“Levanta-te, pega o menino e sua mãe e foge para o Egito!” (Mt 2,13)
Hoje é o domingo da Sagrada Família, uma família de “emigrantes perigosos”, que devem fugir de sua pátria (onde são perseguidos), buscando outra terra também rica em opressões (Egito), para voltar de novo a uma terra cheia de perseguições (Judéia, Galileia). Assim ela aparece como a patrona de “todas as sagradas famílias” que tem de fugir, exilar-se, esconder-se...
Jesus nasce num mundo hostil. Ele foi perseguido pelos “donos do poder” desde o início de sua vida. O não reconhecimento de Jesus por Herodes e por Jerusalém antecipa a rejeição, a condenação e a morte d’Ele na Cidade Santa, no lugar onde Ele encontrará a maior hostilidade.
O paralelismo entre Jesus e Moisés, de um lado, e entre Herodes e Faraó, de outro, é claro.
Há também um paralelismo entre Jesus e o povo de Israel: Jesus revive na sua própria carne a história do seu povo chamado por Deus do Egito. “Do Egito chamei meu filho” (Os. 11,1).
A perseguição e o exílio, logo no início da vida de Jesus, revelam o realismo da Encarnação. Ao entrar na nossa história, o Filho de Deus esvaziou-se de sua glória e assumiu nossa condição humana, com todas as consequências: pobreza e impotência, perseguições e ameaças de morte por parte dos poderosos de turno.
Como exilados, Jesus e seus pais, fazem parte da corrente ininterrupta das vítimas do poder, que são obrigados a percorrer lugares inóspitos, desertos, cidades estrangeiras, gente hostil...
Jesus e seus pais são irmãos de todos os refugiados políticos dos países repressivos. Já desde pequeno Jesus se vincula e se solidariza com o mundo dos pobres, dos últimos. Ele é um Deus frágil que arma tenda nos acampamentos dos exilados, nas favelas e cortiços da miséria total; é um Deus que acompanha e compartilha a sorte dos fugitivos, expulsos das aldeias, mandados para fora da segurança, da tranquilidade dos muros da cidade. Para Ele permanecem cerradas as portas de ferro dos palácios.
O alarme diante da notícia do nascimento do “rei dos judeus” encaixa perfeitamente no contexto de mentiras e complôs, de terrores e furores dos últimos anos de Herodes. A história humana e o solo do nosso planeta sempre estiveram manchados de sangue. O massacre por razões de estado sempre foi uma das práticas mais experimentadas, carregando consigo o triste cortejo de repressões, torturas, prisões, violações dos direitos civis.
De fato, nessas vítimas inocentes que Mateus relata, estão representados todos os inocentes que foram exterminados no decorrer da história, cujos nomes não estão registrados nos arquivos da repressão, mas apenas no “livro da vida” de Deus. Entre essas vítimas podemos entrever todos os que foram esmagados pelos pequenos e grandes Herodes, sacerdotes da satânica liturgia da morte, da violência, do sangue.
O relato do Evangelho deste domingo é como o espelho de nossa história violenta, que avança sobre cadáveres de crianças sacrificadas, de inocentes fugitivos, de homens e mulheres errantes, perseguidos, em busca de uma pátria. Nossa história do “falso natal” avança sobre o Natal verdadeiro que continua acontecendo nos caminhos dos fugitivos e dos clandestinos deste mundo.
Só podemos celebrar hoje a festa da “Sagrada Família” se descobrimos que as famílias mais sagradas, aquelas que devemos respeitar, proteger e potenciar, são aquelas que não tem casa nem pátria, nem meios de vida... e no entanto, continuam caminhando.
Maria compartilha a sorte do menino, vive para ele, com ele assume os riscos da fuga e exílio. Ela cuida, protege, educa o menino entre perseguições e exílio. Enquanto existirem mães que protegem e cuidam das crianças, como Maria, haverá Natal.
José, em meio à perseguição, põe-se a serviço do Deus fugitivo, expulso, exilado do mundo. Como verdadeiro esposo e pai, ameaçado e fugitivo, percorre, com Maria e o menino, os caminhos do desterro. Enquanto existirem pais que, como José, se arriscam pela mulher e pelos filhos, que são sua riqueza, o dom de Deus..., enquanto estiverem dispostos a sofrer por seus filhos e pelas mães de seus filhos, no exílio ou na pobreza, haverá Natal.
Nessa escola de perseguição cresceu o Messias, compartilhando assim a sorte dos hebreus oprimidos no Egito; crescendo nela pode entender e interpretar nossa história por dentro. Entre fugitivos e perseguidos, cresceu Jesus, nas fronteiras da desumanização; ali vai sendo gestada a história da nova humanidade.
Se a história da Encarnação começa lá “embaixo”, na periferia, quer dizer que a fé em Deus implica prestar atenção e voltar a cabeça em direção aos “últimos”, aos que vivem “deslocados”. É por esse caminho que podemos chegar à descoberta e à experiência de Deus; é também por este caminho que podemos chegar ao conhecimento de nós mesmos e nos fazermos mais “humanos” e “solidários”. Ali temos que buscá-Lo e encontrá-Lo, nós que celebramos a festa da Sagrada Família.
O mistério do Exílio interpela a nossa liberdade e a nossa fé. Jesus bate e pede hospitalidade na ponta dos pés. São rostos desfigurados pela fome e pobreza, rostos aterrorizados pela violência diária, rostos angustiados de menores carentes, rostos humilhados e ofendidos na sua dignidade... Podemos fechar-Lhe a porta e condená-Lo ao exílio, que é uma atitude gravíssima na relação com Deus.
Aqui se condena uma criança. Se não entendermos essa lição, nada mais conseguiremos entender. Nesta nossa ignorância e insensibilidade a respeito do presente divino que é a Criança de Belém, estão as raízes de nossas maiores desgraças, injustiças, violências... E Deus não pode abençoar uma sociedade que não sabe valorizar suas crianças.
O Evangelho de hoje termina com três indicações geográficas, que são como que a espinha dorsal da narrativa. Antes de tudo, o anjo diz a José que deve retornar à terra de Israel: é a pátria mais genérica de Jesus e da revelação bíblica. Depois José é advertido em sonho para ficar no território da Galileia. Enfim, de modo mais específico, ele vai morar “numa cidade chamada Nazaré”.
Nazaré está no traçado do retorno-êxodo de Jesus do Egito. Com a terra de Israel Jesus revive a experiência do Êxodo; com a Galileia dos gentios Jesus abre a salvação aos mais pobres e excluídos; mas com Nazaré Ele atinge quase que o vértice do seu destino. Uma cidade insignificante que se torna o ponto de partida do caminho de Jesus, uma vida oculta e corriqueira que é celebrada pelos profetas.
Podemos dizer que Nazaré é, em certo sentido, a apologética do cotidiano, das horas, dos meses, dos anos escondidos, da vida tranquila, provinciana, não-escrita, de Jesus. Essa atenção à simplicidade do cotidiano, à natureza da Galileia, à mensagem que Deus esconde nos homens, nas coisas, nas horas…, é uma constante na pregação de Jesus. Nazaré é o sinal da epifania de Deus nas pequenas coisas, é o sinal da palavra divina escondida nas vestes humildes da vida simples e familiar, é o sinal da presença graciosa de Deus em nossas casas.
Texto bíblico: Mt 2,13-15.19-23
Na oração: contemplemos, com os olhos e o coração de Maria e de José, a entrada na terra que fora o lugar de escravidão dos seus antepassados. Terão recordado a história do seu sofrimento no cativeiro e da sua libertação, realizada pela ação criativa de Deus.
Suplicar a graça do seguimento de Jesus nos êxodos e nos exílios interiores e exteriores.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
Coordenador do Centro de Espiritualidade Inaciano - CEI
27.12.2013
“Encontrareis um recém-nascido envolvido em faixas e deitado numa manjedoura” (Lc 2,12)
Se a história da Encarnação começa na Gruta, quer dizer que a fé em Deus implica prestar atenção na manifestação do amor materno e na frágil beleza do recém-nascido. É por esse caminho que podemos chegar à descoberta e à experiência de Deus; é também por este caminho que podemos chegar ao conhecimento de nós mesmos. No momento em que o Verbo de Deus assume um rosto, todo ser humano chega à plenitude de sua realização: entra em comunhão com o Infinito e recebe uma dignidade infinita.
As grutas sempre despertaram fascínio nos seres humanos; possuem uma força atrativa e guardam segredos em seu interior. Ao mesmo tempo simbolizam o desejo permanente de retornar ao ventre materno, lugar de segurança, de aquecimento...
A contemplação do Nascimento de Jesus nos impulsiona a fazer a travessia para o interior de uma Gruta: ali o Grande Mistério se faz visível e revelador do sentido da existência humana. “Conectar-se” com a Gruta de Belém é despertar o que há mais “divino” em nós.
Trata-se de “entrar” nela com suavidade, de percebê-la e fazê-la descer até o coração, de convertê-la em matéria de consideração e oração silenciosa e surpreendida.
A contemplação do Menino na Gruta revela que Deus assumiu a aventura humana desde seus começos até seu limite (vida, amor e morte). Deus se fez “tecido humano”, revestiu o ser humano de sua própria glória, plenificou-o de sentido e de finalidade. No nascimento de Jesus é revelada a grandeza, a dignidade, o mistério inesgotável do ser humano. Nossa humanidade foi divinizada pela “descida” de Deus. “Sendo rico, Cristo se fez pobre para que nós participássemos de sua riqueza” (2Cor. 8,9).
Ao aproximar-nos da Gruta de Belém, com todos os nossos sentidos abertos, começamos a intuir que tudo foi alcançado pelo amor encarnado de Deus. Belém é Deus que entra em nossa própria casa. Acolhido pela natureza, presente na Gruta, Deus se deixou impactar por tudo aquilo que o rodeava. Tudo isso é Deus na nossa carne quente e mortal. Um Deus que “adentrou” na humanidade e de onde nunca mais saiu; um Deus que agora pode ser buscado em nossa interioridade e em tudo o que é humano. Na pobreza, na humildade da própria história pessoal, inserida na grande história da humanidade, torna-se possível acolher o dom do amor de Deus visível na Criança de Belém.
“Não basta ajoelhar-se uma vez ao ano frente ao presépio para que a vida humana seja inundada da vida divina; antes, é necessário que toda a vida esteja em contato com Deus” (Edith Stein)
Celebrar, louvar e reverenciar o nascimento de Jesus tem a ver também com poder honrar nossas raízes, despertar nossa criança escondida em nosso interior. Jesus foi desalojado de nossos natais. Daí a urgência em nos aproximar da realidade de Belém.
Deus aparece como Menino mostrando-nos que a verdadeira dimensão do ser humano é “fazer-se criança”. É preciso retornar à infância para entrar na gruta de Belém; é preciso desbloquear em nós as fontes da inocência e da bondade. Dentro de todos nós há um menino adormecido. O ser humano precisa despertar esse menino, porque é o melhor que existe em cada um.
Sabemos que somos habitados pelo Mistério e, portanto, compartilhamos o mais essencial de nossas vidas, que se manifesta em forma de bondade, amor, compaixão...
Ao entrar na gruta para contemplar o Menino-Deus, acessamos, ao mesmo tempo, o mais profundo do coração humano, carregado de compaixão e generosidade. A bondade humana é uma faísca que pode se atrofiar, mas jamais se apagar. São necessários alguns momentos densos para que esta chama seja ativada. A vivência do Natal é um deles.
Em Belém somos pacificados de nossas ansiedades e pressas de fazer mais e de conseguir mais, de nossa sede de poder e de acumular mais; e se permanecemos em silêncio ali, diante do menino deitado no presépio, brotará em nós um desejo profundo de sermos mais humanos; ao mesmo tempo, brotará um desejo de venerar cada ser humano, de contemplá-lo em seu interior, esse lugar ainda não profanado em cada pessoa, o lugar de sua infância e de sua paz.
Hoje, percebemos que o ser humano tem perdido o contato e a comunhão com a própria interioridade, recusando receber a seiva que a todos alimenta; ele está conectado com tudo e com todos e, no entanto, tal conexão não lhe nutre, nem lhe oferece sentido à sua existência. A compulsão dos meios eletrônicos que o ameaça de superficialidade, de individualismo e de isolamento..., tem provocado nele toda espécie de mal-estar, de doenças, de conflito e divisão, de insegurança, de ansiedade, de solidão, de aridez existencial...
É aguda a consciência de uma fragmentação do eu interior.
A verdadeira nobreza do ser humano consiste nisto: há nele “algo” de interior, decorrente de sua profunda conexão com a Vida, de onde recebe a seiva que o nutre e o faz entrar em relação com tudo e com todos; há nele uma força latente, como uma energia fundamental, que o impulsiona a viver, que o ajuda a crescer e a melhorar continuamente, aumenta a sua capacidade de resistência, estimula-o a alcançar aquilo que é o sentido de sua própria existência: a verdade, a liberdade, o bem, o amor...
Com a presença desta força interior, a pessoa se sente guiada pelo seu dinamismo, que lhe proporciona saúde física, lucidez mental e limpidez afetiva. É esta força que comanda os melhores momentos da vida humana como um princípio ativo, dinâmico, criativo... Tais forças primordiais, vitais, presentes nas diferentes etapas do crescimento, são essenciais ao ser humano, graças às quais ele se orienta diante das solicitações da vida pessoal e das múltiplas escolhas, constrói a sua vida pessoal, reforça as relações comunitárias e sustenta o seu compromisso solidário no caminho em direção à plenitude do seu ser.
Quando o acesso à gruta interior permanece bloqueado, o ser humano perde a direção, seca a criatividade e o gosto por viver, não faz progredir a sua potencialidade e demite-se da própria vida.
Natal não só nos conecta com o que há de mais divino em nós, mas nos conecta também com o divino presente em toda pessoa humana, pois o Filho de Deus, com sua encarnação e nascimento, se uniu a todo ser humano.Natal faz referência à nossa comum humanidade, ou seja, nos revela que nossas vidas estão estreitamente interconectadas, e por causa desta conexão, somos responsáveis uns pelos outros. Nós nos humanizamos através dos outros. Precisamente porque cada um é parte inseparável do tecido da humanidade, o que um faz ou deixa de fazer tem consequências nas vidas dos outros.
Texto bíblico: Lc. 2,1-14
Na oração:
Na presença do Menino Jesus tudo é iluminado, tudo é aceito, tudo encontra seu lugar, nada é recusado.
Tudo fica transformado pela irradiação da luz que emerge a partir de dentro; e há muito mais lugar do que poderíamos chegar a imaginar, muita dignidade e muita beleza. Diante de tal luz nos fazemos “lugar puro”; e a vida inteira passa a ser presépio, gruta, espaço sem limites onde acolher os outros.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
Coordenador do Centro de Espiritualidade Inaciana - CEI
21.12.2013
“Quando acordou, José fez conforme o anjo do Senhor havia mandado…” (Mt. 1,24)
3º Dom. Advento
Advento deveria ter mais ingredientes de surpresa que de rotina. Sem surpresa não há vida, já que a vida é a constante surpresa de ter consciência da própria existência. Advento deve ter este elemento de surpresa, de poder desvelar aqueles sinais de esperança que dão luz e calor à vida. É preciso estar atento à surpresa, rastreando o horizonte a partir da esperança do coração. Ao mesmo tempo, é preciso ter um coração preparado para acolher esta surpresa. Ela pode passar desapercebida, se estivermos imersos na rotina cansativa de nossos dias.
Muitos de nós, provavelmente, em um momento ou outro de nossa vida, já vivemos uma experiência de explosão de assombro e surpresa diante de nossa própria existência. Num determinado momento, tudo parecia enfadonho e rotineiro e, de repente, tudo é percebido como extraordinário e maravilhoso.
É como se alguém se visse afetado de um repentino ataque de assombro, que suscita humildade e agradecimento diante do milagre da vida. É como se despertasse para ver a realidade com novos olhos, como se visse pela primeira vez coisas que estiveram aí desde sempre. Emerge uma profunda reverência diante do “mistério”, incompreensível, mas mobilizador. E diante do mistério, a atitude adequada é a contemplação silenciosa, como fazem as mães, em longas horas de silêncio, cheias de assombro, diante da fragilidade de um novo ser humano.
