“Jesus, cheio de compaixão, estendeu a mão, tocou nele...” (Mc 1,41)
“Se soubésseis como a pele é profunda” (Paul Valéry). Somos seres que precisamos tocar e ser tocados: o aperto de mão, o abraço, as carícias..., transmitem “vida”. É a maneira de se fazer presente ao próximo, não a partir da distância, mas a partir da proximidade corporal. Quem abraça se identifica com o outro, quem o toma pela mão lhe transmite a mensagem de que não está à margem, na solidão...
O evangelho de hoje nos recorda Jesus quando tocava os leprosos. Por que fazia isso se, segundo o Evangelho, podia curá-los só com a palavra? Para dizer-lhes que estavam vivos. Jesus conhecia a vida marginalizada dessas pessoas, e como ninguém queria ter contato com elas por medo do contágio e da impureza ritual, Ele as tocava para curá-las e fazê-las sentir que estavam vivas. E assumia a consequência de tornar-se, também Ele, “impuro”.
Tocar e deixar-se tocar. Este é, talvez, um dos gestos mais característicos de Jesus e também um dos mais desafiantes e reveladores. Não é ousadia poder afirmar isso: a “pele de Deus”, a pele do Filho, está feita para tocar e deixar-se tocar, com tudo o que isso implica.
Num tempo e numa cultura onde um leve e inocente contato corporal era motivo de impureza e de afasta-mento do sagrado, Jesus, com sua pele, quebra esta união maléfica entre pureza-impureza, santidade-peca-do, que se manifesta no epidérmico. O escândalo do toque é assumido por Jesus plena e conscientemente. Não como um capricho de simplesmente transgredir o que foi estabelecido, mas como uma proximidade, uma imersão na realidade do pecado-enfermidade que excluía tantas pessoas de qualquer interação social.
É o caso do leproso do evangelho deste domingo; tocando o pecado-impureza Jesus se faz, Ele mesmo, pecado-impureza aos olhos dos justos. Jesus é consciente de que diante da lei, também ele fica impuro e leproso. E prefere ficar legalmente leproso quando se trata de salvar a dignidade de um homem; quando se trata de recuperar a liberdade do ser humano, Jesus não se importa ser excluído pela lei.
Esta visibilização contaminada-impura de si mesmo acarreta a Jesus muitos problemas com aqueles que dizem conhecer e interpretar a Deus. Mas é uma maneira radical de dizer que tocando, com tudo o que isso implica, salva-se o ser humano.
Marcos recolhe em seu relato a cura de um leproso para destacar essa predileção de Jesus pelos mais exclu-ídos. A cena revela belos traços que nos falam da beleza do Evangelho. Jesus está atravessando uma região solitária. Subitamente um leproso se aproxima dele. Não vem acompa-nhado por ninguém; vive na solidão. Carrega em sua pele a marca de sua exclusão. As leis o condenam a viver afastado de todos. É um ser impuro.
De joelhos, o leproso faz a Jesus uma súplica humilde. Sente-se sujo; não lhe fala de sua enfermidade e nem lhe pede que o limpe. Sua oração não trata de forçar a vontade de Jesus; resigna-se aceitar e acolher o que for da vontade d’Ele. Sabe que está transgredindo a lei ajoelhando-se diante de Jesus, quando devia estar longe. Só quer ver-se limpo de todo estigma.
Jesus sente compaixão ao ver a seus pés aquele ser humano desfigurado pela enfermidade e pelo abandono de todos. Aquele homem representa a solidão e o desespero de tantos estigmatizados. Jesus “estende sua mão” buscando o contato com sua pele, o toca e o cura. Jesus também transgride a lei tocando um leproso; mas para Ele a religião não pode ser um estorvo para curar o ser humano.
Marcos indica que, a partir de então, Jesus não podia entrar nas aldeias, com o qual Ele mesmo assume o destino daquele marginalizado – o destino de todos os leprosos, que não podiam entrar nas cidades -, justamente quando o cura.
Tocar ou nos sentir tocados é, em determinadas circunstâncias, a linguagem mais inteligível do amor. Jesus demonstra seu amor... “tocando”. Ele não ama à distância, mas, a cada passo aproxima-se das pessoas, gosta de sentir-se apertado entre elas.
Com amor e por amor Jesus tocava as diferentes pessoas. Com amor e por amor estas o tocavam. O Evangelho nada nos diz a respeito de palavras ou expressões que acompanhassem esses contatos. Com toda probabilidade não as havia. Porque quando se entra em contato verdadeiramente amoroso com alguém, sobram palavras. Basta a experiência tátil da “presença”. Tocar é algo mais que uma simples experiência física e psicológica. Tocar é sentir que uma corrente de vida passa de um para o outro.
O órgão do tato é a mão. Quê mistério há em nossas mãos que constantemente querem tocas as coisas e as pessoas? Mas a mão é um órgão extremamente flexível: pode acariciar ou agarrar; pode golpear ou sustentar; pode puxar ou tocar delicadamente...
Quando estendemos os braços e tocamos o outro espontaneamente descobrimos a compaixão e a riqueza que existe em todos nós. A união humana origina-se quando tocamos e somos tocados. Sim, isto depende de como tocamos... Há pessoas que nos tocam como uma crosta, uma casca; outras que nos remexem até a seiva, até o cerne. Há mãos que nos machucam, nos coisificam; e há mãos que nos pacificam, nos curam e até nos divinizam (imposição das mãos).
A partir da experiência de fé podemos recuperar a dimensão do tato como possibilidade de viver de forma mais humanizadora e plena. Os sentidos, e de maneira especial o tato, nos fazem mais humanos, nos ajudam na descoberta dos outros, fazem palpável o amor fraterno, nos ajudam a reavivar a beleza do transcendente. A fé requer ser vivida e compartilhada de forma criativa.
Texto bíblico: Mc 1,40-45
Na oração: A religiosidade popular está repleta de atitudes que testemunham o fato de que, para quem tem o coração à flor da pele, “orar e tocar” é uma só e mesma coisa.
Orar tocando é como reeditar as palavras de S. João: “Aquele que nossas mãos tocaram, disso damos testemunho” (1Jo. 1,1).
- Ninguém toca ninguém de longe. Toque o seu Deus comungando. Você também O estará tocando ao se apro-ximar d’Ele com uma visita, um telefonema, uma saudação na rua, um favor, um serviço prestado com amor.
- Há templos famosos pela liturgia da oração tátil: orfanatos, hospitais, cárceres, periferias, sanatórios, asilos, favelas... Não deixe de frequentá-los.
- Na sua oração, sinta-se próximo de todos. Toque tudo. Acaricie todas as suas recordações. É uma forma fabulosa de rezar a vida.
- Não tenha receio dos “contágios”. Se rezar com o tato supõe proximidade, imediatez, supõe também não opôr-se a todo tipo de contágio. Quando tiver medo, recorde-se que também “Deus se contagiou de humanidade”.
- Finalmente, se você se sente “tocado” por Deus, produzir-se-á um autêntico transplante de pele.
E tornar-se-á fácil para você pôr-se na “pele” dos outros. Você se tornará negro com os negros, cigano com os ciganos, criança com as crianças, pobre com os pobres...
Pe. Adroaldo Palaoro sj
Diretor do Centro de Espiritualidade Inaciana -CEI
“Ele se aproximou, segurou sua mão e ajudou-a a levantar-se”. (Mc 1,31)
A cena da cura da sogra de Pedro faz parte da chamada “jornada de Cafarnaum” (Mc 1,21-38), como se fosse o relato de um dia típico na vida pública de Jesus: na manhã do sábado dirige-se à sinagoga onde cura um endemoniado; ao meio dia entra em casa de Pedro e cura sua sogra; ao entardecer, muitos enfermos são conduzidos até Ele; de madrugada retira-se para orar.
No relato de hoje(5º dom. Comum), Jesus desloca-se da sinagoga, lugar oficial da religião judaica, à casa, onde se vive a vida cotidiana, junto aos seres mais queridos. Nessa casa vai sendo gestada a nova família de Jesus. As comunidades cristãs devem recordar que não são um lugar religioso onde se vive da Lei, mas um lar onde se aprende a viver de maneira nova em torno a Jesus.
Os olhos e as esperanças daqueles que sofrem buscam a porta dessa casa onde está Jesus. É sábado, e pela segunda vez, no mesmo dia, Jesus está de novo transgredindo um preceito sagrado, porque Ele só considera sagrado o que agrada a Deus: a qualidade da vida para todos. Para Ele o importante é a vida sadia das pessoas, não as observâncias religiosas.
O relato descreve com todo detalhe os gestos de Jesus para com a mulher enferma. Podemos contemplar o texto observando o desenrolar das três cenas: na primeira, uma mulher está na posição horizontal dos mortos, separada da comunidade e dominada pela febre. Na última, a encontramos de pé, curada e prestando um serviço, ou seja, ocupando o lugar do próprio Jesus que, segundo suas palavras “não veio para ser servido, mas para servir e dar a vida” (Mc 10,45); quando Marcos nos apresenta a sogra de Pedro “servindo”, está nos dizendo: aqui está alguém que entrou na órbita de Jesus, que respondeu a seu convite de colocar-se aos pés dos outros e por isso ela começou a “ter parte com Ele” (Jo 13,8). A cena central nos oferece o segredo de sua transformação: é o primeiro gesto silencioso de Jesus, que se repetirá em Marcos, e bastam três verbos para expressá-lo com sobriedade” – “Ele se aproximou”, “segurou sua mão” e “ajudou-a a levantar-se”.
“Jesus se aproximou”. É o primeiro gesto que Ele sempre faz: quebra distâncias, faz-se próximo daquela que sofre, olha de perto seu rosto e compartilha seu sofrimento. A dor vista de longe não dói em ninguém; a dor vista de longe não chega ao coração. É preciso olhar o sofrimento de perto. Aproximar-se já é começar a identificar-se com quem sofre. E quem sofre, começa a ficar curado quando sente a proximidade solidária dos outros.
“Segurou-a pela mão”. É um gesto próprio de Jesus; toca a enferma, não teme as regras de pureza que o proíbem; quer que a mulher sinta sua força terapêutica. Esse contato sanador é que vai possibilitar a cura. Tomar alguém pela mão é gesto cheio de ternura, sinal de carinho e proximidade, sinal de amizade e confiança; sinal de solidariedade; sinal de querer ativar o ânimo em quem sofre. É um gesto simples e cotidiano com o qual Jesus não só curou a mulher da febre senão que está nos indicando um novo modo de fazer comunidade, de ir pela vida estendendo a mão para ajudar a levantar a quem, caído no caminho da vida, espera que alguém lhe dê uma mão para pôr-se também de pé.
Quantas distâncias se encurtam quando se toma alguém pela mão! Quantas suspeitas se dissipam quando se toma alguém pela mão! Quantos medos são superados quando se toma alguém pela mão!. Por fim, «ajudou-a a levantar-se», pondo-a de pé, devolvendo-lhe a dignidade. Mais um gesto próprio de Jesus. Este último verbo é o mesmo que se usa para falar da ressurreição.
Para Jesus, as mãos são para isso: levantar o outro, ajudar o outro a colocar-se de pé, devolver ao outro a capacidade de dar direção à própria vida. O Evangelho utiliza, com muita frequência, o verbo “levantar” para designar a intervenção de Jesus em favor daqueles que estão caídos, estendidos, prostrados no chão. É a postura da humilhação, opressão e aniquilamento, enquanto que “levantar-se”, pôr-se de pé, é símbolo da dignidade humana. O homem e a mulher vivos e postos de pé experimentam a liberdade e a partir desta posição podem agir, falar, cantar... É a postura da dignidade, autoridade, transcendência e altura luminosa.
Toda a ação de Jesus poderia resumir-se no gesto simbólico de levantar, endireitar e pôr de pé.
Assim está Jesus sempre presente entre os seus: com uma mão estendida que nos levanta, como um amigo próximo que nos infunde vida. Jesus só saber servir, não ser servido. Por isso, a mulher curada por Ele se põe a “servir” a todos; ela foi integrada em seu grupo de seguidores e pode então “servir”, construindo a comunidade de iguais que Jesus queria, rompendo com a mentalidade patriarcal. Seus seguidores deverão viver acolhendo-se e cuidando-se uns dos outros.
Este relato nos dá a conhecer a nova ordem das relações que devem caracterizar o Reino no qual a vinculação fundamental é a da fraternidade no serviço mútuo. A maneira de atuar de Jesus desestabiliza as relações que se estabelecem através do poder-dominação e desqualifica qualquer manifestação de domínio de uns sobre os outros; inaugura-se um estilo novo no qual o “desenho circular” desloca e declara caduco o “modelo hierárquico”. Sua maneira de se relacionar com as pessoas prostradas e marginalizadas põe em marcha um movimento de inclusão, devolvendo a todos a dignidade perdida.
Graças a muitas pessoas que se deixaram “tomar pela mão” por Jesus, “levantar-se” e “servir”, o cristianismo primitivo foi se constituindo em pequenas comunidades domésticas, reunidas em suas casas, onde muitas mulheres assumiram funções eclesiais tanto como missionárias itinerantes como responsáveis pelas igrejas domésticas, onde presidiam a oração e a fração do pão.
Muitas das dificuldades que temos na vida comunitária vem de nossa resistência a nos situar na atitude básica de um serviço que não pede recompensas, nem reclama agradecimentos. A Igreja só atrai de verdade quando as pessoas que sofrem podem descobrir, dentro dela, a Jesus curando a vida e aliviando o sofrimento. À porta de nossas comunidades há muita gente prostrada e sofrendo.
O evangelho nos convida a deslocar-nos e aproximar-nos dos lugares onde estão os prostrados da vida, tomá-los pela mão e ajudá-los a levantar-se. Então, todos juntos, nos disporemos a servir, teceremos o manto da solidariedade social e eclesial a partir da cotidianidade; seremos assim testemunhas mobilizadoras numa sociedade cansada de palavras e necessitada de experiências que se façam verdade histórica.
Texto bíblico: Mc 1,29-39
Na oração: Coloque-se diante do Pai e peça-lhe que toda sua corporalidade, como a de Jesus, se ponha a serviço daqueles que estão prostrados na vida. Contemple suas mãos: para quem as estende?
A quem elas seguram e envolvem? A quantos elas levantam? A quantos elas acariciam? A quantos elas incitam a ter ânimo?
Mãos que curam sem dizer nada; mãos que levantam com um sorriso; mãos que despertam o sentido do serviço.
Contemple seus pés: para junto de quem eles o conduzem? Criam proximidade? Rompem distâncias?
Contemple seu coração: é espaço de compaixão, ternura, amor solidário...?
Pe. Adroaldo Palaoro sj
Diretor do Centro de Espiritualidade Inaciana - CEI
“Ele as ensinava como quem tem autoridade, não como os escribas” (Mc 1,22)
Esta frase nos remete a imaginar a forma, o jeito, a maneira como Jesus falava das coisas, como se posicionava diante dos fatos da realidade, como era a sua atitude diante da sociedade e da religião de seu tempo. Suas palavras despertavam a confiança nas pessoas, ativando esperanças e fazendo desaparecer os medos. Suas parábolas atraiam para o amor a Deus, não para a submissão cega à lei. Sua presença fazia crescer a liberdade, não a servidão; suscitava o amor à vida, não o ressentimento.
A este modo de falar, Marcos o chama “ensinar com autoridade”. “Autoridade” é o oposto à imposição. Do latim “augere”, significa “aumentar, elevar, sustentar...” “Falar com autoridade” não significa, falar “grosso”, “falar alto” ou “falar agressivamente”, pois são formas dos autoritários quererem se impor.
Podemos fazer aqui a distinção entre “autoridade” e “poder”: este último se baseia na força; aquela, no carisma pessoal e no reconhecimento merecido pelo próprio comportamento. Um busca a submissão; a outra só tem como objetivo o bem da pessoa e seu crescimento. Frente ao poder, o ouvinte pode sentir medo; diante de quem tem autoridade, sente confiança e ânimo.
O Mestre da Galileia fala do que viu e experimentou. Por isso, se atreve a falar em primeira pessoa. Passou por um processo no qual foi aprendendo a “pôr nome” àquilo que ia vivendo. Nesse percurso, foi levado a profundezas que lhe permitiam conectar com as vivências mais profundas das pessoas que, por sua vez, se sentem reconhecidas e “lidas” em seu interior. No entanto, os “letrados e mestres da lei” de todos os tempos e lugares tendem a oferecer “doutrina enlatada”, à qual as pessoas dão assentimento, mas que não traz nada novo. Costuma ser um receituário de conceitos aprendidos, adornados com opiniões de letrados anteriores ou de superiores hierárquicos; transmite-se doutrina, mas não há vida; fixa na ortodoxia mas falta experiência pessoal naquilo que se fala e “novidade” que nasce da interioridade. É um exercício de pura erudição que costuma deixar frios os corações dos ouvintes. Corre-se o risco de esclerozar-se, afastando-se cada vez mais da vida e das preocupações das pessoas.
O contraste é patente: o mestre de Nazaré cria algo novo; os letrados e os sacerdotes buscam, acima de tudo, conservar. A mensagem destes tende a ser repetitivo e rotineiro; a do mestre, no entanto, por mais vezes que o escutemos, sempre tem sabor do “novo”. Quanto mais distante esteja uma palavra da experiência, menos dinamismo transformador ela tem sobre as pessoas.
“Falar como quem tem autoridade” significa alguém manifestar coerência entre o que fala e o que pratica; significa alguém falar o que lhe vem de dentro do seu coração, de seu interior. E, com certeza, Jesus não tinha esta dualidade: o que Ele falava era o que Ele interiormente acreditava e existia dentro d’Ele.
Geralmente as pessoas ficam assombradas quando a mensagem que ouvem lhes soa como “novo” e, ao mesmo tempo, encontra “eco” em seu interior. E isso ocorre porque quem fala “conecta” com a realidade que, talvez ainda adormecida, habita já nos ouvintes. Se não há novidade, não é fácil que se produza assombro; a rotina só provoca acomodação, adormecimento e vazio.
Mas se é só “novidade”, o assombro será superficial e passará tão rapidamente como chegou. E isso não foi o caso de Jesus. A multidão que o escuta fica “assombrada” porque se sente “tocada” por aquilo que o Mestre dizia: este soube “pôr palavras” naquilo que as pessoas já sentiam ou intuíam, embora sem ter consciência disso. Poderíamos dizer que Jesus sabia “empalavrar” a realidade; n’Ele, as palavras não se reduziam à oralidade, mas envolviam todas as expressões humanas: gestualidade, presença compassiva, postura ética, expressões corporais acolhedoras, sentimentos... Em Jesus, as palavras são, ao mesmo tempo, pensamento, ação, sentimento..., que desencadeavam um “movimento” no interior das pessoas, abrindo-lhes um novo horizonte de sentido. Daí a sedução que Ele exercia sobre elas.
