemos aí. Somos parteiros uns dos outros, e necessitamos cuidar desses processos cotidianos onde a vida do Espírito se manifesta como luz da vida.
Os ícones que ao longo dos séculos expressam esta visita, esta saudação, nos apresentam as duas mulheres vinculadas, unidas por um abraço, por um beijo, por uma mesma alegria. Em seu modo de entrar em relação, em sua maneira de dialogar, se apresentam na qualidade de mestras para nós, para nossa humanidade fragmentada que aspira relações novas.
Isabel e Maria se fazem valer mutuamente e despertam o melhor que há em cada uma. Viveram uma história de agradecimento e de libertação, se encontraram a partir da alma, a partir do mais profundo de si mesmas e se ofereceram mutuamente palavras amigas, palavras de encorajamento e de sabedoria. Elas nos ajudam a nos perguntar: Quê tipo de história relacional queremos viver? Uma história a partir do ego ou a partir interioridade?
Texto bíblico: Lc 1,39-45
Na oração: sua casa, lugar de visitação e encontro, espaço humano de partilha, convivência, festa, ajuda...?
Ou, casa cercada de parafernália eletrônica de segurança, com entrada rigorosamente controlada..., impedindo o acesso até mesmo dos mais próximos (parentes, amigos)?
- Seja uma casa sempre aberta: “entrada franca”;
Casa, lugar do lava-pés, do mandamento novo, da amizade, da oração...
Casa, lugar do discipulado: olhar, escutar e seguir
Casa, lugar de unção-acolhida, serviço e cuidado...
Casa, lugar do Nascimento, da experiência de um Natal permanente.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
“As multidões perguntavam a João: ‘que devemos fazer?’” (Lc 3,10)
Na iminência da vinda do Messias, os que se deixam envolver pela pregação do Batista lhe pedem normas de comportamento. Estas poderiam ser resumidas numa palavra: humanismo, ser gente.
Novamente, estamos acostumados demais a estes textos, impedindo-nos de descobrir sua novidade. Mas, o normal que se esperaria do profeta e asceta como o Batista, seria: exercícios de penitência, jejum e cilício. No entanto, o Batista tem as ideias muito claras; não propõe às pessoas acrescentar às suas vidas novas práticas religiosas, não lhes pede que fiquem no deserto fazendo penitência, não lhes fala de novos preceitos. É preciso acolher o Messias, olhando atentamente e comprometendo-se com os necessitados.
Em outras palavras: viver a partilha; para os fiscais de imposto, serem honestos; para os soldados, não devem molestar as pessoas e contentar-se com seu soldo.
Ser humano: esta é a exigência do momento quando o Reino de Deus acontece no meio de nós.
Nesta terceira semana do Advento os sinais se tornam mais concretos: é preciso abrir-se à alteridade para viver a partilha, sair do estreito círculo do “meu”, para que o instinto de posse deixe passagem à liberdade de preferir o bem maior da relação: oportunidade de humanizar nosso louco consumismo, fazer-nos mais sensíveis ao sofrimento das vítimas, crescer em solidariedade prática, denunciar os desmandos na gestão da coisa pública, ativar a força da compaixão... Essa será nossa maneira de acolher com mais verdade o Messias em nossas vidas.
O Advento nos torna flexíveis, atentos às inspirações do Espírito; é um estado de alerta, de escuta e de uma grande atenção em relação à realidade que nos cerca, buscando ser presença que ajuda, que eleva e que salva quem está em situação de necessidade. O Advento revela a natureza humana verdadeira, quando esta não está entulhada pela ilusão e pelo ego; é des-centrar-nos, desfazer-nos de tudo aquilo que acreditamos ser, para que somente fique em nós o que é próprio de Deus.
Viver em “estado de mobilidade expansiva” é sair de nossos hábitos, sair do conhecido. Se entrarmos nessa aventura, nossa vida será virada pelo avesso e completamente questionada.
O Advento é o que diz “sim” em nós: sim à vida, sim ao compromisso, sim à compaixão... É necessário que descubramos em nosso interior, o sim mais profundo; ativá-lo para que nossa vida cresça em humanidade e alargue nossa capacidade de sair e caminhar para além de nós mesmos. O sim interior deve ser uma irradiação de todo o nosso ser.
Quando o impulso para o além, para a transcendência nos habita, tudo se torna sagrado, nossos olhos se tornam contemplativos e se fazem mais oblativos, movendo-nos em direção aos outros. Podemos dizer que o Advento, quando carregado por uma expectativa de Alguém que vem ao nosso encontro, destrava nosso coração, mãos e pés: coração cheio de compaixão e ternura; mãos que curam, cuidam, abençoam... e pés que nos arrancam de nossos lugares estreitos e nos deslocam em direção às margens, para junto dos pobres e excluídos.
Uma pessoa marcada pela vivência do Advento não é aquela que, por medo, se distancia do mundo, mas é aquela que, movida por uma radical paixão, desce ao coração da realidade em que se encontra, aí se encarna e aí deixa transparecer o rosto da velada presença do Inefável. Isso significa uma maneira diferente e original de ser presença na realidade, dividida e conflituosa.
A espera do Messias não é passiva; ela se revela na saída de si mesmo, descentrar-se para entrar em sintonia com o outro, sobretudo os mais necessitados.
A espera implica um “modo de proceder” aberto e expansivo... Também na vivência cristã somos contaminados pela cultura do imediatismo e do ativismo; somos vítimas ingênuas de uma competitividade que nos é imposta e que nos exige desumanamente; com isso, o desejo de ajudar e de servir ficam soterrados pelo esgotamento, pela descrença e pelo desgaste profundo.
Há uma doença terrível e mortal que nos afeta a todos: a “compulsão prática” (popularmente conhecida como “fazeção”) ou seja, preocupação sem medida com o “fazer”. Com a chegada do “utilitarismo”, a pessoa passou a ser definida pela sua “produção”: a identidade é engolida pela “função”. E isto se tornou tão enraizado nela que, quando alguém lhe pergunta “quem ela é”, responde imediatamente o “que ela faz”.
Estamos mergulhados na cultura de resultados. A existência inteira faz-se maquinal e rotineira; já não encontramos mais “tempo” para desfrutar das atividades mais simples e humanas. Sentimo-nos invadidos por ruídos, pressas, atropelos, ansiedade, resultados imediatos, vivências superficiais... sem uma unidade interna e sem uma direção. Vivemos uma quantidade de experiências rápidas, amontoadas, sem possibilidade de avaliação... e vamos perdendo, pouco a pouco, a história pessoal e comunitária. Com isso, nosso “modo de viver” torna-se rotineiro, pesado, carregado de desencanto..., nos tornamos medíocres e nos acomodamos na passividade.
Nossas ações e nosso serviço se esvaziam, tornam-se “insensatos” (sem sentido, sem inspiração e sem motivação: “para quê?” “para quem?”); fazemos coisas que não faríamos se pudéssemos tomar distância e discernir a respeito do que estamos fazendo. Tudo isso nos faz viver à margem de nós mesmos, na superficialidade... sem poder captar o “mistério” escondido em nosso interior, nos outros e nas criaturas.
É neste contexto dramático e perigoso que devemos situar o lugar e o sentido do Advento, fonte primordial de inspiração do novo, de sentido evangélico de nossa ação, de esperança ousada.... como um modo de ser, uma atitude de base a ser vivida em cada momento e em todas as circunstâncias.
O Advento é a contracorrente do ativismo. Se, de um lado, o ativismo nos arrasta para a repetição e a conservação, de outro lado, a espiritualidade do Advento nos impulsiona para a busca, a criatividade, a ação discernida... visando o “maior e melhor serviço”.
Devemos habitar um mundo onde a interioridade faz a diferença, ou seja, onde as pessoas se definem por suas visões, paixões, esperanças, sonhos, imaginação criativa...
Texto bíblico: Lc 3,10-18
Na oração: A realidade cotidiana (casa, comunidade, trabalho, militância, relações...) é o “lugar” onde somos chamados a viver o Advento e a deixar-nos conduzir pelo mesmo Espírito que animou João Batista, o levou a mergulhar na trama humana e a assumir o risco do compromisso.
- Contagiar os outros com a nossa esperança: esta é a disposição de uma “Igreja em saída” e que não aguarda numa sala de espera.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
“O pensamento volta-se agora para a Mãe de Misericórdia. A doçura do seu olhar nos acompanhe neste Ano Santo, para podermos todos nós redescobrir a alegria da ternura de Deus. Ninguém, como Maria, conheceu a profundidade do mistério de Deus feito homem. Na sua vida, tudo foi plasmado pela presença da misericórdia feita carne. A Mãe do Crucificado Ressuscitado entrou no santuário da misericórdia divina, porque participou intimamente no mistério do seu amor”. (Papa Francisco – Misericordiae Vultus)
Existe uma relação muito profunda entre Maria, Mãe de Jesus, o mistério da Misericórdia divina e a vivência da misericórdia. Desde sua concepção, Maria foi envolvida na infinita misericórdia de Deus Pai, pelo Filho e no Espírito Santo. Ela nos foi dada como Mãe, por seu filho Jesus, a própria misericórdia, e ela nos ama também de modo misericordioso, especialmente os pecadores e sofredores.
O Papa João Paulo II destacou na sua Encíclica “Dives in misericórdia” que Maria é a “pessoa que conhece mais a fundo o mistério da misericórdia divina” (n. 9).
Maria é a mãe que gerou a misericórdia divina na Encarnação, graça extraordinária que a coloca numa relação intima com Deus, o “Pai das misericórdias” (2Cor 1,3). Ao responder ao anjo “Eis-me aqui” e “Faça-se”, a Misericórdia divina se “faz carne” e entra na nossa história
Em qual sentido podemos proclamar Maria como “Mãe de misericórdia”?
O título “Mãe de misericórdia” assim se justifica: Maria é a mulher que experimentou de modo único a Misericórdia de Deus, que a envolveu de modo particular desde a sua Imaculada Conceição, passando pela Anunciação, vivendo como fiel discípula e seguidora do seu Filho, até o grande momento da Sua Páscoa (paixão, morte, ressurreição, glorificação e Pentecostes). Ela é “kecharitoméne”, “cheia de graça”, ou seja, totalmente transformada pela benevolência divina (cf. Ef 1,6).
No seu cântico o “Magnificat”, por duas vezes Maria, a profetisa, exalta a misericórdia de Deus; movida pelo Espírito, ela louva o Pai misericordioso: “a sua misericórdia se estende de geração em geração sobre aqueles que o temem”; “socorreu Israel, seu servo, lembrando-se de sua misericórdia”.
A misericórdia que Ela proclama no Magnificat foi vivida em todos os momentos de sua vida: desde o seu sim, até o momento em que acompanha os discípulos de seu Filho nos inícios da Igreja. E segue fazendo até o fim dos tempos.
Uma característica que particularmente toca o nosso interior, dada a nossa condição humana frágil e necessitada do auxílio de Deus, é a Misericórdia, que em Maria ecoa com muita intensidade, como a força de uma cascata, que penetra até os corações mais duros. Maria é, como rezamos, a Mãe de misericórdia. Mas para entendermos como toda a vida de Maria proclama a misericórdia, devemos primeiro penetrar no coração do Pai, rico em misericórdia, pois Maria é como a lua que reflete os raios do sol de justiça, que segundo a tradição da Sagrada Escritura é o próprio Deus.
Maria é a intercessora incansável do povo de Deus ; ela não deixa de apresentar as necessidades dos fiéis ao seu Filho. As “Bodas de Caná”, por exemplo, é uma concreta evidência de sua presença misericor-diosa. Ela se compadece da situação dos noivos e pede ao seu Filho realizar o primeiro “sinal”.
Em Caná, portanto, a novidade está numa nova forma de presença de Maria, que não se encontra interessada, em princípio, por fazer coisas, por resolver problemas, senão para traçar uma presença. Ela não está aí para “arrumar” as coisas, mas para escutar e compartilhar um momento festivo. Ela se encontra presente, num gesto de solidariedade que transcende e supera toda atividade.
Porque estava presente a Deus, Maria fez-se presente nos momentos decisivos de seu Filho, bem como fez-se presente na vida das pessoas. Uma presença que faz a diferença: presença solidária, marcada pela atenção, prontidão e sensibilidade, próprias de uma mãe.
Sua presença não era presença anônima, mas comprometida; presença expansiva que mobilizou os outros, assim como mobilizou seu Filho a antecipar sua “hora”.
Trata-se de uma presença que é “música calada” nos lugares cotidianos e escondidos, que sabe enternecer-se e escutar as inquietações que procedem desses lugares. Uma presença que descobre o próximo no próximo, que sabe resgatar a solidariedade na vida cotidiana. Uma presença que se manifesta na ausência de recompensa ou de interesse próprio.
Em definitiva, Maria descobre que é chamada a dar de graça o que de graça recebeu. Sabe entrar em sintonia com os sentimentos dos outros e construir vida festiva, e vida em abundância.