Não é difícil imaginar o assombro de José e Maria que surpresos descobrem que a “vida é mais que vida”, que há sempre algo maior que nos ultrapassa no emaranhado cotidiano de nossa história. Uma aprendizagem vivida ao longo da vida, marcada por momentos de serenidade e paz, mas também por obscuridade e dúvida.
O Advento é, por sua própria natureza, uma surpresa que quebra a solidão da pessoa abandonada a si mesma, aos seus desertos desolados, fechada em suas rotinas e esquemas...
Faz-se necessário recuperar o sentido da surpresa, que é a atmosfera deste tempo litúrgico, recordar que a visão bíblica da história dirige-se para uma meta surpreendente, encontrar novamente a capacidade de maravilhar-se. Devemos recobrar o sentido da expectativa, da novidade, da coragem.
O Advento quer reafirmar a possibilidade de uma alternativa, da chegada de um hóspede inesperado, porque é “boa nova”, é evangelho. Com essa atitude frente às surpresas de Deus, o cristão pode dar sabor à sua vida, muitas vezes modesta e simples como a de José. Pois é no traçado das horas e dos dias que Deus prepara sempre a sua novidade, a sua surpresa, o seu dom natalício.
O cristão não deve jamais cair na resignação, mas permanecer em vigília, na expectativa; ele também deve ser uma surpresa para os outros, com seu gesto de amor imprevisto, com sua palavra que reanima, com sua visita que consola, com sua atenção para com todos os que levam uma vida obscura e monótona.
O texto evangélico de hoje afirma claramente o conflito vivido por José. Ele viveu a experiência de uma verdadeira “noite escura”, do “silêncio de Deus”. Mais uma vez é Deus quem toma a iniciativa. José era um pobre noivo, pertencente a uma nação oprimida e a uma categoria social esquecida, mas conserva límpidos os olhos do espírito, prontos para perceber e acolher a presença surpreendente de Deus em sua vida. Na narração de Mateus, o anjo comunica ao confuso José o mistério que está acontecendo com sua esposa Maria. Por essa revelação do anjo, José é atingido como que por um raio, é tomado de surpresa. A sua noite, o seu silêncio, o seu sono, a sua rotina diária são quebrados por uma novidade absoluta.
O que José recebe no sonho é o chamado a uma existência marcada por constantes “deslocamentos”, pois, a mulher que entrou em sua vida e vai entrar em sua casa, Maria, leva em suas entranhas Aquele que para muitos será uma presença provocativa, uma ameaça ao poder estabelecido, um transgressor das leis e normas religiosas... A vida inteira de José, o justo, vai ficar desestabilizada a partir deste momento porque foi convidado a aproximar-se do mistério surpreendente do Deus feito homem.
Exteriormente, o mundo permanece como estava, aparentemente nada mudou; mas, ao associar-se ao destino do “Deus que se humaniza”, também José se revelará como presença surpresa, marcada pelo cuidado, pelo silêncio e pela prontidão ao chamado de Deus.
Mergulhados naquilo que é margem, na superfície das coisas, na rotina estressante…. acabamos por perder de vista o essencial, isto é, a adesão a Deus e ao seu plano de amor, de verdade, de justiça. Aprendamos de José a abrir nosso interior e deixar-nos surpreender por Deus. Ele nos fala que quem vive a esperança sabe que, "mesmo em meio às dificuldades, Deus atua e nos surpreende". Mas como viver essa atitude na nossa vida cotidiana, em cada coisa que fazemos?
Ele espera que nos deixemos “surpreender por seu amor, que acolhamos as suas surpresas”. Deixar-se surpreender por Deus não implica uma atitude passiva, onde esperamos que tudo caia do céu. Deixar-se surpreender por Deus no singelo, nas coisas simples da vida. Muitas vezes nós perdemos a capacidade de ver a sua ação nas pequenas coisas e ficamos esperando grandes sinais, grandes milagres. Cada instante é uma chance de perceber esse amor que Ele tem por nós. Se nós vivemos cada momento ordinário de forma extraordinária, certamente perceberemos a Sua ação e seremos surpreendidos.
Pensemos agora na quantidade de ocasiões que temos em apenas um dia para sermos surpreendidos por Ele. Um encontro com alguém, um gesto de bondade, uma palavra que alguém nos dá, uma paisagem que vemos, enfim, infinitos momentos em que Deus nos fala, busca nos surpreender. Mas, por não prestarmos atenção, por estarmos dispersos em tantas preocupações, por não fazermos silêncio em nosso interior, acabamos não percebendo.
A espiritualidade do Advento pede de nós uma docilidade à audição da voz que nos habita; é o sussurro que vem da realidade e das coisas, carregada da Presença d’Aquele que desperta o nosso ser para o assombro, para a maravilha e para o milagre.
Diante do “Mistério” que nos envolve e nos escapa, brota do mais profundo do nosso ser, o grito cheio de surpresa. O Mistério irrompe como voz que convida a escutar mais e mais a mensagem que vem de todos os lados, como apelo sedutor para nos mover mais e mais na direção do coração de cada coisa. Ele pertence a uma dimensão humana à qual todos tem acesso, quando vivem em profundidade e conseguem penetrar nos níveis mais profundos da vida.
Eis a plenitude da vida: mergulhar naquela Presença benfazeja que nos enche de sentido, de alegria, e nos surpreende a cada momento, nos invade e nos conduz a caminhos novos.
Texto bíblico: Mt 1,18-24
Na oração: Durante a contemplação devemos deter-nos particularmente na figura de José. Ele teve seus pensamentos próprios, suas preocupações e suas provações, suas perguntas dilacerantes e suas dúvidas angustiantes.
Mas Deus nunca deixa de atuar no meio das nossas noites, dúvidas, provações. Ele conhece nossos pensamentos e temores. E, no momento certo, nos liberta de nossos medos e nos dá a conhecer sua Vontade.
- Fazer memória das “surpresas” de Deus que despertaram um novo “movimento” em sua vida.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
Coordenador do Centro de Espiritualidade Inaciana –CEI
16.12.2013
“Ide contar a João o que estais ouvindo e vendo” (Mt 11,4)
3º Dom. Advento
O Advento é um tempo forte que nos convida a conectar com o melhor que há em nós, em nosso coração. Conectar com o sonho de ser uma pessoa melhor, mais madura, mais comprometida, mais aberta à realidade; conectar com as ricas possibilidades ainda latentes em nosso interior...
Com toda certeza, no “eu mais profundo” há um “espaço divino” onde as beatitudes originais estão presentes, esperando uma ocasião propícia para manifestar-se. Advento é tempo especial para ativar aquilo que há de mais nobre em nós. Estas “beatitudes” (bem-aventuranças) são um caminho privilegiado pelo qual Deus chega até nós, possibilitando-nos viver com mais intensidade.
Normalmente, nosso modo de viver é estressante e o melhor que há em nós vai ficando atrofiado a cada dia. Mergulhados no ativismo alucinante, vivemos desconectados de nossas raízes existenciais, de nossos sonhos mais profundos, daquilo que aspiramos de verdade...
E então... quê é Advento? Conectar com nossas melhores aspirações, essas que nos levam a dizer: “Chega de vazio interior! Basta de secura!!! Temos um coração que necessita água fresca de sentimentos, de verdade, de vontade de ser de outra maneira mais humana e menos maquinal”. E aqui, nós que acreditamos no Deus de Jesus, conectamos com as esperanças de homens e mulheres que, em todos os tempos, sentiram o mesmo que sentimos e esperaram Alguém (Jesus) que viesse dar um sentido às suas existências, que lhes dissesse palavras de vida e que viesse trazer “vida em abundância”.
O Evangelho de hoje deixa muito claro que a mediação entre os seres humanos e Deus é a vida, não a religião. A religião é uma expressão fundamental da vida e deve estar sempre a seu serviço. Como consequência, a religião é aceitável só na medida em que serve para potenciar e dignificar a vida, inclusive o prazer e a alegria de viver. Quando a religião é vivida de maneira a agredir à vida e à dignidade das pessoas, ela se desnaturaliza e se desumaniza, e acaba sendo uma ofensa ao Deus revelado por Jesus. De fato, para Jesus, o primeiro é a vida e não a religião. Ele colocou a religião onde deve estar: a serviço da vida, para dignificá-la. Ele tomou partido da vida, contra aqueles que, a partir da religião, cometiam todo tipo de agressão contra a vida.
Jesus se deixou conduzir pelo Espírito do Senhor para aliviar o sofrimento humano: “os cegos recuperam a vista, os paralíticos andam, os leprosos são curados, os surdos ouvem, os mortos ressuscitam e os pobres são evangelizados”. Ou seja, Sua presença consistia em dar vida àqueles que tinham a vida massacrada ou diminuída, devolver a dignidade da vida àqueles que eram encurvados pelo peso da opressão e do legalismo religioso.
Jesus, o biófilo (amigo da vida), tocou as “vidas feridas” com delicadeza e ternura e as transformou. Seus gestos terapêuticos foram o prolongamento da ação criativa de Deus; com palavras e ações Ele inaugurou no meio de nós o Reino de Vida do Pai. Não só optou pela vida e se comprometeu com a vida, mas fez de sua Vida uma entrega radical a favor da vida.
Diante da questão apresentada por João Batista “és tu que aquele que há de vir?”, Jesus não responde diretamente. O caminho para reconhecer sua verdadeira identidade é mais vivo e concreto: “ide contar a João o que estais ouvindo e vendo”.
Primeiro, os enviados de João hão de comunicá-lo o que vêem: Jesus vive voltado para os que sofrem, dedicado a libertá-los daquilo que os impede viver de maneira sadia, digna e feliz. Em seguida, hão de dizer o que ouvem: uma mensagem de esperança dirigida precisamente àqueles mais excluídos, vítimas de todo tipo de abusos e injustiças.
Isto significa que a espiritualidade do Advento, apresentada pelo Evangelho de hoje, funde a causa de Jesus com a causa da vida; doía-lhe a fome dos outros; doía-lhe a exclusão e a violência sofrida pelos mais pobres; doía-lhe a vida massacrada daqueles que não tinham direito a viver com liberdade...
Os cristãos encontram a Jesus somente na medida em que defendem, respeitam e dignificam a vida. Só seremos seguidores d’Ele se os sofrimentos dos outros “doerem” em nós. Este é o sentido da compaixão: fazer própria a dor dos outros e comprometer-se com a vida.
A espiritualidade que o Advento apresenta não é um projeto que centra o sujeito em si mesmo, em sua própria perfeição, ou na aquisição de determinadas virtudes, mas um projeto centrado nos outros, orientado aos demais, com a intenção de aliviar o sofrimento alheio. É um projeto centrado na defesa e no respeito à vida, na luta por sua dignidade. Deste modo, aparece claro que na espiritualidade cristã, funde-se e confunde-se a causa de Deus com a causa da vida.
Os cegos, surdos, coxos, leprosos, pobres e muitos outros coletivos no mundo de hoje, continuam sendo símbolos da marginalização mais radical que afeta muitíssimos seres humanos. O texto de hoje quer ressaltar que a chegada do Reino terá consequências para todos, mas sobretudo para os mais excluídos, que tinham perdido toda esperança e o sentido do viver.
Como podemos perceber, entre os sinais da presença do Messias não há um só sinal “religioso”: nem culto, nem rezas, nem sacrifícios... Isto nos deveria fazer pensar. Nós cristãos, com frequência, esquecemos que, para Jesus, primeiramente vem a vida, depois o culto; em primeiro lugar, o compromisso em aliviar a dor humana, depois a religião. Nem João, nem os rabinos, nem os sacerdotes, nem os apóstolos estavam capacitados para entender Jesus. Sua presença e atuação não se ajustavam ao que eles esperavam do Messias. Jesus rompe com todas as concepções e esquemas mentais, desmonta todas as expectativas, frustra uma visão...
A novidade de Jesus é muito maior do que aquilo que podiam esperar; além disso, o que Ele traz vai na direção contrária do que esperavam do Messias. Não vem com poder e força; não vem impor nada, senão propor uma dinâmica de serviço e desatar a vida travada. Jesus “tem um caso de amor com a vida”. Não são só os cegos, surdos, coxos, doentes que fazem presente o Reino, mas também aqueles que se preocupam com eles. Só as ações em benefícios dos outros fazem presente a Deus.
Entrar na dinâmica do Advento, significa estar dispostos a aproveitar qualquer ocasião para fazer presente o Reino, não frustrando aqueles que esperam de nós atitudes comprometidas com a vida.
Uma comunidade de Jesus não é só um lugar de iniciação à fé nem só um espaço de celebração. Deve ser, de muitas maneiras, fonte de vida mais sadia, lugar de acolhida e casa para quem necessita de um lar.
Uma comunidade que segue o “Amigo da Vida” deve-se constituir como “comunidade curadora”: mais próxima daqueles que sofrem, mais atenta aos doentes desassistidos, mais acolhedora daqueles que precisam ser escutados e consolados, mais presente nas situações dolorosas das pessoas. Ou seja, não é uma comunidade que dá as costas aos pobres; pelo contrário, conhece mais de perto seus problemas, atende suas necessidades, defende seus direitos, não os deixa desamparados. São eles os primeiros que devem escutar e sentir a Boa Nova de Deus.
Textos bíblicos: Mt 11,2-11
Na oração: Se alguém nos pergunta se somos seguidores do Messias Jesus: quê obras em favor da vida podemos lhes mostrar? Quê mensagem libertadora podem escutar de nós?
Quais são as marcas características que não podem faltar em uma comunidade de seguidores de Jesus? Nossa comunidade cristã é “curadora” e “cuidadora”?
Pe. Adroaldo Palaoro sj
Coordenador do Centro de Espiritualidade Inaciana - CEI
09.12.2013
“...encontraste graça diante de Deus” (Lc 1,30)
Certamente, cada “concepção” é um “mistério” de vida sagrada. Cada concepção é “in-maculada” e cada princípio de vida é santo, desde o “ventre” da mãe. Hoje a liturgia celebra a festa da Concepção, dia do amor “secreto” de Joaquim e Ana, dia que marca o princípio do que será o caminho aberto na vida de Maria, que começa já no “ventre santo” de sua mãe.
Para além da realidade do puro pensamento, o “dogma da Imaculada” pertence á esfera do sentimento cristão. Nesse contexto, a comunidade cristã quis descobrir um “lugar de graça”, uma experiência, uma vida “sem pecado”, e viu que Maria, a Mãe de Jesus, é também Imaculada.
O “dogma da Imaculada” não é um dogma que se impõe à razão e que é preciso crer à força (isso seria imposição doutrinal), mas é o que ilumina e impulsiona o pensamento e o sentimento dos cristãos. Nesse sentido, um dogma que nos faz “sentir Maria”. Esse dogma expressa o fato misterioso de que ela foi transparente ao desejo de Deus, dialogando com Ele em liberdade, fazendo-se mãe do Filho divino. É um dogma aberto a todos os homens e mulheres que, por sua fé e seu compromisso, querem superar a trava do pecado, abrindo-se à vida pura da terra limpa, do amor imaculado, da justiça universal.
“Sentir Maria” é reencontrar em nós mesmos aquilo que diz sim à vida, quaisquer que sejam as formas que esta vida tomar. “Sentir Maria” é superar toda expressão de desconfiança, de dúvida, de temor diante daquilo que a vida vai nos dar para viver. É assim que se fala de Imaculada Conceição. O Verbo é concebido no que há de mais imaculado no ser humano, no que há de mais completamente silencioso e íntimo. Isto supõe que haja no mais profundo da pessoa um lugar onde não existe limitação, mas a fonte de onde nasce a vida.
Em todos nós, algo de bom, de inocente, de imaculado, continua a dizer “sim” ao incompreensível Amor... O ser humano é “capaz de Deus”. É preciso encontrar, entre nós mesmos, este lugar por onde entra a vida, este lugar por onde entra o amor. É uma experiência de silêncio, uma experiência de intimi-dade, alguma coisa de mais profundo do que aquilo que se chama o pecado original.