Graças à interiorização da mensagem de Jesus, poderemos, também nós, levar algo de luz e de calor a tanta gente que busca, porque se sentirá “alcançada” em seu coração. Isto requer que, seguindo o “mestre interior”, passemos pela experiência, percorrendo nosso próprio caminho espiritual: “falar com autoridade” implica uma desapropriação e um esvaziamento do próprio ego. Esse caminho nos conduzirá mais e mais ao nosso “centro”, esse centro que compartilhamos com todos os seres. Por isso, quando falarmos a partir dele, notaremos vibrar os corações daqueles que nos escutam.
No fundo, estamos todos já conectados; somos como pequenas ilhas separadas na superfície, mas compartilhamos a mesma terra comum no nível subterrâneo; somos como os poços que vemos igualmente separados, mas somos portadores da mesma água que, no manancial subterrâneo, nos “une” a todos.
Talvez este seja um dos desafios mais fortes no mundo contemporâneo: cristãos que falem com autoridade, pessoas de uma rica profundidade, capazes de apontar caminhos para que outros também encontrem a vida verdadeira, plena e abundante, à qual todos somos chamados.
Nunca a humanidade esteve tão ávida de pessoas assim. Ela não quer mais discursos vazios, desenraizados, contraditórios... ela clama por caminhos seguros, verdadeiros, que deem sentido à vida. Não é a forma que vai dar autenticidade ao que se fala, mas o interior daquele que profere a palavra.
Um mundo melhor, um mundo solidário, fraterno, amigo, deve existir, antes de tudo, dentro do ser humano; somente a partir daí cada um tem condições de propagar este mundo desejado. Ou seja, se dentro da pessoa existe ódio não dá para proclamar a paz; se dentro da pessoa existe desamor, não dá para anunciar o amor; se dentro da pessoa existe cobiça, não dá para anunciar o desapego; se dentro da pessoa existe a ambição, não dá para anunciar a humildade.
Quem tem como rotina de vida “ficar enredado” em redes sociais e TV, com os programas que são “vomitados”, dificilmente terá profundidade, dificilmente terá raízes que o sustentem nos momentos desafiadores da vida, que com certeza aparecerão. No entanto, pessoas que conseguem parar, ter tempo para si, recompor-se, fazer silêncio, interiorizar-se, contemplar, perceber a alegria da vida, das pessoas, da família, das crianças, da simplicidade... estas com certeza “falarão com autoridade”; ou seja, serão farol para conduzir e apontar caminhos.
Texto bíblico: Mc 1,21-28
Na oração: Vivemos cercados de “palavras vãs”, condenados a uma civilização que teme o silêncio (há demasiado ruído em nós e em torno a nós). Fala-se muito para dizer bem pouco; há demasiado palavrório. Carecemos de interioridade.
O silêncio não é o contrário da palavra. É sua matriz. Talhada pelo silêncio, mais significado ela possui. O tagarela cansa os ouvidos alheios porque seu matraquear de frases ecoa sem consistência.
Já o sábio pronuncia a palavra como fonte de água viva. Ele não fala pela boca, e sim do mais profundo de si mesmo. Sabem os místicos que, sem calar o palavreado crônico, é impossível ouvir, no segredo do coração, a Palavra de Deus que neles se faz expressão amorosa e ressonância criativa.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
Diretor do Centro de Espiritualidade Inaciana-CEI
“E, passando à beira do mar da Galiléia, Jesus viu Simão e André... e lhes disse: ‘segui-me’...
(Mc 1,16)
Agora começa o tempo do “caminho”; agora começa do tempo do “chamado”; agora começa o tempo do “seguimento”. E tudo começa pelo anúncio do grande acontecimento: podemos mudar nossa mente e nosso modo de pensar; podemos mudar nosso coração e aventurar-nos em uma nova vida.
Um forte apelo tem ressonância universal: “convertei-vos e crede no Evangelho”.
E tudo começa junto a um lago; tudo começa junto a umas barcas envelhecidas pela tarefa de pescar; tudo começa junto a umas redes gastas e que precisam ser remendadas a cada dia. E ali estão quatro trabalhadores: Simão e André, Tiago e João... Uma grande causa os espera: “o Reino de Deus está próximo”.
Deixai de pescar no lago estreito; a humanidade os espera; as pessoas esperam algo novo. E tudo começa por um apelo muito simples, cujas consequências são imprevisíveis: “imediatamente deixaram as redes e o seguiram”.
Começa a primeira aventura humana da fé; começa a primeira aventura de sonhar e construir um mundo melhor. Um novo movimento é desencadeado e algo novo surge na história. Hoje, a barca de nossas vidas recebe a ordem de zarpar. Para onde o Senhor quererá nos levar?
Todos teremos nossas barcas e nossas velas abertas ao vento do Espírito. Muitos, com medo, permanecerão na praia, contemplando aqueles que, com coragem, darão início à grande travessia. Onde me situo?
Não somos os primeiros a serem convidados; mas somos os convidados de hoje. Haverá ventos favoráveis e ventos contrários ao nosso navegar. Mas nós zarparemos hoje, agitando nossos lenços da fé, despedindo-nos daqueles que não se atrevem a deixar suas velhas barcas e suas redes remendadas.
O “mistério de Deus” nos supera. Parece que Ele se faz mais acessível pelos caminhos cotidianos da vida. É na vida pessoal ou coletiva onde Deus se revela presente e manifesta sua voz. Esta foi a experiência do povo de Israel (Dt. 26,6-10) e a experiência dos primeiros discípulos de Jesus.
Nosso Deus é um Deus de pessoas: Abraão, Isaac, Jacó, Maria, Pedro...
Um Deus de pessoas que se encontra mais na vida que nas ideias e nas doutrinas. A pessoa é o lugar de encontro com Deus. Jesus é, precisamente, a presença de Deus na vida humana. Um homem entre os homens. Ele vai em busca de pessoas, chama-as pelo nome; sua presença e sua voz arranca-as do seu ambiente, da sua rotina... e lança-as para novos desafios.
Tudo começou às margens do mar da Galileia... um encontro. Jesus entra no cotidiano de 4 homens, no meio daqueles movimentos difíceis e repetitivos, próprios de pescadores. Não estamos no templo, nem num dia sagrado, mas junto do mar, depois da fadiga de um dia de trabalho.
Jesus caminha e, ao passar ao longo do mar, entra no espaço vital daqueles homens, que estavam retornando da pesca. Exatamente ali, naquela vida tão normal, acontece algo novo.
A voz divina escutada no batismo – “este é meu filho amado” – invadiu a interioridade de Jesus e agora é o mesmo Espírito quem o impulsiona para a relação e a proximidade humana. Jesus se deixa levar por essa corrente de proximidade e começa a falar às pessoas, se aproxima, faz contatos, cria comunidade e busca colaboradores para que lhe ajudem a compartilhar o melhor que tem: a boa notícia do amor incondicional do Pai.
Ao contemplar a cena do evangelho de hoje observamos que no começo Jesus está só, enquanto que, no final, está em companhia de quatro seguidores. Jesus propõe, àqueles que chama, a entrar numa relação privilegiada com Ele. A expressão “segui-me” os convida a ficar “associados” à sua maneira de ser, de falar e de compartilhar com Ele em uma missão comum.
O chamado individualiza e personaliza de um modo irrepetível e inconfundível, dá um sentido completamente novo à própria vida. Jesus toma em suas mãos o futuro daqueles que o acompanham: junto a Ele irão adquirindo uma nova personalidade definida pela referência a outros.
Logo que ouviram a Sua voz, aqueles pescadores se dão conta d’Aquele que estava passando: eles já tinham sido vistos, conhecidos, amados, escolhidos. Aquela voz abre os olhos, a mente e o coração daqueles pescadores do lago. Sentem-se chamados pelo nome e conseguem compreender melhor a si mesmos, confrontam-se com Aquele que os chama e redescobrem um sentido novo, um significado inimaginável da própria existência.
Finalmente, não se sentem mais sozinhos.
Os quatro homens são atraídos pela voz, mais do que pelas palavras ou pela promessa do Desconhecido que passa, vê, chama, conhece também o nome de seus pais, e sabe bem quantas e quais são as barcas e as redes que lhes davam segurança. O objetivo da promessa não se refere somente a algo que haverá de acontecer, mas a Alguém que já está presente. A promessa que os atrai é, justamente, Aquele desconhecido, que, das margens, os chama pelo nome.
Depois de tê-los despojado de suas seguranças e levado a intuir que a vida não é questão de certezas, mas de busca e de desejos, Jesus chama aqueles pescadores para ficarem com Ele e entre eles, fazendo comunidade.
Aquele Desconhecido se aproxima, ainda hoje, do nosso mar da Galileia, que representa os lugares, os afetos, os segredos, os costumes da nossa vida cotidiana... nos faz a proposta para entrar em outro mar.
Seguir o Desconhecido do lago significa aceitar toda a vida como sacramento, como símbolo d’Aquele que passa, vê, conhece, ama, chama pelo nome...
Cada um de nós descobre ser chamado em nossa própria vida e respondemos de acordo com o estado e a situação em que nos encontramos. O fato de sentir, em nossos desejos, que estamos insatisfeitos, cultivar aspirações sempre novas, procurar entender quem somos, o que devemos fazer, o que nos torna realmente felizes..., no fundo, é um contínuo chamado pelo nome.
Não podemos permanecer indiferentes. É preciso ter coragem de perguntar: “Quem me chama?” e “a quê me chama?”; pedir ajuda para conseguir entender, reconhecer, descobrir o nosso nome. Deus está presente em todo o caminho do ser humano, mesmo quando este se encontra na rotina do trabalho cansativo, no silêncio, na incapacidade de entender e, até mesmo, de responder.
São muitos os chamados que, à margem do mar, se perdem no vazio. Deus pede, cada um de nós, entrar no “fluxo da vida”, evitando deixar que uma só das suas palavras, do seu chamado, possa cair no vazio. A dinâmica da relação com Deus passa através da nossa história, das nossas alegrias, dos nossos sofrimentos, e das nossas perguntas: “Quem sou eu?”, “O que quereis de mim?”.
Texto bíblico: Mc 1,14-20
Na oração: No fundo do seu coração cheio de velhas barcas, redes inúteis, mar estreito... é aí que o Senhor passa e com sua voz provocante o acorda para uma ousadia maior. Compete a você dar-lhe acolhida.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
Diretor do Centro de Espiritualidade Inaciana
“Quê buscais?” (Jo 1,38)
O Evangelho de hoje marca o início da atividade pública de Jesus: um relato de busca e de seguimento. Dois discípulos, que escutaram o Batista, começam a seguir o Mestre de Nazaré, sem dizer palavra alguma. Há algo n’Ele que os atrai, embora ainda não sabem quem Ele é nem para onde os leva. No entanto, para seguir a Jesus não basta escutar o que os outros dizem dele. É necessária uma experiência pessoal.
Por isso, Jesus se volta e lhes faz uma pergunta muito instigante: “quê buscais?”. Estas são as primeiras palavras de Jesus àqueles que o seguem. Não se pode caminhar atrás de seus passos de qualquer maneira.
Aqueles homens não sabem aonde os pode levar a aventura de seguir a Jesus, mas intuem que pode ensinar-lhes algo que ainda não conhecem; por isso, sua resposta é outra pergunta sábia: “Mestre, onde moras?”
Não buscam n’Ele grandes doutrinas nem sábias filosofias. Querem que lhes mostre onde vive, como vive e para quê vive. Desejam que lhes ensine a viver. A resposta de Jesus é a de um verdadeiro mestre: “Vinde e vede”. Experimentai-o vós mesmos, percorrei meu caminho, caminhai por ele... Não lhes dá explicações ou uma exortação, nem lhes impõe condições, nem exige deles algum tipo de submissão.
Jesus lhes dirige uma pergunta que os remete ao centro de seu coração, àquilo que os move: “quê estais buscando?” Sua pedagogia é a da pergunta que desvela, pois move a pessoa a entrar dentro de si e encontrar-se com a fonte que mana e corre. Com seu modo original de perguntar, Jesus abre um horizonte novo de vida àqueles dois discípulos. Pouco a pouco, Ele vai libertando-os de enganos, medos e dúvidas que atrofiavam e bloqueavam suas vidas.
“O Evangelho é um itinerário para abrir com profundidade a interioridade humana” (Rovira Belloso), e nele vemos como Jesus promove o retorno ao interior;
A pergunta nos retira da cotidianidade e da mediocridade e nos põe no movimento de busca do novo.
Somos filhos da pergunta provocada pelo mistério da vida, das coisas, de Deus, de si mesmo... Perguntar quer dizer não estar pronto, não viver em porto seguro, mas em contínua peregrinação. Só quando acolhemos as perguntas provocativas é que emergimos da cotidianidade e percebemos quão inacabada é nossa existência e quanto temos ainda de caminhar na realização de nossa missão.
Quando a pergunta ressoa em nós, aí é que descobrimos nossa mais autêntica forma de ser, nossa originalidade, nossa identidade...; ela provoca as mudanças e a transformação torna-se possível. A pergunta nos arranca da surdez e nos faz escutar aquilo que o barulho cotidiano abafa e esconde; ela nos desperta e nos faz sair da ilusão de que não há mais nada de novo para aprender e ser, nem há mais o que perguntar.
Toda pergunta ativa o “ser buscador” que nos habita. O ser humano pode ser definido como buscador; a busca é inevitável e é aquela que dá sentido à nossa existência. Em um primeiro momento, na origem da busca, podemos detectar uma insatisfação: cremos que algo nos falta, porque nos sentimos insatisfeitos. E nos lançamos em sua busca.
Geralmente, os primeiros passos nos impulsionam para fora, em busca de “objetos” – bens, posses, afetos, prestígio, poder, prazer… - que nosso eu reclama. Imaginamos que, fora de nós, deve haver “algo” que nos sacie e nos permita descansar numa sensação de plenitude. No entanto, não demoramos em experimentar que, em lugar do sonhado descanso, o que começamos a armazenar é frustração crescente: a busca não nos traz nada estável e pleno.
A busca deve orientar-nos para o interior: a Fonte que saciará nossa sede brota no mais profundo de nosso ser. Por isso, é necessário que aprendamos a escutar nosso “mestre interior”. Na realidade, o que andamos buscando é o nosso “eu verdadeiro” , o “eu profundo”, a “identidade original”. Nesse sentido, só o que nos faz mais humanos, e na medida em que nos faça mais humanos, plenificará nossa existência.
A expressão de Pascal de que “o ser humano supera infinitamente o ser humano” resume bem esta vivência da busca que nos habita, nos move e nos faz transbordar em nossa mesma intimidade. Podemos entrar dentro de nós mesmos porque em nós está a dimensão de eternidade, a dimensão “divina” que nos situa acima do vai-e-vém das coisas, acima do tempo e da contingência...
A pergunta de Jesus – “quê estais buscando” – suscita nos dois discípulos outra pergunta: - “Mestre, onde moras?”. Eles não lhe pedem uma nova doutrina nem esperam respostas teóricas. O que querem é entrar no “território” onde Jesus vive e poder também eles transitar por aí
Trata-se do território perdido que todos andamos buscando: a verdade de quem somos nós. Esta nossa busca começa no retorno ao interior, onde o Senhor nos habita e nos move. Podemos então afirmar que a busca de Deus e o encontro com ele, a partir de Sua iniciativa, coincidem com a busca e o encontro de si mesmo, de modo que buscar a Deus é buscar-se a si mesmo, na própria interioridade.
Todo o resto são “mapas”, explicações, crenças, informações, opiniões... Mapas que talvez tenham sido úteis durante algum tempo, mas que não podem saciar nosso desejo. Ninguém pode ficar satisfeito porque possui muitos mapas. A busca não se deterá até que não pisemos o território do coração. Ninguém nos pode ensinar isso a partir de fora; o máximo que pode fazer é nos oferecer “mapas”, dar ânimo, sustentar-nos e acompanhar-nos, mas é cada qual deve fazer seu caminho.
Não é comum prestar atenção ao que acontece no território interior. São grandes os riscos de se viver em horizontes tão estreitos. Tal estreiteza aprisiona a solidariedade e dá margem à indiferença, à insensibilidade social, à falta de compromisso com as mudanças que se fazem urgentes. O próprio território se torna uma couraça e o sentido do serviço some do horizonte inspirador de tudo aquilo que se faz.
Ampliar os espaços do coração implica agilidade, flexibilidade, criatividade, solidariedade e abertura às mudanças e às novas descobertas. Algumas fortalezas e seguranças pessoais caem quando os “espaços interiores”, abrasados e iluminados pela força do Espírito, começam a romper as paredes e se encarnam em “lugares exteriores”, marcados pela beleza e encantamento.
Não tem sentido transitar pelos “territórios” por onde Jesus transita se nossa mente permanece estreita, se nosso coração continua insensível, se nossas mãos estão atrofiadas, se nossa criatividade sente-se bloqueada... Ampliar os espaços interiores é convite a sonhar alto, a pensar grande, a aventurar-se... ousar ir além, lançar por terra nosso modo arcaico de proceder, romper com os espaços rotineiros e cansativos.
Texto bíblico: Jo 1,35-42
Na oração: a pergunta de Jesus continua ressoando no interior de cada um de nós: Porquê o seguimos? Quê buscamos?
Quem se põe a caminho atrás d’Ele, começa a viver com mais verdade e generosidade, com mais sentido e esperança; tem a sensação de que começa, finalmente, a viver a vida a partir de sua raiz, com mais inspiração e criatividade. Tal experiência é expansiva, pois o faz mais humano e o move a despertar a humanidade travada no outro. Tudo começa a ser diferente.
Na Igreja e fora dela são muitos os que vivem hoje perdidos no labirinto da vida, sem caminhos e sem orientação. Alguns começam a sentir com força a necessidade de aprender a viver de maneira diferente, mais humana, mais sadia e mais digna.
Encontrar-se com Jesus pode ser para eles a grande notícia.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
Diretor do Centro de Espiritualidade Inaciana - CEI
“...ao sair da água, viu o céu se abrindo e o Espírito, como pomba, descer sobre ele” (Mc 1,10)
Estamos no primeiro domingo do “Tempo Comum”; celebramos hoje uma das três manifestações de Jesus que, nos primeiros séculos da Igreja, estavam integradas na festa da Epifania (Magos, apresentação no Templo e Batismo).
Para o evangelista Marcos, o relato do Batismo não é mais um entre tantos, mas uma das chaves para compreender todo o evangelho. O batismo de Jesus é o acontecimento mais importante de toda sua vida, fora sua Paixão-Morte-Ressurreição.
Não foi um ato de humildade nem uma representação diante dos outros, mas uma atitude de total abertura e sintonia com o Pai e o Espírito. O fato de que se deixara batizar por João nos leva muito além de um encontro fortuito. A experiência junto ao Jordão o ajudou a descobrir o sentido de sua existência: ali Jesus viu claro o que o Pai esperava dele, e que a força do Espírito o acompanhava para levar a termo essa missão.