Sua presença misericordiosa revela um gesto profético de solidariedade e de anúncio: presença que aponta para uma outra presença, a de seu Filho, a misericórdia visível. Sua presença dignifica e revela um novo sentido à presença de Jesus numa festa de Casamento.
A presença misericordiosa, silenciosa, original e mobilizadora de Maria desvela e ativa também em nós uma presença inspiradora, ou seja, descentrar-nos para estar sintonizados com a realidade e suas carências. Tal atitude misericordiosa nos mobiliza a encontrar outras vidas, outras histórias, outras situações; escutar relatos que trazem luz para nossa própria vida; ver a partir de um horizonte mais amplo, que ajuda a relativizar nossos problemas e a compreender um pouco mais o valor daquilo que acontece ao nosso redor; escutar de tal maneira que aquilo que ouvimos penetre na nossa própria vida; implicar-nos afetiva-mente, relacionar-nos com pessoas, não com etiquetas e títulos; acolher na própria vida outras vidas; histórias que afetam nossas entranhas e permanecem na memória e no coração.
Evidentemente, nem toda presença é “saída de si”; uma pessoa pode passar pelos lugares sem que os lugares deixem pegadas; ela pode tocar a superfície das coisas e das vidas, mas esse contato deixa pouca memória e que logo desaparece. Com isso não há encontro nem aprendizagem.
Quando a pessoa se faz presença misericordiosa que desemboca no verdadeiro encontro, ela se expõe, se faz vulnerável, se deixa afetar... Mas essa é a oportunidade para transformar os olhares e os gestos de quem se atreve a sair dos horizontes estreitos e conhecidos.
São muitos os encontros que são fecundos para quem se faz presente e para quem acolhe esta presença. São muitas as pessoas cujas vidas ganham em seriedade, em profundidade, em compaixão e em alegria autêntica ao fazer esse caminho de saída de si.
São muitas as pessoas que, em contato com vidas e histórias diferentes e reais, compreendem melhor suas próprias vidas e sua responsabilidade.
Textos bíblicos: Lc 1,46-55 Jo 2,1-12
Ó Maria, Mãe que experimentastes e gerastes a Misericórdia, Mãe que proclamais e exerceis a misericórdia, fazei de nós autênticos apóstolos deste mesmo mistério de amor em nossos tempos e em nossos ambientes. Amém.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
“Esta é a voz daquele que grita no deserto: preparai o caminho do Senhor...” Lc 3,4)
Advento nos convida a “fazer estrada”, numa viagem em busca do mundo interior, sede dos desejos, daquilo que é importante e essencial, o nosso modo de projetar o futuro, as nossas decisões... Nesse “mergulho” interno cada um pode construir uma espécie de mapa do “eu”, com as regiões fortes e fracas, vulneráveis e criativas, transparentes e ainda misteriosas.
A figura de João Batista “toca” o coração de cada um e nos possibilita “entrar” em nosso mundo e captar em profundidade a nossa realidade, a perceber a raiz do nosso ideal de vida (cada vez mais atraente-convincente-exigente), como também suas contradições e ilusões, medos e necessidades.
Esse processo interior, motivado pela presença instigante do Batista, nos motiva a elevar vales e rebaixar montes de nossa paisagem interior: desmontar colinas do medo, nivelar os acidentados terrenos de esperança, alongar a “pele da alma” para nos redimir das escleróticas rugas dogmáticas e facilitar os caminhos do Senhor.
Profundidade e amplitude: são as duas dimensões ativadas neste tempo litúrgico do Advento; elas estão intimamente conectadas de modo que quanto mais profunda é uma pessoa, mais livre se faz de seus limites imediatos e mais capaz de olhar amplamente a realidade que a envolve.
E o percurso do caminho interior nos ensina muitas coisas. Aquele que “desce” em seu interior, é alguém que não tem medo de si mesmo, de olhar para si em todos os aspectos e dar-se conta do que está acontecendo. Um fio e intenso raio de luz penetra e ilumina, quase imperceptível, alguns rincões do seu aposento interior. Em seu silêncio interior, nas profundezas de seu ser, acolhe, escuta e reconhece o murmúrio de uma voz, chamando-o a engajar-se na aventura do serviço a Deus e aos outros. Com o passar do tempo, torna-se capaz de reconhecer a ação de Deus.
É ali que a pessoa descobre aquilo que podemos denominar a “bússola interior” do coração, algo capaz de lhe revelar as “moções” de seu íntimo; “moções” que mobilizam a energia vital mais profunda de seu ser. Esta interiorização é abertura, é dilatação do coração, é expansão do ser em direção a um mundo percebido como “morada do Criador”.
No nosso processo espiritual do Advento, devemos também ativar esta capacidade de ver quem somos nós, onde estamos, para onde vamos... sem o temor de nos defrontarmos com respostas desagradáveis. Somente partindo da realidade de nós mesmos, do conhecimento do nosso terreno interior, poderemos crescer como peregrinos em direção a um horizonte que progressivamente se mostrará sempre mais claro. Caminhando por estradas interiores desconhecidas, poderemos atingir experiências imprevistas e surpreendentes, ou reconhecer “vozes novas” que nos mobilizam na direção de uma causa nobre e divina.
Dizem que há pessoas capazes de serem curadas por uma voz, pela sonoridade de uma voz determinada. Vozes que “tocam” e despertam forças desconhecidas. Certas vozes nos devolvem ao nosso ser essencial. Quanto aspira nosso coração escutar uma voz que desate em nós forças libertadoras! Livres do domínio de nossas compulsões, livres para amar sem defesas, livres para sermos nós mesmos e poder entrar numa relação nova com a realidade...
Somos seres de palavras e somos também seres de silêncio. Neste mundo de “palavreado crônico” temos esvaziado o dom da palavra, as palavras tem pouco valor, as vozes se fazem estridentes e agressivas... Por isso, precisamos educar nossa voz no calor do silêncio, porque só o silêncio restaura a integridade de nossas palavras. Essas palavras podem curar, elevar, comunicar vida... Vozes que devolvem a dignidade a cada pessoa, remetendo-a a si mesma, ajudando-a a conectar com seu ser mais profundo.
Precisamos ouvir vozes que toquem nossas superfícies endurecidas e nos libertem de tantas ataduras que não nos deixam respirar com profundidade, nem olhar compassivamente, nem considerar a beleza da diversidade e da diferença. Também nós buscamos pessoas que possam nos dizer palavras para viver e somos também cobrados a entregar aos outros uma palavra de vida.
Os primeiros cristãos viram na atuação e na voz do Batista o profeta que preparou decisivamente o caminho para a chegada do Messias. Por isso, ao longo dos séculos, a voz do Batista continua ressoando com intensidade, despertando-nos para uma atitude de acolhida d’Aquele que quer fazer morada entre nós.
Lucas resumiu sua mensagem com este grito tomado do profeta Isaías: “Preparai o caminho do Senhor”.
O importante é a Voz, uma Voz que grita e diz: “preparai”. Ela nos define e nos faz ser mais humanos, pois alimenta nossa esperança e nos abre um caminho de transformação.
É tempo de profetas, tempo para escutar e discernir as vozes que vem do interior e vozes de outros homens e mulheres que abrem, com sua palavra, uma esperança de humanidade. Uma voz que grita no deserto: nossos “reinos neo-liberais” estão demasiados cheios de propaganda deste mundo, de poder e de dinheiro, de intrigas e invejas, de corrupção e falsos amores, de puras imagens que passam e morrem, mantendo as pessoas ocupadas em suas mentiras e ilusões.
É preciso sair ao deserto, retornar ao silêncio dos grandes profetas para escutar as vozes verdadeiras, aquelas que brotam do eu mais verdadeiro e que nos fazem mais humanos. Fernando Pessoa nos diz: “Há um tempo em que é preciso abandonar as roupas usadas, que já têm a forma do nosso corpo, e esquecer os nossos caminhos, que nos levam sempre aos mesmos lugares. É o tempo da travessia: e, se não ousarmos fazê-la teremos ficado, para sempre, à margem de nós mesmos”.
O caminho foi e continua sendo uma experiência de rumo que indica a meta e simultaneamente é o meio pelo qual se alcança a meta. Sem caminho nos sentimos perdidos, interior e exteriormente. Assim se encontra a humanidade, sem rumo e num vôo cego, sem bússola e sem estrelas para orientá-la nas noites tenebrosas.
Cada ser humano é “homo viator”, um caminhante pelos caminhos da vida. Assim disse o poeta cantor argentino Atahualpa Yupanqui: “o ser humano é a Terra que caminha”. Não recebemos a existência acabada; devemos construí-la. E para isso é preciso abrir caminho, a partir e para além dos caminhos andados que nos precederam. Assim, nosso caminho pessoal nunca está dado completamente: tem de ser construído com criatividade e sem medo.
Esse é o sentido de nossa existência: escolher quê caminho construir e como seguir por ele, sabendo que nunca o percorremos sozinhos. Conosco caminham multidões, solidárias no mesmo destino, acompanhadas por Alguém chamado “Emanuel, Deus conosco”.
O cristão é um contínuo peregrino, enamorado do caminho, não da meta. E caminhando aprenderá a ser feliz com pouco e a ser companheiro samaritano; aprenderá também que o caminho é a meta e que é mais importante saber caminhar que chegar. E caminhando, ele se tornará caminho: um caminho de terra e de ar, de pedra e de fontes, de árvores e nuvens, de encruzilhadas incertas e horizontes luminosos.
Num albergue para peregrinos estava escrito: “Tu és o caminho”. Sim, nós também somos o caminho, a verdade e a vida. Como João Batista, que no caminho deixa ecoar sua voz que desperta e mobiliza a entrar em sintonia com “Aquele que está vindo ao nosso encontro”.
Neste longo percurso, os convites de Deus são absolutos e constantes. Se estamos apegados ao que temos, jamais seremos capazes de “fazer estrada com Deus” e participar da preciosa vida que Ele nos oferece.
Texto bíblico: Lc 3,1-6
Na oração: “Senhor, mostra-nos teus caminhos!” Esta é a oração fundamental de Israel, a petição permanente dos Salmos. Para o povo que peregrina no deserto, é essencial conhecer direções e entender ventos. E para o coração que peregrina no deserto da vida, é essencial conhecer os caminhos do Espírito e os ventos da graça.
- Seu caminho tem “alma”? Tem “coração”? Tem “voz”?
Pe. Adroaldo Palaoro sj
“...levantai-vos e erguei a cabeça, porque a vossa libertação está próxima” (Lc 21,28)
Mais uma vez o Advento vem ao nosso encontro, e com ele o convite para continuar ampliando espaços para Deus em nossas vidas. Uma oportunidade para escutar de novo sua promessa: promessa de nova vida, de um novo ânimo, uma nova esperança.
Podemos acolher este tempo com a marca da rotina (mais um ano, repetir as mesmas palavras, a espera, o “vem, Senhor”...); ou mobilizando-nos e abrindo-nos à surpresa de Deus, que virá a nós como chamado, como possibilidade, como grito para despertar-nos... Que nos abramos ao novo!
O melhor do Deus que vem é que Ele se manifesta de maneiras inesperadas: desfaz certezas, rompe convenções, renova sonhos, não busca brilhos ou ornamentos, aplausos ou adesões forçadas. Sua chegada não exige cobranças nem condiciona com exigências desmedidas. A esperança abre passagem por onde menos esperamos. E Deus continua aparecendo onde e quando ninguém espera.
Para “conhecer” a realidade e a verdade do Advento precisamos de olhos novos e de um coração novo. É necessário despertar aquela “sensibilidade” escondida e abafada pelo ativismo e pelo ritmo estressante de nossa vida. No Advento, toda a humanidade é atingida como que por um raio, é tomada de surpresa. A sua noite, o seu silêncio, o seu sono, a sua rotina diária... é quebrada por uma novidade absoluta.
O Advento é, por sua própria natureza, uma surpresa que quebra a solidão das pessoas abandonadas a si mesmas, que irrompe no meio de uma vida sem sentido e sem direção, que traz luz para os ambientes fechados e frios.
A “sensibilidade” despertada pelo Advento recupera em nós o sentido da surpresa, recobra a atitude da expectativa, da novidade, do assombro... diante da vida. Porque é no traçado das horas e dos dias que Deus prepara sempre a sua novidade, a sua surpresa, o seu dom natalício. Tal surpresa faz brotar o entusiasmo para enfrentarmos os desafios da vida, despertando projetos arquivados, suscitando dinamismo novo no cotidiano pesado, fazendo-nos levantar de novo e retomar o caminho...