Charles Peguy dizia que “Maria é mais jovem que o pecado”. Isto quer dizer que existe em nós alguma coisa de mais jovem e de mais profundo, anterior ao pecado, que é a beatitude original. Falamos demais sobre o pecado original e muito pouco sobre a beatitude original. Existe em nós uma realidade mais profunda que a nossa resistência, um sim mais profundo que todos os nossos “nãos”, uma inocência original que todos os nossos medos e feridas... É preciso encontrar a confiança original.
Maria é o estado de confiança original. Assim, os Antigos Padres viam nela um arquétipo da beatitude original, a mulher da pura confiança, do sim original Àquele que É.
Maria é a nossa verdadeira natureza, é a nossa verdadeira inocência original, aberta à presença do divino.
Mas Maria não é Imaculada só (e sobretudo) em sua Concepção, senão em sua vida inteira; Ela se faz Imaculada, em atitude constante de diálogo com Deus e de abertura (entrega) ao serviço dos outros, por meio de Cristo, seu filho. Não reservou nada para si, tudo colocou nas mãos de Deus, para serviço e libertação da humanidade. Maria não dialoga com Deus para si mesma, senão em nome de todos os homens e mulheres e para o bem do mundo inteiro. Rompe assim a cadeia de mentiras, de egoísmo e de violência que tem suas raízes na origem da humanidade. Este é um dogma da Igreja que se reconhece em Maria e que quer também ser “imaculada”, colocando-se a serviço da obra libertadora de Deus.
Por isso dizemos que Maria é Imaculada com todos, por todos, para todos, para “nosso próprio bem e salvação”. Nesse sentido dizemos que ela é Imaculada como referência única de uma humanidade que também é capaz de escutar Deus e de responder-lhe; ela é Imaculada porque nos “des-vela” que também nós podemos romper as amarras que nos desumanizam; ela é Imaculada porque “re-vela” que o ser humano é “lugar” de abertura a Deus, que é possível viver em liberdade, dialogando com os outros, a serviço da comunhão e da vida.
Maria é o verdadeiro Templo, é espaço de presença do Espírito, lugar sagrado onde habita a divindade para, a partir dela, expandir-se depois a todo o povo. Ela é lugar de plenitude do Espírito, terra da nova criação, templo do mistério. Evidentemente, esta presença é dinâmica: o Espírito de Deus está em Maria para fazê-la mãe, lugar de entrada do Salvador na história. Ela não é um instrumento mudo, não é um meio inerte que Deus se limitou a utilizar para que fosse possível a Encarnação. Maria oferece ao Espírito de Deus sua vida humana para que através dela o mesmo Filho Eterno possa entrar na história.
Toda envolvida pelo amor divino, Maria soube colocar-se, em total disponibilidade, nas mãos de Deus, para cumprir sua santa vontade: “Eis a serva do Senhor, faça-me em mim conforme a tua palavra”. Por isso a “Imaculada Conceição” é um dogma teologal, ou seja, expressa a certeza de que Deus quis comunicar-se de maneira transparente com os homens; buscou e encontrou em Maria uma interlocutora privilegiada, capaz de escutá-lo e responder-lhe, compartilhando seu mesmo desejo de Vida plena. É um dogma sobre Deus, que não quer o “pecado” dos homens e mulheres, mas o amor que cria e dá a vida.
Uma tal comunhão com Deus excluía qualquer traço de egoísmo e de pecado. Só a plenitude da graça (“cheia de graça”) permitiu-lhe ser totalmente despojada de si para cumprir o projeto de Deus. Daqui brota a fé de que Maria, mesmo antes de nascer, foi preservada do pecado.
A festa da Imaculada Conceição leva-nos, portanto, a pensar em Maria como aquela que, movida pela Graça realizou-se como pessoa que acolhe o desejo de Deus e lhe corresponde com seu mais profundo desejo. Ao encarnar-se por meio dela, Deus não se impôs a partir de cima ou de fora, mas deseja e pede sua colaboração; por isso lhe fala e espera sua resposta, como indica o texto de Lucas, uma cena simbólica que pode apresentar-se como diálogo do consentimento: Maria respondeu a Deus em gesto de confiança sem fissuras; confiou n’Ele, lhe deu sua palavra de mulher, pessoa e mãe. Ambos se uniram para compartilhar uma mesma aventura de amor e de graça, a história divino/humana do Filho eterno.
Para isso, a liturgia desta festa nos convida a focar a atenção no momento da Encarnação de Jesus, como fruto de um profundo diálogo entre Maria e o anjo de Deus. É no seu diálogo de amor fecundo com Deus que podemos e devemos afirmar que Maria é Imaculada. Nessa linha, a Igreja pode afirmar que Maria é (e foi se fazendo) Imaculada ao dialogar com Deus em profundidade pessoal.
Deus mesmo quis conduzi-la desde o momento de sua origem humana (concepção), como conduz cada homem e cada mulher que nascem neste mundo. Ali onde um frágil ser humano (uma mulher e não uma deusa), pode escutar Deus em liberdade e dialogar com Ele em transparência, surge o grande milagre: o Filho divino já pode existir em nossa terra.
Texto bíblico: Lc 1,26-30
Na oração: entoar um hino de louvor, reconhecendo as “maravilhas” de Deus em sua vida; dar-se conta das beatitudes originais presentes no seu interior: compaixão, bondade, mansidão, busca da justiça e da paz...
Pe. Adroaldo Palaoro sj
Coordenador do Centro de Espiritualidade Inaciana - CEI
02.12.2013
“Vigiai, porque não sabeis em que dia vem o vosso Senhor” (Mt 24,42)
1º Dom. Advento
Advento de novo? Um Advento a mais ou nova oportunidade? Sim, mais uma vez estamos começando o tempo litúrgico do Advento. O risco é vivê-lo como “mera repetição”, como um “tempo parecido” com o tempo anterior.
Na realidade, cada Advento, por mais parecido que seja ao anterior, é totalmente diferente; ele é original e único, porque as esperanças são novas, os projetos são novos, a vida se renova sempre, o seguimento de Jesus Cristo se aprofunda sempre mais...
Não esqueçamos que o Advento é toda uma possibilidade de vida que temos à frente. Por isso o grande grito deste primeiro domingo é “Vigiai” porque “não sabeis quando virá o vosso Senhor”. Ninguém vigia o passado que já passou e já não existe mais. Vigiamos o que está por vir, o que está vindo. A vigilância olha sempre o futuro. Um futuro que depende de Deus e depende de nós. Porque uma coisa é a ação de Deus em cada um de nós neste tempo do Advento e outra coisa é o que nós fazemos para que algo novo aconteça.
Nós mesmos somos um “advento”, porque nosso futuro humano depende do que esperamos. Haverá aqueles que já não esperam nada. Haverá outros que esperam algo novo, mas duvidam. E haverá aqueles que esperam o novo e dedicam sua vida a criá-lo já agora. Porque em cada momento definimos nossas vidas; em cada momento algo surpreendente pode acontecer em nossa vida; em cada momento nossa vida pode apagar-se ou pode rejuvenescer-se.
No evangelho de hoje, as duas pequenas parábolas insistem na atitude da vigilância. A primeira delas nos adverte com uma intencionalidade clara: o maior inimigo da vigilância é a dispersão, revestida de rotina e apego ao costumeiro (“comer, beber, casar-se”). Viver vigilantes para olhar mais além de nossos pequenos interesses e preocupações. Na segunda, a insistência se situa na importância de “estar vigilante”, porque o que está em jogo é nada menos que a segurança da “casa”, ou seja, a consistência da própria pessoa. Tanto nos sonhos, como nos contos e nas parábolas, a casa é um símbolo arquetípico da pessoa. A partir desta perspectiva, a mensagem de Jesus é um chamado a tomar consciência de quem somos, favorecendo a atitude que nos permite “construir-nos” – a vigilância – e estando atentos àquela outra que nos “rompe” ou arruína – a dispersão.
Podemos compreender melhor o que ambas atitudes indicam quando as relacionamos com a atenção, entendida como a capacidade de viver no momento presente. A dispersão é o estado habitual de quem se encontra identificado com seus pensamentos, sentimentos, emoções ou reações, ignorando sua verdadeira identidade.
A vigilância, pelo contrário, refere-se à capacidade de não perder-se no emaranhado dos pensamentos nem cair na armadilha das solicitações externas. Requer, portanto, a atitude própria do sentinela: situado estrategicamente em lugares altos e de amplos horizontes, ele recebe a delicada missão de observar, discernir e anunciar, para defender a vida do povo. Tal missão implica numa vigilância investigadora do horizonte, onde se fazem perceptíveis os “sinais”, ou até mesmo os indícios de que algo importante para a vida do povo está prestes a acontecer. Por isso, o sentinela está treinado para “olhar” a grandes distâncias, para “olhar” com precisão. Seu “olhar” investigador, aguçado pelo amor ao povo e a fidelidade à missão, está em alerta permanente.
Graças a essa distância e observação, vamos descobrindo em nós e em nossa realidade sinais de uma Presença que vem, que está vindo... em nossa direção. De fato, onde colocamos nossa atenção, aí estará nossa vida (ou nossa falta de vida). A maneira como focamos nossa atenção é fonte de equilíbrio ou de desequilíbrio, de harmonia ou de desarmonia...
Viver em vigilância contínua é estar em atitude de exploração e rastreamento, é nos deixarmos ser surpreendidos, conduzidos, desafiados e, em última instância, transformados pelo Espírito de Deus.
Precisamente a vigilância é rastrear, descobrir os “espíritos-sopros-inspirações” do Espírito no ritmo da vida cotidiana e em meio á realidade que nos cerca.
Rastrear-descobrir-deixar-se conduzir: este é o movimento do tempo do Advento.
Vivemos num contexto marcado pela “dispersão”, seduzidos por estímulos ambientais, envolvidos por apelos vindos de fora, cativado pela mídia, pelas inovações rápidas, magnetizado por ofertas alucinantes...
E então, nós nos esvaziamos, nos diluimos, perdemos a interioridade e... nos desumanizamos.
A pessoa “dispersa”, por não ter um horizonte de sentido que a atraia, fixa-se no cenário externo, agarra-se ao mundo circundante, apega-se às coisas, na ilusão de alcançar uma segurança almejada. Ela foge de si mesma, tem medo de encontrar-se. Por isso, acompanha o ritmo dos outros, repete a linguagem dos outros, adota os critérios dos outros, e acaba sendo influenciada e dominada por pressões e hábitos externos.
A “dispersão” corrói a interioridade da pessoa e dissolve aquilo que é mais nobre em seu interior. Longe de uma humanidade dinâmica, operante, ousada... o que a pessoa deixa transparecer é uma humanidade neutra, apática, estagnada; é humanidade lenta, afogada na “normose”, estacionada na repetição dos gestos e dos passos. Ela gira em torno de si mesma e não consegue fazer um salto libertador. Isso tudo leva a pessoa a debilitar-se, provocando a redução da vitalidade humana em vez de favorecer o crescimento pessoal.
“Dispersão” quer dizer estar espalhado, estar ocupado em muitas coisas e em diversas direções ao mesmo tempo, estar ausente, esquecido, dividido, distante, apenas por cima das coisas.
Pessoa “dispersa” é massa anônima empurrada pela multidão, vive na superfície de si mesma, desconectada da fonte interior, desarticulada e ocupada com o que não é essencial.
Advento é tempo propício – “kairós” - para ajudar a superar nossa “dispersão” e poder recuperar a densidade humana interna. Para isso, precisamos entrar em “estado de vigilância”, repensar a interioridade perdida, reconquistar a autodeterminação.
E “vigiar” não é repetir-se, mas re-descobrir-se, re-inventar-se, re-encontrar-se, buscar-se de novo.
“Vigiar” é re-ajuntar as energias humanas que haviam sido dispersas e canalizá-las para reabrir horizontes fechados e gerar diferenças originais fecundas.
“Vigiar” é acordar a autonomia adormecida e emancipar-se, ser pólo de afirmação pessoal e social. É indispensável colocar “ordem” por dentro e descobrir que a pessoa pode inventar-se a cada dia, a cada passo, conduzindo conscientemente a vida em direção à plenitude e não arrastá-la pelo chão.
Quem está em “estado de vigilância” tem a coragem de redefinir-se, de eleger, de assumir-se; é alguém preparado para dar um salto arrojado e criativo.
É nessa direção que o “tempo do Advento”, centrado n’Aquele que vem, mobiliza e re-ordena todas as dimensões da vida e propõe um caminho de humanização. Ele desafia cada um a assumir o potencial humano criativo que estava latente em seu interior.
Estar atentos e vigilantes é uma condição humana e cristã para viver intensamente; viver distraídos e dispersos é perder as oportunidades de muitos encontros, é deixar que o outro passe ao nosso lado sem nos darmos conta, é deixar que Deus passe sem que o percebamos, é deixar passar o momento em que Ele nos chama e perdemos a oportunidade de dar uma resposta vivificadora.
Viver é estar atentos à vida, a nós mesmos, aos demais. Viver é estar atentos às ocasiões únicas, às oportunidades que não voltam; viver é estar com os olhos abertos para contemplar, é estar com os ouvidos atentos para escutar.
Texto bíblico: Mt 24,37-44
Na oração:
-Em quê dimensões da vida você sente a força desagregadora da “dispersão”?
-“Vida atenta” é vida com largos horizontes: neste Advento, o que você está “lendo” no seu horizonte pessoal, social, profissional, familiar, religioso...?
Pe. Adroaldo Palaoro sj
Coordenador do Centro de Espiritualidade Inaciana – CEI
25.11.2013
“Acima dele havia um letreiro: ‘Este é o rei dos judeus’” (Lc 23,38)
Rei, não há outra palavra menos apropriada para Jesus.
Jesus, rei atípico. Os reis deste mundo vivem às custas de seus súditos.
Jesus reina perdoando, amando e comunicando vida a partir de uma situação de humilhação e impotência extremas.. Um rei crucificado é uma contradição e um escândalo. Lucas nos diz onde e como Jesus ganha este título de rei: na entrega de sua vida até à morte. Seu senhorio é de amor incondicional, de compromisso com os pobres, de liberdade e justiça, de solidariedade e de misericórdia.
O título de Cristo Rei corre o risco de ser utilizado de uma forma pagã, como uma pura imitação dos reis deste mundo. O triunfalismo religioso e político tem utilizado este título para defender ideias dominadoras, triunfalistas e conservadoras.
Esse é o maior paradoxo da história humana: o Crucificado é esperança dos pobres, dos pecadores e de todos os sofredores. Jesus é Rei desta forma e não da forma triunfalista como querem os cristãos “gloriosos”. Um rei que toca leprosos, que prefere a companhia dos excluídos e não dos poderosos deste mundo. Um rei que lava os pés dos seus, um rei que não tem dinheiro e que não pode defender-se, que não tem exército... Um rei sem trono, sem palácio, sem exército, sem poder.
Jesus crucificado é um estranho rei: seu trono é a Cruz, sua coroa é de espinhos. Não tem manto, está desnudo. Até os seus o abandonaram. Pobre rei!
Por isso, para poder aplicar a Jesus o título de “rei”, devemos despojá-lo de toda conotação de poder, força ou dominação. Jesus sempre se manifestou contrário a todo tipo de poder. E não só condenou aquele que submete como também condenou, com a mesma veemência, aquele que se deixa submeter.
Jesus quer seres humanos completos, isto é, livres. Ele quer seres humanos ungidos pelo Espírito de Deus, que sejam capazes de manifestar o divino através de sua humanidade. Tanto o que escraviza como o que se deixa escravizar, deixa de ser humano e se afasta do divino.
Jesus quer que todos sejamos reis, ou seja, que não nos deixemos escravizar por nada nem por ninguém. Quando responde a Pilatos, não diz “sou o rei”, mas “sou rei”; com isso, está demonstrando que não é o único, que qualquer um pode descobrir seu verdadeiro ser e agir segundo esta exigência. Há uma nobreza presente em nosso interior e que é ativada no encontro com o outro, através da compaixão, do serviço, do amor solidário...