As três leituras indicadas para a festa de hoje nos falam do Espírito como principal protagonista. O Evangelho, para falar do Espírito, usa uma imagem sensível, “como uma pomba”. Certamente esta imagem nos faz retornar até o início da Bíblia, no relato da Criação, onde se diz que o Espírito de Deus “pairava” sobre as águas. O relato do Batismo nos revela um “novo Tempo” e um “novo começo”: esse Espírito transforma interiormente a Jesus e o capacita para levar a termo a difícil tarefa que lhe esperava.
Sobre a terra começa a caminhar um homem cheio do Espírito de Deus. Esse Espírito que desce sobre Ele é o alento de Deus que cria a vida, a força que renova e cura os viventes, o amor que transforma tudo. Por isso Jesus se dedica a libertar a vida, a curá-la e torná-la mais humana.
Conduzido pelo Espírito, Jesus “desce” e mergulha nas águas turvas da humanidade, onde se encontra com a vida ferida, violentada e excluída. Sob a ação do Espírito, Jesus vai destravando as vidas bloqueadas, oferecendo-lhes um horizonte de sentido, alimentando uma ousada esperança e abrindo novos caminhos de comunhão e solidariedade.
O Espírito não precisou vir de nenhuma parte; já estava em Jesus desde sempre, como está em cada um de nós. Descobrir essa presença é “nascer do Espírito”. O Espírito está também presente em cada um de nós; cabe a nós tomar consciência dessa presença e nos “deixar conduzir por Ele”, como fez Jesus. É necessário viver empapados do Espírito Santo, ou seja, viver guiados, sustentados e fortalecidos por Ele.
É decisivo deixar o Espírito destravar as nossas ricas “possibilidades de ser” presentes em nosso interior; se ativamos somente nossas possibilidades biológicas e psicológicas, desenvolveremos apenas uma parte de nosso ser. Somos também espírito e se queremos alcançar nossa plenitude humana, temos de abrir espaço em nós à ação do Espírito. Essa descoberta marcará um antes e um depois em nossa vida.
Aqui não se trata mais de um rito, mas de uma realidade: a mesma vida de Deus em nós. Essa é a Vida que palpita e flui em toda a realidade, a que nos constitui no núcleo do que somos. Por isso, podemos dizer com verdade que todos os seres estamos já “batizados com Espírito Santo”. Como poderíamos viver na ausência dessa Vida? Como estaríamos vivos se nos encontrássemos desconectados da Fonte da Vida?... Estamos compartilhando a mesma Vida da qual Jesus foi tão consciente.
“Batizar-nos no Espirito Santo” é descer ao nosso “jordão interior”, mergulhar em nossa própria humanidade, para dali sairmos recriados e impulsionados a um compromisso de vida. Não se trata só de que temos “recebido” a Vida divina, senão que somos essa mesma Vida, expressando-se em mil formas diferentes; mas todas elas são expressão da única Vida e do mesmo Ser.
O Espírito atua sempre da mesma maneira, silenciosamente, a partir de dentro, sem ruídos, sem ventanias, sem violentar a natureza porque atua sempre de acordo com ela. Somos filhos(as) do Vento porque estamos nascendo permanentemente da Fonte da Vida, que é nossa mesma vida. Somos seres criados, habitados, sustentados, amados pelo Sopro originante e amoroso de tudo o que é, ao qual as religiões chamaram “Deus”.
O Espírito é brisa, é vida, é movimento... A vida é vivida quando sopra a força do Espírito, que impulsiona a abrir, a avançar, progredir... Sempre foi e sempre será uma aventura apaixonante “deixar-se conduzir pelo Espírito”. Quem abre espaço para que o “Espírito desça sobre ele” não foge de si mesmo senão que se submerge em seu espaço interior, e, a partir dali, desemboca numa atitude contemplativa no mundo que o cerca; em sintonia com o ritmo da criação e da beleza, abre-se à relação com o outro, entrando em um verdadeiro dinamismo de vida.
Porque a vida autêntica é a vida movida, iluminada, impulsionada pelo dinamismo do amor, que se expressa numa relação cordial, aberta e receptiva à originalidade do outro. Precisamos de outro ritmo em nossa vida, porque a melodia espiritual está presente em nosso mundo. Precisamos de um outro olhar contemplativo, sobre nós e sobre a sociedade, e não fugir de nós mesmos, senão acolher a vida com outra sabedoria.
Em suma, a palavra “Espírito” significa vento, hálito, sopro de vida, força interior que nos transforma a partir de dentro. Para a mentalidade cristã, o seguimento de Jesus é considerado como uma vida segundo o Espírito, uma vida que tem como fundamento e inspiração o modo de ser e atuar de Jesus de Nazaré. Hoje, precisamos desta força do Espírito nas pessoas, nos povos, nas instituições e na história.
Se não nos deixamos reavivar e recriar por esse Espírito, nós cristãos não teremos nada importante que apresentar à sociedade atual tão vazia de interioridade, tão incapacitada para o amor solidário e tão necessitada de esperança. É preciso transformar nosso olhar, nossa atitude e nossa relação com o mundo de hoje. Precisamos parecer-nos mais a Jesus, ou seja, deixar-nos “batizar” por seu Espírito.
Só o Espírito pode dar à Igreja um novo rosto.
O Espírito de Jesus continua vivo e operante hoje no coração das pessoas. Estão sendo criadas condições nas quais o essencial do Evangelho pode ressoar de maneira nova. Uma Igreja mais frágil, humilde pode fazer que o Espírito de Jesus seja entendido e acolhido com mais verdade.
Texto bíblico: Mc 1,7-11
Na oração: As grandes transformações sociais e culturais pelas quais estamos passando estão pedindo hoje a nós cristãos uma fidelidade e uma escuta do que nos diz o Espírito de Jesus.
Como estamos acolhendo hoje o Espírito de Jesus?
Quê caminhos novos anda buscando hoje o Espírito de Deus para encontrar-se com os homens e mulheres de nosso tempo? A partir do nosso Batismo, como devemos renovar nossa maneira de pensar, de dizer e de viver a fé para que a voz do Espírito possa atingir às grandes interrogações, as dúvidas e os medos que brotam e afligem a humanidade?
Pe. Adroaldo Palaoro sj
Diretor do Centro de Espiritualidade Inaciana - CEI
“E eis que a estrela que tinham vista no Oriente ia à frente deles até que parou sobre o lugar onde se encontrava o menino” (Mt 2,9)
Guiados pela estrela no céu e pela estrela de uma grande esperança no coração, os Magos começam a caminhar. Na sua busca, examinam o céu e auscultam o próprio coração. Porque buscam, empreendem o caminho. Põem-se a caminho porque tem perguntas e inquietações no coração.
Caminharam juntos, em comunidade. Só ajudando-se e animando-se mutuamente, carregando o peso uns dos outros, durante o calor do dia e durante a escuridão da noite, é possível chegar à meta. O símbolo dominante no caminho é a Luz que, na Bíblia, é manifestação do mistério de Deus nas suas dimensões fundamentais de vizinhança (imanência) e de alteridade (transcendência).
A luz, de fato, está fora de nós, é exterior, impalpável, intocável; mas também está em nós e sobre nós, nos ilumina, individualiza, é vida e calor. Em sua etimologia, a palavra “epifania” nos fala de um “vir à luz”, de um “aparecer” que se mostra no brilho da aparência.
A palavra epifania nos fala, portanto, do brilhar de uma luz que se “des-cobre” a nós. Esta eclosão da luz, este “brilhar-para”, acontece em um momento que não provém de uma decisão nossa, mas de uma atenção nossa.
O simbolismo da luz conduz-nos a uma outra imagem dominante na narração dos Magos, a espacial.
O quadro geográfico-espacial que decorre da narrativa de Mateus é denso: Oriente, Jerusalém, Belém, Judéia, Egito, Ramá, Galiléia, Nazaré. Mas não se trata apenas de um mapa topográfico. O espaço bíblico é dinâmico, é percorrido por um formigueiro de vida, de movimento... É a história de uma viagem arriscada, de um itinerário “abraâmico”, que partiu, “mas sem saber para onde ía”. (Heb. ll,8).
Aqui se unem a história de Abraão e dos Magos, que deixam a pátria por uma terra desconhecida.
O que os olhos dos Magos vêem ao entrar na gruta é a fragilidade e a impotência de um recém-nascido. Mas o que esses mesmos olhos – acostumados a auscultar os céus e treinados no discernimento do que o coração sente – reconhecem, depois de guiados pela estrela e ilustrados pelas Escrituras, é o Esperado de todos os povos e de toda a Criação. O longo itinerário da busca de Deus só pode terminar na adoração e na entrega.
Os Magos visitam e se vão; retomam a itinerância na fidelidade a uma estrela; isto significa novamente fazer a experiência da busca, da esperança... Toda viagem que culmina na manjedoura, é ponto de partida para novos caminhos.
A viagem dos Magos se torna, assim, o símbolo da vida cristã, entendida como seguimento, como discipulado, como procura. Para chegar ao encontro com Deus é necessário atravessar, como eles, desertos escaldantes e noites escuras, desinstalar-se e romper com o convencional, vencer novos obstácu-los e refutar velhos argumentos. Quem quer encontrar Deus, não pode ficar preso ao passado.
Precisa partir sempre de novo, com o coração cada vez mais leve, porque mais livre; mudando, cada manhã, o lugar, o modo de pensar, a maneira de esperar e a forma de viver.
A viagem exige desapego, coragem, procura, esperança. Quem está preso à terra pelo peso das coisas, pelos apegos, pelos egoísmos, não é capaz de se tornar peregrino. Quem está convencido de possuir tudo, inclusive o monopólio da verdade, não tem a gana da procura contínua. Quem está bem instalado na cidade não precisa de Belém.
Para chegar ao encontro com Jesus é necessário deixar-se comover pelos sinais percebidos e discernidos, é necessário deixar-se mover e guiar por eles ao longo de toda a caminhada. Quem parte impelido por esse dinamismo, é porque de alguma maneira já vislumbrou o que busca. Quem é movido por uma grande esperança, tem força e entusiasmo para deixar tudo e partir.
“Fazer estradas” é preciso. Caminhar consciente: nada está definido no caminho. Há rumos diversos e ritmos diferentes de andar. Em cada ser humano brilha uma luz que aponta para uma fonte e conduz a uma meta que o faz peregrinar.
Se o caminhante é uma pessoa de fé, transforma-se em peregrina diante de horizontes abertos e futuros distantes. É um engano pensar que a chegada é a parte mais importante. Em nossas entranhas, fomos feitos com “fome de estrada”. Nascemos com essa inquietude: nossa vida é uma longa jornada. “Quando descanso meus pés, minha mente também pára de funcionar”. (J.G. Hamann)
Na pequena procissão dos Magos rumo à verdade e à luz, podemos ver a grande procissão da humanidade. Para todos é indispensável a procura, a viagem, o risco. Ao fim da viagem, depois de muitas peripécias e muita escuridão, depois de silêncios e estradas erradas, eis que surge, para todos, Belém. Para quem O procura de coração sincero, Deus se faz encontro.
A estrela que guia nossa busca continua sempre apontando para mais verdade, mais entrega, mais justiça, mais comunhão. Ela continua a brilhar sempre no firmamento do coração. Sobre e em torno ao menino Jesus se projeta e se desenrola o grande duelo da história:
- à Belém, cidade de Davi se opõe Jerusalém, a cidade de Herodes;
- à busca homicida de Herodes, a busca amorosa dos Magos; ao medo sucede a alegria;
- a interrogação “onde está o rei dos judeus?” dá lugar ao festivo “viram o menino e sua mãe”;
- à noite se sobrepõe a estrela, que ilumina a escuridão; a estrela indica, mas desaparece;
- os sumos sacerdotes e os escribas conhecem a verdade sobre o Messias, mas não sabem reconhecê- lo; a meta, Jerusalém, é substituída por “uma outra estrada” para a qual se encaminham os Magos
No deserto de nossas vidas, os mapas de estradas não são muito úteis.
Nós não temos necessidade de mapas; no deserto, onde não há mais estradas, para que servem os mapas? No deserto temos necessidade de bússolas e faróis. Podemos perder todos os mapas, todos os nossos pontos de referência, todas as nossas escalas, mas não podemos perder a bússola; não podemos perder a nossa orientação, a nossa orientação para a gruta.
Isto é muito importante para nós quando estamos, muitas vezes, sem referência, porque neste momento temos de fazer uso de nossa bússola, isto é, do nosso coração. Um coração que busca o Senhor.
Texto bíblico: Mt 2,1-12
Na oração:
- saber esperar é abrir-se para a revelação do mundo enquanto Epifania, luminosidade que se manifesta no mais comum e cotidiano de nossa vida. Neste momento o Mago nos visita, nos habita.
- O presente dos Magos é a aceitação e o reconhecimento da manifestação do Deus no presente.
- Esta Presença sempre presente só é recebida por aquele que, livre e despojado, se encontra diante da
manjedoura, na plenitude da simplicidade.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
Diretor do Centro de Espiritualidade Inaciana-CEI
“Os pastores voltaram, glorificando e louvando a Deus por tudo que tinham visto e ouvido” (Lc 2,20)
Somos seres de “travessia”...
Mais uma vez nos deparamos com ritos de passagem: final de ano, a expectativa surpreendente da Epifania, a renovação dos desejos que nos humanizam, a ansiedade diante dos desafios do Novo ano...
Tempo celebrativo marcado pela gratidão, para acolher as experiências vividas e aprender com elas; tempo de inspiração e criatividade diante da certeza do novo; e, sobretudo, tempo para recompor a esperança, tantas vezes reprimida ao longo do ano.
Ano Novo nos situa no clima das grandes esperanças da humanidade; neste dezembro mágico nosso coração caminha mais rápido, rompe o tempo, já está lá na frente, pronto para acolher a surpresa.
Tudo aponta para o Eterno que nos escapa e nos encontra. Aqui a imaginação trabalha e cria momentos felizes. Com essa esperança, podemos dar sabor à nossa vida, muitas vezes modesta e simples. A esperança tem raízes na eternidade, mas ela se alimenta de pequenas coisas. Nos despojados gestos ela floresce e aponta para um sentido novo. É preciso um coração contemplativo para captar o “mistério” que nos envolve. É preciso um “coração de pastor” para ver numa criança a presença do Inefável.
Mesmo diante dos profundos dilemas sociais, achamos possível ser e viver de outro modo, inventamos e reinventamos opções, criamos novas saídas... e sem cessar, sonhamos com o “mais” e o “melhor”. Ainda que soframos ventos contrários e as nuvens se adensem no horizonte, sabemos e confessamos com o profeta Jeremias: “Há uma esperança para o teu futuro” (31,17).
Precisamente por vivermos tempos difíceis, precisamos mais do que nunca da pequena e teimosa esperança. Pois “a esperança é uma filhinha que todas as manhãs acorda, lava-se e faz a sua oração com um rosto novo” (Péguy).
Nesse sentido é que compreendemos a esperança como produtora e gestora do futuro; ela se revela como espera criativa e nos prepara para acolher as surpresas da vida. A esperança é algo constitutivo de nossa humanidade, ao mesmo tempo em que nos humaniza; ela carrega uma força misteriosa, um sopro criador que nos leva a olhar tudo com fé e otimismo. O nosso interior está habitado por esperanças de todo gênero. O que faz a diferença é a qualidade, a consistência e o realismo de nossas esperanças.
A esperança, hoje como sempre, não é virtude de um instante. É a atitude fundamental e o estilo de vida daqueles que enfrentam a existência “enraizados e edificados em Jesus Cristo” (Col.2,6). Ela não é a virtude própria dos momentos fáceis. Ao contrário, a esperança cristã cresce, se purifica e se enriquece em meio aos conflitos.
Frente a uma “visão imediatista” da história, sem meta e sem sentido algum, a esperança cristã leva a sério todas as possibilidades latentes na realidade presente. Precisamente porque queremos ser realistas e lúcidos, nós nos aproximamos da realidade, vendo-a como algo inacabado e “em marcha”; não aceitamos as coisas “tal como são”, mas “tal como deverão ser”. Quem ama e espera (esperançar) o futuro não pode “conformar-se” com a realidade tal como é hoje. A esperança não tranquiliza, mas inquieta, gera protesto, nos desperta da apatia e da indiferença... nos desinstala.
Santo Agostinho dizia que a esperança tem dois filhos: a indignação e a coragem. Indignação ao ver como as coisas estão e coragem para não permitir que continuem assim. Nós nos indignamos quando nos sentimos impotentes ante a injustiça, a violência, o abuso do poder, a marginalização em que vivem milhões de crianças e jovens sem futuro… Entretanto sabemos bem que a indignação não basta para mudar essas realidades que não apreciamos.
Por isso Santo Agostinho fala do segundo filho: a coragem, palavra que deriva do latim “cor”, coração. Ter coragem significa ter coração. A primeira prova de coragem é, portanto, atrever-se a escutar o próprio coração e rebelar-se diante da impotência. Coragem é colocar o coração na frente, e não os cálculos racionais da mente ou os medos paralisantes.
Aquele que vive com esperança se sente impulsionado a fazer o que espera. Desejar algo é antecipar o futuro e procurar uma maneira de torná-lo presente.
“Estamos abastecidos de futuro” (Pedro Arrupe)
Há um dado que é absolutamente evidente nestes tempos pós-modernos: o futuro que vamos construindo “carece de marcas de certeza” (Lefort). Nossa concepção de futuro se atrofiou: vivemos “tempos sem futuro”. Não podemos prever o futuro com segurança. Hoje, o futuro se apresenta a nós muito mais aberto que em qualquer outra época de nossa humanidade. Os conhecimentos, os meios de comunicação, as técnicas... não nos asseguram uma certeza do que virá. Aventurar no futuro torna-se cada dia mais complexo e difuso, pois predomina a incerteza que nós mesmos geramos.
Vivemos uma geração que teme o futuro; por isso vivemos um “presente esticado” porque o futuro nos apavora. Já que preferimos não imaginar o futuro, alargamos o presente. Precisamente porque faltam valores e um sentido para a existência é que se irrompe o medo do futuro, a acomodação, o refúgio no efêmero e no imediato, sem raízes e sem esperança. O medo do futuro nos ajuda a entender a mediocridade e o vazio do presente. Ao reduzir nossos sonhos e aspirações ao consumo, reduzimos nossa humanidade e nossa vida.
Precisamos voltar a ter um futuro onde ancorar; um futuro que valha a pena imaginar e que impulsiona as ações de nosso presente; uma esperança que nos dilate. Sem silêncio, sem profundidade, sem a sabedoria que sabe decantar, nunca seremos arrojados e audaciosos frente ao futuro. O futuro que espera se converte em projeto de ação e compromisso, alimenta a solidariedade, desperta a ternura, a acolhida compassiva...
E este compromisso é precisamente o que gera esperança no mundo. No final, seremos todos acolhidos por Aquele que nos quer “eternos”. Porque Ele é “terno”, deitado numa manjedoura, Esperança despojada que dá sentido às nossas perdidas “esperanças”.