Precisamos conservar límpidos os olhos do espírito, prontos para perceber a maravilha que está germinando na nossa vida. O Advento quer reafirmar a possibilidade de uma alternativa, da chegada de um hóspede inesperado, porque é “boa nova”, é evangelho. Por isso, o cristão não deve jamais cair na resignação, mas permanecer em vigília, na expectativa; ele deve ser também uma surpresa para os outros, com seu gesto de amor imprevisto, com sua palavra que reanima, com sua visita que consola, com sua atenção para com todos os que levam uma vida obscura e monótona. Ele olha o mundo com inteligência, sim, mas também com a simplicidade das pombas; sabe intuir o bem secreto, também sabe apreciar a poesia da vida e da natureza.
No evangelho de hoje(1º dom advento), Jesus dá por suposto a existência de situações desastrosas que nos sacodem, enchendo-nos de ansiedade e preocupação; mas, onde nós só vemos catástrofes, Jesus vê “sinais”. E a condição para descobri-los é erguer a cabeça, levantar os olhos, ir mais além do imediato que nos cega e nos prende em redes de desejos insatisfeitos, em obsessões por conservar modos de vida que considerávamos definitivos, em temores que embotam nosso coração impedindo o fluir da vida.
Curvados sobre nós mesmos, sem horizonte, sem poder olhar de frente, nem entrar em relação de reciprocidade, carregando durante longo tempo um peso excessivamente grande (culpa, ressentimento, vergonha), bloqueados, privados de nosso próprio potencial: este é o drama que nos desumaniza. Nossos corpos encurvados se fazem texto, linguagem, grito, petição... para serem endireitados. Nesse contexto ressoa com força o apelo de Jesus: “levantai-vos e erguei a cabeça, porque a vossa libertação está próxima”.
Nosso corpo fala mais e com mais veracidade que nossas palavras, o que irradiamos revela algo sobre nós. E há corpos que em silêncio clamam por cura e cuidado. É preciso interrogar nossos corpos para que eles nos contem suas histórias guardadas: seus segredos, suas dores, suas vivências. Devemos ser capazes de lê-los e respeitá-los, para poder devolver-lhes sua harmonia e sua beleza originais.
É nosso próprio corpo posto de pé, é nossa própria vida circulando sem ataduras, é a libertação de nossas forças afetivas, a possibilidade de olhar outros olhos sem temor e de entrar em comunicação... que nos faz experimentar uma relação nova com a vida. Aspiração, sede, ansiedade, expectativa, estar de pé: isso é o que nos invade quando sentimos que se aproxima algo que desejamos de verdade. Pois isso é o Advento: tempo para os grandes sonhos.
Só os medíocres ou os desesperados renunciam a sonhar. Pois bem, se o desânimo nos assalta, é tempo novo para levantar a cabeça, olhar ao longe, bem para fora, bem para dentro. Deixar que ressoe como uma promessa a Voz de um Deus que atravessa o tempo para dizer-nos: “aproxima-se vossa libertação”.
Mergulhados naquilo que é margem, passageiro, na superfície das coisas, perdemos de vista o essencial e caímos na resignação. Perdida a capacidade de maravilhar-nos, o Advento esvazia-se e torna-se mais um tempo litúrgico rotineiro.
Poderíamos dizer que o Advento nos apresenta uma “espiritualidade do despertar”. Se estamos adormecidos ou anestesiados, sem nos encantar com a maravilha e o desafio de estarmos vivos, precisamos despertar. Despertar para a gratuidade da vida, para o chamado à convivência e comunhão, despertar para uma presença misericordiosa. Jesus vem despertar-nos e ativar nossa esperança.
É preciso saber olhar, abrir os olhos, ler a vida e despertar-nos para aquilo que acontece à nossa volta. Se há uma palavra que perpassa todas as tradições religiosas, essa palavra é “despertar”, não no sentido individualista e moralizante, ou seja, manter um adequado comportamento moral para, desse modo, alcançar a salvação.
O chamado original a “despertar” reveste-se de uma profundidade muito maior, que conecta com aquela palavra com a qual Jesus inicia sua atividade pública: “convertei-vos”. Na realidade, trata-se de um novo modo de olhar ou de conhecer, de um “conhecer mais além da aparência”.
Quê significa “despertar”? Em quê sonhos estamos mergulhados? Como dar-nos conta de que estamos “adormecidos”? Há algo que possamos fazer?... Todas estas questões são evocadas pelo convite que aparece na boca da Jesus: “Estai sempre despertos”.
A pessoa desperta é aquela que experimentou intensamente a vida e, graças a isso, vive ancorada, enraizada e conectada com a sua verdadeira identidade, ao seu eu original e universal.
Texto bíblico: Lc 21,25-28.34-36
Na oração: Quando foi Deus, para você, o Deus inesperado?”
Em quê se concretiza para você a promessa de Deus? Quê espera ou deseja de verdade? Qual é a boa notícia na qual você acredita? Como vive você este Advento? Quê há, em sua vida, de busca, sonho, aspiração, desejo... em sintonia com Deus?
Pe. Adroaldo Palaoro sj
Diretor do Centro de Espiritualidade Inaciana -CEI
“”Eu nasci e vim ao mundo para isto: para dar testemunho da verdade” (Jo 18,37)
A liturgia encerra o “ano litúrgico” celebrando “Cristo rei”, festividade promulgada em 1925 pelo Papa Pio XI. Mas, no atual contexto sociocultural, como soa em nossos ouvidos o título de “Cristo rei”? Este título nos permite fazer uma ideia justa de quem é Jesus de Nazaré? Tem sentido falar de “Cristo rei”?
Para começar, é preciso reconhecer que se trata de um “rei” pouco convencional: seu trono é uma cruz e sua coroa é de espinhos. Um rei bem estranho, pois afirmou: “Não vim para ser servido, mas para servir”. Frente a isto, o evangelho de hoje revela-se surpreendente e até escandaloso, porque nos apresenta esse título numa situação de humilhação e impotência extrema: na Paixão, com insultos, escárnios e zombarias dos chefes judeus, de Pilatos, dos soldados romanos...
Diante dos donos do poder e das autoridades religiosas que se julgavam em posse da verdade e que tinham um Deus feito à medida de seus interesses, Jesus afirma que “veio para dar testemunho da verdade”. De acordo com o evangelista João “ser rei” equivale a ser “testemunha da verdade”; e isso a tal ponto que com essas palavras se define a missão de Jesus: “Eu nasci e vim ao mundo para isto”.
Esta afirmação desvela e define a trajetória profética de Jesus: sua vontade de viver na verdade de Deus. Jesus não só diz a verdade, senão que busca a verdade e só a verdade de um Deus que quer um mundo mais humano para todos os seus filhos e filhas. Diante dessa verdade Jesus se revela verdadeiro, pura transparência. “Por isso Jesus fala com autoridade, mas sem falsos autoritarismos. Fala com sinceridade, mas sem dogmatismos. Não fala como os fanáticos que procuram impor sua verdade. Tampouco fala como os funcionários que a defendem por obrigação embora não creiam nela. Não se sente nunca guardião da verdade mas testemunha” (Pagola).
Jesus não transforma a verdade de Deus em propaganda. Não a utiliza em proveito próprio mas em defesa dos pobres e excluídos. Não tolera a mentira ou o encobrimento das injustiças. Não suporta as manipulações. Jesus se converte assim em “voz dos sem voz, e voz contra os que tem demasiada voz” (Jon Sobrino).
Quem é verdadeiro se move com muita liberdade em direção à verdade presente nos outros; não usa máscaras, não se impõe... Sua verdade vibra e se encanta com a verdade presente no outro. Verdades que se encontram, que entram em comunhão, que humanizam...
Toda pessoa verdadeira, transparente... incomoda, é provocativa... porque desmascara as nossas mentiras, nossas falsidades ocultas... Por isso é rejeitada. É difícil até definir e discernir o que seja a verdade, sobre o que é verdadeiro ou falso.
Pilatos, no evangelho de João, pergunta a Jesus: “O que é a verdade?” (18,38). Maior dificuldade ainda reside na imposição da verdade, em querer fazer o outro aceitar como verdadeiro aquilo em que eu acredito. Tentar convencer os outros gera conflito. Mas nem sempre nos contentamos com os argumentos. Especialmente quando o assunto é religião, existe a tendência de querer impor, pela força, pelo medo, aquilo que acreditamos ser verdadeiro.
Quanto fanatismo! Quanto dogmatismo! Quanto fundamentalismo! E tudo isso em nome de Deus. “A verdade também pode ter suas vítimas”.
A verdade não é um dogma e sim um caminho. Quanto mais verdades absolutas, mais estreito vai ficando o nosso mundo. Nunca podemos abrir mão de uma busca por uma verdade que subverta.Verdade não é apenas um princípio abstrato. Verdade é a realidade existente, o fato concreto, o conhecimento comprovado. A verdade des-vela o desconhecido, salienta a dignidade da pessoa, reivindica liberdade e igualdade, sustenta o significado essencial do ser humano, preserva os valores consistentes.
“Conhecer a verdade” é aspiração humana inata. O ser humano tem sede de verdade. Vai buscá-la nas encostas do mundo e nos recôncavos de seu espírito. Descobrir a verdade é conquista alvissareira. Compensa atravessar vigílias e trilhar veredas para chegar à verdade. Uma das angústias humanas é não alcançar o manancial da verdade. Enquanto existir verdade encoberta, o ser humano vive inquieto.
A verdade clareia a vida. Sem a verdade, a existência é sombria. A verdade gera autenticidade. Onde falta a verdade, instala-se uma lacuna na existência. Quem não vive a verdade, está carunchado por dentro. Impregnar-se da verdade é humanizar-se. Onde há verdade há humanidade transparente. Há rosto fascinante. Quando a verdade se des-vela e se faz visível, o ser humano se ilumina.
A humanidade busca a verdade, mas também pode asfixiá-la. Costuma-se reprimir a verdade que incomoda. E aqui tocamos um ponto tão nuclear como habitualmente mal entendido e pior vivido. A verdade não é uma crença (um conjunto de crenças), nem uma formulação ou uma doutrina.
Quando um cristão diz: “Eu tenho a verdade, porque Jesus disse que Ele era a Verdade, e eu creio nele”, caiu numa armadilha e, com frequência, numa danosa confusão. Ter uma crença não nos garante estar na verdade. Como se explica que alguém, em nome da “verdade”, cometa violência aos outros ou simplesmente os desqualifica? Quem faz isso é claro que não está na verdade. Quando a verdade se identifica com “crenças”, “formulações” ou “doutrinas”, acontecem efeitos estranhos, como o de confessar verbalmente uma coisa e estar vivendo a contrária.
Por isso, assim como a crença forçosamente tende a separar (os que creem e os que não creem), a Verdade sempre integra. Seguir a Jesus não significa ter determinadas crenças, mas estar dispostos a realizar a Verdade, o que Ele viu e viveu. Por isso, frente ao fanatismo que revela fechamento e estreiteza, a verdade requer abertura humilde, questionamento e flexibilidade. E é precisamente a pessoa que vive isto aquela que “é da verdade”.
Ser “testemunha da verdade” requer “viver na verdade”, não em algumas crenças. E viver na verdade inclui o reconhecimento e a aceitação da própria verdade, e da verdade presente no outro. Não pode estar na verdade quem não se aceita com toda sua verdade, com suas luzes e suas sombras; não pode estar na verdade quem vive identificado com seu ego ou com sua imagem idealizada. Pelo contrário, quando alguém se aceita assim, começa a viver na humildade e isso é já “caminhar em verdade”.
Afirmando de um modo mais claro: só conhece a verdade quem é verdadeiro, sem máscara ou disfarces. Quando se é verdade, conhece-se a verdade. É significativo que os antigos gregos entenderam a verdade como “a-létheia” (“sem véu”): quando “tiramos o véu” é quando emerge a Verdade do que somos. Aqui, cabe o termo “inventar”, que significa “descobrir o que está oculto”, e também significa “criar, fazer surgir o novo”.
Importa “inventar” a verdade, ir à morada da verdade, encontrar a verdade.
Isso é o que Jesus viveu. Porque chegou a experimentar a verdade profunda de si mesmo, pode dizer: “Eu sou a verdade”. Essa não era uma afirmação egóica, nem tampouco se referia a nenhuma crença ou ideia em particular. Era a proclamação-constatação humilde e jubilosa de quem des-velou e viu o “segredo” último de sua vida.
Texto bíblico: Jo 18,33-37
Na oração: Revele-se diante de Deus e deixe transparecer a verdade de sua vida: na confiança filial, des-cubra o que está recoberto, des-vele o que está velado, des-oculte o que está escondido, des-lumbre o que está ensombreado, des-mascare o que está camuflado, des-emudeça o que está calado, des-cative o que está algemado.
- A verdade que somos nunca pode ser algo que alguém tem e possa transmitir ou impor aos outros, mas a Presença que a todos sustenta e a todos abraça. Só a presença d’Aquele que é a Verdade ativa a verdade escondida em nosso interior.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
Diretor do Centro de Espiritualidade Inaciana – CEI
“O céu e a terra passarão, mas as minhas palavras não passarão” (Mc 13,31)
Estamos chegando ao final de mais um “ano litúrgico” (este é penúltimo domingo), e a liturgia nos propõe leituras que, fazendo referência aos “últimos tempos”, querem nos convidar à “vigilância” e a atenção ao tempo presente.