Devemos estar conscientes de que o sentido que queremos dar a esta festa não é aquele dado pelo papa Pio XI, há mais de 80 anos e nem mesmo aquele sentido que é dado pela maioria dos cristãos. Devemos conservar o título, mas mudar a maneira de entendê-lo, ou seja, com o Evangelho na mão podemos continuar falando de “Jesus rei do universo”.
Jesus será “Reino do Universo” quando a paz, o amor e a justiça reinarem em todos os rincões da terra, quando todos sejamos testemunhos da verdade, quando em todos os ambientes a mesa do Reino se tornar mesa de inclusão e de acolhida... Jesus será Rei quando estivermos dispostos a fazer descer da Cruz aqueles que estão pendurados nela.
O Evangelho da festa de hoje faz parte da narração da Paixão de Jesus. Fixemos nosso olhar nos personagens que assistem ao tremendo espetáculo da crucifixão. O povo estava ali olhando. Não é a multidão que habitualmente O segue, mas pessoas que assistem com curiosidade zombadora. Os chefes, as autoridades religiosas escarneciam de Jesus. Eles conservavam a ideia de um Messias triunfal. Tem um Deus feito à medida de seus interesses. A mensagem de Jesus não os afetou. Julgam-se em posse da verdade.
Os soldados também lhe zombavam. Aproximavam-se dele para dar-lhe vinagre. Os executores da violência do poder romano não podiam entender um rei que não fazia nada para defender-se. O letreiro também indicava ironia: “Este é o rei dos judeus”.
Um dos ladrões o insultava: “Não és tu o Messias? Pois salva-te a ti mesmo e a nós”.
Ninguém parece ter entendido Sua vida e Sua mensagem. Ninguém compreendeu seu perdão aos algozes. Ninguém viu em seu rosto o olhar compassivo do pai. Ninguém percebeu que, pendente da Cruz, Jesus se unia para sempre a todos os crucificados e sofredores da história.
Mas, em meio aos escárnios e zombarias, brota do coração de um dos condenados uma surpreendente invocação: “Jesus, lembra-te de mim quando entrares no teu reinado”. Não se trata de um discípulo ou seguidor de Jesus. Lucas nos apresenta um ladrão como admirável exemplo de fé no Crucificado, que no último instante de sua vida “roubou” a promessa de Vida que acontece no “hoje”. “Hoje estarás comigo no paraíso”. A narrativa lucana é muito provocativa: o único que o reconhece Jesus como rei é um condenado à morte, um maldito, um marginalizado da lei. Este está mais perto do reinado de Deus que as autoridades religiosas e as demais pessoas. Por isso Jesus o acolhe como companheiro inseparável. Juntos morrerão crucificados e juntos entrarão no Reino de Vida.
À primeira vista parece um paradoxo que dos lábios de um homem aparentemente derrotado e praticamente moribundo, brote uma palavra de vida, acompanhada de uma certeza que a faz eterna, ou seja, válida para todo momento, em um presente sempre atual: o “hoje” de Lucas significa “todo momento”, qualquer instante em que ouvintes ou leitores se abrem à Palavra.
A resposta de Jesus diante dos insultos é o silêncio carregado de mistério. Silêncio que poderia ser interpretado como impotência resignada ou reconhecimento do fracasso. No entanto, Ele transforma a onda de insultos em manifestação de misericórdia e salvação. Desse modo, o evangelista parece estar nos dizendo: “Essa Palavra é válida também para ti, hoje, desde que sejas capaz de abrir-te a ela e acolhê-la. Também para ti há uma promessa de vida, que não se acaba na fronteira da morte. Tu também ‘hoje estarás comigo no paraíso’”
Assim compreendida, a narração nos apresenta uma dupla questão: por um lado, como pôde Jesus pronunciar essa Palavra de Vida nessas circunstâncias de morte?; por outro, como podemos acolhê-la, de modo que sejamos alcançados e vitalizados por ela?
A festa de “Cristo Rei” nos convida também a tomar a Cruz e “descer” com Jesus até à cruz da humanidade.
A solidariedade com os pobres, a fidelidade à vida evangélica, nos fazem descer aos porões das contradições sociais e políticas, às realidades inóspitas, aos terrenos contaminados e difíceis, às periferias insalubres das quais todos fogem e onde os excluídos deste mundo lutam por sobreviver. Ali nos encontramos com o Crucificado, identificado com os crucificados da história.
Entende-se, assim, o grande “grito” que brotou das profundezas da dor de Jesus na Cruz e que continua ecoando como clamor angustiado. Nele se condensam todos os gritos da humanidade sofredora. Ao ecoar seu grito junto aos crucificados, provocará grandes novidades. Um grito que não fica no vazio, mas aponta para a vida.
Texto bíblico: Lc 23,35-43
Na oração: o Crucificado desmascara nossas mentiras e covardias; pendente na Cruz Seu grito denuncia o aburguesamento de nossa fé, a nossa acomodação ao bem-estar e nossa indiferença diante daqueles que sofrem. Celebrar a festa do “Cristo Rei” é aproximar-nos mais dos crucificados da nossa história e comprometer-nos a tirá-los da Cruz.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
Coordenador do Centro de Espiritualidade Inaciana - CEI
19.11.2013
“Dias virão em que não ficará pedra sobre pedra que não seja demolida!” (Lc 21,6)
33º Dom.Tempo Comum
“Um peregrino percorria seu caminho quando certo dia passou diante de um homem que parecia ser um monge e que estava sentado no campo.
Perto dali, outros homens trabalhavam em um edifício de pedra.
- “O senhor parece um monge”- disse o peregrino.
- “Sim, sou um monge”- respondeu o monge.
- “Quem são aqueles que estão trabalhando no edifício?”
- “Meus monges”- respondeu – “Eu sou o abade”.
- “É magnífico”- comentou o peregrino – “É estupendo ver levantar um mosteiro”.
- “Nós o estamos derrubando”- disse o abade.
- “Derrubando-o?”- exclamou o peregrino – “Por que?”
- “Para poder ver o sol nascer todas as manhãs” - respondeu o abade”.
Estamos chegando ao final de mais um tempo litúrgico (Tempo Comum); fizemos uma longa “caminhada contemplativa”, tendo os olhos fixos em Jesus e deixando-nos ensinar por Ele. Hoje, mais uma vez, ressoa forte em cada um de nós, o apelo de Jesus: é preciso “sair dos próprios muros”, remover as pedras que foram soterrando a vida dentro de nós, derrubar as muralhas que cercam nosso coração.
O contexto é a presença de Jesus no Templo de Jerusalém e a admiração dos discípulos diante da grandeza e da beleza do edifício. No entanto, Jerusalém e o Templo traíram sua missão e serão destruídos pois se fecharam em suas fronteiras, em suas seguranças e não acolhem a transformação interior que Jesus trouxera. Com toda a sua beleza e grandiosidade o Templo carrega sinais de morte dentro de si. A destruição do santuário é para Jesus a consequência do fechamento interior e recusa a acolher a novidade do Reino. Não só o Templo, mas as realidades que parecem intocáveis e eternas devem cair para que seja possível a Nova Jerusalém, humana e humanizadora.
Jesus, ao falar da destruição do Templo de Jerusalém não estava interessado na destruição dos edifícios, e sim, na destruição da vaidade e do orgulho humano; não vislumbrou a ruina dos muros e das pedras, e sim a ruína da vanglória. Sua presença rompe muralhas, afasta as pedras que impediam a manifestação da Vida.
Dizer: “não ficará pedra sobre pedra” é o mesmo que dizer: “não ficará orgulho sobre orgulho, opressão sobre opressão, injustiça sobre injustiça…” Há muitas pessoas encerradas em seus próprios muros... pessoas fechadas em si mesmas, em seus interesses, vivendo um universo de egoísmo e exclusão. Vivem separadas dos outros, e quando encontram pessoas semelhantes criam verdadeiros cemitérios ao seu redor.
Cobrimo-nos de pedras, rodeamos nosso coração de muros, construímos muralhas que nos afastam dos outros e de Deus. É o que somos convidados a fazer: destruir o templo de Jerusalém da solidão, fechamento, angústia, alienação, indiferença, rancor, medo e insegurança… Precisam desparecer os templos abusivos onde adoramos o nosso “eu” e idolatramos a riqueza, o poder, o prestígio…
É sobre as cinzas de nossas míseras ambições que o Reino de Deus plantará suas raízes. É preciso romper com as muralhas para que a Vida brote. A Vida que habita em cada um de nós. Todo ser humano é dotado de riquezas especiais e únicas, dons pessoais e insubstituíveis, um jeito de ser irrepetível... Há uma força interior que quer romper a casca e transbordar numa explosão vital multiplicadora. Mas, muitas vezes há pedras (grandes e pequenas) que impedem esta manifestação da Vida plena.
A mudança de mente, de coração, de esperança, de paradigmas... exige de nós que, de tempos em tempos, revisemos nossas vidas, conservando umas coisas, alterando outras, derrubando ideias fixas, convicções absolutas, modos fechados de viver... que impedem a entrada do sol e da brisa da manhã.
Há em todo ser humano uma tendência a cercar-se de muros, a encastelar-se, a criar uma rede de proteção. Nada mais contrário ao Seguimento de Jesus que a vida instalada e uma existência estabilizada de uma vez para sempre, tendo pontos de referência fixos, definitivos, tranquilizadores...
Numa vida assim faltaria por completo o princípio da criatividade, a capacidade de questionar-se, a audácia de arriscar, a coragem de fazer caminho aberto à aventura.
Se quisermos que a nossa vida cristã tenha a marca da adesão a Jesus, é necessário compreender que somos chamados a um compromisso diferente e mais profundo: sair da reclusão de nosso mundo para entrar na grande “casa” de Deus; romper com o tradicional para acolher a surpresa; deixar a “margem conhecida” para vislumbrar o “outro lado”; desnudar-nos de ilusões egocêntricas; afastar a “pedra” da entrada do coração para poder viver com mais criatividade...
As respostas do passado às questões atuais já não satisfazem; as velhas razões para fazer coisas novas, simplesmente já não movem os corações num mundo repleto de novos desafios. Não há razão para permanecer nos castelos e mosteiros quando todas as circunstâncias mudaram. É muito tarde para reconstruir nossas vidas utilizando moldes antigos.
Estamos vivendo um tempo de mudança, mas também tempo emocionante e santo. Há um poderoso fogo sob as cinzas. Precisamos avivar a chama, acolhendo o momento presente e vivê-lo até suas últimas consequências. “Este é o tempo de graça, o tempo de salvação”.
Vivemos um momento de densidade única; participamos de uma sociedade rica pela diversidade e pelo pluralismo. No entanto, não teremos nada que oferecer a ela se não nos deixarmos “empapar” pela experiência do discipulado. Com a vida cristificada somos impulsionados a inventar constantemente, a ousar sem medo, a “deslocar-nos” sem cessar, na busca de um “novo começo”...
A possibilidade de rompermos com um hábito ou com um padrão em nossas vidas é a marca do Evangelho deste domingo. A primeira atitude é reconhecer que nossa vida está “estreita” e que precisamos nos colocar num horizonte diferente. A lucidez do seguimento nos revela que a utopia de Jesus é possível. Em Jesus acontece algo totalmente novo. Ele traz uma nova maneira de viver que não cabe nos nossos esquemas; o Seguimento é uma novidade que rompe velhos barris. “Vinho novo em odres novos”. Sentimentos novos em um coração ardente; visão nova em olhos ousados...
Para encontrar Jesus Cristo é preciso “sair”; é inútil permanecer nos templos. É preciso caminhar em direção às “periferias existenciais”, o Grande Templo onde o Vivente se deixa encontra. Afinal, vivemos mergulhados na magia do Discipulado; esta é a paixão que não nos dá repouso.
Texto bíblico: Lc 21,5-19
Na oração: Viver o Seguimento de Jesus hoje é deixar expandir tudo o que é vida dentro de nós. É contaminar de Luz as trevas que criamos e que sufocam a alegria plantada em nós desde sempre.
Deixemo-nos iluminar, levemos a Luz nas nossas pobres e frágeis mãos, iluminando os recantos de nosso cotidiano. Destruídos os muros e afastadas as pedras… resta caminhar..
Pe. Adroaldo Palaoro sj
Coordenador do Centro de Espiritualidade Inaciana – CEI
11.11.2013
“Deus não é Deus dos mortos, mas dos vivos, pois todos vivem para Ele” (Lc 20,38)
Vida! Qual vida! Toda a vida... é sempre um dom!
Balbuciando o mistério do “Deus Vivo”, o cristão torna-se capaz de tocar em profundidade o mistério da Vida do Criador presente em cada expressão de vida entre nós. A vida é uma dádiva que supera todas as promessas; frágil na sua moldura, efêmera na sua manifestação... mas esta é a nossa certeza maior: navegar nas ondas inquietas da vida nos capacita para sentir o Invisível que nos circunda.
Nessa vida profunda e compartilhada, na ferida e no abraço, no ruído e no sussurro, no fracasso e na vitória, na ausência e no encontro... Deus nos saúda, nos acolhe, nos chama e nos diz: “escolhe a vida!”
Deus mesmo, autor e fonte da Vida, está no âmago da vida, faz dela seu “templo”, ajuda-a, suscita-a, dá-lhe o impulso que a faz avançar, o apetite que a atrai, o crescimento que a transforma...
“Eu O sinto, eu O apalpo, eu O ‘vivo’, na corrente biológica profunda que circula em minha alma e a arrasta consigo. Quanto mais mergulho em mim, mais encontro Deus no âmago do meu ser; quanto mais multiplico as conexões que me ligam às Coisas, mais estreitamente Deus me circun-da. Ele que prossegue em mim a obra da Encarnação de seu Filho, tão longa quanto a totalidade dos séculos”. (Teilhard de Chardin)
Viver é uma arte. A “reverência pela vida” é o supremo princípio ético do amor; por isso, o maior sacramento é ser gente, assumir a vida, viver com paixão e poder dizer a cada momento: “estou no horário nobre da vida”. São justamente os sábios e os místicos que nos ensinam melhor a celebrar o instante, a descobrir o sentido da vida através da experiência do cotidiano.
“Em vez de buscar o sentido da vida, ensaie viver intensamente e vivendo intensamente você descobrirá o sentido da vida” (Dostoievski).
A surpresa e a riqueza de cada momento faz de cada instante da vida a antecipação do que será a vida plena. Viver a vida neste mundo, em comunhão com todas as expressões de vida, é conhecer a alegria de apostar como se fôssemos eternos. Podemos “viver de modo eterno” vivendo as experiências que são eternas: amar, perdoar, ajudar, compreender, aceitar, consolar...
A fé nos revela que fomos feitos por mãos celestiais, chamados à vida, para a liberdade, para a bondade, para a amplidão dos céus. Confessamos que a vida é de Deus e, como Ele, é eterna.
A “reverência pela vida” exige que sejamos sábios o bastante para permitir que a morte chegue quando a vida deseja ir. Por isso não devemos nos preocupar com a morte, mas com a vida. A verdadeira pergunta não é: “existe vida após a morte?” ou “ na ressurreição, ela será esposa de quem?”
O místico e o sábio se perguntam: “existe vida antes da morte?”
Perguntar-nos sobre o que o pós-morte tem a nos oferecer é uma desfeita à vida.
A vida é tanta surpresa, tanta novidade e riqueza que querer especular sobre o que acontece depois dela é grosseria. O “depois da vida” é um grande encontro onde seremos perguntados: “o quanto você viveu sua vida?”
Alguém já teve a ousadia de afirmar que a morte é mais universal que a vida; todos morrem, mas nem todos “vivem”, porque incapazes de re-inventar a vida no seu dia-a-dia. Uma vida pensada sem morte perde-se, no final, na total irresponsabilidade.
Através do “viver para sempre” nos permitimos o prazer, a alegria, o desafio, a criatividade, a festa...