Texto bíblico: Lc 2,16-21
Na oração: Esperança, indignação, coragem. Preciosas atitudes para este novo tempo em que temos o privilégio de viver. Você se atreveria de fazer suas essas atitudes? Você se arriscaria, por um novo começo? Que riscos concretos você se sente chamado a assumir?
Um Ano Novo feito de promessas, de caminhos... de ternura infantil.
Um ousado 2015, carregado de esperanças!
Pe. Adroaldo Palaoro sj
Diretor do Centro de Espiritualidade Inaciana - CEI
“O menino crescia e tornava-se forte, cheio de sabedoria; e a graça de Deus estava com ele” (Lc 2)
A liturgia de hoje nos propõe a “Família de Nazaré” como horizonte de inspiração para nossas famílias. Uma festa estabelecida recentemente para que nós cristãos pudéssemos celebrar e aprofundar aquilo que pode ser um projeto familiar entendido e vivido a partir do espírito de Jesus.
Uma família cristã procura viver uma experiência original no meio da sociedade atual, indiferente e consumista: construir o seu lar a partir da referência da Casa de Nazaré: José, Maria e Jesus que alentam, sustentam e orientam a vida humana e inspiradora de toda família.
Entre os cristãos defende-se quase instintivamente o valor da família, mas nem sempre paramos para refletir no conteúdo concreto de um projeto familiar, entendido e vivido a partir do Evangelho.
Não podemos celebrar dignamente a festa de hoje sem escutar o desafio de nossa fé: como são nossas famílias? Vivem responsavelmente e comprometidas com uma sociedade melhor e mais humana, ou fechadas exclusivamente em seus próprios interesses? Educam para a solidariedade, a busca da paz, a sensibilidade para com os mais necessitados, a compaixão..., ou ensinam a viver somente para o bem-estar insaciável, o consumismo, o máximo lucro e o esquecimento dos outros? É espaço de humanização, de relações sadias..., ou ambiente limitador das possibilidades de seus membros?...
No evangelho da Infância em São Lucas, o relato do nascimento de Jesus é desconcertante: não há lugar para acolhê-lo; os pastores o encontram deitado em um presépio, sem outras testemunhas a não ser Maria e José. Temos a impressão que Lucas sente a necessidade de construir um segundo relato no qual o menino é resgatado do seu anonimato para ser apresentado publicamente. E o Templo de Jerusalém é o lugar mais apropriado para que Jesus seja acolhido solenemente como o Messias enviado por Deus a seu povo.
Mas, de novo, o relato de Lucas é desconcertante. Quando os pais se aproximam do Templo com o menino, não são os sumos sacerdotes nem os demais dirigentes religiosos que saem ao seu encontro. Também não é recebido pelos mestres da Lei que pregam suas “tradições humanas” nos átrios do Templo. Jesus não encontra acolhida nessa religião fechada em si mesma e distante do sofrimento dos mais pobres; não encontra amparo em doutrinas e tradições religiosas que não ajudam a viver uma vida mais digna e mais humana.
Somente os olhos apagados de dois idosos (Simeão e Ana) conseguem ver o Salvador; somente os braços cansados desse casal ancião conseguem abraçar o Salvador; somente eles conseguem estreitar em seus corações Aquele que é a Esperança dos povos. Uma vida cheia de promessas e esperanças; agora, marcados pela gratidão, cantam de alegria e louvam o privilégio de acolher a Quem tinham esperado durante toda uma vida.
Em seguida, a família de Jesus retorna ao cotidiano de Nazaré, onde o menino “crescia” e se “humanizava”. De fato, o ambiente familiar é o lugar privilegiado para o amadurecimento físico, espiritual, social... de todo ser humano. É também o espaço propício para que cada um vá desenvolvendo a ampliando suas capacidades, seus sonhos, seu projeto de vida... Se Jesus, mais tarde, pregou e viveu o amor, a entrega, o serviço, a solicitude para com o outro, quer dizer que Ele foi incentivado a viver tudo isso no seu ambiente familiar. Na escola da vida, comum e cotidiana, Jesus também foi aprendiz.
Ele viveu a vida como um processo lento e progressivo, a partir da própria condição humana no meio dos seus, no meio do povo e em vista do Reino de Deus, graças a uma criatividade transformadora.
A família continua sendo o espaço humanizador privilegiado para o desenvolvimento de cada pessoa, não só durante os anos da infância e da juventude, mas durante todas as etapas de sua vida. O ser humano só pode crescer em humanidade através de suas relações sadias com os outros. A família é a atmosfera insubstituível e o lugar de referência para que essas relações profundamente humanas sejam amadurecidas. Seja como casal, como filho, como irmão, como pai ou mãe, como avós..., em cada uma dessas situações a qualidade da relação os fará aproximar da plenitude humana, quando todo encontro com o outro é vivido para destravar e ativar suas ricas possibilidades e sua capacidade de amar. O espaço familiar desvela o humano que em todos habita.
A experiência e vivência familiar, portanto, vem responder a uma demanda própria deste momento pós-moderno e se revela capaz de restituir ao ser humano de hoje a espessura de humanidade e os valores que lhe são próprios.
O clima familiar não só mobiliza a pessoa em sua integralidade (corporal, afetivo, cognitiva, volitiva...), mas a acompanha para um sentido sapiencial da vida e que a faz saboreá-la como descoberta, como oportunidade, como dom.
A espiritualidade familiar, centralizada em cada um de seus membros, visa mobilizá-los em todas as suas dimensões, promove distensão, paz e alegria, propõe um caminho de plena humanização, forma para a abertura aos outros e para a doação por amor, impele, em suma, a criar as condições para que todos atinjam a maturidade e se realizem.
Esse itinerário existencial constitui-se como o impulso para aventurar-se na busca da verdade e do sentido primeiro e último das coisas, o estímulo de crescimento e descoberta de si, até fazer das suas capacidades pessoais um meio para transformar o mundo, agindo nas estruturas sociais e dando à humanidade uma contribuição que tenha o sabor do Reino de Deus.
A mística familiar situa-se, com toda a densidade, no contexto da experiência de humanidade e de fé do ser humano, de modo que cada um possa caminhar, dentro de si e diante de si, na direção daquela verdade, daquele bem e daquela beleza que constituem a positividade do mundo e a força da humanidade, fundamentados em Deus e garantidos por Ele. Por isso, a família pode ser considerada como uma tarefa humanizadora, capaz de tocar as fibras mais sensíveis do ser humano e convidá-lo para a valentia do serviço, da solidariedade e da liberdade.
O espaço familiar visa, portanto, à reorganização da vida de cada um segundo coração do Pai e, por conseguinte, um ótimo desenvolvimento dos talentos e dos carismas recebidos. O objetivo primeiro da família é ajudar o ser humano a tomar nas mãos, diante de Deus, a própria vida, ajudá-lo a tornar-se verdadeiramente ser humano. Seu verdadeiro desafio é exatamente o crescimento do ser humano enquanto descoberta de um projeto, escolha e determinação de empenhar-se pelos outros.
Ela possibilita “educar”, no sentido de “educere”: extrair a verdade da pessoa, para que consiga ter uma visão ampla de si mesma e realizar-se da melhor maneira possível em suas potencialidades. Cada um é diferente, único, com saberes, expectativas, medos, ansiedades e desejos, pontos fortes e fraquezas, com seu ritmo e modo próprios de viver.
Assim, a pedagogia familiar evoca a verdade do ser humano, comporta uma provocação, uma proposta que pede o máximo dele mesmo e, por isso mesmo, revela o que ele é capaz...Uma autêntica experiência familiar tem efeitos explosivos: é novidade que surpreende e às vezes assusta, cria novas expectativas e solicitações, traz tensão e também insatisfação, pede a mudança dos costumes e velhos estilos de vida, leva adiante o equilíbrio da pessoa em direção a horizontes imprevisíveis, abre uma nova fase de vida...
Texto bíblico: Lc 2,22-40
Na oração: contemplar seu espaço familiar: é ambiente instigante, provocativo, inspirador... onde todos se sentem livres para expressar sua identidade e originalidade? Ali educa-se para viver uma consciência moral responsável, sadia, coerente com a fé cristã? Ou favorece um estilo de vida superficial, consumista, sem metas nem ideais, sem critérios e valores evangélicos?
Em quê dimensões você sente que sua família pode e deve crescer mais, tendo como referência a Família de Nazaré?
Pe. Adroaldo Palaoro sj
Diretor do Centro de Espiritualidade Inaciana - CEI
“Encontrareis um recém-nascido envolvido em faixas e deitado numa manjedoura” (Lc 2,12)
A humanidade de Deus nos assusta, porque, no fundo, temos medo de nossa própria humanidade. Nesse sentido, a festa do Natal é uma ocasião propícia para que pensemos no dano que nos tem causado e continua causando o medo de nossa própria humanidade. Com certeza, nesse medo está a explicação e a raiz de tantas violências e maldades que teriam e que poderiam ser evitadas.
São muitos aqueles que, mesmo tendo fé, passam a vida aspirando ser “como Deus”. E ao forçar tanto querer ser “divinos” deixam de ser verdadeiramente “humanos”. Tanto falso apetite de “divindade” acabou despedaçando nossa própria “humanidade”.
De fato, o que há de verdade nos evangelhos da infância é que o “divino” (ou seja, Deus) se deu a conhecer, se fez presente e se manifestou no “humano”. E precisamente no mais humano: uma criança, sem “títulos”, de condição humilde e em circunstancias de pobreza, desamparo e perseguição.
O “divino” não se fez presente no portentoso, no milagroso, no assustador, como aconteceu com Moisés na sarça ardente ou no monte Sinai. O “divino” se fez presente em um recém-nascido, em um estábulo, entre palhas e animais. E foi anunciado aos pastores, um dos ofícios marginalizados daquele tempo.
A “mensagem religiosa” dos evangelhos da infância é teimosamente clara e provocadora. É a mensagem que nos diz isto: o “divino” se revela e se desvela no “humano”, no mais humano, ou seja, no fraco, no marginalizado, no excluído e no perseguido. Em Jesus, interagem, harmoniosamente, o humilde e o sublime, o divino e o humano; n’Ele o humano é entrada para o divino, o celeste se manifesta no terrestre, um contendo, reconhecendo e beneficiando o outro. Sua maneira de assumir e viver a condição humana nos revela Deus e valoriza a humanidade com toda a Criação.
O Evangelho tem algo muito forte, muito duro, que não cabe em nossa cabeça. O Evangelho é a afirmação mais sublime do humano. A partir do primeiro Natal que houve na história, devemos dirigir nosso olhar para as “margens” e contemplar a presença de Deus que não se encontra no grandioso e notável, mas naquele que é marcado pela simplicidade e despojamento.
Encanta-nos quem é poderoso, o importante, o solene, o que impressiona e chama a atenção, o que se impõe e causa admiração... Mas, o que não é nem mais nem menos que humano, o que é comum com todos os humanos..., precisamente isso que é o que tantas vezes menos valorizamos, isso é o que mais necessitamos. Porque é o que mais nos humaniza, e o que mais humaniza a vida, a convivência, a sociedade. Somos “educados” para sermos importantes, mas não para sermos simplesmente humanos.
Daí, a consequência mais perigosa e mais funesta que todos arrastamos. O poder nos seduz; a glória nos atrai; a vaidade nos faz autorreferentes. Queremos, a todo custo, ser importantes, destacar, ser notáveis... Tais sentimentos nos rompem por dentro e destroçam nossa própria humanidade.
Recuperemos o Natal essencial, o Natal da Vida. Na vida de Jesus, feita de carne solidária, reconhecemos a Encarnação universal, para além de todas as fronteiras de espaço, de tempo, de cultura, de raça, de religião. A Encarnação de Deus em todos os mundos, desde o primeiro Big Bang. Isto é o Natal para além das formas: acolher e viver a eterna Infância ou a Bondade eterna de Deus em todas as coisas, apesar de tudo.
A festa de Natal nos conecta com a essência de nossa própria humanidade. O que se celebra é um Deus-menino, que está chorando entre animais, e que não mete medo nem julga ninguém. É bom que os cristãos voltem a esta imagem: o eterno menino que, no fundo, nunca deixamos de ser.
Eterna infância de Deus. Aquele que não cabe no universo cabe no seio de uma jovem mãe. O Criador é cuidado no colo de uma mulher. O Amor eterno necessita ser mimado e abraçado como uma criança. Ele se faz necessitado para que aprendamos a deixar-nos ajudar e aprendamos assim a ajudar os outros. Ele está desamparado, para que tenhamos lar, pátria, calor. Repousa em um presépio, para que todas as criaturas possam sentar-se junto à grande mesa de toda a Terra.
Ter o “eterno menino” diante de nossos olhos desperta em nós renovação de vida, inocência, novas possibilidades de vida que nos impulsionam em direção ao novo futuro.
- Imaginamos “outro Natal possível”, mais próximo do Menino Jesus nascido humildemente em um presépio, onde em lugar de “dar presentes”, nos “faremos presentes” junto aos famintos, necessitados e excluídos, abriremos corações e portas à chegada Salvadora do Menino Deus. A solidariedade e a ternura abrirão passagem frente ao individualismo, ao egoísmo e ao consumismo.
- Imaginamos um Natal onde aproveitamos para fazer uma viagem ao interior de nosso espírito, ali onde habita o Deus da Vida que dá fundamento à nossa verdadeira identidade.
- Imaginamos um Natal simples, solidário, alegre... sem luxos, onde faremos presentes em nossos corações a todos as pessoas que sofrem e que são as preferidas de Deus Pai e Mãe.
Estes são, pois, os sentimentos que queremos alimentar neste Natal, em meio a uma situação sombria da Terra e de toda a humanidade. Sentimentos de que ainda temos futuro, porque a Estrela é magnânima e o “Menino” é eterno e porque ele se encarnou neste mundo e não permitirá que este se afunde totalmente. Nele se manifestou a humanidade e a jovialidade do Deus de todos os povos. Todo é resto é passageiro.
Todos intuimos que o humano é uma maravilha, mas que precisa ser cuidado e potenciado. O Natal é o anúncio de que a porta para esse cuidado e essa potenciação está aberta. É inegável que temos desfigurado o Natal até torná-lo irreconhecível e anticristão. Mas continua pulsando em nós o desejo de outros natais possíveis.
Texto bíblico: Lc 2,1-14
Na oração: Belém, “a casa do pão” é muito mais que um lugar geográfico; Belém é o nome poético do mistério mais belo e real, o nome de todos os lugares onde a vida é gerada e cuidada, onde o pão é assado e com-partilhado.
Belém é o mistério da vida, tão frágil e divina. Jesus, Maria e José: um pai, uma mãe, um filho. Isso é tudo, isso é o todo: o mistério do cosmos, da Terra e da vida, do homem e da mulher, com suas alegrias e dores, seus amores e medos, suas esperanças e dúvidas.
Tua casa é Belém, quanto mais pobre mais verdadeira. É em tua própria Belém que Deus se encarna novamente.
O Natal não é ruído. O Natal é silêncio. O Natal é quietude. O Natal é paz interior. Neste silêncio é quando se sente e se experimenta, de forma vital, o interior de todo ser humano, sua dignidade compartilhada.
O Natal silencioso nos leva a contemplar esta dignidade de todo ser humano que é divina.
Um “humano” Natal a todos!
Pe. Adroaldo Palaoro sj
Diretor do Centro de Espiritualidade Inaciana - CEI
“O Espírito Santo virá sobre ti, e o poder do Altíssimo vai te cobrir com a sua sombra” (Lc 1,35)
Hoje vivemos tempos conturbados e, para alguns, também bastante confusos. Muitos gostariam que, após
tão longa caminhada, tudo fosse mais claro e evidente, ao invés de se sentirem outra vez tateando em busca de um caminho a seguir. Isso acaba provocando desconforto a quem desejava segurança e definições permanentes; mas, por outro, o espírito de busca lhe dá agilidade e flexibilidade para levar a missão adiante, da maneira mais adequada a cada momento histórico.
Mons. Tonino Bello, que sonhava com uma Igreja de avental, imagem que se tornou muito popular entre nós nestes últimos anos, sonha também com uma Igreja como tenda:
“A Igreja deve se parecer com uma pedra imóvel ou com uma tenda que pode ser desarmada ao nascer do sol quando o viajante se põe a caminho para enfrentar uma nova viagem? ...
A tenda ajuda a compreender que a Igreja é uma instituição transitória que simplesmente anuncia a Jesus Cristo; não se coloca ela mesma no centro e não assume aquele eclesiocentrismo da visão cristã, mas o Cristocentrismo. Jesus está no centro, e a Igreja aponta para Jesus. A Igreja está em marcha, a Igreja caminha com a humanidade, a Igreja não deve fincar raízes e se agarrar à terra para se firmar, como a ostra na pedra... A Igreja deve ser móvel, e a tenda talvez evoque melhor essa dimensão itinerante da Igreja...”
O Advento é uma boa ocasião para fazer memória do futuro: do futuro que virá e do futuro que podemos antecipar. Porque o futuro não é o que ainda não existe; ele pode se fazer presente em forma de projeto e de promessa. Nós o antecipamos quando vivemos fraternalmente, quando lutamos em favor da paz, da justiça e da solidariedade.
Ao antecipá-lo, o Senhor se faz humilde e silenciosamente presente. Porque se faz presente, podemos esperá-Lo. Se não o fazemos presente, a esperança se converte em uma ilusão sem futuro.
A essência de nosso ser encontra-se à nossa frente, um secreto desejo de escapar da pequenez do já realizado. A terra está prometida aos que se põem em marcha para alcançá-la.
Ter saudades do futuro. Pressentir. Entrever. Suspirar. Manter o coração velando, mesmo quando dorme.
Esse é o dinamismo do Advento.
“O futuro tem um coração de tenda”: assim Ermes Ronchi intitula um de seus livros. Não conhecemos por completo o caminho que orientará nossos passos, mas nos alegramos por ele e seguimos animados pelo Espírito e pela promessa do Senhor, montando e desarmando nossa tenda, sempre que necessário.
O contexto atual, social e eclesial, deve ser vivido como um tempo de reflexão e renovação, tempo para dizer “sim” ao futuro, “sim” para voltar a levantar-nos e aprender de nossos erros. Uma ruptura pode fazer emergir um “sim” a novas oportunidades, um “sim” para melhor conhecer-nos a nós mesmos, querer-nos, valorizar-nos e voltar a dizer “sim” ao novo que nos desafia. Na fé e na vida da comunidade, sempre é o “sim” que nos seduz e que abraçamos: o “sim” ao seguimento de Jesus, o “sim” a uma maneira de amar diferente, comprometida e apaixonante, “sim” ao evangelho, “sim” a um olhar contemplativo que vê o mundo com olhar admirado; dizer “sim” na Igreja é compromisso, fraternidade e universalidade, fazendo nossas as necessidades e os sonhos daqueles que também vivem motivados e inspirados por esse “sim expansivo”.
Maria diz “sim”, faz-se peregrina e o futuro se escancara diante dela. Enquanto muitos teriam buscado explicações, a ela lhe bastou uma simples saudação: “Alegra-te, cheia de graça, o Senhor é contigo”. Onde muitos veriam uma loucura, ela viu um horizonte aberto e um futuro de sentido; onde muitos teriam buscado provas, garantias, ela respondeu: “Faça-se em mim segundo tua Palavra”.