O Evangelho de hoje é parte do cap. 13 do Evangelho de Marcos, que contém um breve “apocalipse”, ou seja uma revelação, um des-velamento, um des-nudamento dos múltiplos véus que revestem o palco, lúdico e trágico, da encenação do drama humano, com suas contradições, incertezas, promessas e esperanças.
Devido às imagens que este gênero literário utiliza, com frequência atribui-se ao termo “apocalipse” um significado de “catástrofe” ou “destruição”. A realidade, no entanto, é diferente. Etimologicamente “apo-kalypsis” significa “destapar o que está escondido”, “tirar o véu”, “des-velar”, ou seja, “re-velação”.
À mesma raiz pertence a palavra “eucalipto”, cujo significa etimológico é: “eu-bem”; “kalypsis- escondido”, fazendo referência ao fato de que tem perfeitamente escondidas suas minúsculas sementes.
Assimpois, etimologicamente, “apocalipse” equivale a “verdade” (“aletheia”=sem véu). E, como consequência, o escrito apocalíptico pretende “retirar o véu” que nos impede reconhecer as coisas como são, ou seja, revelar-nos o que se encontra por debaixo da superfície, em um nível mais profundo. É como se o autor quisesse nos dizer: “as coisas não são o que parecem ser”.
Em cada momento histórico o texto do Apocalipse é lido e interpretado em função dos acontecimentos. Este gênero literário é uma luz que nos ajuda a “ler” a realidade (interior e exterior), desvelando tudo o que acontece nela e assim poder assumir uma atitude mais coerente com a proposta do Evangelho. Assim, pode-se “ler” esse texto como se escutasse um sonho revelador.
O Apocalipse, portanto, é um empenho da comunidade cristã em dar sentido a tudo o que está acontecendo e assim reencontrar sua dignidade no coração das situações mais difíceis.
A revelação que ocorre no interior de cada um e na realidade que nos envolve é o desvelar (tirar o véu) de uma Presença. No centro de nossa solidão e de nosso exílio não estamos sozinhos, mas temos a visão de Alguém, que vem ao nosso encontro.
No texto evangélico de hoje nos é revelado, através de sinais (abalos celestes e terrestres, tribulações...), que esta ordem das coisas (o “mundo”) vai ser renovado em profundidade. Tudo desmorona à nossa volta, tudo vai desaparecer; mas o que o texto parece resgatar é a contundente confiança na afirmação e na promessa de Jesus: “O céu e a terra passarão, mas minhas palavras não passarão”. As Palavras do Filho do Homem constituem o nosso rochedo, são a nossa força. É um convite a nos recentrar.
Quando somos transformados pelos acontecimentos e somos levados pelas nossas emoções, pelas nossas reações, pelos nossos medos, é preciso voltar ao centro. O ciclone tem uma violência enorme e gira velozmente, mas seu centro é calmo, imóvel.
É preciso voltar ao centro do ciclone onde está o “Filho do Homem”, onde está o coração, onde está o Cordeiro. Esta vida nova está no centro da situação que vivemos, no centro desse mundo que é o nosso.
É a partir do interior que algo pode mudar.
Nesse sentido, o gênero “apocalíptico” vem nos dizer que, para além daquilo que possa ocorrer na superfície da história pessoal e coletiva, há uma Realidade estável que nos sustenta e que podemos experimentá-la como “rocha firme” sobre a qual firmar nossos pés. A velha ordem virá abaixo para ser substituída por um mundo novo que será inaugurado pela presença do Filho do Homem, reunindo toda a humanidade (“os quatro cantos”) e estabelecendo o “Reinado de Deus”.
Trata-se de um anúncio esperançador e certo. Esperança representada pela imagem da figueira que, carregando-se de brotos, anuncia a primavera. Esse é o nosso destino: caminhamos para uma Primavera que não conhecerá ocaso.
Na realidade, os discursos apocalípticos, a pesar de sua aparência, são sempre um chamado à esperança, que não é uma projeção para um determinado futuro, que serve para fugir do presente ou para poder “suportá-lo”; nem pode ser entendida como mera “expectativa” que nos afasta do presente, senão que nos faz ancorar nele, ou seja, viver na Plenitude do que é, no Presente pleno e com sentido.
A esperança, talvez mais do que qualquer outra inclinação ou disposição, está bem no cerne do ser humano e de sua existência, fazendo-o viver e dando sentido à aventura de sua existência. Basta pensar no que significa o desespero, a ausência de horizonte, a falta ou a perda de todo projeto possível, para compreender que a esperança emerge das profundezas do ser humano. Sem esperança , ele não pode viver.
O ser humano é ser “esperante”.
Segundo Rubem Alves, a esperança é o oposto do otimismo. Otimismo é quando, sendo primavera do lado de fora, nasce a primavera do lado de dentro. Esperança é quando, sendo seca absoluta do lado de fora, continuam as fontes a borbulhar dentro do coração. Otimismo é alegria “por causa de”: coisa humana, natural. Esperança é alegria “apesar de”: coisa divina. O otimismo tem suas raízes no tempo. A esperança tem suas raízes na eternidade.
A esperança carrega uma força misteriosa, um sopro criador, um alento espiritual que nos leva a olhar tudo com fé e encantamento; é um princípio vital, expresso na sábia e verdadeira constatação de que “enquanto há vida há esperança”. Mesmo diante de intransponíveis situações, vislumbramos possibilidades de saída, achamos possível ser de outro modo, inventamos e reinventamos alternativas, recusamos a possibilidade de as realidades nos dominarem e, sem cessar, sonhamos com o mais e o melhor.
A esperança é gestora do futuro e rompedora da dureza do existir.
Paulo Freire insistia que não se pode confundir esperança do verbo “esperançar” com esperança do verbo “esperar”. Esperançar é se levantar, é ir atrás; esperançar é construir e não desistir. Esperançar é levar adiante, esperançar é juntar-se com outros para fazer de outro modo.
Uma das coisa mais perniciosas que vivemos no atual momento é o esvaziamento da esperança, que se expressa no desalento, desânimo ou até na covardia tolerante. Michelângelo dizia que “Deus concedeu uma irmã à recordação, e chamou-se esperança”.
A esperança, portanto, é como esse impulso que desafia o presente imediato, sempre curto e sem raízes no futuro; é ela que nos permite escrever nossa história com mais criatividade e ousadia, nos abre à invenção de possibilidades que nos fazem viver, corrige o passado e nos faz recomeçar, mantém a coragem de ser, transforma em nós o ser de puras exigências e de simples necessidades em seres capazes de dom e de desejo. Na esperança, encontramos a abertura e a amplitude de nossa vida.
Não basta esperar, é preciso uma paixão de esperança, a qual somente é possível se conduz para um horizonte plenificante, para um além da vida do dia-a-dia.
Texto bíblico: Mc 13,24-32
Na oração: Como se situa diante dos desafios que é chamado a assumir? Não se sente cansado por já ter vivido tantas mudanças?
- Você se arriscaria por um novo começo?
- Ou talvez desanimado porque as coisas não aconteceram como havia previsto? Ou, ao contrário, cheio de energia, entusiasmado por ser protagonista de uma época considerada de graça e de bênção?
- Quê esperanças você carrega no coração?
Pe. Adroaldo Palaoro sj
Diretor do Centro de Espiritualidade Inaciana -CEI
“Ela ofereceu tudo aquilo que possuía para viver” (Mc 12,44).
Depois de um longo percurso contemplativo, seguindo o evangelista Marcos, hoje nos encontramos com Jesus no templo de Jerusalém, logo após seu gesto escandaloso da purificação e expulsão dos vendilhões. Ele, mais uma vez nos ensina. O episódio de hoje é o melhor resumo que se pode fazer de todo o evangelho de Marcos. Duas imagens, diametralmente opostas, emergem com intensidade. De fato, o contraste entre as duas cenas é total.
Na primeira, Jesus põe a descoberto a atitude dos doutores da lei no templo. Sua religião é falsa: utilizam-na para buscar sua própria glória e projetar-se sobre os outros. Vivem o “complexo do pavão”: só se preocupam com o exterior, as vestimentas, a ostentação, a vaidade, as honras, as saudações...Buscam vestir-se de modo especial e ser saudados com reverência para sobressair sobre os outros, impor-se e dominar. A religião lhes serve para alimentar fantasias. Fazem “longas orações” para impressionar. Não criam comunidade, pois se fazem o centro dela. No fundo, só pensam em si mesmos. Vivem aproveitando-se das pessoas frágeis às quais deveriam servir. Não se deve admirá-los nem seguir seu exemplo.
Na segunda cena, Jesus encontra-se junto ao cofre do templo e observa o gesto de uma pobre viúva que deposita ali duas pequenas moedas. Impactado pelo gesto, Jesus desperta a atenção de seus discípulos para que não esqueçam o gesto desta mulher. É uma pobre mulher, maltratada pela vida, sozinha e sem recursos. Provavelmente vive mendigando junto ao Templo. Desta mulher eles podem aprender algo que os doutores da lei nunca lhes ensinarão: uma fé total em Deus e uma generosidade sem limites.
Jesus descobre o dom da generosidade em uma mulher, a viúva pobre, que lançou no cesto das oferendas tudo o que precisava para viver. Olhar como Jesus olha nos educa, nos faz ter grandes olhos. É um gesto que passa desapercebido para muitos outros e que, no entanto, Ele recebe e elogia.
Enquanto os mestres da lei vivem aproveitando-se da religião, esta mulher despoja-se de tudo em favor dos outros, confiando totalmente em Deus. Para captar toda a força da frase final do Evangelho de hoje (“na sua pobreza, ofereceu tudo aquilo que possuía”), temos que ter em conta que em grego “bios” significa não só vida, senão também modo de vida, recursos, sustento; seria o conjunto de bens imprescindíveis para a subsistência. Isso quer dizer que ela deu todo seu sustento (vida), ou seja, tudo o que constituía sua possibilidade de viver. A atitude da viúva equivalia a colocar sua subsistência (vida) nas mãos de Deus. Sua insignificante esmola demonstra uma atitude de total confiança em Deus e de total disponibilidade diante d’Ele.
Seu gesto nos faz descobrir o coração da verdadeira religião: confiança grande em Deus, gratuidade surpreendente, generosidade expansiva, amor solidário, simplicidade e verdade. Não conhecemos o nome desta mulher nem seu rosto. Só sabemos que Jesus viu nela um modelo para os futuros dirigentes de sua Igreja.
Trata-se de uma mulher anônima que pratica a misericórdia através de sua pobreza e de sua capacidade de partilha. Esta pobre mulher nos ensina a não acumular, a não apegar-nos às coisas, às pessoas, ao que fizemos ou fomos em outro tempo; ela nos ensina a estar abertos para nos deixar conduzir, ali onde a vida precisa de nós, a atrever-nos a lançar nossas duas moedas, apesar de senti-las de tão pouco valor. Porque esse gesto é o que dá sentido à nossa vida e torna fecunda também a dos outros. Aprendemos dela a viver nossa pobreza oferecida, de mãos estendidas, de coração livre.
Em nossas relações com Deus não servem de nada as aparências e as indumentárias. A sinceridade é a única base para que a religiosidade seja efetiva. Não enganamos a Deus com aparências.
Frente a tanta hipocrisia, diante de tantos que gostam de usar longas vestiduras, ser saudados nas praças e ocupar os primeiros lugares, diante da cultura da aparência nestes tempos midiáticos..., quem se despoja de tudo e se descentra em favor dos outros, é libre para “dançar com o Espírito”, na certeza de estar gestando a nova comunidade onde o pão se multiplica e a fraternidade se faz visível.
No filme “Advogado do diabo”, o “coisa-ruim” ri ao dizer que era fácil a disputa com Deus: bastava apenas aguçar a vaidade dos homens e das mulheres.
Hoje estamos condenados, pelos meios de comunicação, a alcançar o sucesso custe o que custar, doa a quem doer, impedidos de realizar gestos de gratuidade e generosidade. Solidariedade e partilha são apenas conceitos idealistas que não correm mais nas nossas veias. A ideologia da vaidade é aquela que responde por essa ânsia de tudo ganhar, de comparar-se com os outros num ritmo frenético, de brilhar, de aparecer, enquanto seu interior está carcomido pela angústia e pela falta de sentido na vida
Por outro lado, tantas mulheres e homens de fé simples e coração grande e generoso, que sabem amar sem reservas, são o melhor que temos na igreja. Não escrevem livros nem pronunciam sermões, nem se fazem o centro na comunidade, mas são essas pessoas que mantém vivo entre nós o evangelho de Jesus; são elas que fazem o mundo mais humano, são elas que creem de verdade em Deus, são elas que se deixam conduzir pelo Espírito de Jesus em meio a outras atitudes religiosas falsas e interesseiras. Vivem a simplicidade e o despojamento, sem chamar a atenção sobre si mesmas. Na liturgia e nas celebrações não gostam de se exibir com vestimentas vistosas, mendigando saudações vazias e reverências fúteis, nem buscam os assentos de honra e os primeiros lugares. Destas pessoas temos de aprender para seguir a Jesus.