Através do “morrer amanhã” criamos em nós a responsabilidade para com o hoje, sobre aquilo que estamos fazendo com a própria vida, os sonhos não realizados, os riscos que não tomamos por medo...
No evangelho de hoje, os saduceus (setor aristocrático e conservador do judaísmo) apresentam a Jesus uma grosseria teológica: confundem a ressureição com um casuísmo sem fundamento. Eles supõem que Deus seja tão sem criatividade a ponto de repetir, na ressurreição, o mesmo esquema de nossas experiências atuais. Jesus rejeita a infantil ideia de que a vida dos ressuscitados é um prolongamento desta vida que conhecemos. A condição das pessoas depois da morte será totalmente diferente da condição atual.
Aqui não se trata de satisfazer uma curiosidade, mas alimentar o desejo, a expectativa e a esperança confiada em Deus. Por ser “Deus dos vivos”, a experiência da ressurreição consiste numa Nova Criação. Deus é fonte inesgotável de Vida e acolhe a todos em seu amor de Pai-Mãe. Nesse sentido, há uma diferença radical entre nossa vida terrestre e essa vida plena, sustentada pelo Amor criativo de Deus depois da morte. É Vida absolutamente “nova”, que deve ser esperada, mas nunca descrita ou explicada. As relações interpessoais não serão uma cópia do modo de ser desta vida. A Ressurreição é uma “novidade” que está além de toda e qualquer experiência terrestre e que é antecipada e preparada na maneira de “viver intensamente” esta vida.
E afirmar a ressurreição não é consolo ilusório, nem evasão do compromisso com a história e com a vida. É decisão firme de continuar o projeto de Jesus, de defender a vida onde quer que esteja ameaçada, de arriscar-se pelos mais fracos e excluídos para que tenham vida, de “viver dando morte à morte”, curando feridas, levantando corações, semeando esperanças, despregando crucificados.
A ressurreição nos faz compreender que esta vida terrestre não consiste em outra coisa senão no tempo da gestação concedido a cada um de nós para que, dentro desse imenso ventre cósmico, possamos aprender a viver de amor e contemplar a obra do Artista.
Texto bíblico: Lc 20,27-38
Na oração: “Senhor, saiba eu caminhar sob o impulso da Vida, aceitando crescer graças ao diferente.
As cordas da minha vida sejam dedilhadas pelo delicado sopro de vosso Espírito”.
Caminhada Contemplativa: Contemplar a vida no seu mundo cotidiano. Em sua cidade, perceber a vida: talvez uma árvore em sua rua, uma flor na janela, animais e pássaros anônimos em meio à selva de pedra... E, sem dúvida, gente, muita gente, com preocupações, com dúvidas, com medos, com sonhos, com histórias anônimas que nunca vêm à luz.
Quando caminhar pelas ruas, preste atenção aos rostos. Imagine os relatos que escondem. Procure entender que há uma força vital que nos une a todos. E então dê graças a Deus por tantas vidas, por fazer parte de um mar de vida, que às vezes é tormentoso e outras, pacífico, mas sempre incrivelmente belo.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
Coordenador do Centro de Espiritualidade Inaciana
04.11.2013
“Alegrai-vos e exultai, porque será grande a vossa recompensa nos céus” (Mt 5,12)
No dia em que a Igreja faz memória de todos os Santos e Santas, a liturgia escolhe sabiamente o evangelho das Bem-aventuranças. A sabedoria deste texto, surpreendente e genial, está no fato de apresentar um projeto de realização total, de felicidade sem limites. O Evangelho que nos foi confiado é um programa para alcançar a felicidade, a vida ditosa, prazerosa, bem-aventurada.
Na boca de Jesus brilha sempre a palavra chave: “Felizes”.
As nove bem-aventuranças apresentam nove promessas de felicidade plena, nove situações que conduzem a essa felicidade, já a partir desta vida. São nove promessas de esperança. O que está em nossas mãos são as situações de fato, as nove condições para viver o Reino de Deus. Trata-se, com efeito, de uma felicidade que transcende este mundo. E que, por isso, é para sempre e sem limitação alguma. É essa a condição daqueles que a Igreja considera e venera como santos(as).
Também é preciso levar em conta que as bem-aventuranças falam da felicidade, não no singular, mas no plural. Ou seja, Jesus não fala da felicidade do indivíduo, mas da felicidade relativa à comunidade. A felicidade não é uma questão meramente individual, mas essencialmente social; a felicidade não se consegue isoladamente, mas comunitariamente. Em outras palavras, o que Jesus afirma é que a felicidade de cada um está em intima relação com a felicidade dos outros, com quem cada um convive.
Mas, o que mais nos surpreende é que, relendo e saboreando as nove bem-aventuranças, nos encontramos com o inesperado: nenhuma delas indica práticas relacionadas com a religião. Elas indicam condutas relacionadas com a vida, com esta vida, com as condições e atitudes a partir das quais se pode fazer algo eficaz para que esta vida seja mais humana, mais leve, mais feliz.
Aqui está a surpreendente novidade do projeto oferecido por Jesus. Ele não promulgou mandamentos, nem um código de moral, muito menos uma lista de proibições; simplesmente anunciou bem-aventuranças. Ou seja, passamos de uma ética de “deveres e obrigações” para uma ética de “felicidade e ventura”.
Joaquim Jeremias disse que o Sermão da Montanha não é Lei, mas Evangelho, de tal forma que a diferença entre um e outro é esta: “A Lei põe o ser humano diante de suas próprias forças e pede-lhe que as use até o máximo; o Evangelho situa o ser humano diante do dom de Deus e pede-lhe que converta verdadeiramente esse dom inefável em fundamento de sua vida.
Jesus compreendeu que o meio mais eficaz e mais direto para nos aproximar de Deus, e para que cada um se realize como ser humano que é, não é estabelecer proibições, mas fazer propostas que mais e melhor se harmonizem com nossa condição humana, com aquilo que mais desejamos. A experiência histórica nos ensina que os mandatos e as proibições tem cada vez menos força para modificar a vida das pessoas. Todo mandamento e toda proibição tem certos limites, aos quais alguém se ajusta e assunto encerrado. Enquanto que a proposta da felicidade contém em si uma busca sem limites. E é aí que se constata até onde chega a generosidade de uma pessoa, a fé e a entrega de alguém a uma causa que se leva a sério.
As bem-aventuranças vão muito mais além de tudo o que os mandamentos significam; elas não se fixam em alguns limites que não podem ser transgredidos, mas marcam algumas metas que nunca chegaremos a alcançar em plenitude. Não são a negação que estabelece o que não se pode fazer, mas a afirmação que nos dá vida e nos deixa profundamente felizes. Por não serem leis, nem mandamentos, as bem-aventuranças não despertam sentimentos de culpa.
Aqueles que se deixam conduzir pela dinâmica das bem-aventuranças nesta vida, tem garantida a promessa de felicidade sem fim, à qual denominamos vida eterna. É, em definitiva, a Vida de todos os santos(as). Ser santo(a) é fazer das Bem-aventuranças a pauta de seu viver.
Por isso, ser santo(a) é ser humano por excelência, é ter a audácia de reinventar o humano; é resgatar a paixão por um ideal de vida e por um sonho; paixão pela vitória da esperança; paixão pela humanidade, paixão pelo mundo, paixão pelo Reino...enfim, paixão por Deus.
A festa de hoje realça uma forma de santidade, muitas vezes esquecida: a santidade da vida comum, da resposta à Providência divina em meio às rotinas do tempo, uma caridade tecida nos pequenos gestos... Diante de uma realidade que ameaça o ser humano pelo anonimato, pelo artificialismo, pela massificação, o(a) santo(a) injeta no interior das “veias” deste mundo a Graça transfiguradora do Amor.
O chamado universal à santidade nos faz confiar profundamente na vida cotidiana, ou seja, no dia-a-dia da vida familiar, no exercício da profissão, nas relações da vida social, nas decisões éticas, na ação cidadã, no campo dos direitos humanos, no campo da economia, na presença ativa da política, no mundo da cultura, no diálogo com os meios de comunicação, na navegação pela internet... como “lugares agraciados” de encontro com Deus e manifestações explícitas de compromisso cristão.
Não tem porque a santidade ser aquela que está acompanhada de virtudes heroicas, mas aquela que se expressa numa vida cotidianamente heroica; os santos vivem intensamente e colocam em prática o chamado de Deus para viver e dar vida a outros. Quer-se dizer, com isso, que santa é a vida e santo é defendê-la; fascinante é ver enormes esforços para propiciá-la.
O santo(a) sente-se cativado, envolvido, amado, entusiasmado, sintonizado, habitado por Deus de tal maneira que seus olhos, gestos, suas atitudes, palavras, seu coração, sua existência transbordam Deus. Para humanizar nosso tempo, os(as) santos(as) revelam atitudes e critérios que nos fazem mergulhar de cheio nos desafios e problemas que afligem grande parte da humanidade. Os santos, de hoje e de sempre, não são encontrados nos pacíficos ambientes dos templos ou dentro dos limites da instituição eclesial, mas nas encruzilhadas da pobreza e da injustiça, nas “periferias existenciais”, em perigosa proximidade com o mundo da violência e da marginalidade, em situações de risco, onde a luz do amor brilhará mais do que nunca.
Num mundo em que nem todos são capazes de grandes façanhas ou de alcançar sucessos, Deus nos deu a aptidão de encontrar a grandeza no dia-a-dia. Temos apenas que ser santos o bastante para que possamos reconhecer o milagre no ritmo da vida.
“Os santos são muito corriqueiros, eles são absolutamente encardidos nas suas vidas.
O que às vezes chama a atenção são dons especiais, de milagres, de levitação,
mas fora disso a santidade é um passeio no cotidiano” (Adélia Prado).
A santidade, portanto, como paixão expansiva, implica uma pitada de santa loucura capaz de romper com o que é considerado “normal” ou aceito pela sociedade excludente e desumanizadora na qual vivemos. O santo(a) é, na essência, uma presença transgressora, subversiva e inesperada... que denuncia e interpela as barreiras e fronteiras impostas pela sociedade.
Somos santos(as). Não somos santos porque sejamos irrepreensíveis, senão simplesmente porque somos, e vivemos, nos movemos e somos sempre em Deus e Deus em nós, também quando nos sentimos medíocres e inclusive fracassados.
Esta é a vocação fundamental à qual somos todos chamados, enquanto seguidores de Jesus Cristo. Ser santo(a) é ser dócil para “deixar-nos conduzir” pelos impulsos de Deus, por onde muitas vezes não sabemos e não entendemos. Seus caminhos não são os nossos caminhos.
Texto bíblico: Mt 5,1-12
Na oração:
Rezar as dimensões da vida que estão paralisadas, impedindo-lhe viver a dinâmica das bem-aventuranças. Viver a santidade no cotidiano é “arriscar-se” em Deus; é navegar no oceano da gratuidade, da compaixão, da solidariedade, da justiça...
Pe. Adroaldo Palaoro sj
Coordenador do Centro de Espiritualidade Inaciana –CEI
29.10.2013
“O fariseu, de pé, rezava assim em seu íntimo” (Lc 18,11)
30º Dom. Tempo comum
Nesta parábola, mais uma vez Jesus contrapõe os dois extremos da sociedade judaica daquele tempo: o fariseu, expressão máxima da piedade e da moralidade, e o publicano, que por sua profissão, era a expressão máxima do pecador, distante dos ideais religiosos.
Ambos vão ao templo para orar, e, na oração, cada um deles revela sua vida e seus sentimentos. De fato, é na oração que o ser humano exprime aquilo que é mais íntimo e mostra como ele se relaciona com os outros e com Deus.
Jesus nos apresenta o fariseu como protótipo da pessoa que se sente segura de si mesma, e que tem essa segurança porque cumpre minuciosamente com as observâncias religiosas. Em sua oração, ele não pede nada, mas informa a Deus sobre seu legalismo: na realidade não é Deus o centro da sua existência, mas seu eu. Ele dá graças por sua conduta perfeita e exemplar. Por considerar-se “justo”, apresenta a Deus uma lista de pessoas indesejáveis, censurando e condenando a todo mundo.
O risco do “farisaísmo” é subir o pedestal da “perfeição” e do “legalismo”, distanciando-se do amor e da misericórdia de Deus; com isso, cai no orgulho religioso e é incapaz de converter-se a Deus no seu íntimo.
Na sua oração, o fariseu se considera “justo” e pensa agradar a Deus com suas observâncias e práticas legais. Ocorre que não é nada elegante alguém se apresentar a Deus com as credenciais de “justo”, pois o fariseu se esquece que só Deus pode justificar o ser humano. A autoglorificação impede sua humanização. Penetra no lugar sagrado sem que o sagrado penetre nele. Petrificou-se em seu legalismo.
Ele está cego e não vê que também é pecador, dependente da misericórdia de Deus. Não reconhece sua realidade pobre e limitada e, em sua oração, está ausente o pedido de perdão. Incapaz de olhar intimamente para si, cobre com um véu os próprios pecados, fazendo de conta que eles não existem. Incensurável, respeitador e cumpridor de todas as leis – porém cheio de si -, o fariseu voltou para casa com um pecado a mais. A consequência é vida dupla: a fachada externa perfeita que esconde um interior frio e insensível, resistente a perceber a própria fragilidade.
Na sua autosuficiência e com sua oração um tanto blasfema, o fariseu está aí, de pé, para dar espetáculo, aguardando o aplauso da plateia. Ele pensa que pode “ficar de pé” diante de Deus, que pode estabelecer o confronto sem problemas, como de igual para igual. O fariseu não suplica a Deus e nem tem necessidade de ouví-Lo; já eliminou as distâncias com as suas palavras e se ilude de ter uma linha direta com o Altíssimo.
Na prática, a oração do fariseu significa submeter Deus a si mesmo, cobrando o prêmio pelas boas ações. Agradece porque é sem vícios, não porque se sinta amado por Deus. Seu louvor e agradecimento é apenas um pretexto para louvar a si próprio, inflar o próprio ego; na sua oração Deus não tem o lugar que lhe é devido; a oração passa a ser um monólogo vazio e presunçoso de quem “celebra” seu “eu” e seus méritos diante de Deus. E como fala só consigo mesmo, encontra-se só com seus méritos e suas pretensões. O seu monólogo é um palavreado vazio, exibicionismo enganoso de um “eu” que não tem outro “deus” além de si mesmo. Ele tem méritos e nada deve a Deus; ao contrário, Deus é quem lhe deve: a enumeração de suas boas obras implica a pretensão de uma recompensa; ele acha que pode impressionar Deus com suas qualidades aparentes e seus sacrifícios e boas obras puramente formais, sem extirpar de seu coração o orgulho e o desprezo pelos outros.
Outro aspecto importante aparece na parábola: como o fariseu se considera perfeito e não vê nenhuma falha em si mesmo, ele se acha diferente e melhor do que todos. “Ó Deus, dou-te graças porque não sou como o resto dos homens”.
Ao mesmo tempo que se auto-elogia, critica e despreza os outros. Ele não descobre nenhum projeto divino sobre si, basta-lhe saber que é melhor que os outros. O fato é que os grandes “observantes” são os grandes desprezadores, que não se interessam pelas pessoas e menosprezam todo aquele que não pensa e vive como eles. O agravante é que, quem vive assim não se dá conta do que faz. Isso porque faz de maneira tão dissimulada e sob formas tão “espirituais” e com argumentos tão “religiosos”, que nem ele mesmo é consciente das agressões que comete contra as pessoas que não se encaixam no seu modo de ser. Não se pode discutir com um fariseu; ele tem sempre razão.
Além disso, é um hipócrita, porque substitui a Vontade de Deus por leis humanas. Na prática, são indivíduos que demonstram ser ateus, porque, na realidade, o que lhes importa é sua própria honra, e não a honra de Deus. O que lhes interessa é brilhar diante dos homens; a única coisa que lhes preocupa é sua boa imagem diante das pessoas: querem ser vistos, apreciados, louvados. Não tem outro Deus a não ser eles mesmos. O que realmente envenena a vida destas pessoas não é a vaidade ou a soberba. É o ateísmo.