Inspirando-nos na atitude de Maria, queremos nos instalar no provisório, na tenda, e ir avançando junto com os outros, discernindo os chamados do Espírito. Não gostamos apenas de imaginar a Igreja como uma tenda, mas de aceitar com alegria morar nela, com tudo o que isso significa de mobilidade, de temporário, de adaptação, de viver na intempérie, porém também de acolhida, de relacionamento...
Santa Maria, tenda humilde do Verbo, movida somente pelo vento do Espírito.
Como Maria, podemos nos converter em pessoas de esperança, abertas à novidade do Espírito, que espreita oculto nas dobras de nossa história. Podemos chegar a ser sentinelas da manhã, espreitando no horizonte sinais de esperança e de vida.
“Alarga o espaço de tua Tenda, estende tuas lonas sem temor, alonga tuas cordas, reforça as estacas!” (Is. 54,2)
Seja uma TENDA sempre aberta: “entrada franca”.
- Nada de “cachorros” que atemorizem o visitante: seu caráter, seu orgulho, seu egoísmo, sua inveja, sua ironia, sua rudeza, seu autoritarismo... Que o outro não se retire, suspirando: “Não tive coragem... tive medo que ele me mandasse embora, que risse de mim, que não me compreendesse...
- Nada de longas esperas que desanimam: esteja sempre atento, nem que seja para um cumprimento, um sorriso, um aperto de mãos, caso você não tenha tempo para uma conversa.
Uns instantes de intensa atenção basta para acolher o outro.
- Nada de móveis que impeçam a circulação; mantenha sua tenda vazia, disponível. Não imponha seus gostos, suas ideias, seus pontos de vista. Nada de retribuições que custam caro: se você oferece alguma coisa, faça-o gratuitamente e nada espere em troca. Nada de contrato oneroso: “entra-se” e “sai-se” à vontade, com naturalidade, sem formalidades...
Passos para a oração
1. Formular uma oração de entrega e encontro.
2. Pedir ao E. Santo que amplie o espaço de sua Tenda.
3. Texto bíblico: Lc. 1,26-38
4. Deus não é distância e solidão. Ele é infinitamente vinda,
iniciativa, presença, libertação. Peregrino em sua direção,
Ele bate, querendo entrar e ficar... mas aguarda.
Quando Ele entra em sua tenda, tudo se modifica...
5. Deus possibilita cada um “entrar” em sua Tenda e
captar em profundidade a sua realidade, a perceber a raiz do
seu ideal de vida, como também suas contradições e ilusões,
medos e necessidades.
Neste “mergulho” interno, cada um pode construir uma espécie de mapa da Tenda, com as regiões
fortes e fracas, vulneráveis e criativas, transparentes e ainda misteriosas...
Somos TENDA, lugar de encontro. Ele vem. Sua presença causa mudança.
TENDA, lugar de discipulado – olhar, escutar e seguir.
TENDA, lugar de unção-acolhida, serviço e adoração.
TENDA, lugar de lava-pés, servo, mandamento novo, amizade.
TENDA, lugar de inspiração do Espírito, de oração.
TENDA, minha realidade pessoal e lugar de encontro com o outro.
5. Agora responda: - como está sua tenda interior? Preparada para acolher o Senhor que vem? Há um “lugar sagrado” para Ele? Há espaço para os outros?
Pe. Adroaldo Palaoro sj
Diretor do Centro de Espiritualidade Inaciana – CEI
“Eu sou a voz que grita no deserto” Jo 1,23)
É frequente ler nos jornais e na internet títulos como estes: “a canção mais ouvida da semana”, “o livro mais vendido”, “o filme mais assistido”... E se aparecesse, algum dia, um título assim: “a voz mais escutada pelos cristãos durante a semana”! Os cristãos, como todas as demais pessoas, escutam muitas vozes, muitas canções, muitas notícias, muitos comentários... Será a voz profética na comunidade, uma dessas vozes mais escutadas?
Na Igreja, como na sociedade, há excesso de palavras, há excesso de discursos, de declarações, de documentos. Sobram palavras, e nos falta a Palavra. “No princípio era o Verbo, depois só verbos”. O que as pessoas escutam de nós cristãos, hoje? Nossas palavras, nossas vozes, nossas ideias, nossas teologias, nossas ideologias..., é palavreado vazio, é palavra rotineira, improvisada, não pensada, não vivida...? Ou escutam palavras de vida e de esperança, palavras que abrem um sentido para a existência?
As pessoas escutam hoje a voz de Deus em nossa voz? Escutam a voz de Jesus na voz da Igreja? Ou elas estão cansadas de escutar sempre o mesmo, palavras que não despertam o interesse nem o gosto espiritual? Palavras que adormecem o espírito e não fazem brotar a esperança? Palavras que resvalam pela pele da alma e não conseguem atingir o centro de suas vidas? Nossa voz chega à alma das pessoas, levando consolo, inspiração e esperança?
João é a voz que grita. A verdade é o que está já aí e ninguém a reconhece. João é aquele que tem consci-ência de sua identidade e de sua missão; ele tem a honestidade de reconhecer sua verdade e a sinceridade de não ser considerado como Messias; ele não se faz o centro das atenções mas indica sempre o “outro”; ele não atrai os olhares sobre si mesmo mas convida a olhar o “outro”. Sua voz anuncia um Outro. A identidade de João é revelada pela sua relação com Jesus. Sua voz está a serviço de Jesus. Não é a voz que louva a si mesmo.
Neste tempo de Advento somos convidados a descer em direção à nossa interioridade, para deixar aflorar o que é mais original em nós, nossa verdadeira identidade. Desconhecemos a nós mesmos, a nossa originalidade. Somos únicos, sagrados, com uma voz única. Nossa identidade se expressa também através da voz.
Nossa voz é desvelamento de nossa interioridade; a voz revela aquilo que está cheio nosso interior. Voz descentrada ou voz centrada em si mesmo? Voz que fala de si mesmo ou voz aberta à realidade? Nossa voz está a serviço de quê? De quem? É voz que eleva e salva o outro, ou voz que critica, afunda? É voz que aponta para um sentido? Somos “voz de quem não tem voz”?
Vivemos a cultura da aparência, da massificação, do vozerio crônico. O que vale é quem fala mais alto, se impõe, não abre espaço para os outros se expressarem. Vive-se às custas dos outros, mendigando elogios, bajulações... Daí a superficialidade da vida.
São muitas as vozes que nos tocam e nos constituem. Às vezes, elas ressoam em nós como brisa suave, às vezes como punhais, mas sempre nos deixando marcas profundas de estímulos ou de desânimo: sentimentos de alegria ou tristeza, de paz ou guerra, de tranquilidade ou inquietação, de fé ou descrença... de amor ou ódio.
Ambivalentes como nós, as vozes podem criar armadilhas ou abrir portas para largos horizontes, podem embalar ou derrubar, acolher ou afastar; com elas podemos fortalecer a vida ou asfixiá-la, podemos sacudir consciências, animar, levantar, entusiasmar, provocar ímpetos de se arriscar a viver até o fundo; ou podemos desanimar, sufocar, destruir, seduzir para fazer da vida um sucesso trivial e sem sentido.
Existem vozes que podem mudar a vida, para o bem ou para o mal. Há uma voz que constrói e uma que destrói, uma voz que comunica calor e luz, outra que semeia frieza, uma que infunde confiança e restitui o indivíduo a si mesmo e ao seu futuro, outra que o arrasa.
“Morte e vida estão em poder da língua” (Prov. 18,21). Há vozes que ferem e há vozes que elevam. Há uma voz pela qual tudo começa e recomeça, outra pela qual tudo termina, deixando o silêncio atrás de si. Depois de certas vozes, não resta mais nada a dizer. Todos conhecemos pessoas destruídas pelas vozes agressivas, como também pessoas reconstruídas, recriadas pelo ressonância das vozes ternas.
Todo encontro com o nosso semelhante revela a nossa relação com as vozes, as boas e as más, as que unem e as que dividem, as que consolam e as que amedrontam, as que curam e as que matam.
Certas vozes nos acompanham por muito tempo. Todos nós lembramos de vozes proferidas por pessoas especiais em momentos de dificuldades, que nos deram luz e força.
Toda voz tem também uma força operativa, desencadeia um movimento... Quando falamos, algo acontece, muda alguma coisa dentro de nós e nos nossos interlocutores. Elas abrem e chegam ao coração, despertando as esperanças adormecidas. Aparentemente nada mudou; mas é possível que tudo tenha mudado. A voz foi além de sua vibração sonora.
Na Igreja todos somos chamados a ser microfones de Deus. Mas a voz que as pessoas tem de escutar é a de Deus. Por isso temos que anunciar sua Palavra mais que nossas palavras. Como João Batista, o cristão é chamado a ser voz que anuncia e denuncia; ele se reconhece como a “voz que grita no deserto”; ele se define como “a voz dos que sofrem”, a “voz dos que não tem voz”, a “voz dos oprimidos que buscam a liberdade”, a “voz daqueles que ninguém os ouve”, a “voz que anuncia a presença de Deus na história”... O cristão é sempre a “voz do Outro”; o cristão é sempre a voz de Deus hoje. Voz de Deus nem sempre escutada; voz de Deus que hoje parece estar em silêncio.
O cristão é a voz de Deus que está ali, apontando para o novo, e parece que ninguém a quer ouvir.
No entanto, nada o faz calar; sua presença expande a Voz de Vida.
Texto bíblico: Jo 1,6-8.19-28
Na oração: Você é atento ao que fala, o modo como fala, o tom e os sentimentos que sua voz expressa? Você consegue distinguir sua voz em contextos diferentes? É voz que eleva ou que arrasa? Voz que acalenta ou voz que julga? Voz que se fixa no passado ou voz que abre possibilidades para o futuro? Voz que anima ou voz que afunda?... Você deixa “ressoar” a Voz de Deus em sua voz?
Dê graças, não tanto por dizer palavras, mas que sua vida se converta em Palavra de Deus, em Evangelho.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
Diretor do Centro de Espiritualidade Inaciana - CEI
"Preparai o caminho do Senhor, endireitai suas estradas!” (Mc 1,3)
Neste tempo de preparação para o Natal, aparece na liturgia cristã um personagem sumamente interessan-te e provocador: seu nome é João; “a terra se chama João”, escreveu Pablo Neruda. Ou seja, um nome universal; um nome que revela a identidade de um homem que rompe os esquemas estabelecidos; sua missão profética se dá no deserto, longe dos templos e da religião oficial. A partir da margem ele grita e este grito é o que melhor revela o espírito de Advento. Ele denuncia que nossos caminhos estão bloqueados e que as veredas da humanidade estão torcidas, impedindo que venha e se manifeste o Deus da justiça.
Uma frase de Fernando Pessoa poderia sintetizar o quão inspirador é este tempo do Advento:
“Há um tempo em que é preciso abandonar as roupas usadas, que já têm a forma do nosso cor-po, e esquecer os nossos caminhos, que nos levam sempre aos mesmos lugares. É o tempo da travessia: e, se não ousarmos fazê-la teremos ficado, para sempre, à margem de nós mesmos”.
Por isso, Advento é tempo propício para destravar nossa vida, colocando-a em movimento. É nesse contexto de uma realidade atrofiada, pessoal e social, que ressoa forte a voz de João: “preparai...”. Somos nós que devemos nos mobilizar, fazendo-nos Caminho de Humanidade, precursores de “Alguém” maior. Somos peregrinos que preparam o Caminho para o verdadeiro Enviado de Deus, para os homens e as mulheres da paz e da plenitude futura.
“Preparai” significa estar atentos para não permanecermos fechados em nossos pequenos reinos e abrir um espaço de esperança frente a um mundo que gira em torno a si mesmo. Se estamos apegados ao que temos e somos, jamais seremos capazes de “fazer estrada com Deus” e participar da preciosa vida que Ele nos oferece.
É preciso “endireitar-se”, ter um horizonte de vida, preencher nosso vazio de vida interior, “aplainar” e descer de nossas montanhas de orgulho e soberba... Vivemos instalados em certos costumes, estilos de vida medíocres…Vivemos no centro de uma humanidade torcida, retorcida e, no fundo, envenenada. Para endireita-la é preciso forçar, fazer que se quebrem e se rompam as resistências interiores, a fim de que tudo se aclare, se desvele.
Estamos decididos a percorrer os caminhos novos que a novidade de Deus nos apresenta? Ou nos entrincheiramos em estruturas caducas que perderam a capacidade de resposta? Caminhar é sair do centro, das seguranças, da acomodação... e ir em busca das surpresas, das novas descobertas; implica arriscar, ter ousadia, não ter medo de fazer a travessia para o outro lado. Somos passageiros, um Caminho aberto à vida de Deus que permanece, caminho que anuncia e prepara a Vida. Por isso precisamos, mais do que nunca, da figura do profeta; autênticos profetas que, sem medo e partindo de sua experiência de Deus, nos ajudem a encontrar o verdadeiro caminho; pessoas que por sua dedicação e experiência pessoal possam lançar alguma luz nesse emaranhado de caminhos que se entrecruzam e que a imensa maioria são sendas perdidas que não levam a lugar nenhum.
A humanidade deveria ser caminho de vida, jamais caminho de morte. Nunca foi oferecido ao ser humano tantos falsos caminhos de salvação como agora: caminho fechados, caminhos obstruídos que veda passos e impede a circulação da vida, caminhos que paralisam mobiliza-ções, caminhos que travam saltos históricos, caminhos que barram transformações sociais, caminhos embrutecidos que conduzem à crueldade e à violência, caminhos mortíferos que precipitam à morte. Nada mais desolador do que ser “inviável”, ficar “sem via”, ficar sem caminho, sem saída, sem futuro. Nada mais trágico do que perder o caminho.
“O ser humano é Terra que anda” (Atahualpa Yupanqui). O caminho está dentro de nós. Sem caminho nos sentimos perdidos, confusos, sem rumo, sem bússola e sem estrelas para orientar as noites de nossa existência. Somos peregrinos. A vida cristã é um movimento constante de passagem. Somos seres em trânsito, rumo ao novo. Itinerantes. Caminhar sempre. O próprio caminhar desvenda mais caminho.
Enquanto amadurecemos no caminho, importa colher e acolher o que o próprio caminho oferece. Expandir a esperança que ilumina a mente e o coração. Mais do que ser-de-caminho, o ser humano é ser-caminho: caminho da vida, caminho da verdade, caminho da justiça, caminho do coração, caminho do amor, caminho da ciência, caminho da ética, caminho da solidariedade. Cada pessoa tem a responsabilidade de ser caminho para os outros.
Caminho escancarado à passagem da humanidade peregrina. Caminho acolhedor; caminho aberto e solidário; caminho ecumênico; caminho plural; caminho sedutor. “Senhor, mostra-nos teus caminhos!”
Para o povo que peregrina no deserto, é essencial conhecer direções e entender ventos. E para o coração que peregrina no deserto da vida, é essencial conhecer os caminhos do Espírito e os ventos da Graça. De Deus viemos. Dele somos. Nele vivemos. Para Ele vamos. Peregrinos espertos em discernir rumos e encruzilhadas. Somos caravana que avança em êxodo continuado. Vida nômade, provisória.
Peregrinar sem morada permanente. Tenda ambulante, não casa sólida de pedra. Somos Pessoas de muitas tendas, de muitos acampamentos. Nada definitivo. Estado de itinerância evangélica, traço característico de Jesus e de todo seu seguidor. O mundo, nossa casa sem paredes.
Caminhar em direção a Quem é sempre maior, rumo ao destino prometido.
Somos todos peregrinos, mas os viajantes são diferentes. A estrada não é igual para todos. Vivemos uma caminhada que começa dentro de nós mesmos, nas estradas e trilhas do nosso eu profundo. Mas, ao mesmo tempo, é um caminho solidário: no caminho de cada pessoa estão presentes milhões e milhões de experiências de caminhos vividos e percorridos por incontáveis gerações. A missão de cada um é prolongar este caminho e vivê-lo tão intensamente que aprofunde o caminho recebido, endireite o caminho retorcido e ofereça aos futuros caminhantes um caminho enriquecido com suas pisadas.
Caminhamos juntos, acompanhados por Aquele que é o Caminho: “Emanuel, Deus conosco”.
Quem caminha quer ser mais. Seu horizonte é o seu sonho, o seu ideal. Aceita o desafio de caminhar com os pés no chão e o coração na eternidade.
Pioneiras são as pessoas que vão a lugares onde ninguém esteve antes: “gente de fronteira”.
“Temos fome e sede de estrada, e ela está ardendo por dentro”.
Caminhar é preciso. O seu caminho tem coração?
Texto bíblico: Mc 1,1-8
Na oração: rezar a bagagem de sua vida; imagine-se diante de sua mochila... onde colocou tudo o que você leva consigo, desde os anos de sua infância até agora (os dias felizes e menos felizes, as experiências plenificantes e as experiências frustrantes, tudo o que lhe pesa e lhe aborrece, o que você sente que o importuna, o que lhe pressiona e o abate, talvez alguma coisa que lhe parece insuportável...).
- Contemple as experiências bonitas e enriquecedoras em sua bagagem, as “coisas” que você guarda com carinho... Faça “memória” das maravilhas que o Senhor realizou em você, na estrada da vida. Reze... Louve... Agradeça...
- Diante do Senhor, pegue a sua mochila para sentir o seu peso... ofereça-a.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
Diretor do Centro de Espiritualidade Inaciana - CEI
“Para que não suceda que, vindo de repente, ele vos encontre dormindo” (Mc 13,36)
Estamos iniciando um Novo Ano litúrgico. Começamos com o Advento, que não é somente um tempo litúrgico, mas toda uma atitude vital que atravessa toda nossa existência. Sempre há o risco de vivê-lo como “mera repetição”, como um “tempo parecido” com o tempo anterior.
Não entenderemos a mensagem de Jesus se ela não nos motiva a viver em continuo e criativo Advento. Cada Advento é único e original, pois já não somos mais os mesmos: passamos por contínuas mudanças, amadurecemos mais, estamos vivendo problemas e desafios diferentes, acumulamos experiências... Deus também não se repete; Ele se aproxima de cada um de nós com um novo olhar e um novo apelo. Ele quer suscitar vibrações novas em nossas vidas e sua Presença instigante desperta em nós o grande desejo de entrar em sintonia com o Seu coração. Novo tempo, que pede de nós amplitude de visão e sensibilidade.
“Ficai despertos!” “Vigiai!” “Tende os olhos abertos!”: são apelos para o início deste Advento. A chave do relato do Evangelho de hoje está na atitude dos servos. Para provocar essa atitude, Jesus nos fala da chegada inesperada do dono da casa. Deus é Aquele que sempre está vindo. Ele é “o que vem”. Se passamos a vida adormecidos, nada acontece. Isto é o que deveria nos dar medo: poder transcorrer nossa existência sem ativar as possibilidades de plenitude que nos foram dadas. Mas não basta ter os olhos abertos; é preciso ampliar a visão para além de nossos pequenos interesses e preocupações; precisamos também de mais luz.