São elas que mais se parecem com Ele.
A generosidade é a virtude do dom.
Por ser mais afetiva, mais espontânea, ligada ao coração... a generosidade revela-se na ação, não em função de um mandato, de uma lei, de um interesse..., mas unicamente de acordo com os impulsos do amor, da solidariedade... O amor é sempre generoso.
A generosidade nos leva em direção aos outros e em direção a nós mesmos enquanto libertos de nosso pequeno eu. É a generosidade que nos liberta da mesquinhez, da vaidade, do auto-centramento...
Ser generoso é ser livre, e é esta a única grandeza verdadeira (magnanimidade).
Texto bíblico: Mc 12,38-44
Na oração: Diante do olhar compassivo do Senhor, experimente a generosidade como libertação, como um mergulho no coração da verdade.
Sinta o coração dilatar-se até às dimensões do universo, livre para qualquer desafio, para lançar-se a uma intensa generosidade.
É a generosidade que alarga o seu coração, rompendo seus estreitos limites e lançando-o a compromissos mais profundos. Sinta que cada nova doação é uma libertação maior: são novas oportunidades de serviço, de maior aproximação d’Aquele que veio, não para ser servido, mas para servir e para dar sua vida pelo mundo.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
Diretor do Centro de Espiritualidade Inaciana – CEI
“Pois esta é a vontade do Pai: que toda pessoa que vê o Filho e nele crê tenha a vida eterna. E eu o ressuscitarei no último dia” (Jo 6,40)
A Igreja, hoje, nos convida a entrar em comunhão com o Deus da Vida e rezar com nossos falecidos e por nós que “vivemos esta vida com sabor de eternidade”. A celebração deste dia deve alimentar em nós a sabedoria de nos fazer presentes diante da morte.
Começamos nossa reflexão fazendo memória de uma cena encontrada nos relatos da Paixão: junto a Jesus, aos pés da cruz, há um grupo de mulheres. Elas contemplam o absurdo, a morte do inocente; elas não tem medo de olhar a morte de frente.
Elas, porque olham a morte de frente, vão mais além, vão mais profundo e fazem a experiência da não-morte, da vida eterna. Elas vêem o amor na morte; elas sabem que a vida de Jesus não lhe será tomada porque Ele a doou. Aos pés da Cruz elas contemplam o Amor mais forte que a morte.
E é assim que elas, porque olham a morte de frente, vão ser as primeiras testemunhas da Ressurreição.
Por isso elas trazem algo novo à nossa experiência, porque se fugimos da morte não poderemos ir ao outro lado, ao além da morte.
Em algum momento de nossas vidas é preciso nos deixar levar por esta atitude.
Trata-se de aceitar o nosso ser mortal para irmos além do nosso ser mortal. Porque é no fundo desta experiência mortal que podemos entrar na contemplação do que é imortal. Acompanhar a morte dos outros, sentir que caminhamos para a própria morte, vai nos tornar capazes de olhá-la de frente.
E o que se chama de Vida Eterna não é a vida depois da morte, mas é a vida antes, durante e depois da morte. E que é eterna.
Há um dado que nos afeta a todos nestes tempos pós-modernos: a incapacidade cultural de abordar os limites, perdas, fracassos, mortes... Vivemos uma cultura na qual a dor e a morte foram expulsas da experiência humana. É algo feio, de mau gosto, algo a ser eliminado da vida cotidiana.
Vivemos uma das grandes mentiras de nossa cultura, ou seja, a morte já não está presente no cenário cotidiano, já não existe. A morte é distante e virtual, que não afeta à nossa própria sensibilidade. Vivemos como se tivéssemos que ser imortais. Sempre é assunto dos outros, mas nunca pode ser assunto “meu”. Quando ela está perto, as pessoas se afastam dela, ou então, ela é afastada para locais específicos. É o fracasso radical de uma cultura fundada sobre o êxito e o sucesso e, quando sente a presença da morte, tudo fica desestabilizado.
A negação da morte sempre cobra um preço – o encolhimento da nossa vida interior, o embaçamento da visão, o achatamento da racionalidade, a atrofia dos sonhos. Encarar a morte como plenitude não só nos pacifica como também torna a existência mais aguda, mais preciosa, mais vital. Essa abordagem da morte leva a um compromisso maior para com a vida.
Mas o confronto com a morte não precisa desembocar em um desespero que possa destituir a vida de todo sentido. Ao contrário, ela pode ser uma experiência que nos faz despertar para uma vida mais intensa.
Ela nos faz reingressar na vida de uma maneira mais rica e apaixonada; ela aumenta a consciência de que esta vida, nossa única vida, deve ser vivida intensa e plenamente.
A experiência da morte pode servir como uma experiência reveladora, um catalisador extremamente útil para grandes mudanças na vida.
“A morte, menos temida, dá mais vida”.
Pensadores mais antigos nos lembram da interdependência entre vida e morte.
Eles nos ensinaram que aprender a viver bem é aprender a morrer bem, e que, reciprocamente, aprender a morrer bem é aprender a viver bem. Quanto mais mal vivida é a vida, maior é a angústia da morte; quanto mais se fracassa em viver plenamente, mais se teme a morte.
S. Agostinho escreveu que “é apenas perante a morte que o caráter de um homem nasce”. Muitos monges medievais mantinham uma caveira humana em suas celas para concentrar os pensamentos na mortalidade e para servir de lição à condução da vida. Montaigne sugeriu que a mesa de trabalho de um escritor deve oferecer uma boa visão do cemitério para estimular o pensamento.
E a morte não é o fim da vida, mas sua plenitude, quando esta é vivida com sentido. A vida não deve ser corroída pela tirania do egoísmo mesquinho: vida é encontro, interação, comunhão... Desperdiçar a vida é estragar a existência. É trágico que a pessoa jogue fora a vida. Quem conhece o valor da vida não pode degradá-la.
E a morte é processo permanente de esvaziamento do ego para viver de uma maneira mais oblativa, no compromisso e na doação aos outros. Este esvaziamento não significa a anulação da “pessoa”, mas sua potenciação. Na medida em que os aspectos que a limitam diminuem, aumenta o que há de plenitude. A vida aumenta quando compartilhada, e se debilita quando permanece no isolamento e na comodidade.
O essencial não é encontrar um caminho para alcançar a imortalidade, mas aprender a “morrer em Cristo”. A partir deste momento vamos aprendendo a conviver com a morte, com a d’Ele, com a nossa e com a dos outros. Vamos aprendendo, precisamente em meio à morte, a “celebrar a vida”, mesmo intuindo que uma lança também nos atravessará.
“Olhar a morte de frente e aceitá-la como parte da vida é como dilatar a vida... Pode parecer um paradoxo: excluindo a morte de nossa vida, não vivemos em plenitude, enquanto que acolhendo a morte no coração mesmo de nossa vida, dilatamos e enriquecemos esta” (Etty Hillesum).
Fazer memória daqueles(as) que nos precederam e considerar nossa morte como travessia para a plenitude, nos levam a mergulhar na condição humana, a descobrir dimensões de nossa própria humanidade que, nesta cultura mentirosa, são mutiladas e reprimidas de tal maneira que nos tornam incapazes de ser portadores de Boa Notícia. A vida começa a emergir ali onde o mundo só vê fracasso e morte, e que orar a partir de nossas precariedades e fragilidades nos põe no caminho para experimentar o dom da Páscoa.
Só a partir desta implicação, a Páscoa nos abre ao futuro e nos faz perceber que “a morte não multiplica a Vida por zero”.
Texto bíblico: Jo 6,37-40
Na oração: Alguém já teve a ousadia de afirmar que a morte é mais universal que a vida; todos morrem, mas nem todos vivem, porque incapazes de reinventar a vida no seu dia-a-dia.
E viver significa esvaziar-se do ego para deixar transparecer o que há de divino em seu interior. O grão de trigo que não morre, apodrece, e não multiplica as mil possibilidades latentes em seu interior.
O “depois da vida” é um grande encontro onde seremos perguntados: “o quanto você viveu sua vida?”
- “Fazer memória” das pessoas que viveram intensamente e deixaram “marcas” em sua vida.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
Diretor do Centro de Espiritualidade Inaciana - CEI
A Igreja Católica celebra, neste primeiro dia de novembro, a festa de “Todos os Santos e Santas”; esta é a festa de todos os(as) amigos(as) de Deus, mulheres e homens que nos precederam e que deixaram sua “marca” na vida de tantas pessoas, melhorando uma parte do mundo. Damos graças a eles e elas por terem sido portadores da vida de Deus: de sua herança herdamos, com sua voz cantamos, de sua presença inspiradora nos alimentamos, de sua vida recebemos Vida, com Aquele que é o Deus dos Vivos.
Na celebração deste dia não temos de pensar somente nos “santos e santas” canonizados(as), nem naqueles que viveram virtudes heróicas, mas em todos os homens e mulheres que descobriram a marca do divino neles(as), e sentiram-se impulsionados a viver com intensa humanidade. Os(as) santos(as) foram e são humanos por excelência. E a plenitude do humano só se alcança no divino, que já está presente em todos nós. Não se trata de celebrar os méritos de pessoas extraordinárias, mas de reconhecer a presença de Deus, que é o único Santo, em cada um de nós.
Nesse sentido, ao invés de dizer “todos os santos e santas”, estabelecendo uma diferença entre os seres humanos, podemos afirmar “Todos santos!”. Para Deus não há diferença alguma, porque na Sua Santidade Ele nos ama a todos igualmente. Assim, no chamado à santidade, aspiramos somente a ser cada dia mais humanos, ativando o amor que Deus derramou em nosso ser.
Na vida de um(a) santo(a), mais que contemplá-lo(a) na sua glória, é bom considerar sua caminhada para a santidade: é o Espírito do Senhor que o(a) conduz.
Um(a) santo(a) é a “irrupção” original e única do Espírito de Deus. Uma maravilha sem comparação que invade a história e permite que seja dito o Indizível e experimentado o Transcendente. A presença de um(a) santo(a) ultrapassa nossa estatura. Algo “maior” se levanta, seduzindo-nos, atraindo-nos e surpreendendo-nos. Uma referência se apresenta à consciência das pessoas e das comunidades.
Os(as) santos(as) são personagens de limiar, de fronteira...; eles vislumbram o novo, a outra margem... são pessoas de atitude “excêntrica”: é sempre o Outro quem os conduz. O heroísmo deles é “deixar-se conduzir”, deixar que se manifeste a força divina ali onde é maior e mais evidente a fraqueza.
“Sejam santos, porque eu sou SANTO” (Lev. 11,45) Esta é a vocação fundamental à qual somos todos chamados, enquanto seguidores de Jesus Cristo. Ser santo(a) é ser dócil para “deixar-nos conduzir” pelos impulsos de Deus, por onde muitas vezes não sabemos e não entendemos. Seus caminhos não são os nossos caminhos.
Este “deixar-se levar” pela mão providente de Deus é uma ousadia. Na vida espiritual a liberdade tem que ser ousada, mas a maior ousadia é “deixar-se levar”.
Ser santo(a) é “arriscar-se” em Deus. É privar-se das humanas certezas em nome da Sua Verdade. É excluir-se das seguranças e estabilidades do mundo. Por isso a santidade é surda aos critérios do mundo, ao cálculo utilitarista...; não sucumbe às idolatrias do progresso a qualquer custo, da eficiência, da produtividade... Ela navega no oceano da gratuidade, da compaixão, da solidariedade...O modo de proceder do(a) santo(a) no mundo é imagem fiel do modo de proceder do próprio Deus, que é princípio e garantia da Verdade, do Bem, da Justiça, da Misericórdia, da Compaixão...
Ser santo(a) é ter a audácia de reinventar o humano; é resgatar a paixão por um ideal irrecusável; paixão rebelde e inquieta diante dos fatos; paixão pela vitória da esperança; paixão pelo sonho de melhorar a si mesmo e o mundo; paixão pelo futuro; enfim, ser santo(a) é ter capacidade ilimitada de paixão.
O seguimento de Jesus pede uma nova forma de santidade: a santidade da vida comum, da resposta à Providência divina em meio às rotinas do tempo, uma caridade tecida nos pequenos gestos... Surge, então, a imagem de um(a) santo(a) que é filho(a) do momento e da situação presente, cujo agir se processa no mundo em que está encarnado. O santo é aquele que, na “loucura santa”, revela uma pulsão de vida para com o mundo; é um biófilo (amigo da vida); é um cooperador, agindo sob o primado da escuta da Palavra de Deus dita na e pela situação cotidiana.