Jesus destrói o conceito de “justificação” rabínica, baseada no cumprimento da lei, quando, na pessoa do publicano, mostra que Deus salva quem julga nada ter a apresentar, sente a necessidade de se converter e de se entregar. Consciente de sua indigência e fragilidade, o publicano entrega-se a Deus sem reservas, confia-lhe o seu futuro e espera em Sua misericórdia.
A misericórdia é a resposta de Deus ao delírio do ser humano de querer ser perfeito; é a única força capaz de detê-lo no processo de autodivinização, própria do fariseu. O publicano não tinha esperanças: reconhecendo-se pecador diante de si mesmo, diante de Deus e dos outros, sabia que a única esperança era a misericórdia de Deus. Diante da grandeza e transcendência de Deus, sente uma necessidade instintiva de retirar-se, de deter-se, quase pedindo desculpas por ousar entrar no templo. Ele nada tem para apresentar a Deus, nada de que se orgulhar e nada para exigir. Só lhe resta a pobre oração dos excluídos e dos pecadores assumidos, dos desmoralizados e humildes.
O “fariseu” que todos hospedamos em nosso interior realiza seu trabalho em silêncio, mas com uma eficácia impressionante: torna o nosso coração impermeável à experiência divina e petrifica nossa compaixão na relação com os outros. O publicano, por outro lado, nos revela que basta redescobrir o caminho da humildade (do húmus), bem no fundo de nós mesmos: este é o lugar da oração. E quanto mais baixo for o ponto de partida, tanto mais alta ela vai subir... A salvação que esperamos não é fruto de nosso trabalho e penitência, de nossa prática legal e de nossas virtudes. Ela é puro dom de Deus, divino presente de seu coração de Pai. Só nos resta acolhê-la em atitude de humilde gratidão.
Texto bíblico: Lc 18,9-14
Na oração: * Fazer leitura compassiva das atitudes petrificadas em sua vida.
* Sua vida cotidiana gira em torno da perfeição farisaica ou da misericórdia divina?
Pe. Adroaldo Palaoro sj
Coordenador do Centro de Espiritualidade Inaciana - CEI
21.10.2013
“Numa cidade havia um juiz que não temia a Deus...” (Lc 18,2)
Na tradição bíblica, as viúvas são, juntamente com os órfãos e os estrangeiros, o símbolo das pessoas mais indefesas, as mais pobres entre os pobres. A viúva, de modo especial, é o símbolo por excelência da pessoa que vive só e desamparada; ela não tem marido nem filhos que a defendam e não conta com nenhum apoio social. É nesta situação de total abandono que sua vida se converte em um grito: “Faze-me justiça!”.
A conduta e o ensinamento de Jesus foram radicalmente “contraculturais” com relação à mulher. Ele foi um autêntico reformador e inclusive revolucionário. Com sua presença e sua linguagem Jesus visibiliza o mundo vital das mulheres; ao tirá-las do seu anonimato e trazendo-as à luz, Jesus realça e louva os traços característicos da mulher. Na parábola, a viúva é apresentada como modelo de atitude diante de Deus pela sua persistência, pela sua coragem frente a um juiz surdo à voz de Deus e indiferente ao sofrimento dos oprimidos. Ela não desiste, continua lutando por si mesma e por seu direito à vida, indo ao juiz dia após dia.
Lucas apresenta a parábola como uma exortação a orar sem nunca desistir. O Mestre conta a parábola de forma tão envolvente que as pessoas, sobretudo aquelas que perderam toda esperança por ajuda e cura, são novamente encorajadas. Ao despertar nos ouvintes a alegria sobre o poderoso juiz, cuja resistência é vencida pela viúva, convida as pessoas a lidarem de forma diferente com uma situação aparentemente desesperadora. Deus não é surdo aos seus gritos.
Nesse sentido a oração do seguidor de Jesus é “eficaz” porque nos faz viver com fé e confiança no Pai e em atitude solidária com os irmãos. A oração é “eficaz” porque aumenta nossa fé e nos faz mais humanos; abre os ouvidos do coração para escutar a Deus com mais sinceridade, vai purificando nossos critérios e nossa conduta daquilo que nos impede ser irmãos. Ela sustenta nosso viver cotidiano, reanima nossa esperança, fortalece nossa fragilidade, alivia nosso cansaço. Aquele que aprende a dialogar com Deus e a invocá-Lo “sem nunca desistir”, vai descobrindo onde está a verdadeira eficácia da oração e para quê “serve” rezar. Simplesmente para viver.
Podemos interpretar também a parábola do juiz e da viúva como uma imagem do nosso interior: lugar da nossa intuição que nos diz que possuímos um brilho divino, que somos seres originais, filhos e filhos de Deus. Nosso interior representa os sonhos que carregamos durante nossa vida, que nos diz que nossa vida é preciosa e que nele se expressa algum aspecto de Deus. Mas, nosso interior carrega também um tribunal com um juiz frio e insensível, que, numa postura arrogante, nos julga de forma excessivamente dura, e, às vezes nos condena e rejeita constantemente; ele emite juízos taxativos, cortantes, condenatórios, alimentando em nós sentimentos de culpa e impotência.
Ele tem o catálogo de leis nas mãos e é implacável mesmo diante dos mínimos deslizes, distribuindo prêmios (poucos) e castigos (abundância). Em cada um de nós o instinto de julgar está enraizado profundamente; podemos até dizer que todos nascemos portadores de uma cátedra de juiz. Muitos cultivam ardorosamente esta vocação de juiz e encontram abundantes ocasiões para praticar juízos, sobre si mesmos e sobre os outros, submetendo-se a um horário esgotador. Daí a proliferação de “tribunais ambulantes e permanentes”.
No Evangelho, nos encontramos com algumas expressões categóricas que nos convidam a abandonar este ofício bastante perigoso. Muitos, com seu amadurecimento, ficam persuadidos de que existem coisas mais importantes a fazer do que dedicar-se a serem juízes. Embora se trata de uma grave enfermidade, esta “síndrome de juiz” é curável. Existem muitas terapias que podem arrancar a cadeira do juiz e desalojá-lo de seu ofício.
Na parábola da viúva e do juiz injusto Jesus nos mostra como podemos conviver com o juiz interior. Como a viúva, nós nos vemos ameaçados por um inimigo – pode ser um inimigo interior ou exterior ou um padrão de comportamento que não nos permite viver com serenidade e paz. Nesse contexto, o juiz representaria nosso juiz interior, que nos despreza continuamente e nos julga desprezíveis por termos ideais tão altos ou exigências tão ambiciosas para nós mesmos.
Nessa interpretação, a oração também passa a ser o lugar onde nosso interior encontra justiça, onde o juiz interior é desapoderado. Na oração nos tornamos cientes da nossa dignidade como seres humanos, que fomos criados por Deus e que Ele julga capaz de realizarmos nossos desejos. Por meio dela, entramos em contato com a imagem única e singular que o Pai tem de nós, toda auto-depreciação e auto-condenação se dissolvem durante esse momento.
Se orarmos com essa parábola em mente, a nossa oração adquire uma força diferente. Nesse sentido, a oração é o espaço onde a dimensão feminina é despertada através do seu clamor, da sua insistência e perseverança.
O ser humano carrega em si amor e agressão, razão e emoção, gentileza e dureza, juiz e viúva, animus e anima – parte masculina e parte feminina da alma. Muitas vezes vivemos apenas um polo e recalcamos o outro. Enquanto este permanecer nas sombras terá um efeito destrutivo. A arte da humanização consiste na reconciliação da viúva com o juiz interior. Muitos ficam chocados quando, apesar de todo esforço para serem pessoas amáveis e gentis, descobrem em si lados insensíveis, antipáticos, julgadores, ofensivos...
Jesus nos apresenta a oração como caminho para esvaziar o ofício do nosso juiz interior. No espaço da oração experimentamos nosso direito à vida; ali encontramos paz, ajuda e cura. Ao mesmo tempo, a oração nos leva ao espaço interior do silêncio, onde o juiz é desarmado de sua arrogância.
Com o juiz silenciado, acabam-se os ressentimentos, as violências interiores, os sacrifícios, os juízos, os sentimentos de culpa... Morre o “juiz” das proibições, das ameaças, dos castigos e da perpétua vigilância sobre nossos atos e intenções. Com isso, nossa vida torna-se mais leve, os medos se vão e a harmonia toma assento em nosso coração.
A parábola nos causa uma transformação, questiona nossa vivência, abrindo espaço para experiências novas. Jesus descreve essa viúva sem perspectivas, como mulher que não desistiu de si mesma. Orar, portanto, significa: não desistir de si mesmo.
Ao mesmo tempo, Jesus revela a imagem de um Deus desprovido de dogmatismos, um Deus desprovido também de controle e arbitrariedade. O Deus de Jesus não é um juiz com um catálogo de leis que tem necessidade de mandar, controlar, verificar... Basta-lhe a misericórdia, a compaixão... A misericórdia de Deus constitui a resposta à indigência e ao clamor do ser humano. Ela oferece a possibilidade de pôr de lado o julgamento e a condenação. O passado de erros e fracassos é substituído pelo presente de aceitação e perdão.
Onde não há misericórdia, não há sequer esperança para o ser humano. Enquanto o Reino de Deus estiver no nosso meio, o juiz interior não tem nenhuma chance, estamos sãos e salvos, livres dos seus juízos, de suas expectativas e exigências, de suas acusações e sentenças. Nesse espaço ninguém pode nos ferir, nenhum inimigo tem acesso, seja ele interior ou exterior.
Texto bíblico: Lc 18,1-8
Na oração: “tomar consciência” dos momentos em que o “juiz interior” emite seus “pareceres de morte”, seja na relação consigo mesmo ou com os outros.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
Coordenador do Centro de Espiritualidade Inaciana – CEI
15.10.2013
“... atirou-se aos pés de Jesus, com o rosto por terra, e lhe agradeceu” (Lc 17,16)
“A gratidão é a memória do coração” (Paul H. Dunn))
Aquele que é marcado pela experiência de que é tudo é dom e dado pelo Deus providente, adquire a fina percepção de que tudo é graça, tudo é “de graça”, somos “agraciados”, “cheios de graça”...
É Ele mesmo que, ao criar-nos gratuitamente no amor, nos ensina a “sermos gratuitos e gratos”.
Só Ele é capaz de gerar o verdadeiro sentido e força do “de graça”; só a generosidade gratuita do coração de Deus é capaz de reconfigurar mentes e encorajar atitudes oblativas em nós.
Enquanto a memória da mente é a lembrança, a do coração encontra expressão na gratidão. Afinal, estar grato é uma forma de memória. Normalmente vivemos inúmeras bênçãos diárias que esquecemos. Quanto maior a memória do coração mais ele poderá nos mostrar o quanto somos gratos.
Na espiritualidade cristã, a gratidão nasce com naturalidade e espontaneidade nos corações humildes, nas pessoas conscientes de que aquilo que recebem não é por mérito ou retribuição. Tudo é gratuidade. O agradecimento é a experiência humana que mais mobiliza a generosidade da pessoa; a gratidão é a mais agradável das virtudes: quê virtude mais leve, alegre, mais luminosa, mais humilde, mais feliz!!! É por isso que ela se aproxima da caridade, que seria como a gratidão sem causa, uma gratidão incondicional.
Parece ser que a gratidão, juntamente com o amor, é um dos sentimentos mais terapêuticos: nos centra, nos re-situa, nos faz porosos, nos abre a dimensões infinitas, arrancando-nos de mecanismos egocentrados, que nos fazem girar sobre nós mesmos de um modo doentio.
Grandeza da gratidão, pequenez do ser humano.
“De graça”: esta é uma expressão cada vez mais estranha e distante numa cultura marcada pelo consumismo, pelo “toma lá, dá cá”. O que é que se encontra “de graça?” Onde? Quem pratica essa aventura da “mão aberta”, da largueza de coração? Desconfia-se de quem oferece alguma coisa “de graça”. Há interesses escondidos, motivações escusas, para ganhar alguma coisa.
“De graça” parece já não fazer parte mais do nosso vocabulário. Esta é a lei dura, imposta e forjada pelo mecanismo perverso da exploração, da concentração de bens... Nesse horizonte o que vale são os cálculos e os interesses egoístas.
Há aqueles que não conhecem a palavra “gratuito” e, por isso, petrificados à “gratidão”. São surdos e mudos para o “muito obrigado”. Para eles tudo se compra e tudo se vende. O egoísta é ingrato não porque não goste de receber, mas porque não gosta de reconhecer o que recebe do outro, e a gratidão é esse reconhecimento; não gosta de retribuir, e a gratidão, de fato, retribui com o agradecimento.
Um outro horizonte, no entanto, é apresentado por Jesus. Ele está a caminho, quase chegando à etapa final da viagem: Jerusalém. A estrada é a vida e a missão de Jesus, enviado para revelar o rosto de Deus aos homens. A sua estrada é marcada pela solidariedade e cuidado para com os mais excluídos e sofridos.
Entre Jesus e aquela estrada, que conduz a Jerusalém, há uma relação vital: Ele é o “autor” daquela estrada; Ele é a estrada do cumprimento da vontade de amor e de salvação do Pai; Ele é o Caminho, a Verdade e a Vida. Essa estrada deverá ser a mesma também dos discípulos, a do seguimento, a que conduz à Cidade santa, à plena bem-aventurança. Um Caminho que faz viver e realiza a comunhão em plenitude.
Logo que Jesus entrou na aldeia, “dez leprosos” foram ao seu encontro. Pela narração do evangelista, parece que não há mais ninguém na cena: Jesus parece estar sozinho com os leprosos. A aldeia se apresenta surpreendentemente vazia. É óbvio, os leprosos deviam estar separados e longe de todos. Na verdade, a lepra era entendida como manifestação de uma condição de pecado. Os leprosos, embora mantivessem a devida distância, vão ao encontro de Jesus, gritando. Aqueles pobres miseráveis O buscam como o “misericordioso”: “Jesus, mestre, tende piedade de nós”. É uma oração surpreendente, na qual o homem de Nazaré é chamado pelo próprio nome. Jesus, por sua vez, pousa sobre eles o seu “olhar” e os envolve com tanta atenção e sedução, que os dez não hesitam, nem um momento sequer, em pôr em prática, com confiança, a ordem que lhes foi dada: “Ide mostrar-vos aos sacerdotes”. Assim, Jesus se põe com eles na estrada da esperança, na estrada da experiência da solidariedade que cura e os acompanha, mesmo de longe, até aos sacerdotes.
A recuperação da saúde deles se torna também reinserção na sociedade, no âmbito familiar e na comunidade religiosa. Eles não serão mais rejeitados.
No entanto, somente um dos dez leprosos, ao longo do caminho, descobriu ter sido curado. Então “voltou dando glória a Deus, em alta voz”. Cai com o rosto ao chão, aos pés de Jesus, e dá graças a Deus: ele era um samaritano. A sua admiração por ter sido curado se torna caminho de retorno e hino de gratidão. Assim, a cura, em sentido pleno, consiste em descobrir que o verdadeiro ponto de chegada do caminho tomado consiste, justamente, em voltar ao ponto de partida: a pessoa de Jesus, reencontrada no pleno esplendor da sua luz.
Somente aquele estrangeiro, capaz de dizer “obrigado”, volta a Jesus, a quem obedecera na obscuridade da fé.No fundo, ele descobriu não só ter sido curado, mas, sobretudo, ter sido amado.
É exatamente isso que o leva para além do agradecimento e o faz entoar um hino de louvor, onde toma forma o gosto pelas coisas e pela vida, porque foram dadas por um Amor eterno. Também Jesus não esconde a sua profunda surpresa, seja pelos nove que não voltaram, seja pela única volta agradecida de um samaritano. Mais uma vez, pousando o seu olhar de amor e de misericórdia sobre o estrangeiro, dirige-lhe uma palavra de envio: “Levanta-te e vai”, como também uma palavra de consolação: “A tua fé te salvou”.