Despertar é simplesmente abrir nossos olhos, cada dia, à luz que provém de Deus e confiar que tal luz transforme nossa maneira de ver; é preciso deixar que esta luz ilumine nossas sombras interiores, desvelando e trazendo à tona nossas aspirações e esperanças mais duradouras. Abrir os olhos à luz de Deus e escutar atônitos, fascinados, a voz divina que cada dia ressoa em nosso interior. Trata-se de estar despertos para assumir a vida com uma consciência lúcida. O amor, a inspiração, a vida, nos movem por dentro. Tudo o que esperamos já temos dentro de nós. Um dinamismo misterioso nos abre e nos atrai, nos impulsiona a ser, a viver. Basta “destravar” este impulso e nos deixemos levar.
Advento é tempo que nos convida a abrir os corações, escutar o Espírito e pôr-se a caminho, enquanto “a luz da vida” nos ilumina.
É preciso despertar e ativar um fogo novo em nosso interior; há algo importante, essencial na vida humana que ainda está adormecido; há uma dimensão existencial profunda onde é cada vez mais difícil a inteligência e a vontade terem acesso.
Hoje o ser humano está desperto por fora, mas por dentro revela um coração descontrolado, sacudido entre forças de gravidade que ora o arrastam para o exterior, o imediato e a superficialidade, ora despertam a experiência de um desejo interior com uma forte nostalgia de vida, de paz, de plenitude...
A humanidade quer viver. O coração humano precisa escutar este desejo, não só como sede de terra seca, mas como uma palavra de vida, como o rumor de uma fonte de água viva. Talvez ele precise colocar outro ritmo em sua existência, que lhe permita estar atento e à escuta das surpresas que a vida desvela.
O Advento constitui também um tempo habitado; é um tempo de espera, de paciência, de confiança em Deus que não só se revela na história, mas também na temporalidade. Deus é o que marca o ritmo do tempo, é Aquele que tem a iniciativa. Ao ser humano lhe corresponde estar atento aos movimentos do Espírito e dos acontecimentos. Mas é um tempo de espera ativa.
Acolher os momentos de Deus é estar preparado para o mais “inesperado”.
A dinâmica da espera inclui a surpresa. Esta certeza forma parte central da experiência da fé. Brota uma certeza: o esperado, quando chega, ultrapassa sempre o que se espera. Pede ser esperado em gratuidade, sem pressas, sem ansiedade, porque sabe que tudo é dom e graça.
Esperar é uma forma de viver. Esperar é ser fiel ao dinamismo profundo da vida, deixar-se levar simplesmente pelo Espírito que nos habita, o Espírito que tudo une e liberta, que tudo move e atrai. A espera, quando é carregada de amor e presença, faz crescer e conhecer regiões do coração até então desconhecidas e inexploradas.
“Despertar” também nos abre a uma sintonia, a uma relação profunda, com o universo que nos envolve, com os outros com quem convivemos, com o Criador que tudo sustenta. Poderíamos nos perguntar: o quê nos pede Deus em cada acontecimento e em cada situação da vida.
Esta é a maneira de entender e viver uma espiritualidade aberta a um “Deus sempre surpreendente”, sempre novo. Um Deus de quem tudo procede, que habita nas criaturas, que trabalha por nós, que desce às nossas vidas e aos nossos tempos. Isto é contemplação, e que faz toda a diferença: talvez não transforme de imediato as dificuldades, os desafios, uma situação dura, mas, pode sim mudar a textura de nossos corações, a qualidade de nossas respostas, a profundidade de nossos sentimentos e pensamentos.
O tempo do Advento nos oferece uma oportunidade única de aprender a esperar e fazer da esperança nossa condição existencial. Somos, na medida que esperamos. Somos aquilo que esperamos ser. Por isso, o Advento pede vincular esperança e responsabilidade, justamente para dar mais consistência humana e maior sentido a esse futuro que está aberto à nossa frente, carregado de motivações e inspirações.
O ser humano pode esperar o que quiser, mas não pode esperar qualquer coisa. É preciso ter os olhos bem abertos para “ver” e acolher o que acontece ao nosso redor: as alegrias e os sofrimentos daqueles que nos cercam, as esperanças dos povos que estão mais além de nossas fronteiras, muitas vezes em situações dramáticas, os sonhos de tantos que buscam um mundo mais fraterno, livre e justo...
Viver conectados, em redes, unidos, entrelaçados, para potenciar a esperança e a vigília, iluminando-nos uns aos outros, despertando sonhos e buscando soluções alternativas, ressuscitando as aspirações profundas, vivendo continuamente comprometidos com outro mundo mais fraterno e justo. Vigiemos, observemos, abramos os olhos a “outra realidade” que já está presente nas entranhas da nossa própria cotidianidade. Advento é indicar e ativar a “nova vida” que quer se fazer visível.
O dia esperado está começando. Estamos apenas na aurora, mas os primeiros raios trazem a suavidade que enche o nosso coração. Resta-nos a esperança; com ela, damo-nos as mãos, colocamo-nos a caminho. Como Maria, tenda humilde do Verbo, podemos nos converter em pessoas de esperança, abertas à novidade do Espírito, que espreita oculto nas dobras de nossa história. Podemos chegar a ser sentinelas do amanhã.
Texto bíblico: Mc 13,33-37
Na oração: o que o faz permanecer adormecido, alienado da realidade e incapaz de “ler” os sinais d’Aquele que vem vindo?
Como se situa diante dos desafios que você é chamado a enfrentar? Não se sente cansado, desanimado ou sem esperança por já ter vivido tantas mudanças? Ou talvez desanimado porque as coisas não aconteceram como havia previsto? Ou, ao contrário, cheio de energia, entusiasmado por ser protagonista de uma época considerada de graça e de bênção?
Pe. Adroaldo Palaoro sj
Diretor do Centro de Espiritualidade Inaciana - CEI
“...todas as vezes que fizestes isso a um dos menores de meus irmãos, foi a mim que o fizestes”
Como dizia o biblista Jean-Pierre Prévost: “Para ser honesto com vocês, devo dizer francamente que não tenho nenhuma predileção particular pela realeza e que, em si, o título de rei aplicado a Jesus não é aquele que mais me inspira”. Por essa razão, devemos redefinir a realeza, se quisermos aplicá-la ao Cristo ressuscitado na Igreja de hoje; caso contrário, corremos o risco de confundir a realeza de Cristo com aquela dos homens, a ponto de deformar o rosto de Jesus.
Felizmente, em cada época, houve discípulos, homens e mulheres, que souberam devolver ao Cristo a sua verdadeira realeza, que consiste em servir e não em ser servido. Jesus nunca atribuiu a si o título de rei; pelo contrário, o evangelho nos mostra que esse título foi dado a Ele de maneira irônica e sarcástica por um rei, Herodes, e por um representante de César, Pôncio Pilatos... Por outro lado, se dizemos que Cristo é rei, é porque reconhecemos nele o servidor que quis estabelecer o reino de justiça e de paz, tão desejado pelos homens e pelas mulheres de todos os tempos. Mas Ele não tem nada de outro rei: seu trono é a cruz; sua coroa é de espinhos e seu cetro é o bastão de pastor.
No Evangelho indicado para a liturgia desta festa, todos nós esperávamos um discurso mais triunfalista da parte de nosso Rei. Esperávamos que nos falasse de príncipes valentes, de “armas e heróis poderosos”. Mas acabou nos falando de famintos e doentes, de maltrapilhos e presidiários, de cordeiros e cabritos... Esperávamos que nos falasse de batalhas, de vitórias e territórios conquistados. Mas acabou nos falando de pão e de água, de remédios, de roupa e de visitas fraternas... Esperávamos que ele exaltasse a importância das leis e da disciplina, da teologia e da moral. Mas acabou exaltando os valores presentes na vida cotidiana. Enfim, este discurso do Rei nos desinstala energicamente, porque nos convoca a investir na vida, a lutar pela vida, a colocar o ser humano no centro das atenções.
Em Mt. 25,31-46, todo o discurso nos revela uma imagem de Deus revolucionária: Ele se identifica com aqueles que sofrem, que passam fome e sede, que são estrangeiros, que estão nus... À hora da verdade, quando se decide o destino definitivo de cada ser humano, o que vai ser levado em conta não são as crenças de cada um, nem as práticas religiosas ou a observância das leis; o único determinante será a atitude compassiva e acolhedora na relação com o outro.
Ou seja, não resta mais nada a não ser o ser humano. Tudo isso para deixar bem claro onde e como podemos encontrar o Deus a quem buscamos e em quem acreditamos: na medida em que tomamos a sério o sofrimento e também a felicidade dos outros. Esta é a verdadeira religião.
A imagem de Deus mais surpreendente encontrada nos Evangelhos é que Ele se “fundiu” com o humano. É no “humano” onde Deus se revela a nós e é no “humano” onde nós podemos encontrá-Lo.
Quem crê em Jesus como “revelação de Deus”, crê num Deus que está intimamente vinculado ao humano, encarnado no humano e, portanto, fundido com o humano.
Mais ainda, “Deus se funde e se confunde com todo ser humano”. De maneira que, quem se “humaniza” até o mais profundo de seu ser e se relaciona com os outros, com sentimentos e atos de profunda humanidade, na realidade esse é o que se “esbarra” em Deus, na vida, no cotidiano, nas relações...
A identificação de Deus com o ser humano é tão forte e tão decisiva que, no momento do encontro definitivo com Ele, o critério para entrar no Reino não é o que cada pessoa fez ou deixou de fazer “para” Deus, mas o que ela fez ou deixou de fazer “para” os seus semelhantes, com os quais conviveu.
Lido numa perspectiva social, o evangelho de hoje oferece uma síntese das necessidades básicas da humanidade, estruturada em três níveis: material (fome e sede), exclusão social (exílio e desnudamento) e de suma impotência (enfermidade e cárcere). O texto não discute as causas desses males, mas toma-os como fatos. Não se trata, portanto, de teorizar sobre eles, mas de buscar uma maneira de solucioná-los.
Jesus, Messias de Deus, o Filho do Homem e o Rei das nações, não aparece como situado fora ou à margem dos males deste mundo. Pelo contrário, Ele assume como próprios todos os sofrimentos e as necessidades de todos os humanos: “tive fome, estive enfermo e encarcerado...”
Da fome (primeiro dos males) ao cárcere (último dos males) estende-se toda uma cadeia de males que deformam o rosto dos humanos, e, portanto, deformam o rosto do próprio Deus.
“Esta situação de extrema pobreza generalizada adquire, na vida real, feições concretíssimas, nas quais deveríamos reconhecer as feições sofredoras de Cristo, o Senhor que nos questiona e interpela:
- Feições de crianças golpeadas pela pobreza ainda antes de nascer.
- Feições de jovens desorientados por não encontrarem seu lugar na sociedade.
- Feições de indígenas e de afro que vivem segregados e em situações desumanas.
- Feições de camponeses que vivem sem terra, em situação de dependência.
- Feições de operários mal remunerados e que tem dificuldades de se organizar e defender seus direitos.
- Feições de desempregados, despedidos pelas duras exigências das crises econômicas.
- Feições de marginalizados e amontoados das nossas cidades.
- Feições de anciãos, postos à margem da sociedade, que prescinde das pessoas que não produzem.
Compartilhamos com nosso povo de outras angústias que brotam da falta de respeito à sua dignidade de ser humano, “imagem e semelhança” do Criador e a seus direitos inalienáveis de filhos de Deus”. (Doc. de Puebla)
Esse sofrimento injusto dos últimos da Terra nos ajuda a conhecer a realidade do mundo que estamos construindo. Não se conhece o mundo a partir de seus centros de poder, mas a partir dessas “massas sobrantes”, sem rosto e sem nome, dos excluídos, os únicos para os quais não há um lugar em nosso mundo globalizado. São nossas vítimas as que mais nos ajudam a conhecer quem somos. Ninguém pode nos interpelar com mais força. Ninguém tem mais poder para nos arrancar de nossa cegueira e indiferença. Ninguém tem mais autoridade para nos exigir mudança e conversão. Dizia Jon Sobrino, “as vítimas tem um potencial para salvar a história e a humanidade, e, em parte, esse potencial seu é insubstituível”.
Isso fica claro no Evangelho de hoje. Ali estão os sofredores de todas as raças e povos, de todas as culturas e religiões, gerações de todos os tempos.
A “autoridade dos que sofrem” é a única instância ante a qual Jesus colocou a humanidade inteira.
Vai-se escutar o veredito final sobre a história humana, a palavra que desvela tudo. O que vai decidir a sorte final não é a religião que cada um viveu, nem a fé que confessou, nem as leis ou doutrinas que muitos defenderam. O decisivo é o compromisso solidário para com aqueles que sofrem. O que fazemos às pessoas famintas, aos imigrantes indefesos, aos enfermos desvalidos, aos encarcerados esquecidos por todos, tem um valor absoluto, pois o estamos fazendo para o mesmo Deus.
Texto bíblico: Mt 25,31-46
Na oração:
Que rosto de Cristo revelamos às mulheres e aos homens do nosso tempo? Estamos apresentando, com nossas vidas, um rosto de Cristo amável, misericordioso, tolerante, aberto, livre, justo, respeitoso dos outros, compassivo: um rosto de Cristo que faz o homem e a mulher no mundo de hoje ter esperança?
Diante de Deus, deixe seu coração responder:
Como você se coloca diante deste mundo: inconformado? revoltado? acomodado? indiferente? otimista? ativo?...
Examinando a sociedade, sentindo de perto os seus problemas e desafios, quê esperanças você carrega?
Somos chamados a criar uma sociedade digna da liberdade humana, a partir das condições econômicas, políticas, sociais, culturais... Como você atua e se prepara para se comprometer com a transformação do mundo que o cerca?
Pe. Adroaldo Palaoro sj
Diretor do Centro de Espiritualidade Inaciana - CEI
“Fiquei com medo e escondi o teu talento no chão; aqui tens o que te pertence” (Mt 25,25)
“Ter talento” é, entre nós, uma expressão popular tão frequente que é equiparada a “ser inteligente”. De fato, normalmente uma pessoa inteligente ou brilhante é designada como uma pessoa “talentosa”.
A parábola dos talentos, lida em chave “religiosa”, pode dar margem a uma apologia do mérito e da recompensa, alimentando uma atitude oposta àquela pretendida por Jesus.Partindo dessa visão, o esquema básico, ao estabelecer a relação com Deus, se apoiaria em três pilares: dom-exigências-recompensa. Percebe-se facilmente que esse esquema revela uma relação mercantilista com Deus. Essa maneira de viver a religião conduziu a desvios graves como a autojustificação beata ou a angústia culpabilizadora, onde a pessoa religiosa chega a ter a sensação de viver uma relação com Deus marcada por uma chantagem afetiva de impossível saída.
No entanto, a mensagem e a própria prática de Jesus jogam por terra este esquema. Não é o mérito ou a recompensa que constitui o núcleo da mensagem de Jesus, mas a gratuidade.. Tudo é dom, Deus mesmo é Graça que rompe nossas supostas barreiras de méritos e de “dignidade”. Como ler, então, esta parábola quando ela insiste explicitamente na obrigatoriedade de “fazer produzir” o dom recebido?
Em primeiro lugar, não podemos esquecer que o que a parábola pretende transmitir não pode ir nunca contra algo que para Jesus era prioritário: a gratuidade misericordiosa de Deus. Um Deus que “ama os maus e ingratos” (Lc 6,35), que abraça o “filho pródigo” e organiza uma festa para ele, sem nenhum tipo de condição (Lc 15,20-24), que é “amigo dos publicanos e pecadores” (Mt 11,19)..., não pode se identificar com o senhor da parábola que exige até o último centavo e castiga a quem não apresenta méritos. Tirar daquele que tem pouco para dar ao que tem mais, tomado ao pé da letra, seria uma atitude imprópria do Deus de Jesus. No fundo, Jesus também está denunciando a falsa imagem de Deus dos fariseus, ou seja, Aquele que recompensa quem observar estritamente todas as leis e preceitos.
Na parábola dos Talentos, Jesus, mais uma fez, nos fascina e provoca, abordando a temática do medo. Na realidade, a raiz do comportamento do terceiro empregado é mais profunda: ele tem uma imagem falsa do senhor. Imagina-o severo, egoísta, injusto e arbitrário; é exigente e não admite erros; não se pode confiar nele. O melhor é defender-se dele.
Esta ideia mesquinha de seu senhor o paralisa. Não se atreve a correr risco algum. O medo o bloqueou. Não é libre para responder de maneira criativa à responsabilidade que lhe foi confiada. O mais seguro é “conservar” o talento. Quer proteger o pouco que recebeu, não ousa e tenta evitar uma perda total. Quando não se vive a fé cristã a partir da confiança mas do medo, tudo se desvirtua. A fé se conserva mas não se contagia; a religião se converte em dever; o Evangelho é substituído pela observância; a celebração fica dominada pela preocupação ritual; a oração torna-se um monólogo culpabilizante; a comunidade revela-se “pesada”...
Em outras palavras, a “parábola dos talentos” não tem por finalidade dizer-nos como é Deus, mas seu objetivo é despertar-nos da apatia e superar o medo que nos mantém paralisados. Nesse sentido, trata-se realmente de uma narração sábia e estimulante.
Os talentos – sejam cinco, dois ou um: em qualquer caso, uma riqueza fabulosa – representam a riqueza que somos, da qual geralmente conhecemos apenas uma mínima parte. A parábola vem nos dizer: “tens uma riqueza, és um tesouro de valor incalculável..., não tenhas medo nem te ‘enterres’ na mediocridade ou superficialidade. Atreva-se a viver tudo o que és! Seja ousado e saia da ‘normose’”!
A primeira atitude nossa, portanto, é descobrir essa realidade interior; devemos retornar ao nosso “eu profundo” para poder destravar e ativar todas as nossas ricas possibilidades, ainda latentes. Renunciamos a viver quando nos reduzimos ao pequeno e limitado mundo de nosso ego, fechando-nos nele e em seus interesses mesquinhos, ignorando a verdade de quem somos. Esta ignorância faz com que esqueçamos a riqueza que somos. Os talentos de que fala o evangelho, são as realidades que nos fazem ser mais humanos. E ser mais humano significa amar mais, servindo mais.
Na medida que vamos nos abrindo à nossa verdade interior e tendo acesso ao nosso verdadeiro tesouro, experimentamos a alegria de poder participar da festa do Senhor, não como um “prêmio” ou recompensa pelos méritos do “eu” (isto seria farisaísmo), mas porque nossa verdade coincide com essa mesma alegria do Senhor: uma e outra são a Plenitude desejada.
Pelo contrário, quando nos fechamos no ego, o que ali aparece é “pranto e ranger de dentes”, ou seja, sofrimento inútil e lamento constante, que não são um “castigo” proveniente de um Deus irado ou ofendido com nosso comportamento, mas consequência direta de ignorar a verdade de quem somos. Não esqueçamos que ego é sinônimo de ignorância, confusão e sofrimento.