Não é o trivial ou o excepcional que distingue a santidade do ato: o que importa é sua sintonia à Vontade de Deus expressa na situação concreta. O importante é verificar qual é a intenção, qual é a motivação que está por detrás de cada ato, de cada atividade: para quê? para quem?...
Deus colocou no coração de cada pessoa a busca da santidade. Uma busca que se experimenta como impulso vital, sopro do Espírito, aqui e agora, nas circunstâncias concretas da vida.
Nesse sentido, santos e santas são os portadores de vida, homens e mulheres que buscam viver intensamente; que acolhem a vida e a expandem, que bebem do prazer da vida e que ajudam os outros também a beberem, sabendo que a vida é dom, presente que compartilhamos, todos, no mundo. São pessoas em cujo entorno se desatam correntes de vida, esperança, alegria de viver, reconciliação e amor.
“Os(as) santos(as), como os poetas, vivem de encantamentos…” encantados com a vida, com a beleza, com a verdade...
Perguntaram a uma criança de 7 anos quem eram os santos. Ela deu uma resposta magistral: “Um santo é quem deixa passar a luz”. Sem dúvida, em sua imaginação estavam presentes os vitrais da Igreja onde sua mãe a levava. É evidente, os(as) santos (santas) deixam passar a luz de Deus para nós. Essa transparência é sua santidade.
Os(as) santos(as) são pessoas humanas que nos mostram o que se pode atingir quando nos abrimos à luz de Deus, à maravilhosa “influência divina”, à potencialidade de seu Reino.
Santidade é dizer sim à vida. Experimentamos isso quando nos submergimos na vida, quando crescemos nela, buscando, saboreando até o final o que ela nos oferece em cada circunstância. Nunca alheios à vida, nada desprezando, nada lamentando. Esta concepção da Santidade desvela um modo de viver que nos converte em irmãos(ãs) das pessoas, da Criação e filhos(as) de Deus.
A santidade não é um programa. É uma experiência de vida, um modo de estar no mundo a partir da confiança numa promessa. Enraizado na fé-confiança na pessoa e promessa de Jesus, o chamado à santidade propõe um estilo próprio de vida aberta e expansiva: uma maneira alegre, pacífica, compassiva, responsável e generosa de se fazer presente neste mundo onde são centrais o cuidado de todo o vivente e o trabalho em favor da justiça.
Convida-nos a transformar o que, com frequência, é terra hostil ou deserto inóspito em um mundo mais humano e em um lar habitável.
Texto bíblico: Mt 5,1-11
Na oração: As bem-aventuranças não são leis para simplesmente evitar o mal, mas o potencial divino que, criativamente, estende a todos os lugares a Bondade e a Beleza. Expressam de modo conciso e explícito o coração mesmo de Jesus e seu desejo ardente de contagiar a todos os que se encontravam com Ele.
Nas Bem-aventuranças Jesus proclama que o verdadeiro segredo para uma humanidade totalmente recriada é a força do amor e da misericórdia, cimentadas no comum denominador da humildade. Aqueles(as) que percorrem o caminho de sua vida guiados pelo espírito das bem-aventuranças são os(as) santos(as).
- Como ser presença visível das Bem-aventuranças no seu cotidiano?
Pe. Adroaldo Palaoro sj
Diretor do Centro de Espiritualidade Inaciana - CEI
“Mas ele gritava mais ainda: ’Filho de Davi, tem piedade de mim!’” (Mc 10,48)
Jesus está a caminho de Jerusalém, onde vai acontecer o desenlace de sua “missão”. Ele tem pressa; não está sozinho: os discípulos e as multidões o acompanham. O barulho dos passos, a balbúrdia e o vozerio das pessoas despertam a curiosidade de um cego, que estava sentado, mendigando às margens da estrada. Tendo sido informado de quem passava por perto, da sua boca brota uma invocação incontrolável, cada vez mais persistente; uma oração, um ato de fé:
“Jesus, Filho de Davi, tem piedade de mim!”.
O cego ouve a multidão passar com Jesus e aproveita da única e última oportunidade, pois não desfruta da vida em plenitude. Depende dos outros. Sem ver o trajeto, está impossibilitado para seguir a marcha com Ele. Encontra-se deslocado, fora do percurso. À margem do caminho cresce a passividade e o conformismo. Seu lugar revela carência de futuro. Junto à margem não vingam seus projetos e o sentido da existência desaparece.
Encontrando-se incapacitado para progredir por uma rota desconhecida, o cego reage da única maneira que pode, gritando; não lhe basta pedir, grita para ser escutado. Frente àqueles que querem fazê-lo calar, grita mais forte ainda e atrai a atenção de Jesus. Se seus olhos não podem ajudar-lhe, a potência de sua voz expressará sua vontade firme de curar-se e sua tenacidade na busca da recuperação da visão. Porque seus gritos por ajuda foram escutados e seu clamor teve resposta, abriu-se para este homem a possibilidade de uma história com futuro.
A multidão procurava interrompê-lo, porque seu grito incomodava. Aquele grito parecia desviar Jesus do seu objetivo e interromper o “clima sereno” que se criara em torno do Mestre. Merece atenção a atitude das pessoas que caminham com Jesus. É curioso como no início mandam Bartimeu ficar calado e logo mais adiante, quando Jesus lhe chama, o animam. Em tão poucas linhas revela-se o melhor retrato da reação de uma multidão. Dispersos numa massa é difícil manter uma atitude pessoal e diferenciada. No meio de um grupo muito grande as pessoas são mais propensas à mudança rápida e à contradição. A conclusão se impõe: em nossa relação com Jesus não podemos depender do ambiente.
Bartimeu nos ensina a ter personalidade e a buscar Jesus para além do apoio ou da oposição do ambiente.
O gesto e a resposta de Bartimeu ao chamado de Jesus que as pessoas lhe transmitem é muito significativo. Reage com rapidez. Deixa de lado seu manto, sem hesitar: sua riqueza, sua segurança, seu teto... e dá um salto. Sai de seu fechamento (o manto era considerado um prolongamento da pessoa). Desfaz-se daquilo que lhe traz segurança e recupera sua dignidade: “pôs-se de pé”.
Jogar seu manto supõe desfazer-se não só de algo importante que serve para se proteger e que confere dignidade à pessoa, mas é, sobretudo, algo sobre o qual estava sentado e na qual se encontravam as esmolas recebidas. Bartimeu, ao lançá-lo fora, se desfaz de seu sustento na vida, de tudo o que tem nesse momento. Seu salto adquire então toda sua força.
Esquece o que deixa para trás e se fixa no que está à frente. É um autêntico salto na fé, é o salto para o seguimento de Jesus. Seu duplo gesto é toda uma oração que contrasta com a atitude do homem rico preso por suas riquezas, apresentado um pouco antes neste mesmo evangelho (10,17-22).
O cego, que ainda não podia ver, mas consegue entender que está diante de Alguém que o olha, que lê no fundo do seu coração e que vai mudar o rumo, o horizonte e o sentido de sua vida, que vai acabar com seu sofrimento. Ambos se põem um diante do outro. A multidão, ao invés, quase desaparece atrás deste cenário. Bartimeu não está mais excluído, às margens da estrada. Agora, ele se encontra no centro da cena: face a face com o “Filho de Davi”.
- “o que queres que eu te faça? – pergunta-lhe Jesus. É um diálogo de tu a tu, sem intermediários, que lhe oferece a possibilidade de se revelar diante de alguém, de expressar os desejos mais profundos de seu coração. O espaço de diálogo experimentado lhe devolve a confiança, lhe confere autonomia e o ganha para o Reino. A palavra acolhida e oferecida é geradora e criadora.
A resposta do cego foi rápida; já estava pronta, preparada dentro de si, cultivada no seu íntimo, há muito tempo, no segredo e na noite do desejo, no silêncio da espera, na obscuridade do sofrimento. Seu pedido foi claro e direto, cheio de confiança; as migalhas não lhe bastam mais; não se satisfaz mais apenas com esmolas: quer mais, muito mais (“Mestre, quero ver de novo”).
Bartimeu sabe que havia manifestado um desejo que, até então, lhe parecia impossível; ao encontrar-se com Jesus, percebe ter no coração um pedido bem mais profundo: finalmente ele pode ver, não apenas o rosto das pessoas, a côr de uma flôr, o sorriso de uma criança, o encanto da aurora ou o pôr-do-sol, mas, sobretudo, ver a própria existência, o sentido das coisas, da história, dos acontecimentos humanos e da vida, sob o ponto de vista justo e na direção certa.
Jesus não fez nada, não tocou os olhos turvos do cego; com grande delicadeza e profundo respeito, simplesmente pôs a fé daquele homem em evidência (“A tua fé te curou”). Assim, ilumina a fé de Bartimeu e o torna livre: “Vai!”
Finalmente, Bartimeu poderá decidir onde ir, o que fazer da própria vida e como dirigir-se ao próprio Deus. Jesus não o segura; não o convida a segui-lo, mas ativa nele a capacidade de ver na direção certa; desperta-lhe a liberdade; ajuda-o a descobrir que, o desejo de viver, de caminhar, de gritar, nasce da fé. Jesus o ajuda a tomar consciência da própria fé.
E tudo isso começou de um grito...
Pela sua fé, pela sua perseverança na oração e pelo seu seguimento de Jesus, Bartimeu é apresentado como modelo do verdadeiro discípulo.
O relato acentua o contraste entre sua situação no começo e no fim. No início é apresentado como cego, mendigo, parado/sentado, imobilizado, marginalizado, na beira do caminho, na periferia da cidade, distante de Jesus... sem comunhão, sem horizonte e sem futuro. No fim, depois do encontro com Jesus, é apresentado como curado, libertado, iluminado, em movimento, seguindo Jesus como discípulo.
Bartimeu vive a experiência de uma profunda “travessia”: cego e sentado à beira da estrada pedindo esmola à recuperação da vista para seguir Jesus pelo caminho.
Texto bíblico: Mc 10,46-52
Na oração: Dar nome aos seus “mantos” que o mantém preso ao passado, travando sua vida e impedindo uma resposta pronta ao chamado de Jesus.
A existência humana pode ser marasmo, estagnação, medo, repetição, inércia, fixismo... Mas há um momento em que é preciso “dar o salto”: isso requer coragem, ousadia, agilidade e mobilidade para ir adiante na longa jornada que a vida apresenta.
A oração é o ambiente natural para mobilizar-se e preparar-se para o grande salto da vida: um novo projeto, um novo compromisso, uma nova missão...
- O que paralisando você à beira do caminho, travando sua vida e impedindo o salto libertador?
Pe. Adroaldo Palaoro sj
Diretor do Centro de Espiritualidade Inaciana -CEI
“”Deixa-nos sentar um à tua direita e outro à tua esquerda quando estiveres na tua glória” Mc 10,37)
Outra vez um texto forte. Jesus acaba de anunciar aos seus discípulos a decisão de ir a Jerusalém, lugar da entrega da vida a serviço do Reino; os doze, no entanto, começando pelos filhos de “Zebedeu”, só pensam em “estar bem colocados” para alcançar uma cota maior de poder. Os “zebedeus” pedem trono, mas Jesus só lhes pode oferecer seu próprio gesto de entrega da vida; os dois irmãos pensam em títulos de honras e preferências, mas Jesus só lhes garante sua fidelidade no caminho do Reino: “Vós bebereis o cálice que eu devo beber e seres batizados com o batismo com que eu devo ser batizado” (Mc 10,38).
Os “zebedeus” seguiam a Jesus, mas não entendiam Sua proposta, não compreendiam que Ele não queria ocupar um trono (não queria reinar), mas doar a vida em favor dos outros, para que todos, homens e mulheres (e em especial os mais necessitados), fossem dignificados. Jesus não busca trono, nem para si nem para seus seguidores, pois seu Reino não pode ser entendido na linha da “tomada de poder”.
Eles caminham ao lado de Jesus mas só escutam aquilo que não lhes convém; fazem estrada com Jesus mas estão fechados em seus próprios interesses; seguem Jesus de perto mas estão bem longe de sua proposta de vida. Todos “sobem a Jerusalém”, mas cada um com sentimentos diferentes.
Marcos insiste em mostrar o contraste radical entre Jesus e seus discípulos, no que se refere à atitude básica diante da vida. Para o Mestre, a vida é oferta que se expressa em serviço; os discípulos, pelo contrário, parecem reduzir a existência a uma questão de autoafirmação do próprio eu, pelo qual se veem enredados pelo apetite de poder e grandezas.
Em certa medida, ambas atitudes manifestam os dois estilos nos quais podemos nos situar na vida: em chave de doação ou em chave de autocentração. Jesus e “zebedeus”: qual dos dois impulsos alimentamos na vida cristã?