Ao leproso-estrangeiro, portanto, nada mais resta a não ser pôr-se novamente a caminho, na novidade deste encontro e deste acontecimento, que o marcou profundamente, e seguir a estrada indicada por Jesus, tornando-se um sinal concreto da presença de Deus e do seu Amor que salva. O samaritano curado, agora a caminho com Jesus, pode comunicar a todos a alegria do seu reconhecimento, mediante a gratuidade do dom recebido.
O verdadeiro sentido do retorno é a “gratidão”, o “agradecimento”, o “louvor”: esta é a realidade da conversão. Tal retorno é a real “peregrinação” do cristão. Ser “curado” e viver em plenitude significa deixar espaço ao agradecimento e transformar o caminho humano em canto de louvor.
Cabe a nós, enquanto seguidores de Jesus, pensar-sentir agradecidamente e ter gestos de gratuidade. Cabe a nós falar agradecidamente. A expressão “muito obrigado” é das primeiras que se aprende quando alguém se inicia em outro idioma. Ser agradecido se aprende agradecendo e tudo se pacifica quando o gratuito marca nosso ser inteiro.
A vida nova vem da vida recebida e partilhada; ela nos coloca acima do êxito e do fracasso, pois está no nível da gratuidade.
Texto bíblico: Lc 17,11-19
Na oração: Criar um clima de ação de graças. Tudo é Graça.
Ponderar com muito amor tudo o que o Senhor fez por mim, por meio dos outros, da Criação e de minha história passada e presente. Como Ele me cumula de seus próprios bens. Tudo é dom de Deus; tudo foi criado por amor para mim (Deus providente)
Pe. Adroaldo Palaoro sj
Coordenador do Centro de Espiritualidade Inaciana
07.10.2013
“Somos simples servidores: fizemos o que devíamos fazer” (Lc 17,10)
Os apóstolos, depois de um tempo de convivência com Jesus, se dão conta de que lhes falta algo para poder compreender as exigências d’Ele. Por isso, suplicam: “aumenta nossa fé”.
Como de outras vezes e como bom “pedagogo”, Jesus não responde diretamente à petição dos apóstolos. Quer dar a entender que a fé não é questão de quantidade, mas de autenticidade. Além disso, a fé não pode ser aumentada a partir de fora; ela tem que crescer a partir de dentro, como o insignificante grão de mostarda que, embora diminuto, contém vida exatamente igual que a maior das sementes.
A fé não é algo que se “tem” ou “não se tem”; a fé é um caminho, é uma “travessia” em direção a largos horizontes; e um desejo eternamente insatisfeito; é uma confiança continuamente renovada, um compromisso sem final.
A fé não é um ato nem uma série de atos, nem uma adesão a uma série de verdades teóricas que não podemos compreender, mas uma atitude pessoal fundamental e total que imprime uma direção definitiva à existência. Na Bíblia, a fé é equivalente à confiança em uma pessoa, acompanhada da fidelidade.
Nesse sentido, a fé é uma vivência em Deus; por isso não tem nada que ver com a quantidade.
Jesus denuncia a fé dos seus discípulos, que parece frágil, de pouco fôlego, incapaz de manifestar aquela força que muda a vida, o modo de pensar, de sentir e de agir.
A fé supõe o descentramento de si mesmo e o reconhecimento de Deus como centro da própria vida, numa atitude de confiança incondicional; ela abre para o ser humano o horizonte infinito de Deus. Crer significa deixar Deus ser totalmente Deus, ou seja, reconhecê-lo como a única razão e sentido da vida.
É esta experiência de fé que desata as ricas possibilidades latentes em nosso interior. Com a imagem da amoreira que é transplantada, Jesus nos está dizendo que o dinamismo de Deus está já atuante em cada um de nós e nos possibilita viver profundas mudanças (sair de um lugar estreito, limitado... e lançar-se a outro lugar amplo, desafiante...). A fé é experiência expansiva da própria vida, movida pela graça de Deus. Aquele que tem confiança em Deus, poderá desatar toda essa energia de vida.
Essa vida é o que de verdade importa. Por isso, crer em Deus é também confiar em cada ser humano e em suas possibilidades para alcançar sua plenitude humana.
Que alimentemos, portanto, dentro de nosso coração, esta fé viva, forte e eficaz. Fé que se visibiliza no serviço por pura gratuidade; ou, segundo S. Paulo, a fé que se realiza “pela prática do amor” (Gal. 5,3).
E Jesus ilustra isso com a pequena parábola do “simples servo”. Parábola dirigida àqueles que confiam em suas obras e exigem uma recompensa de Deus. Daí o perigo da soberba religiosa: comparar-se com os outros, colocando-se acima deles e fazendo-se o centro.
No Reino de Deus, somos todos servidores; nele não se trabalha por recompensa. Já é um privilégio podermos colaborar na obra o Senhor. A parábola revela que o trabalho a serviço do Senhor já é uma graça e a recompensa não pode ser exigida; ela é dom.
Não podemos fazer desse serviço uma “carreira”, com promoções, honrarias e prêmios. No mundo em que vivemos, a mínima prestação de serviço exige uma gratificação específica. Tudo tem um preço. Nossa mentalidade exclui todo espírito de serviço gratuito.
As “obras boas” não são um crédito que podemos apresentar a Deus; são, antes, a manifestação de que temos acolhido o amor de Deus e o manifestamos aos outros. Confiar em Deus é também incompatível com a confiança nos próprios méritos. Aqueles que passam a vida acumulando méritos não confiam em Deus, mas em si mesmos. A Salvação “por pontos” é totalmente contrário ao evangelho.
Há aqui o princípio ético que deve reger a conduta do cristão, diante de Deus e diante dos outros. É a atitude da inteira disponibilidade, a intensidade do compromisso, sem queixas, sem comparações e nem exigências. Uma ética e uma espiritualidade assim revelam um profundo e inexplicável humanismo.
Por isso, crer no Deus que “atua em tudo e em todos” implica estar sintonizado com Ele, trabalhando na mesma direção, fazendo as mesmas obras que Ele está fazendo para tornar este mundo mais habitável.
Cremos no “Deus que trabalha sempre” e em tudo nos associa, em comunhão com Ele, a seu trabalho constante de transformação deste mundo, na fronteira mesma onde se tece a novidade da história. Trabalho que se faz com amor; “o trabalho é a fé que se faz visível”. Nesse sentido, “somos servidores e nada mais, fizemos o que devíamos fazer”.
Não está correta a tradução: “somos servos inúteis”. Se o servo fosse inútil, o senhor não lhe pediria serviço algum. Pelo contrário, ele é extremamente útil. Seu trabalho tem muito valor aos olhos do senhor. Mas o servidor não é nenhuma personalidade de destaque. Ele não está acima do senhor, Ele faz seu trabalho; é servidor, e nada mais. Mas serve.
Ao situar nosso trabalho cotidiano na linha da colaboração com a atividade criadora de Deus, do serviço à humanidade, da construção de um mundo fraterno..., isso nos ajuda a não convertê-lo em um mecanismo ou dinâmica de autocentramento, de busca exclusiva e muitos vezes compulsiva de nós mesmos e de nossos interesses e benefícios; ao mesmo tempo, nos faz evitar, em nosso modo de trabalhar, atitudes e ações de domínio, de manipulação, de cobrança dos outros...
São vários outros elementos que contribuem para fazer de nosso trabalho uma “experiência espiritual”:
a pureza de motivações (por que faço isso? para quem faço?), a capacidade de “contemplar”, a agilidade no “eleger”, o crescer em gratuidade e relativização de si mesmo, o deixar-se ajudar, a capacidade de agradecer.
A atitude de gratidão (consciência viva daquilo que cada dia recebemos e nos é dado) nos faz viver nosso trabalho como serviço e o liberta radicalmente de suas dimensões de rotina, de carga..., e o vai situando na linha de uma experiência profundamente “espiritual”: dupla experiência de agradecer e ajudar.
Quando vivemos nosso trabalho a partir da gratidão, o esforço que o mesmo trabalho exige brota de um modo mais natural, mais espontâneo...; por isso, “cansa” menos, “desgasta” menos... Se vivemos a partir da gratidão, ficamos menos “dependentes” da compensação que os outros poderiam dar à nossa entrega ou ao nosso serviço.
Encontramos aqui o fundamento para uma teologia do trabalho: o trabalho, seja ele qual for, é redentor, se a motivação é evangélica, se ele está orientado para o Reino. Não é o trabalho que nos faz importantes, mas somos nós que fazemos qualquer trabalho ser importante, quando ele é realizado na perspectiva do Reino de Deus. Todo trabalho é nobre, seja ele o de cinzelar estátuas ou o de esfregar o chão.
A alegria do trabalho está no fato de perceber o sentido e a intenção presentes nele. Afinal, somos chamados a “trabalhar na obra do Senhor”, somos seus “servidores”. A verdadeira “experiência espiritual ” é estabelecer com o “Deus da Vida” uma relação “desinteressada”, isto é, uma relação na e a partir da gratuidade; é passar do “Deus mérito” ao “Deus do dom”, do “Deus juiz” ao “Deus Pai-Mãe”, do “Deus ameaça” ao Deus de “bondade escandalosa” que nos desafia a sermos criativos em sua obra. Daqui brota a dimensão contemplativa do trabalho, pois este passa a ser “templo” do encontro com Deus trabalhador e de colaboração com os outros.
Texto bíblico: Lc 17,5-10
Na oração: Precisamos alimentar uma outra relação com o trabalho no sentido de assumi-lo como cooperação com o Deus trabalhador e com tantas pessoas tocadas pela sua graça. Uma relação que permita nos distanciar das cargas, ativismos, tarefas estressantes... e viver o trabalho com humor e criatividade.
* Seu trabalho cotidiano: ativismo ou “ação discernida”? Busca de recompensas ou espaço de colaboração com o Deus trabalhador?
Pe. Adroaldo Palaoro sj
Coordenador do Centro de Espiritualidade Inaciana - CEI
30.09.2013
“Um pobre, chamado Lázaro, cheio de feridas, estava sentado à porta do rico” (Lc 16,20)
Toda vez que Jesus tem uma coisa importante para comunicar, ele cria uma história e conta uma parábola. Sabemos que, em toda parábola, o ouvinte passa por uma transformação interior; ele se abre porque ela o fascina, e, sem que perceba, a narrativa o leva a outro nível. De repente, o ouvinte se sente envolvido na cena. Algum aspecto seu, que até então havia permanecido no escuro, é iluminado; agora é capaz de se ver de modo diferente.
Uma parábola “dá o que pensar”. Por isso, é importante prestar atenção até nos seus mínimos detalhes. Dizem os especialistas que, quando Jesus contava parábolas, apelava aos sentimentos mais primários de seus ouvintes (muitas vezes adversários) para fazê-los mudar. Assim, ao contar a parábola da ovelha perdida, do filho pródigo que retorna à casa, estaria dizendo aos seus adversários: “Vocês não sentem compaixão por essa pobre gente? Não sentem revirar suas entranhas?”.
Talvez ao contar a parábola do “rico e de Lázaro”, estaria nos dizendo: “Vocês não se envergonham de viver em um mundo assim, de ricos e de lázaros, de milionários e de famintos?... Se esta parábola não provoca em nós nenhum tipo de incômodo, se não desperta nossa vergonha, se não nos faz sentir afetados pelo que ali há de insulto ao pobre, se não nos mobiliza para uma superação desse escândalo..., é sinal que a desumanização chegou ao fundo do poço.
Na parábola do evangelho de hoje aparecem três personagens: o pobre Lázaro, o rico sem nome e o pai Abraão. De um lado, a riqueza agressiva. Do outro, o pobre sem recurso, sem direitos, coberto de úlceras, impuro, sem ninguém que o acolhe, a não ser os cachorros que lambem suas feridas. O que separa os dois é a porta fechada da casa do rico.
A coexistência de riqueza e pobreza é, em si mesma, ruptura fundamental da solidariedade humana, negação de humanidade; é uma flagrante violação da convivência humana, ou seja, da própria natureza do fundamento dos direitos humanos.
“O luxo de uns converte-se em insulto contra a miséria das grandes massas” (Puebla 28). O “rico e Lázaro” constituem um enorme escândalo em nosso mundo. É uma ofensa que se faz aos pobres pelo simples fato de serem indigentes ao lado de opulentos.
O foco para compreender o sentido da parábola é o pobre Lázaro, sentado à porta. Ele representa o grito calado dos pobres do tempo de Jesus e de todos os tempos. Deus vem até nós na pessoa do pobre, sentado à nossa porta, para nos ajudar a transpor o abismo intransponível que a riqueza criou.
A parábola é cheia de ironia. Para começar, o rico aparece sem “nome”: não ter nome naquela cultura era praticamente sinônimo de não existir; às vezes o rico é designado como “epulão”, mas é um adjetivo, que tem sua raiz no costume romano dos “épulos” ou banquetes; o pobre, pelo contrário, se chama “Lázaro”, ou seja, “Deus ajuda”. Ele tinha identidade; O rico era tão pobre que só tinha bens.
Com sua morte, o mendigo “é levado pelos anjos para o seio de Abraão”; o rico, pelo contrário, “morreu e foi enterrado”. O “seio de Abraão” é a fonte de vida, de onde nasceu o povo de Deus. Lázaro, o pobre, faz parte do povo de Abraão, do qual era excluído enquanto estava à porta do rico. O rico pensa ter fé e ser filho de Abraão; mas só há um jeito de estar com Abraão: abrir a porta ao necessitado. A salvação para o rico não é Lázaro trazer uma gota de água para refrescar-lhe a língua, mas é ele, o próprio rico, abrir a porta fechada para o pobre e, assim, transpor o grande abismo que os separa.
A chave de compreensão da parábola podemos encontrá-la justamente nesta expressão: “um grande abismo”. Um abismo que se revela não só após a morte, mas que ficara visível na indiferença do rico frente á presença do pobre à sua porta. Ele não tinha feito mal ao necessitado; simplesmente não o tinha visto. O rico não vê o pobre, não vê a Deus; não escuta o pobre, não escuta a Deus. Não está contra Deus , nem contra o pobre; unicamente está cego. A riqueza o cega e o impede de viver para o outro; a riqueza endurece seu coração e o torna insensível. Esse “não ver” (“olhos que não veem, coração que não sente”) é o que cria um abismo intransponível em nossas relações pessoais, em nossos países e em nosso mundo.
Por que caímos tão facilmente na indiferença? A indiferença diante dos outros e diante do mundo, esconde, sem dúvida, uma maior ou menor insensibilidade. Uma sensibilidade bloqueada ou endurecida isola a pessoa, deixa-a encapsulada em sua própria armadura egocêntrica e a instala em uma atitude indiferente – oposta à compaixão -, que está na origem das injustiças que diariamente vemos em nosso mundo. Em sua redoma protetora, o rico não vê os outros a não ser quando necessita deles, considerando-os como se fossem “objetos” a seu serviço; sua capacidade de amar fica bloqueada.
A compaixão é o sinal mais claro da maturidade humana; a indiferença, pelo contrário, revela imaturidade e atrofia nossa humanidade. A vivência da compaixão requer uma sensibilidade limpa e uma afetividade livre. Tanto o endurecimento (ou petrificação) da sensibilidade como o bloqueio afetivo impedem sentir-com-os-outros.
A conclusão de tudo isso parece clara. Para viver a compaixão, precisamos, antes de mais nada, despertar nossa sensibilidade diante dos outros, sobretudo aqueles que estão à nossa porta e não os vemos.
A cegueira diante dos outros, sintoma de uma sensibilidade rígida ou congelada, torna impossível a compaixão. Precisamos restabelecer o contato com nossos sentimentos; despertada nossa capacidade de sentir, poderemos depois sentir-com-os-outros, ou seja, experimentar compaixão.
A transformação do coração exige uma renovação de nossa sensibilidade. O discípulo de Cristo, com sua sensibilidade cristificada, não fugirá da realidade das pessoas e da natureza, mas se relacionará com elas, buscando também nelas a presença de Deus. Nesse sentido, a sensibilidade cristificada é o motor da nossa vida e da nossa conduta. E os “abismos” serão superados.