O Mestre Jesus, com esta parábola, quer dizer a cada um de nós: “se você tiver uma imagem de Deus tão marcada pelo medo, sua vida será, já agora, choro e ranger de dentes. Se você quiser controlar tudo, perderá, já agora, qualquer controle sobre sua vida. Se você estiver tão obstinado em não cometer nenhum erro, errará em tudo”.
O método que Jesus aplica nessa parábola é demonstrar o absurdo do padrão de comportamento de controle temeroso e tentativa de domínio absoluto sobre a própria vida, atrofiando a ousadia e a criatividade, tão próprias do ser humano.
Toda parábola dá margem a outras releituras. Por exemplo, poderíamos perguntar porquê a parábola não contemplou uma terceira possibilidade, ou seja, o empregado negocia seus talentos com a melhor boa vontade, mas perde todo o dinheiro. Gostaríamos de saber o que o senhor teria feito com ele. Seguramente que a resposta não teria sido a condenação. A parábola indica muito mais que aquilo que se valoriza não são os resultados, mas a atitude de busca e a confiança que os empregados tem para com o seu senhor e para com eles mesmos.
Finalmente, é também muito interessante constatar que, tanto aquele que negocia com cinco, como aquele que negocia dom dois, recebem exatamente o mesmo premio. Isto indica que em nenhum caso se trata de comparar resultados do trabalho, mas a atitude dos empregados.
Texto Bíblico: Mt 25,14-30
Na oração: dar nomes aos medos que estão paralisando sua vida, impedindo-o de viver com mais ousadia e criatividade.
- Quem é o “Deus” em quem você crê? É o “deus da lei”, o “deus do mérito”, o “deus” que cobra até o último centavo... ou o “Deus de Jesus”: Pai e Mãe, fonte de misericórdia e compaixão?
- A fé e a confiança em Deus possibilitam ter acesso às suas riquezas interiores e expandi-las?
Pe. Adroaldo Palaoro sj
Diretor do Centro de Espiritualidade Inaciana - CEI
“Não façais da casa de meu Pai uma casa de comércio!” (Jo 2,16)
Os profetas de Israel costumavam recorrer a “gestos proféticos” para expressar, de um modo visual e contundente, mensagens que lhes pareciam decisivas. Na mesma linha dos profetas de seu povo, Jesus realiza também gestos repletos de simbolismo: suas refeições com os pecadores, o lava-pés, a ação contra o Templo...
É disso que trata o Evangelho da festa de hoje (Dedicação da Basílica do Latrão), ou seja, uma ação simbólica na qual se pretende mostrar que o tempo do Templo terminou. A expressão “purificação do Templo” não é a mais adequada, porque não se trata de purificar o espaço que se tinha convertido em centro comercial, mas de substituí-lo. Jesus prescindiu do Templo para relacionar-se com o Pai.
A partir de seu projeto, que chamava “Reinado de Deus”, foi questionando uma religião que desumanizava às pessoas. Ele mesmo, durante sua vida, foi relativizando e esvaziando os pilares da religião judaica: o sábado, a “pureza” legal, o Templo, o culto, os sacrifícios, as doutrinas, os sacerdotes... E pouco a pouco foi colocando tudo isso em questão, transgredindo suas normas e atacando a hipocrisia de um culto a Deus que desprezava as pessoas.
O simbólico ataque final ao Templo foi determinante para ser considerado um subversivo pelo sistema político e um blasfemo pelo sistema religioso. Aquele Templo já não era a casa de um Deus Pai, pois não era espaço de acolhida mas de exclusão.
Jesus se sentia como um estranho naquele lugar. O que seus olhos viam nada tinha a ver com o verdadeiro culto ao Pai. Deus não pode ser o protetor e encobridor de uma religião tecida de interesses e egoísmos. Deus é um Pai a quem só se pode prestar culto trabalhando por uma comunidade humana mais solidária e fraterna.
Nesse gesto ousado de Jesus, fica claro o que Ele pretende: denunciar os “templos e as religiões” que se absolutizam como lugares da presença divina, criando dicotomias ou dualismos estranhos entre “o religioso” e “o profano”. A novidade de Jesus consiste em afirmar que existe só um caminho para encontrar a Deus e que não passa pelo Templo. Na religião, o determinante está no “sagrado”; no projeto de Jesus, o centro de tudo está no “humano”, na dignidade e felicidade das pessoas, na vida. Jesus não suprimiu o “sagrado”, mas o deslocou do religioso ao humano. Para Ele o sagrado é o ser humano como pessoa, com os demais seres humanos. Desse modo, supera-se definitivamente aquele dualismo e se reconhece a vida como lugar da Presença. Os templos não são fronteiras que dividem o sagrado e o profano; são espaços onde vivemos a sacralidade de toda a vida. O verdadeiro “templo” é a vida, e vida destravada, aberta...
Ao “substituir” o Templo por seu Corpo, Jesus nos convida a viver o encontro com Deus no centro de nossa pessoa e da vida mesma. E Ele torna-se referência para nos ajudar a ver o que é uma vida vivida desse modo: uma existência marcada pelo amor compassivo e pela alegria de uma vida plena.
Ali é onde vamos encontrar Deus com certeza; ali se enraíza o “segredo” do viver humano: no amor e na alegria intensa. As pessoas não serão mais ou menos santas porque vão rezar no templo; sua santidade se fará presenta na vida cotidiana.
A superação do Templo significa a superação da religião. Não no sentido de que é preciso deixá-la de lado (tanto a religião como o templo podem ser meios valiosos para muitas pessoas), mas no sentido de não absolutizá-la. A absolutização da religião provocou muita exclusão e sofrimento entre os humanos.
As religiões se fazem indigestas e sumamente perigosas quando pretendem apoderar-se do Absoluto. Devemos fazer de nossas comunidades cristãs um espaço onde todos possamos nos sentir na “casa do Pai”; uma casa acolhedora e calorosa onde não se fecham as portas a ninguém, onde ninguém se exclui nem se sente discriminado; uma casa onde aprendemos a escutar o sofrimento dos filhos mais desvalidos de Deus e não só nosso próprio interesse; uma casa onde podemos invocar a Deus como Pai porque nos sentimos seus(suas) filhos(as) e buscamos viver como irmãos(ãs).
Com seu gesto Jesus põe abaixo todas as barreiras existentes: religiosas, sociais, culturais, éticas... De maneira especial, Ele acaba com o predomínio do poder sagrado, que tanta divisão, submissão, marginalização e sofrimento causaram durante séculos aos seres humanos. Aqueles que acreditam em Jesus, seguindo suas pegadas, não iniciam uma nova religião com caráter sagrado, senão um novo estilo de vida, assimilando os principais critérios do reinado de Deus, que Ele nos deixou nos evangelhos.
Jesus tem consciência que o poder sagrado divide, discrimina e subordina, enquanto que o serviço e a solidariedade criam irmandade e igualdade. Jesus desencadeou um movimento que teve inicio nas periferias da Galileia. Ele não foi sacerdote do Templo, consagrado a cuidar e promover uma religião; nem funcionário do Templo, nem ostentou cargo algum relacionado com a religião, nem foi um mestre da Lei, fechado em seu legalismo.
Jesus, como os profetas de Israel, não formou parte da estrutura política nem do sistema religioso. Não foi nomeado por nenhum poder. Sua autoridade não vinha da instituição, não se baseava nas tradições religiosas. Provinha de sua experiência de Deus empenhado em conduzir seus filhos e filhas pelos caminhos da justiça.
Jesus fugiu de todo poder e se preocupou especialmente das pessoas marginalizadas. Não organizou nenhuma religião; pelo contrário, entrou em conflito com a religião judaica e suas instituições (sinagoga, Templo de Jerusalém, Lei). Cercou-se de pessoas, homens e mulheres, dispostas a continuar seu caminho anunciando a mensagem do Reino de Deus. Proclamou as bem-aventuranças, como projeto do reino de Deus. Denunciou as opressões e injustiças, tornando realidade a salvação do Deus pai e Mãe, através de suas curas.
Jesus supera as antigas divisões (sacerdotes ou laicos, judeus ou gentios, homens ou mulheres...) e a estrutura social dominante que geram exclusão e violência.. Não veio para sancionar os bons costumes e vantagens dos justos, na linha do poder ou do conhecimento, senão para romper esse esquema de valores e privilégios. Esta é a sua novidade messiânica.
Ele Não nos impõe uma lei, não exige que cumpramos simplesmente alguns preceitos religiosos... Ao contrário, quer que todos vivamos e possamos desenvolver em plenitude nossas potencialidades.
Jesus não veio para sancionar uma ordem existente, deixando cada um com sua exclusão, senão para oferecer a todos um caminho de humanização. Por isso tornou-se um transgressor: rompe as fronteiras que foram traçadas pelos poderosos, abrindo um caminho de humanidade a partir de baixo, do lado dos excluídos e dos últimos...
Um transgressor consequente, a serviço da vida e dos últimos; isso foi Jesus. Assim devem viver seus seguidores.
Texto bíblico: Jo 2,13-22
Na oração: Muitas pessoas pensam que é somente no templo (capela, lugar santo e cerimônias sagradas) onde é possível fazer uma experiência de encontro com Deus. Se o Deus que é experimentado no templo não coincide com o Deus que move nossa vida na rua, na convivência com os outros, no compromisso com os últimos,... então o templo e seu suposto “deus” não tem nada a ver com o Deus de Jesus, e a prática religiosa é vazia.
- O decisivo é o “templo interior”, com portas abertas a todas as pessoas que queiram se aproximar e entrar.
- Somos também o “novo templo”, morada do Espírito, presença que alarga nosso interior para que todos possam ali ter acesso. Quem são os “frequentadores” do nosso “templo interior”?
Pe. Adroaldo Palaoro sj
Diretor do Centro de Espiritualidade Inaciana - CEI
“Viver sem morrer é viver menos, é impedir o pleno ser,
é partir sem nunca chegar, é jamais poder ressuscitar, é aceitar viver em vão.
Por isso, cedo quiseste voar, buscando a libertação” (L. Boff)
No Dia de Finados dedicamos a fazer memória daqueles(as) que são parte radical de nossa vida: deles(as) nascemos, por eles(as) somos. Recordamos, na oração e no afeto, aquelas pessoas que amamos e que fizeram a “travessia” para a “Vida maior”, a vida que não terá fim. Ao mesmo tempo, este dia será ocasião para aprofundar o sentido de nossa existência. De fato, a morte não fala dela mesma, mas da vida.
Para muitos, a morte é a que dá profundidade à vida humana, que permite saborear cada instante em sua fragilidade e em sua beleza. Para outros, a morte é a que tira o sentido de tudo o que fazemos. Na visão cristã, a morte não é o fim de tudo; ela é o despertar da “vida eterna”. É a experiência de ressurreição.
Quando alguém sabe “para quê e para quem vive”, realizando sua original missão, pode morrer em paz. Os que vivem intensamente enfrentam com grande serenidade seu envelhecimento e a proximidade da morte, vendo nela mais uma etapa no processo normal de seu amadurecimento e de sua realização. É o modo como alguém vive que qualifica a morte. Há mortes que, para além da inevitável dor que causam aos familiares e amigos, provocam paz, agradecimento, vontade de viver seriamente, de se levantar da superficialidade e da mediocridade.
É duro situar-se diante da morte das pessoas queridas. Corta fundo o coração uma esperança ferida. Diante da morte de quem amamos, reduzimo-nos ao silêncio; quanto mais intenso o amor, mais sofrida é a dor de um adeus. Quantas pessoas “partem no horário nobre da vida”: quantos projetos sem realizar, quantos sonhos despedaçados!...Parece que morre também uma parte de nós. Quando alguém parte, um pouco dele permanece conosco, e um pouco de nós vai com ele.
Um tímido protesto contra Deus brota do fundo do coração: “Onde está Deus?”
É na escuridão da dor e da morte que a Fé se manifesta e nos revela que fomos feitos por mãos celestiais; confessamos que a Vida é mais, é maior e que é eterna. Somos chamados à vida, criados para a liberdade, para a bondade, para a amplidão dos céus.
Confessamos que a vida vem de Deus e volta para Ele. “O amor é Deus, e a morte significa que uma gota desse amor deve retornar à sua fonte” (Tolstói). E a nossa última morada não é sob a lápide fria de um túmulo, mas no coração do mistério de um infinito Amor.
Aos olhos do Criador, tudo tem sentido. Até o “sem sentido” (morte) revela o Deus presente, solidário... Em cada pessoa que morre, morre um “pouco” de Deus. Deus “morre com”, para “ressuscitar com” e manifestar a força de seu Amor e Vida.
Deus não está distante da dor, do fracasso, da morte... Ele se faz presente, caminha conosco e sofre nossa fragilidade. Nesse sentido, a Ressurreição é possível porque Deus se mistura com a morte, e faz emergir daí a Vida eterna. Em Deus morremos, em Deus vivemos.
Na vida e na morte somos de Deus. Quando Ele tecia nossos órgãos complexos, nosso cérebro, nosso coração, nossos sentidos, nosso corpo... no ventre de nossa mãe, foi deixando sinais digitais de sua mão criadora e “pegadas” de seu amor.
E se são pegadas de amor, como poderiam terminar na tumba? Deus não nos criou para a morte mas para o amor que vence a morte, para a festa de amor sem fim. O Deus Pai e Mãe nos formou e nos sustenta em cada batida do coração; nossa respiração, nosso hálito de vida, sempre se move e se renova dentro da imensa “respiração” do Espírito. E o mesmo Deus que um dia nos teceu nas entranhas com ternura, com essa mesma mão poderosa de amor nos conduzirá de retorno à mesma fonte de ternura: seu coração vulcânico de vida, para que desfrutemos ali da festa do amor sem fim, juntamente com todos os nossos entes queridos que fizeram a travessia antes.
Nosso Hoje, então, se vestirá de Sempre. Nele Somos... e Nele seremos... para sempre!!!
Somos todos peregrinos e vivemos contínuas “travessias provisórias” até fazermos a grande travessia para Deus. Quando nascemos recebemos o sopro do Criador; quando morremos somos “aspirados” para dentro de Deus. Nosso destino é o Coração de Deus: “D’Ele viemos e para Ele retornamos”. Por isso somos eternos: já vivemos a eternidade nesta vida. Descobrimos no coração de nossa vida mortal a eternidade que vive em nós.
O que é real em nós é a vida eterna, a dimensão de eternidade que está no cerne desta vida. A vida eterna não é somente a vida depois da morte. A ressurreição não é uma experiência após a morte. E o que se chama de vida eterna não é a vida depois da morte, mas é a vida antes, durante e depois da morte. E que é eterna. Eterno é o que não está no tempo.
Segundo G. Rosa, “as pessoas não morrem, ficam encantadas”. Encantadas no coração de Deus e na nossa memória. Confessamos que sua passagem pela vida a humanidade ficou um pouco mais enriquecida e engrandecida.
No dia de Finados, fazer memória das pessoas que já fizeram a travessia é despertar a reverência pela vida. A vida é tanta surpresa, tanta novidade e riqueza que desperta o assombro e o encantamento. Fazer memória daqueles que viveram intensamente (mesmo que por pouco tempo) nos mobiliza e nos compromete a viver mais intensamente. E viver intensamente é viver aqui e agora de “modo eterno”.
A vida é dom que não pode ser desperdiçado. Para quê viver? Tem sentido? Quê marcas quero deixar?...
Alguém já afirmou que a morte é a realidade mais universal, pois todos morrem, mas nem todos sabem viver. Por isso, viver é uma arte; é necessário reinventar a vida no dia-a-dia, carregá-la de sentido.
“A tragédia não é quando um ser humano morre; a tragédia é aquilo que morre dentro da pessoa enquanto ela ainda está viva” (Albert Schweiter).
Quem viveu intensamente deixa “marcas”; fazemos, então, memória dessas marcas. “Aquilo que a memória amou fica eterno” (Adélia Prado). A memória é a presença da eternidade em nós. Tudo o que recordamos da pessoa que “já partiu” é semente de eternidade. Sua passagem entre nós não foi em vão.
A vida é feita de partidas e chegadas. De idas e vindas. De travessias. Assim, o que para uns parece ser a partida, para outros é a chegada. Nesse caminho em direção à plenitude, um dia, todos nós partiremos como seres imortais que somos ao encontro d’Aquele que nos criou.
Portanto, como seguidores de Jesus, no dia de Finados vamos celebrar a vida, a vida verdadeira, a plenitude dos irmãos que já vivem para sempre, que estão no coração de Deus. Porque a vida, como um rio, tem duas margens; a ponte para cruzar de uma margem à outra é construída diariamente com o amor, a fraternidade, a solidariedade, a esperança..., que ao longo da vida vamos semeando em nós, nos outros e na criação, dando a esta vida uma dimensão celestial.
Texto bíblico: Jo 6,37-40
Na oração: recordar os grandes silêncios da vida nas perdas de pessoas muito próximas, onde não há razões, não há uma lógica... mas no silêncio profundo, algo novo começa a germinar...
Pe. Adroaldo Palaoro sj
Diretor do Centro de Espiritualidade Inaciana - CEI
“...amarás o Senhor teu Deus de todo o teu coração... amarás o teu próximo como a ti mesmo”
Paixão por Deus e compaixão pela humanidade: nestas duas atitudes Jesus condensa a totalidade dos mandamentos bíblicos, ou seja, amar a Deus e amar o próximo. São dois amores diferentes, mas inseparavelmente unidos. Estão unidos, porque não se pode amar verdadeiramente a Deus sem amar o irmão. E o verdadeiro amor pelo irmão tem suas raízes no amor a Deus.
Estes dois mandamentos já estão presentes no AT, mas separados (Dt. 6,4; Lev. 19,18). Jesus tem a genialidade de mostrar que o “segundo é como o primeiro”, e não só em importância, mas em essência, de tal maneira que nenhum dos dois pode existir sem o outro.
A pergunta feita a Jesus torna-se ocasião para ajudar a recuperar o essencial, descobrir o “espírito perdido”: qual é o mandamento principal? O que é essencial? Onde está o núcleo de tudo?
O Amor, essência de Deus, é também essência do ser humano, criado à Sua imagem. Quando amamos não é necessário dizer que Deus está em nosso coração porque, de uma maneira melhor, estamos no coração de Deus, participamos do próprio dom de seu Amor.
Quando esquecemos o essencial, facilmente corremos o risco de mergulhar na mediocridade piedosa ou na casuística moral, que não só nos incapacitam para uma relação sadia com Deus, senão que podem desfigurar e destruir as relações com as pessoas.
O seguidor de Jesus sabe que toda expressão de amor tem um alcance divino. Uma das maiores razões para o Amor ser uma experiência de expansão se deve à sensação de imortalidade e eternidade que nos proporciona. Quem ama vê o tempo se alargar e a vida ganhar mais sentido.