Jesus, com seu modo de viver, nos coloca diante da contínua tentação que nos ameaça: o gosto do poder, da comodidade, de pompas, de querer ser como os “chefes das nações”, de ter privilégios, de ser servido... Sua proposta de vida é de uma sabedoria e de uma humanidade finíssima; seu horizonte é o serviço.
A busca de poder nunca consegue unificar nem criar harmonia, mas divide as pessoas, criando ressentimentos, competições, vaidades...
Jesus não quer “chefes” sentados à sua direita e à sua esquerda, mas servidores como Ele, gente de entrega eficaz, que saiba gastar a vida em favor dos outros. Sua comunidade não se constrói a partir da imposição dos de cima, não haverá lugar para o poder que oprime; nela não cabe hierarquia alguma de honra e dominação, mas hierarquia de serviço; tampouco métodos e estratégias de poder; é o serviço que constrói a comunidade cristã. “Quem quiser ser grande seja vosso servidor; e quem quiser ser o primeiro seja o escravo de todos” (Mc 10,43).
O Evangelho se torna assim um guia de servidores. Não é diretório para triunfar, nem manual para ganhar poder e dominar sobre os outros. Por isso, todos aqueles que, alguma vez, buscaram ou buscam poder e prestígio na Igreja, se equivocam de Messias e se afastam do Reino.
No grupo dos seguidores de Jesus, aquele que quer sobressair e ser mais que os outros, deve se deslocar para o último lugar; assim, a partir da perspectiva dos últimos, poderá ter melhor visão daquilo que eles mais necessitam e poderá ser servidor de todos.
A verdadeira grandeza consiste em servir com amor; o serviço é a manifestação prática do amor. E o amor busca sempre o último lugar, precisamente porque esse é o lugar mais universal; é o lugar que mais nos humaniza, o que mais humaniza a vida, a convivência, a sociedade.
A partir deste pano de fundo, os evangelhos aparecem como um manual de uma Igreja de servidores, onde a vida adquire seu mais profundo sentido, onde surgem relações novas, fundadas na gratuidade, na compaixão, na acolhida...
Para o “líder servidor” na Igreja, a liderança não significa cargo, privilégio, títulos ou dinheiro, mas é exercitar uma responsabilidade no serviço. Ele não se pergunta: “quê quero”, mas “em quê posso ajudar?”, ou “o quê deve ser feito?”.
Assim, os líderes servidores são doadores e não receptores. Nunca se apegam a uma posição ou cargo. Escutam e aprendem daqueles aos quais lideram. São disponíveis, vão de um lugar para outro, falando e ouvindo as pessoas de todos os níveis da instituição.
E assim, servir e ajudar, em lugar de mandar e controlar, são as palavras de ordem dos novos líderes. Portanto, liderar com autoridade implica espírito de confiança, tratar o outro com bondade, ou ir atentamente, ter verdadeiro respeito para com os talentos do outro, ter real interesse por ajudar o outro para que tenha êxito, manter acesa a chama do sonho para que cada um possa tirar o melhor de si mesmo a favor da comunidade, sintonizar com os princípios profundos e valores permanentes da vida, expressar consideração, elogio e reconhecimento pela atuação do outro, afastar todo preconceito...
A identificação com o “divino serviço” atua, em cada cristão, como força rompedora daquilo que é tradicional, o conhecido, o “status quo”... levando-o a “inventar” respostas criativas e originais aos velhos desafios de seu tempo. Ele desenvolve uma liderança clara, realista, centrada, universal, comprometida com a vida; um líder que ama o que faz, pois é consciente de sua missão, descoberta em sua amorosa e infatigável busca da Vontade de Deus.
Ele sabe desenvolver uma liderança inserida nas realidades deste mundo, mas sempre com o olhar fixo em discernir para buscar, encontrar, sentir e fazer o que é “melhor” no serviço divino.
Inspirados no modo de proceder de Jesus, podemos traçar o perfil do servidor cristão:
* Pessoas abertas à ação de Deus com um projeto de vida comum, orientado por uma Espiritualidade e coerentes com seu testemunho de vida.
* Pessoas sensíveis e conscientes frente à realidade social, comprometidas em um testemunho de vida a serviço aos outros e com os outros, para transformar e construir uma sociedade na paz e na convivência.
* Pessoas compassivas: possuidoras de uma qualidade humana fundada no amor, na compaixão, na ternura e no serviço.
* Pessoas comprometidas: que acompanham o processo de crescimento do outro de maneira tolerante, justa, próxima e exigente.
* Pessoas com identidade espírito comunitário, capazes de trabalhar em equipe.
Texto bíblico: Mc. 10,35-45
Na oração: suplicar a graça para “desvelar” (tirar o véu) os “zebedeus ocultos” que atrofiam a vida e
es esvaziam o dinamismo do seguimento de Jesus; verificar em quê circunstâncias eles mais se manifestam: na família? No trabalho? Na comunidade?...
Pe. Adroaldo Palaoro sj
Diretor do Centro de Espiritualidade Inaciana - CEI
“Mas quando ele ouviu isso, ficou abatido e foi embora cheio de tristeza, porque era muito rico”
A cena do evangelho de hoje ilustra bem como uma “aderência afetiva” (fixação afetiva) a coisas, posses, pessoas, ideias, cargos, status, ídolos, dependências... nos travam e impedem de nos mover com facilidade. Perdemos o “fluxo” da vida, o impulso do movimento, a suavidade do “deslizar pela existência”.
“Diga-me o tamanho dos seus apegos, e eu lhe direi o tamanho do seu sofrimento”.
“Seis homens que caminhavam em busca de novas terras depararam-se com um rio caudaloso que lhes impedia avançar em seu caminho. Construíram um barco, prepararam os remos e entraram nele. Remaram juntos, e assim chegaram à outra margem. Desembarcaram para prosseguir o seu caminho, mas como o barco havia sido muito útil, carregaram-no sobre os ombros e seguiram assim penosamente sua peregrinação pela terra seca”.
Levamos “cargas” como essas em nosso interior, e são justamente elas que dificultam nossa caminhada pela vida. Se soubemos construir um barco quando foi preciso, também saberemos construir outro caso volte a se apresentar a situação; enquanto isso é melhor desfazer-nos de cargas incômodas para andar com maior desenvoltura e alegria pela vida.
O medo de perder “algo” no futuro atrapalha viver intensamente o presente. Quantos “pesos mortos” arrastamos em nossa vida, com recordações, lembranças, apegos, afetos desordenados...! Na perspectiva bíblica, há uma incompatibilidade radical entre a paixão pelas riquezas e a paixão pelo Reino. Ninguém pode servir a dois senhores.
Não é possível amar a Deus, isto é, amar a generosidade, a entrega, a solidariedade, a compaixão, a misericórdia, e ao mesmo tempo amar a riqueza, isto é, amar ou tomar tudo para si, a acumulação que é base de toda injustiça e de todo desamor: fome, violência, exclusão, exploração... A fidelidade ao Deus único fica interditada e o seguimento de Cristo fica fragilizado.
O apego aos “bens” apresenta-se como uma das tentações mais poderosas para todo seguidor de Jesus.
O dinheiro, os bens, as posses apresentam-se, então, como solo firme sob seus pés; eles provocam o fascínio, a adoração e as identificações mais perniciosas.
No evangelho, o “jovem rico” aproxima-se de Jesus, correndo, movido por uma angustiante inquietação que o devorava por dentro e lhe pergunta: “Quê devo fazer para ganhar a vida eterna?” Ajoelhou-se diante do Mestre com respeito, como se visse nele seu último recurso para encontrar resposta à questão que era urgente resolver. Não se dirigia a Jesus como os outros personagens, oprimidos pela enfermidade ou pela pobreza, mas a partir de um mal-estar interior: por quê, apesar de ter tudo e levar uma vida irrepreensível, continuava sentindo-se insatisfeito?
Isto nos causa surpresa, pois tinha tudo o que hoje nos é proposto como meta: juventude, riqueza e status. A vida terrena não lhe preocupava: tinha sua subsistência resolvida; ele perguntava por uma “outra vida”, que lhe desse o sentido e a plenitude que lhe estavam faltando.
O diálogo de Jesus com o jovem rico está marcado por contrastes. O jovem começa com uma pergunta focada no âmbito do “fazer”: “quê devo fazer?”. E a finalidade do “fazer” se formula com o verbo “ter”: “...para ganhar a vida eterna”.
Jesus, no entanto, situa sua resposta em outra dimensão. Primeiro, reconduz o objeto direto do “fazer” a um sujeito com maiúsculas: “Por quê me chamas de bom? Só Deus é Bom”. Logo, não é questão só de “fazer o que é bom”, mas de “ser” como Deus: pura bondade.
O verbo “ter” também se transforma por “entrar” na vida eterna. A vida eterna não se “obtém”; na vida eterna “entra-se”. Os quatro imperativos que o jovem recebeu como resposta (“vai, vende, dá, segue-me”), lhe desconcertaram: ele explicitara sua inquietação pela vida eterna em termos de posse (“quê devo fazer para ganhar”?), pois até os mandamentos ele os havia cumprido. Mas Jesus o orientou em outra direção: não para a acumulação, a posse ou a herança, mas para a desapropriação, o esvaziamento e a entrega.
Isso era “o que lhe faltava”.
Todos nós somos como o jovem rico no momento em que nos aproximamos de Jesus. Todos nós carregamos no coração a mesma inquietação do jovem; nele podemos nos reconhecer, sobretudo neste tempo em que nos ronda a insegurança, a obscuridade do horizonte, a dúvida...
É possível viver, desde agora, uma “vida eterna”, transbordante e plena, apesar das limitações do tempo, da fragilidade e da caducidade das relações humanas, para além das gratificações e das buscas de recompensas? Quais são os condicionamentos afetivos que de fato limitam e atrofiam nossa liberdade e que nos desviam da vivência do evangelho?
Estranhas atitudes estas que Jesus propõe, tão contrárias em uma cultura como a nossa que nos apresenta a apropriação e a acumulação como meta da existência. Ele, imperturbável, apresenta sua alternativa: perder, vender, dar, deixar, não armazenar, não entesourar, não reter avidamente, desapropriar-se, esvaziar-se, partilhar...
Eleger a partilha, o despojamento e a simplicidade de vida é a base e condição para poder seguí-Lo no trabalho do Reino; barcos, redes ou mesa de negócios devem ser abandonados. A escolha de uma vida despojada expressa a liberdade para colocar-se a serviço do Reino. A afeição aos bens, à acumulação, pelo contrário, acarreta o enorme risco de se ficar cego e surdo para atender ao chamado de Jesus.
Estamos em tempo de soltar as ataduras que nos travam e de iniciar, despojados e libres, um caminho novo junto ao Mestre.
Texto bíblico: Mc. 10,17-30
Na oração: Temos muitas atitudes, posses, ideias, cargos, posições, bens... que consideramos como Vontade de Deus; na realidade é tudo “projeção” de nossos medos, de nossa insegurança...
* Quê “tesouros” estão travando nossa vida e impedindo-nos de seguir a Cristo mais livremente? Quantas projeções!... Quantas transferências!... Às vezes, parece que cada um vive à mercê dos ventos dos seus sentimentos!... Por quê você se dedica a tal pastoral?... O que você procura?... Qual a compensação afetiva que espera?... Qual sua “agenda oculta”? O que espera “ganhar ou perder”?
Suas decisões são tomadas a partir de que parâmetros: prazer? compensação? Vontade de Deus?...
Pe. Adroaldo Palaoro sj
Diretor do Centro de Espiritualidade Inaciana - CEI
“Então, abraçando as crianças, abençoou-as, impondo as mãos sobre elas”. (Mc 10,16)
No filme “O Decálogo 1” do cineasta polonês K. Kiewsloski, o protagonista é um menino de nome Pawel, órfão de mãe, cujo pai o educa sem ensinamento religioso. Um dia o menino, brincando com o computador, vira-se repentinamente em direção à sua tia que está no quarto e lhe pergunta: “Tia, como é Deus?”. A tia permanece em silêncio por um instante, fixa nele o olhar, depois abre os braços e diz: “Vem aqui Pawel”. Ambos se abraçam intensamente.
E a tia lhe pergunta: “Diga-me Pawel, como você se sente agora?”. O menino responde: “Bem, eu me sinto bem”. E aquela que o abraça, diz: “É isso Pawel, Deus é assim”.
Deus como um abraço: uma das mais sugestivas definições de Deus, elaboradas não a partir de uma linguagem teológica, talvez sofisticada e complexa, definição encontrada nos catecismos, mas uma definição que brota da experiência do abraço, no estilo das parábolas de Jesus.
“Deus como um abraço”, experimentado na ternura e no carinho de um abraço. Um Deus que conforta a vida, porque “nominar” Deus deve equivaler a confortar a vida. Se o Deus que transmitimos não conforta e não aquece a vida, a nossa palavra é inútil. Isso vem de encontro o que dizia Pascal: “Eu estou cansado de dizer Deus, eu quero senti-Lo”.