Portanto, mediante uma acolhida contemplativa da Parábola, vamos transfigurando nossos sentidos e convertendo nossa sensibilidade, para aproximar-nos da realidade como Jesus se aproximava, com uma sensibilidade cada dia mais parecida com a d’Ele. À medida que vai se realizando esta conversão de nossa sensibilidade, nós nos fazemos capazes de nos fazer presentes junto aos mais necessitados à maneira de Jesus de Nazaré, abrindo a porta de nossa casas para acolhê-los.
Texto bíblico: Lc 16,19-31
Na oração: diante do mundo da exclusão e da miséria, quê sentimentos prevalecem: indiferença, compaixão, insensibilidade, espírito solidário...?
Pe. Adroaldo Palaoro sj
Coordenador do Centro de Espiritualidade Inaciana - CEI
23.09.2013
“Não podeis servir a Deus e ao dinheiro” (Lc 16,13)
Estamos diante de mais uma parábola "escandalosa" de Jesus, ou seja, um relato impactante e provocativo, que ajuda a “despertar” o ouvinte ou o leitor. Mas o que se trata na parábola não é da injustiça cometida nem da desonestidade do administrador, senão de sua astúcia. O objeto de louvor por parte de Jesus é a esperteza, a audácia e o empenho com que o administrador tira partido de uma situação presente tendo em vista garantir o futuro; Jesus elogia o administrador não porque roubou, mas porque teve presença de espírito, soube calcular bem as coisas e encontrar uma saída honrosa, enquanto havia tempo. E a “saída” do administrador, ameaçado de desemprego, foi fazer “amigos” para depois.
Não devemos imitá-lo na sua injustiça, mas na sua previdência. O administrador infiel é um filho deste mundo; deixa-se guiar pelo cuidado de sua existência terrena. Com esperteza, com decisão e sem escrúpulos, aproveita o que lhe pode proporcionar vantagem para garantir sua vida futura.
E é aqui onde encontramos a chave de compreensão do relato: como “filhos da luz” precisamos agir de um modo inteligente, utilizando todos os recursos em favor da vida. Quem são nossos “amigos para de-pois”? São os cegos, os excluídos, os pobres em geral. Temos amplas oportunidades de usar o “vil dinheiro” para conquistar estes amigos. Essa Vida não é outra coisa que as “moradas eternas” de que fala o texto.
A parábola e as sentenças a seguir trazem à tona a questão da riqueza no caminho espiritual, com um destaque fundamental: diante do risco de absolutizá-la (endeusá-la), requer-se lucidez (astúcia) para usá-la como instrumento a serviço da vida. O risco é grande e tem uma dupla fonte: a necessidade de segurança e o caráter vazio do ego. Na realidade, as pessoas não buscam o dinheiro, mas a sensação de segurança associada a ele. Porque podemos prescindir do dinheiro, mas não da segurança. Ora, enquanto busquemos a segurança no “ego inflado” será impossível alcançá-la. Porque o ego é vazio, essencialmente inconsistente e, por isso mesmo, radicalmente incapaz de sustentar-nos. Absolutizar o dinheiro é sintoma de permanecer identificados com o ego e fechados na ignorância.
O mais característico do ego é dizer “meu”. E onde se diz “isto é meu”, a visão se estreita e o comportamento se faz ego-centrado. A divinização do dinheiro não é nada mais que a divinização do ego. Desde que o primeiro ser humano da história disse “isto é meu”, fez surgir a rivalidade entre os homens e a luta por ter. O dinheiro representa a capacidade de ter coisas. Mais dinheiro, mais coisas, até que a ânsia de ter coisas se converte em uma dependência doentia (vício). É possível que esta seja a dependência mais antiga da humanidade (“afeição desordenada”). Ela é a origem das guerras, ódios, vinganças, violências, roubos, enganos, mentiras, abusos, injustiças, dominação sobre os outros, etc.
Assim chegamos a classificar os seres humanos em duas categorias: ricos e pobres. Mais ainda, temos associado a felicidade com o ter. Consideramos feliz quem tem, e quem não tem é um infeliz. O ter se converteu, sobretudo nesta sociedade de consumo, em um princípio categórico de vida. Isto nos conduziu a uma desigualdade, cada dia mais escandalosa, tanto no nível pessoal como social, o qual faz crescer as fontes de conflitos de todo tipo. Com a passagem dos anos comprovamos como, longe de alcançar mais igualdade e mais equilíbrio social e pessoal, acontece justamente o contrário.
Sem reverter esta tendência é impossível construir um mundo em equilíbrio onde haja um mínimo de justiça, de paz verdadeira, de igualdade e de direitos humanos básicos para todos os habitantes do planeta.
Quando nossa verdadeira identidade se expande em direção ao outro (eu oblativo), perceberemos o engano de etiquetar algo como “meu” e nos capacitaremos para usar o dinheiro a serviço de todos. “Viver mais simplesmente para que outros possam, simplesmente, viver”. Desse modo, na linguagem da parábola, o “dinheiro injusto” se converte em meio para “ganhar amigos” e ser recebidos nas “moradas eternas”. Porque “eternidade” não faz referência a um futuro projetado indefinidamente. A Vida eterna é a vida plena que experimentamos, aqui e agora, como Presença.
Jesus via muito claramente qual era o verdadeiro futuro para a humanidade, e por isso apela aos seus seguidores para que evitem todo tipo de cobiça; “não podeis servir a Deus e ao dinheiro”. Na sua perspectiva, há uma incompatibilidade radical entre a paixão pelas riquezas e a paixão pelo Reino. Não é possível amar a Deus, isto é, amar a generosidade, a entrega, a solidariedade, a compaixão, a misericórdia, e ao mesmo tempo amar o dinheiro, isto é, amar ou tomar tudo para si, a acumulação que é base de toda injustiça e de todo desamor: fome, violência, exclusão, exploração...
A fidelidade ao Deus único fica interditada e o seguimento de Cristo fica fragilizado. Aquele que centra sua vida no apego ao dinheiro, põe ali seu coração, seu interesse, sua força e sua afetividade. O dinheiro tem um tal poder de atração que ele se torna rival de Deus. Como todo ídolo, o dinheiro provoca o fascínio, a adoração e as identificações mais perniciosas. O apego aos “bens” apresenta-se como uma das tentações mais poderosas para todo seguidor de Jesus. O dinheiro satisfaz desejos, dá segurança, confere prestígio, seguramente fama e, acima de tudo, abre portas, soluciona problemas e concede poder.
Sabemos das conseqüências que a sedução do dinheiro exerce e da capacidade que ele tem de obscurecer e distorcer percepção correta da realidade. A afeição ao dinheiro gera autossuficiência e distorce o sentido criatural do ser humano. A pessoa movida pela ânsia do dinheiro e fundamentada nele, não necessita da mão amorosa e providente de Deus. O dinheiro é o suporte de suas seguranças e autossuficiências.
O dinheiro distorce a visão do ser humano sobre si mesmo e sobre as demais coisas criadas. A pessoa deixa de entender-se como dom de Deus, não percebe mais a sua vida como graça recebida; portanto, já não é mais capaz de reconhecer a presença e a atuação de Deus, que a sustenta a cada instante. Deus não é reconhecido como o Senhor que a cuida através de Seu amor providente. O dinheiro também distorce a percepção das outras pessoas, pois fecha o coração à generosidade. O desejo de dinheiro é competitivo, pois é satisfeito à custa da exploração de outras pessoas.
Enfim, o dinheiro só perde seu poder maléfico quando, quem o possui, exerce o senhorio de si e o coloca no fluxo da dinâmica do amor, ou seja, na dinâmica da partilha, da comunhão com os demais, especialmente com os que menos tem. E a vida não se ordena enquanto o fator dinheiro, desestabilizador por seu caráter acumulativo e competitivo, não se situa no seu devido lugar. Assim fazendo, ele perde sua condição de senhor, e os bens e posses voltam a ser o que sempre foram: meios para colaborar a que o ser humano atinja a meta de sua vida.
Quando a força do Evangelho possibilita esta consciência, produz-se o saneamento libertador das relações distorcidas e desordenadas para com o dinheiro, e a orientação fundamental da vida passa da “posse” à entrega, do autocentramento à solidariedade, da acumulação ao serviço desinteressado...
Textos bíblicos: Lc 16,1-13
Na oração:
-Meu compromisso com o Reino afeta meu “bolso”?
-Sei e sinto a força de sedução que o dinheiro exerce e da capacidade que ele tem de atrofiar minha sensibilidade diante da realidade e dos outros?
Pe. Adroaldo Palaoro sj
Coordenador do Centro de Espiritualidade Inaciana – CEI
16.09.2013
“Todos os publicanos e pecadores aproximavam-se dele para ouvi-lo” (Lc 15,1)
“Jesus em más companhias”: Esse título expressa de maneira exata o que foi e o que significou a vida de Jesus desde o nascimento até a morte. E ao longo de toda a vida pública viveu continuamente rodeado de pessoas marginalizadas: pobres, pecadores, prostitutas, publicanos, doentes...
Essa conduta de Jesus é descrita nos três versículos introdutórios às três parábolas dos perdidos: Jesus está rodeado pelos marginalizados e excluídos da sociedade, “os cobradores de impostos e os pecadores”, que se aproximam dele para escutá-lo. Se estas pessoas se aproximam é porque junto a Ele encontram compreensão, compaixão, respeito, acolhida... e, jamais escutam uma reprovação, nem sequer uma desconfiança ou suspeita.
As três parábolas adquirem o caráter de defesa, feita pelo próprio Jesus, do seu modo de vida, do seu comportamento, particularmente do seu relacionamento com os extraviados e excluídos. O Evangelho que Jesus proclama com palavras e ações é a Boa Nova da salvação para os perdidos; e é, ao mesmo tempo, apelo à conversão dirigido aos que se consideravam “justos”, mas se fechavam ao amor e ao perdão.
As três parábolas da misericórdia são, na verdade, as parábolas dos perdidos. O que Jesus quis proclamar ao contá-las foi que o amor, a misericórdia, o perdão e a comunhão são oferecidas por Deus aos “perdidos”. As três parábolas expressam, com uma força insuperável, dois temas particularmente acentuados por Lucas e vinculados entre si: o tema da misericórdia e do perdão oferecidos por Deus a todos os “perdidos”, e o tema da alegria de Deus quando os perdidos são encontrados.
Oque escandaliza os destinatários das três parábolas contadas por Jesus, que se consideravam justos e servidores exemplares de Deus, não é propriamente a conduta dos pecadores, mas a conduta de Jesus com relação a eles; Ele permite que os pecadores se aproximem dele, recebe-os de coração aberto, toma a iniciativa de ir ao encontro deles e senta-se com eles à mesma mesa.
Os escribas e fariseus não podiam suportar que Jesus proclamasse que Deus acolhe e perdoa incondicionalmente a todos, que tem um carinho especial, um amor de predileção pelos perdidos; um Deus que vai ao encontro dos perdidos e que transborda de alegria quando os encontra.
Esse Deus “novo” anunciado por Jesus era um Deus “desconcertante”, “escandaloso”, totalmente incompatível com o “deus” legalista dos escribas e fariseus. Por isso, a pregação e o comportamento de Jesus são intoleráveis para eles.
O comportamento de Jesus é uma “parábola viva” do comportamento de Deus com os pecadores. Ao contar as três parábolas, Ele explica e justifica o modo de proceder do Deus Pai-Mãe. As três parábolas nos revelam os sentimentos e as ações do “Abbá de Jesus” que não pode passar sem os filhos perdidos. Por isso os busca até que os encontra. E os acolhe incondicionalmente quando retornam: sem reprovar-lhes nada, sem pedir-lhes explicações, sem ameaças, sem juízo nem castigo...
A trama das três parábolas desvela e revela a presença de Deus onde nunca imaginávamos encontrá-Lo: junto aos rejeitados e afastados; Ele os acompanhando com sua presença misericordiosa, aproxima-se deles e os convida à festa do seu perdão, libertando-os da sua exclusão e isolamento. Mais ainda, quando Deus encontra os extraviados, exulta de alegria, carrega-os em seus ombros, convoca todos para poderem se alegrar com Ele, e organiza um banquete festivo.
As três parábolas condensam toda a história de nossa salvação. Elas contêm a quinta-essência do Evangelho do Reino do Pai proclamado por Jesus, da história do amor de Deus para com a humanidade. Justamente por serem o Evangelho condensado, estas parábolas contadas por Jesus devem ser incessantemente ouvidas e contempladas por todos nós. E depois de contempladas e experimentadas, devemos contá-las, proclamá-las e testemunhá-las, sempre de novo, a todos os homens e mulheres que Deus ama.
Elas são as parábolas da nossa vida, da nossa história, de cada um dos nossos caminhos. Elas são, enfim, as parábolas da nossa origem e do nosso destino. Assim é o Deus em quem nós cremos. Não vale a pena parecer-se com o Deus de Jesus?
Esta é a experiência de Deus que Jesus comunica em suas parábolas mais comovedoras, e a que inspira toda sua trajetória profética. Certamente, as “três parábolas dos perdidos” são as mais belas, as que Jesus mais trabalhou, e provavelmente as que mais repetiu, para contagiar as pessoas com a experiência de um Deus compassivo.
Jesus viveu e comunicou uma experiência sadia de Deus: Ele não projetou sobre o rosto de Deus, medo, juizos, fantasmas… que todas as religiões costumam projetar em Deus. Jesus não experimenta Deus por cima ou à margem da história humana do sofrimento e da exclusão. Ele sente e vive a realidade insondável de Deus como um mistério de compaixão. O que define a Deus não é o poder senão suas entranhas maternais de Pai.
A compaixão é o modo de ser de Deus, sua maneira de olhar o mundo e de reagir diante de suas criaturas.
Jesus repete sempre: “sede compassivos como vosso Pai do céu é compassivo”, e introduz um horizonte totalmente novo na história da humanidade. Jesus não nega a santidade de Deus, mas deixa claro que, o que qualifica e define o Deus santo é sua compaixão; Deus é grande, é santo, não só conosco; Ele não porque rejeita os pagãos, os pecadores e os impuros, precisamente porque em seu coração santo cabem todos. Deus não exclui ninguém; todo aquele que dele se aproxima será acolhido, Deus ama sem excluir ninguém.
A compaixão de Deus é descrita por Jesus não simplesmente para nos mostrar como Deus está pronto a sentir por nós ou a perdoar nossos pecados e nos oferecer uma vida nova e felicidade, mas também a nos convidar a nos assemelhar a Deus e a mostrar a outros a mesma compaixão que Ele tem por nós. Vemos agora que as mãos que perdoam, consolam, curam e oferecem uma refeição festiva tem de ser as nossas.
O Deus da compaixão é o Deus que se oferece a si mesmo como referência e modelo para todo o comportamento humano. É essa a pedagogia do Deus Pai-Mãe: ensinar a ver as coisas não a partir do moralismo da perfeição, mas da compaixão. À luz da parábola de Jesus, pode-se chamar humano somente quem é compassivo, indulgente, misericordioso. Quem tem a coragem de aceitar a própria fragilidade e fracasso.
Texto bíblico: Lc 15,1-31
Na oração: O Deus no qual eu creio é um PAI-MÃE que, desde o início da Criação, tem estendido seus braços numa bênção compassiva, nunca se impondo a quem quer que seja, sempre esperando, nunca deixando cair seus braços em desespero, sempre aguardando que seus filhos voltem e deixem seus braços cansados repousar sobre os seus ombros.
- Contemplar cada um dos GESTOS do “amor louco” de Deus por nós.
Pedir a graça: pedir a graça de sentir sobre nossos ombros as mãos paternas/maternas de Deus que nos dão
segurança.
Ser pai-mãe: deixar transparecer em nós os traços paternos e maternos de Deus; as mãos que perdoam, consolam, curam, acariciam e oferecem uma refeição festiva devem ser as minhas mãos; contemplar minhas mãos: foram dadas para serem estendidas no direção dos outros, para oferecer a bênção, para socorrer, ajudar...
Pe. Adroaldo Palaoro sj
Coordenador do Centro de Espiritualidade Inaciana – CEI
11.09.2013
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