Em outras palavras, o Amor traz em si a marca da eternidade, pois se trata da “faísca de Javé”, colocado por Deus no coração do ser humano. O Amor impregna o ser humano. Amor não é apenas uma função, uma área, um momento. Amor é onipresença.
O amor nasce em Deus como um rio imenso que envolve toda pessoa, iluminando e transformando sua existência. O cristão não se encontra submetido a uma espécie de exigência tirânica, obrigado a cumprir, no limite de suas forças, alguns mandatos alheios a seu ser.
“Amar a Deus com todo o coração” é reconhecer humildemente o Mistério último da vida, orientar confiadamente a existência de acordo com sua vontade: amar a Deus como força criadora e salvadora.
Nas duas tradições, judaica e cristã, o centro da pessoa é o coração. Amar é fazer tudo com o coração.
Falamos do Amor Ágape que transborda, que nada pede em troca. Amor Ágape não é o amor que sacia minha sede, pois ele não nasce da minha sede, mas ele nasce da minha fonte. Não é o amor da falta, da carência, mas é o amor da plenitude.
É esta gratuidade do amor em que se ama por nada. Amar sem ter nada de particular para amar. Amor como dom gratuito de si mesmo. Não é motivado pelo valor do outro, isto é, pela recompensa que meus gestos de amor podem trazer-me. Este amor não implica necessariamente, mas também não exclui a reciprocidade do dom de si mesmo. Com efeito, neste caso não se ama o outro porque ele é bom, mas para que seja melhor, já que o amor quer o bem do amado.
O amor ágape é expansivo: nos alarga através dos nossos membros, mãos e pés.
Podemos dizer que o amor tem mãos e pés: mãos que cuidam, curam, abençoam... e pés que nos arrancam de nossos lugares rotineiros e nos deslocam para as margens, para o mundo dos pobres...
Quando o Amor nos habita tudo se torna sagrado. Não há “Terra Santa”, há uma maneira santa de caminhar sobre a terra. “O Amor é o que diz ‘sim’, em nós”: sim à vida, sim ao compromisso, sim à compaixão...
O texto do Evangelho de hoje não só reafirma o amor ao próximo, mas, ao mesmo tempo, realça sua modalidade: “ame a seu próximo como a si mesmo”. O que significa amar o próximo “como a si mesmo”?
Segundo a Biblia, é a prioridade do outro em relação a mim. “Amar o outro como a si mesmo” não quer dizer, portanto, amar o outro do mesmo modo com que o eu se ama naturalmente e espontaneamente, e sim colocando o outro no lugar do próprio eu, afirmando sua precedência e sua prioridade sobre o eu e, assim, impedindo o movimento originário do eu em direção ao próprio eu, a fim de instaurar o movimento do eu em direção ao outro.
Podemos, então, entender o “como a si mesmo” como: “ame seu próximo, é você mesmo”; “esse amor ao próximo é você mesmo”; “ame o seu próximo, tudo isso é você mesmo”; “ame o seu próximo, porque o seu próximo é justamente como você mesmo”.
O mandamento bíblico do amor implica, pois, a “inversão da direção de vida do ser humano natural” (movimento “do eu em direção ao eu”) e a instauração da vida como vocação para amar. Trata-se do amor de alteridade onde o eu sai de sua pátria para não mais aí voltar, e sim para encontrar uma outra pátria.
O mandamento do amor é, portanto, um “contínuo êxodo” do eu para o outro. É da presença desse próximo que o eu é liberto e gerado para a nova identidade de responsável, de quem deve responder e não pode deixar de responder pelo outro que passa ao seu lado.
Cada vez que o ser humano ama a fundo perdido, os ciclos vitais se concentram. Só aquele que ama vive de verdade, amadurece antes. E é que o amor dá à liberdade a densidade de destino. O amor só se compreende a si mesmo na autodoação, no descentramento de si.
O amor é uma força unitiva: une os corpos, as mentes, os espíritos e as vontades; une as pessoas e as sociedades, não para além de suas diferenças, mas precisamente com suas diferenças. O amor converte a diferença em riqueza; o amor enche a vida de sentido. Ali onde falta o amor, as pessoas se sentem vazias e se separam cada vez mais umas das outras. O mais grave é que ali onde falta o amor corre-se um sério perigo de morte.
Nosso coração exige de nós que as coisas mais belas, as mais amadas - começando pela própria vida e pelo próprio amor - não tenham ocaso. Este é nosso destino feliz, bem-aventurado e abençoado, que já começou, ainda que não tenha chegado à sua plena manifestação.
Texto bíblico: Mt 22,34-40
Na oração: - entoar um hino de louvor e gratidão a Deus pelo Seu “amor em excesso” que se revela no cotidiano da vida;
- ter sempre presente na memória que fomos criados para viver em relação de amor e solidariedade com todos.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
Diretor do Centro de Espiritualidade Inaciana - CEI
“Daí a César o que o que é de César e a Deus o que é de Deus” (Mt 22,21)
Jesus foi um homem que viveu e falou de tal maneira que se tornou desconcertante para aqueles que o conheceram e se aproximaram dele. Até o final de sua vida, Ele desconcertou todo mundo. Desconcertou, sobretudo, aqueles que estavam confortavelmente instalados na estrutura religiosa e política da época: os fariseus e herodianos, que se uniram para armar-lhe uma cilada.
Jesus desconcertou porque colocou o ser humano no centro de sua missão; Ele tornou-se surpreendente porque não se conformava com a situação injusta imposta aos mais fracos e sofredores; com sua liberdade provocativa pôs a descoberto as mazelas sustentadas pelos encarregados da religião (fariseus) e pelos colaboracionistas do império romano (herodianos).
Jesus impressionou, surpreendeu, inovou a partir da sua relação com Deus, chamado familiarmente de Abbá, que lhe conferia "autoridade" para denunciar todo tipo de poder que desumaniza. Trata-se de uma autoridade diferente da do mundo, uma autoridade que não tem como fim exercer um poder sobre os outros, mas servi-los, devolvendo-lhes a liberdade e a plenitude de vida. Viveu totalmente dedicado, não precisamente ao imperador César, mas aos empobrecidos e excluídos do império. E isso até o ponto de pôr em jogo a sua própria vida.
Jesus se tornou um sinal de contradição porque permaneceu absolutamente fiel a uma mensagem, a um modo de agir e a uma missão que havia recebido do Pai e que devia realizar com critérios e opções coerentes com o conteúdo do seu Evangelho.
Desde o início de sua vida pública Jesus exerceu considerável poder de sedução sobre os pobres e excluídos da Galileia. Seu fascínio sobre o povo não tinha nada de improvisado, mas era fruto de anos de solidariedade com os simples, os doentes, os pecadores... Não tinha terras, não possuía denários de prata, não tinha poder. Vivia de maneira pobre e livre, totalmente centrado na busca do Reino de Deus e de sua justiça. A riqueza original desse sonho primordial não se “encaixou” nos esquemas dos fariseus e herodianos, dos sacerdotes e anciãos do povo, dos saduceus, dos essênios ou zelotes, nem se deixou instrumentalizar pela instituição do Templo ou sinagoga.
Isso inquietava as instituições, políticas e religiosas, pois a presença original e crítica de Jesus ameaçava pôr por terra toda uma estrutura extremamente injusta cujas primeiras vítimas eram os pobres e excluídos. Jesus optou por ficar do lado das vítimas. Essa situação conflituosa de Jesus com os “podres poderes” é o resultado do confronto entre sua missão (que anuncia a justiça do Reino e as bem-aventuranças) e a realidade que não quer ouvir e rejeita a novidade do Reino.
Além disso, o Deus que Jesus nos revela é o Deus que se faz presente no pequeno, no simples, naqueles que não tem voz e nem vez neste mundo. Não é o Deus do poder absoluto, nem o Deus que exige obediência e submissão àqueles que se apresentam como representantes do divino.
O Deus que Jesus nos faz conhecer não é o Deus que nos complica a vida com normas e leis, nem nos impõe pesados fardos, mas o Deus que se humaniza para humanizar nossa vida. E assim Jesus nos indica que só na medida em que nos fazemos mais humanos, nos fazemos mais semelhantes a Ele que, para aliviar o sofrimento humano, se comprometeu com os que sofrem, até identificar-se com eles na morte.
O Deus de Jesus é o Deus que responde e corresponde aos anseios de respeito, dignidade e felicidade que todos trazem inscritos no sangue de suas vidas e nos sentimentos mais autênticos e nobres. O Deus Misericordioso não impulsiona ninguém a desejar poderes, por mais divinos que sejam. Ele é o Deus que só legitima a identificação e até a fusão com o destino das vítimas deste mundo.
Esta foi a principal fonte de conflitos de Jesus com os aqueles que, em nome de Deus, exerciam o poder e a dominação sobre as pessoas e sobre o mais íntimo que há em cada um: sua consciência e sua liberdade para tomar decisões na vida e expressar sua fé em Deus. É nesse contexto que os fariseus e herodianos se unem contra Ele com uma pergunta capciosa: “É lícito ou não pagar o tributo a César?”
A resposta de Jesus tem dado margem a interpretações distorcidas. De fato, Jesus acrescenta uma grave advertência sobre algo que ninguém lhe perguntou: “dai a Deus o que é de Deus”.
Jesus não põe Deus e César no mesmo nível, senão que toma partido por Deus. Com sua resposta, Jesus propõe um princípio de validade permanente: a rejeição a absolutizar qualquer tipo de poder. César se impõe (imposto) pelo poder, que oprime e exclui; Deus não se impõe (não é imposto); faz-se dom, esvazia-se de todo poder e se aproxima de nós, se faz comunhão. O relacionamento entre o ser humano e Deus dá-se na esfera da mais pura liberdade, lá onde as decisões são ditadas pelo amor.
Jesus denuncia a submissão dos fariseus e herodianos que carregavam consigo moedas com a imagem do imperador romano: vivem como escravos submissos a um poder que desumanizava e humilhava a todos com pesados impostos. Mas o ser humano é “imagem” de Deus e só a Ele pertence. O único absoluto é Deus. Trata-se de uma “submissão amorosa” que não se impõe (imposto), pois nos convida a entrar em sintonia com Ele, numa comunhão de vida e compromisso com os outros.
Alguns biblistas traduzem a expressão “dai a César o que é de César e a Deus o que é de Deus” por “retirai de César o que é de Deus”, ou “não dai a César o que é de Deus”, ou ainda, “dai a César o que é de César, mas não lhe deis o que é de Deus”.
Em outras palavras: não entregueis a nenhum César o que é de Deus: seus pobres. Os pequenos são os prediletos do Pai; o Reino de Deus pertence aos pobres. Não se pode sacrificar a vida e a dignidade dos indefesos a nenhum poder político, financeiro, econômico ou religioso. Os humilhados pelos poderosos são de Deus e de ninguém mais. Que nenhum poder abuse deles; que nenhum César se imponha.
Enfim, numa sociedade corrupta e deformada, uma pessoa que se ajusta ao que está estabelecido e, portanto, não desconcerta ninguém, é uma pessoa alienada, que passa pela vida sem ser provocadora e deixa tudo como está. Só desconcerta quem, na fidelidade ao Evangelho e à causa do Reino, rompe os esquemas fechados e estruturas de poder, transgride o excesso de normas, abre novos caminhos ainda não imaginados.
Texto bíblico: Mt 22,15-21
Na oração: “Quem é o senhor que move nossa vida?
Alimentamos diferentes “césares” em nosso coração, aos quais nos fazemos submissos: instinto de posse, busca de poder e prestígio, consumismo, obsessão por um bem-estar material sempre maior, o espírito de competição... Quando é “cézar’ que determina nossa vida, sua influência envenena nossa relação com Deus, deforma nossa verdadeira identidade e rompe nossa comunhão com os outros; nos desumanizamos...
Como seguidores de Jesus, devemos buscar nele a inspiração e o alento para viver de maneira livre e solidária.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
Diretor do Centro de Espiritualidade Inaciana-CEI
Entre os personagens próximos de Jesus, poucos como Maria. Dela não se diz muita coisa nos evangelhos, mas o que se diz é surpreendente. Mãe, testemunha, seguidora, servidora, presente... Uma mulher fiel a Deus e capaz de ver mais além do cotidiano e estabelecido; uma mulher capaz de ver diferente.
Onde outros viam uma loucura, Maria viu um horizonte; onde muitos tinham visto uma transgressão, ela intuiu a promessa de Deus; onde tantos teriam estremecido diante da proposta de Deus e teriam exigido mais provas, mais seguranças ou mais garantias, Maria exclamou: “faça-se”. Onde a lei era a referência e a condenação, ela foi capaz de cantar a grandeza do Deus que está com os mais simples e quebra as estruturas estabelecidas; onde tudo era convencional, Maria, com uma acolhida feita de valentia, confiança e entrega, foi capaz de colaborar com Deus de modo radical; onde todos viam o desenlace frustrante e triste de uma festa de casamento, ela “viu e antecipou a hora de seu Filho”... Porque estava sempre presente.
Porque estava presente a Deus, Maria fez-se presente nos momentos decisivos de seu Filho, bem como fez-se presente na vida das pessoas. Uma presença que faz a diferença: presença solidária, marcada pela atenção, prontidão e sensibilidade, próprias de uma mãe.
Sua presença não era presença anônima, mas comprometida; presença expansiva que mobilizou os outros, assim como mobilizou seu Filho a antecipar sua “hora”. Nas bodas de Caná, a novidade está numa nova forma de presença de Maria, que não se encontra interessada, em princípio, por fazer coisas, por resolver problemas, senão para traçar uma presença. Ela não está aí para “arrumar” as coisas, mas para escutar e compartilhar um momento festivo. Ela se encontra presente, num gesto de solidariedade que transcende e supera toda atividade.
Trata-se de uma presença que é “música calada” nos lugares cotidianos e escondidos, que sabe enternecer-se e escutar as inquietações que procedem desses lugares. Uma presença que descobre o próximo no próximo, que sabe resgatar a solidariedade na vida cotidiana. Uma presença que se manifesta na ausência de recompensa ou de interesse próprio.
Em definitivo, Maria descobre que é chamada a dar de graça o que de graça recebeu. Sabe entrar em sintonia com os sentimentos dos outros e construir vida festiva, e vida em abundância. Sua presença revela um gesto profético de solidariedade e de anúncio: presença que aponta para uma outra presença, a de seu Filho. Sua presença dignifica e revela um novo sentido à presença de Jesus numa festa de Casamento.
A presença silenciosa, original e mobilizadora de Maria desvela e ativa também em nós uma presença inspiradora, ou seja, descentrar-nos para estar sintonizados com a realidade e suas carências. Tal atitude nos mobiliza a encontrar outras vidas, outras histórias, outras situações; escutar relatos que trazem luz para nossa própria vida; ver a partir de um horizonte mais amplo, que ajuda a relativizar nossas pretensões absolutas e a compreender um pouco mais o valor daquilo que acontece ao nosso redor; escutar de tal maneira que aquilo que ouvimos penetre na nossa própria vida; implicar-nos afetivamente, relacionar-nos com pessoas, não com etiquetas e títulos; acolher na própria vida outras vidas; histórias que afetam nossas entranhas e permanecem na memória e no coração.
Disto se trata: aprender dos outros; recarregar nossa própria história de um horizonte diferente, no qual cabem outras possibilidades e outras responsabilidades; descobrir uma perspectiva mais ampla que ajuda a formular melhor o sentido de nossa própria vida.
Evidentemente, nem toda presença é “saída de si”; uma pessoa pode passar pelos lugares sem que os lugares deixem pegadas; ela pode tocar a superfície das coisas e das vidas, mas esse contato deixa pouca memória e que logo desaparece. Com isso não há encontro nem aprendizagem.
Quando a pessoa se faz presença que desemboca no verdadeiro encontro, ela se expõe, se faz vulnerável, se deixa afetar... Mas essa é a oportunidade para transformar os olhares e os gestos de quem se atreve a sair dos horizontes conhecidos.
São muitos os encontros que são fecundos para quem se faz presente e para quem acolhe esta presença. São muitas as pessoas cujas vidas ganham em seriedade, em profundidade, em compaixão e em alegria autêntica ao fazer esse caminho de saída de si. São muitas as pessoas que, em contato com vidas e histórias diferentes e reais, compreendem melhor suas próprias vidas e sua responsabilidade.
O seguimento de Jesus nos mobiliza e nos expande na direção dos outros.
“O discípulo-missionário é um descentrado: o centro é Jesus Cristo que convoca e envia. O discípulo é enviado para as periferias existenciais. A posição do discípulo-missionário não é a de centro, mas de periferias: vive em tensão para as periferias” (Papa Francisco)
Que significa “fronteiras geográficas e existenciais”. É preciso sair dos limites conhecidos; sair de nossas seguranças para adentrar-nos no terreno do incerto; sair dos espaços onde nos sentimos fortes para arriscar-nos a transitar por lugares onde somos frágeis; sair do inquestionável para enfrentarmos o novo...
É decisivo estar dispostos a abrir espaços em nossa história a novas pessoas e situações, novas vivências, novas experiências... Porque sempre há algo diferente e inesperado que pode enriquecer-nos...
A vida está cheia de possibilidades; inumeráveis caminhos que podemos percorrer; pessoas instigantes que aparecem em nossas vidas; desafios, provocações, aprendizagens, motivos para celebrar... lições que aprenderemos e nos farão um pouco mais lúcidos, mais humanos e mais simples...
A fronteira passa a ser terra privilegiada onde nasce o “novo”, por obra do Espírito. Ali aparece o broto original do “nunca visto”, que em sua pequenez de fermento profético torna-se um desafio ao imobilismo petrificado e um questionamento à ordem estabelecida.
Isso pede de todos nós uma atitude de abertura e de deslocamento frente ao outro, o que implica colocar-nos em seu lugar, deixar-nos questionar e desinstalar por ele... Nosso desafio não é fugir da realidade, mas aproximarmos dela com todos os nossos sentidos bem abertos para olhar e contemplar, escutar e acolher, percebendo no mais profundo da mesma a presença ativa do Deus que nos ama com criatividade infinita, para encontrar-nos com Ele e trabalhar juntos por seu Reino.
O discípulo missionário não é aquele que, por medo, se distancia do mundo, mas é aquele que, movido por uma radical paixão, desce ao coração da realidade em que se encontra, aí se encarna e aí revela os traços da velada presença do Inefável. “Encontrar, a experimentar Deus em todas as coisas... a Ele em todas amando e a todas n’Ele” (S. Inácio).
Deus emerge na densidade das coisas, das pessoas e dos acontecimentos.
Quem está em sintonia com esta Presença, vive uma festa permanente.
Texto bíblico: Jo 2,1-11
Na oração: por onde você tem transitado normalmente? Somente por lugares conhecidos, junto às pessoas amigas? Sua presença eleva, anima, desperta os outros?
Você se deixa afetar pelas presenças provocativas? os pobres? os marginalizados? as minorias?
Pe. Adroaldo Palaoro sj
Diretor do Centro de Espiritualidade Inaciana – CEI
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