O filme, de fato, trata da relação com Deus, a fé e a ciência. Pawel vai crescendo junto a um pai racionalis-ta, cujo único “deus” é o seu computador e a ciência, vista como o futuro e o progresso. A ciência não pode errar, tem respostas para todas as perguntas, diminuindo progressivamente o espaço para Deus.
Mas, no fim das contas, ela é incapaz de satisfazer o íntimo desejo do coração, o calor do afeto, que a Pawel é demonstrado por um simples e caloroso gesto da tia, demonstração exemplificada da verdade surpreendente da terna vizinhança de Deus. Se sobre isso se faz experiência, “sente-se Deus” e, a partir disso, supera-se a resistência de falar de Deus e a vida se regenera.
Na Igreja, podemos falar de diversos métodos pastorais. Em primeiro lugar está a importância da palavra, oral ou escrita, para anunciar o Evangelho de Jesus. Mas, junto à palavra, é preciso acrescentar as imagens e os sinais sacramentais que falam a nossos sentidos. “Somos corpo”, “somos sensibilidade”, e Deus quebra as distâncias, “faz-se corpo”, “faz-se sensibilidade” para expressar a ternura do seu coração.
Jesus acrescenta a estes métodos um caminho pastoral novo: a pastoral dos gestos significativos e em concreto a pastoral do abraço. Abraça crianças e enfermos, anciãos e mendigos, os paralíticos...
São abraços ternos e fortes ao mesmo tempo, sem palavras, como os abraços às crianças da Palestina, ou como o abraço do pai a seu filho que chegava à casa fracassado e ferido.
O Mestre de Nazaré se identifica com as “crianças” ou “os últimos” (abraçar significa identificar-se) e deixa claro que só pode compreender e viver seu projeto – que Ele chamava “Reino de Deus” – quem está disposto a “ser criança”, ou seja, a colocar-se voluntariamente no último lugar, como Ele mesmo havia feito: “o filho do Homem não veio para ser servido, mas para servir” (Mc 10,45).
Para abraçar uma criança é preciso “descer” em direção à ela; com isso o abraço significa colocar-se no mesmo nível dela. Não se abraça de cima para baixo. O abraço nos faz iguais e nos humaniza.
Não é preciso ser especialista culto ou profissional para descobrir que o abraço expressa proximidade, afe-to, carinho, solidariedade, empatía, amor. O abraço é sem dúvida algo comum na família e na sociedade, mas quando se realiza no espaço religioso expressa, com gestos concretos, o amor e a benevolência de Deus Pai a seus filhos e filhas, seja qual for sua situação física, cultural, social ou moral. É um abraço que antecipa o abraço eterno do Pai às suas criaturas no final dos tempos.
A Igreja deve manifestar-se, deste modo, como uma mãe carinhosa e não como uma juíza autoritária que com seu dedo levantado ameaça a todos os que se desviaram do bom caminho. Assim expressou João XXIII na inauguração do Concílio Vat. II: “em nosso tempo a Igreja prefere usar a medicina da misericórdia mais que a da severidade”.
Por isso o papa Francisco não se limita a falar dos pobres ou a optar por eles, mas se aproxima deles e os abraça. Não é simplesmente um abraço pastoral mas algo mais profundo, a pastoral do abraço. É um abraço que tem um profundo sentido profético de denúncia de um sistema que descarta e exclui. Por isso, o papa Francisco abraça sobretudo àqueles que não tem quem os abrace, aos que estão sozinhos, aos marginalizados, aos descartados, aos feridos do caminho; a estes lhes manifesta a ternura e o carinho de Deus.
Seguramente a pastoral do abraço precisa complementar-se com outras mediações pastorais, mas, com certeza, é o caminho pastoral mais impactante, e, em muitos casos, o mais necessário e o único possível, quando as palavras e os gestos são incapazes de expressar algo muito profundo. Os setores populares são aqueles que melhor captam este tipo de pastoral.
O abraço pastoral faz parte da dimensão encarnatória da salvação e da graça. Deus não chega até nós através de uma espécie de fluidos etéreos e invisíveis, mas através de mediações sensíveis, físicas, corporais, sacramentais. O abraço sacramental é como um sacramento que expressa a dignidade de cada pessoa e o amor misericordioso do Pai, que em Jesus se revelou a nós e que o Espírito atualiza na história. E por isto não basta o abraço litúrgico da paz na eucaristia, é preciso sair às ruas e abraçar o pobre, o enfermo, a mulher abandonada, o ancião desamparado, o privado de liberdade...
Como afirma o Papa Francisco, “no abraço ao pobre estamos abraçando a carne de Cristo”.
Através de seus abraços e através da pastoral do abraço Jesus nos aproximou a presença e a ternura de Deus. Com seus abraços nos manifestou e expressou o abraço do Pai a seu povo. E nos abriu um caminho pastoral para que nós façamos o mesmo: a pastoral do abraço. Seremos capazes de segui-la?
O abraço é a palavra da pele que acaricia, das mãos que tocam, dos braços que sustentam, do corpo que diz sua verdade a outro corpo, o compromisso de acolher e defender a outra pessoa. Foi neste nível que Jesus se situou, expressando às crianças a alegria de sua vida e recebendo, em troca, a ternura e a carícia que elas lhe transmitiam com a sua alegria; Jesus se revela em gesto generoso de entrega e doação, para que o outro seja, para que a criança possa crescer em humanidade.
Abraçar é: segurar, envolver alguém com os braços, especialmente de modo afetuoso, manter próximo. É uma forma de carinho, de apoio e compreensão. Não se abraça só o corpo, mas a pessoa. É um gesto que ‘diz’: “eu estou unido a você”.
“O abraço é como uma circunferência. De forma simbólica, é um elo. Um momento em que os corações estão mais próximos e se comunicam. Entrega até anatomicamente.”
Texto bíblico: Mc 10,2-16
Na oração: O abraço fala uma linguagem universal. Abraçados nós nos ajudamos uns aos outros.
A tecnologia ergue barreiras, um abraço as derruba. A linguagem do abraço é a tradução da linguagem do coração.
Deixe que um abraço fale por você, quando as palavras parecerem inoportunas ou saírem com dificuldades...
Um abraço nunca diz: “A culpa é sua”. É comemoração, celebração. Significa apreço, afeição, reconhecimento. Significa confiança, empatia, segurança.
Desde sempre fomos abraçados pelo Criador: prolongue este gesto divino no seu cotidiano. Abrace sempre! Abrace muito!
Pe. Adroado Palaoro sj
Diretor do Centro de Espiritualidade Inaciana - CEI
“...vimos um homem expulsar demônios em teu nome, mas nós o proibimos, porque ele não anda conosco ” (Mc 9,38)
Toda autêntica vida humana é vida “com” os outros, é convivência, é compartilhar... E convivência implica respeitar e se alegrar com a diversidade, considerando-a riqueza. É maravilhoso que haja raças, costumes, cultura, religiões, formas de pensar... diferentes.
A diversidade nos permite enriquecer-nos, adquirir mais humanismo. Diferença é expressão inerente ao ser humano, é modo de pensar, de dizer, de trabalhar, de existir e de conviver.
Todos temos direito a ser singulares, direito a ser diferentes, direito a partilhar e receber dos outros. Daí a importância de aprender a ver o melhor em cada pessoa e em cada povo, superando as visões estreitas e fundamentalistas de todo tipo de racismo, xenofobia, desprezo, preconceito, intolerância, fanatismo....
Saber conviver com as diferenças é sinal de maturidade.
Historicamente, o ser humano sempre foi e é afetado por estes dinamismos de morte - fanatismo, preconceito, intolerância – que o levam a uma atrofia em sua humanidade, rompendo uma sadia relação com o outro diferente. Tais dinamismos negativos desvelam uma profunda insegurança pessoal. Um eu psicológico e espiritual não suficientemente integrado revelar-se-á carente de “seguranças absolutas”, que sustentem sua precária e instável sensação de identidade. Esta ameaça é a que se esconde por detrás das palavras de João, no evangelho de hoje: “nós o proibimos porque não é dos nossos”.
Diante da postura preconceituosa de João, Jesus reage: “Não o proibais, pois ninguém faz milagres em meu nome para depois falar mal de mim”. Aqueles que temem a diferença, amoitam-se no comodismo e na estagnação; tornam-se incapazes de viver a intercompreensão, a comunhão e o respeito recíproco. Desumanizam-se na solidão estéril e caem no fundamentalismo fechado, inimigo de toda diferenciação e cego em face da pluralidade. Aqui nasce a intolerância, que por sua vez gera o desprezo do outro diferente, e o desprego gera a agressividade que rompe a harmonia universal.
Aqueles que se fecham à diversidade se tornam preconceituosos, ou seja, dogmáticos e fervorosos fundamentalistas, com hostilidade e intolerância religiosa. Cegos para a verdade, eles preferem o autoengano ao conhecimento de fato; fincam pé naquilo que pensam que sabem, no que está estabelecido e normatizado; não se atualizam, não conseguem ver o novo e a necessidade de mudanças.
Ao tornarem absoluta uma verdade, se condenam à intolerância e passam a não reconhecer e a respeitar a verdade e o bem presentes no outro. Não suportam a coexistência das diferenças, a pluralidade de opiniões e posições, crenças e ideias. Daí surgem o conservadorismo radical, o medo à mudança, a violência diante da crítica, a suspeita, a vigilância, o controle autoritário...
Somos chamados a considerar a diferença como oportunidade, destacando a necessidade de estender pontes de diálogo e facilitar encontros com aqueles que são diferentes, tanto na Igreja como na sociedade.
Como seguidores de Jesus, fazemos parte da identidade da Igreja que é plural e diversa em seus membros, pelo qual é chamada à “comunhão na diversidade” (diferentes espiritualidades, liturgias, teologias...)
No entanto, a busca deste ideal se deparou, desde sempre, com diferentes desafios: dogmatismos, fechamento, sentimentos de superioridade, apego a normas, elitismo, legalismo, moralismo, etc...
A fé cristã em Deus, que é uno e trino, aparece como o primeiro fundamento para acolher a diferença. Também o exemplo de Jesus convida seus seguidores a sair de si mesmos, a acolher o outro como revelação de Deus. Essa fé se expressa no chamado “pluralismo comprometido”, ou seja, a busca, através de um diálogo honesto, de uma verdade, bondade e beleza sempre maiores.
Nós cristãos vivemos inseridos no interior deste mundo de identidades plurais. Como viver essa diversidade? Mais ainda: como conviver com elas na criação de um mundo mais justo e humano para todos?
Não podemos permanecer trancados em redutos que rejeitam as diferenças existenciais. A humanidade deixou de ser distante para tornar-se mais próxima, mediante as diferenças, os diálogos e as convergências.
Daí a importância e a urgência de aprender a valorizar o que é próprio e também o que é diferente, esforçando-se para não transformar as diferenças normais (geográficas, culturais, de raça, de gênero...) em desigualdades. É preciso educar e preservar as diferenças humanas.
Segundo o físico Andréi Sajarov “a intolerância é a angústia de não ter razão”.
É terrível quando alguém se aferra às suas próprias ideias e crenças, gerando fanatismos. O fanatismo cega e impede ver a verdade. O fanático se empenha em permanecer preso ao passado e bate de frente contra quem pretende abrir caminhos de futuro.
Quando alguém se fecha em suas ideias, é inútil mostrar-lhe a verdade. Quando alguém fecha sua mente aos demais é inútil mostrar-lhe a luz. Porque o fanático só crê em seus próprios pensamentos, só crê em suas próprias ideias, crê ser o único dono da verdade.
O fanatismo costuma ser o maior obstáculo para ver e acolher a verdade presente nos outros; o fanatismo costuma ser o maior obstáculo para ver a luz que os outros irradiam. Todo fanatismo é perigoso, mas o pior fanatismo é o religioso. Uma coisa é a fidelidade e outra é o fanatismo. O fanatismo fecha as portas a qualquer luz que venha de fora. Quantas vítimas do fanatismo da lei! E tudo em nome de Deus; e tudo em nome da religião; e tudo em nome da defesa da verdade.
Texto bíblico: Mc 9,38-43.47-48
Na oração: Despertar o eu profundo e universal é descobrir-nos como habitantes de um universo novo e espaçoso, onde a consciência expandida nos conduz ao encontro do “diferente” como chance de enriquecimento vital e de intercâmbio criativo.
Deus “se fez diferente” e é na “diferença” que Ele vem ao nosso encontro. Deixo-me surpreender pelo Deus da vida que rompe esquemas, crenças, legalismos... ou minha vivência de fé se reduz a um ritualismo fechado, impedindo sair de mim mesmo?
Pe. Adroaldo Palaoro sj
Diretor do Centro de Espiritualidade Inaciana – CEI
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