“Se uma família se divide contra si mesma, ela não poderá manter-se” (Mc 3,25)
Segundo a tradição bíblica, o que mais nos desumaniza é viver com um “coração fechado” e endurecido, um “coração de pedra”, incapaz de amar e de crer. Quem vive “fechado em si mesmo”, não pode acolher o Espírito de Deus, não pode deixar-se guiar pelo Espírito de Jesus. Uma fronteira invisível o separa do Espírito de Deus que tudo dinamiza e inspira; é impossível sentir a vida como Jesus sentia.
O ser humano “dividido” é desfalcado, despojado de seu conteúdo humano, espoliado de sua densidade interior, assaltado por dentro. A “divisão” corrói a interioridade da pessoa e dissolve aquilo que é mais nobre em seu coração. Longe de uma humanidade dinâmica, operante, ousada... o que a pessoa deixa transparecer é uma humanidade neutra, apática, estagnada; é humanidade lenta, demorada, afogada na “normose”, estacionada na repetição dos gestos e dos passos. Ela gira em torno de si mesma e não consegue fazer um salto libertador. Isso tudo leva a pessoa a debilitar-se, provocando a redução da vitali-dade humana em vez de favorecer o crescimento pessoal.
Num coração petrificado e dividido o Espírito não tem liberdade de atuar; dessa resistência à ação do Espírito brotam as doentias divisões internas. São os dinamismos “dia-bólicos” (aquilo que divide) que se instalam em nosso interior, atrofiam nossas forças criativas e nos distanciam da comunhão com tudo e com todos. Com isso nos blindamos, tornando-nos rígidos, petrificados em nossas posições, crenças, valo-res... e não nos deixamos impactar pelo novo, pelo diferente.
Podemos soltar nossa necessidade de segurança e abandonar-nos totalmente ao Espírito para que possa nos guiar? Como desarticular as forças depredadoras do ego em nós? Como quebrar os ferrolhos de nossas intolerâncias, fanatismos, preconceitos, e estender as mãos para acolher o surpreendente e o novo?
Abrir as portas, quebrar os ferrolhos, abandonar as muralhas que nos protegeram, viver a vida e aceitar o desafio, ensaiar um canto, baixar a guarda e estender as mãos, desatar as asas e mover-se de novo a celebrar a vida e retomar os horizontes...; é isso que significa deixar-se “conduzir pelo Espírito”.
Em que consiste a gravidade do “pecado contra o Espírito Santo, revelado pelo Evangelho de hoje. Só há um pecado contra o Espírito Santo. Se o Pai é Vida, se o Filho é Verdade, o Espírito Santo é Amor. E o pecado contra o Espírito Santo é o pecado contra o amor.
O perdão, por sua vez, é crer no amor; o perdão é expressão de amor. E quem não crê no amor, não abre espaço para o perdão, porque simplesmente no crê no perdão. Permanece fechado dentro dos seus muros e não se abre à amplitude da vida. Quem não ama não perdoa e tampouco é perdoado quem não se deixa amar. O problema não está em Deus, pois Ele continua amando a todos. O problema está em nós, pois se não cremos em seu amor, nunca nos sentiremos amados.
Jesus, desde o seu batismo, foi apresentado como o Filho de Deus, a quem se devia dar ouvido. Ele foi constituído mediador da salvação divina oferecida a toda humanidade. Suas palavras e ações, porém, tinham como princípio dinamizador o Espírito Santo, força de Deus que atuava n’Ele.
A atitude de seus parentes, que o acusavam de louco ao verem as multidões acorrerem a Ele, e a interpretação dos mestres da Lei que viam nele o poder de Belzebu, chocava-se com a realidade da ação divina em Jesus. Isso significava negar que o Espírito Santo agia através de Jesus e atribuia ao demônio o que pertencia ao Espírito de Deus. Eis uma autêntica blasfêmia!
As acusações contundentes levantadas contra Jesus manifestam um fechamento à ação do Espírito. Assim como Jesus agia pela força do Espírito, do mesmo modo só quem se deixa iluminar pelo Espírito pode agir como Jesus. Quem se fecha ao Espírito, tornava-se incapaz de discernir a manifestação da misericórdia de Deus, em Jesus. Fechar-se para Jesus, portanto, significa fechar-se para Deus e, por conseguinte, tornar-se indigno de perdão.
Viver humanamente consistirá, então, em deixar o Espírito circular livremente por todos os cômodos de nossa morada interior, arejando-os, ventilando-os, religando-os, dando-lhes vida, reorientando-os. Precisamos nos abrir para uma verdade maior quanto à nossa humanidade, ou seja, que todos os nossos recantos merecem serem visitados, olhados, ouvidos e abraçados; que cada aspecto de nossa vida contém uma dádiva maior do que podemos enxergar e cada sentimento merece uma expressão saudável.
O Espírito nos faz fortes em nossa fragilidade e nos faz amadurecer quanto mais nos humanizamos. Seu modo de proteger-nos é abrindo-nos; seu modo de defender-nos é desarmando-nos.
Um dos aspectos mais empolgantes do ser humano é o fato de ter reservas inspiradoras, úteis e podero-sas que estão adormecidas, ansiando para sair da sombra e ser integradas ao todo da pessoa. Há uma imensa variedade de sentimentos maravilhosos esperando por uma oportunidade de se deslocarem no corpo, trazendo-nos novas sensações e novos níveis de felicidade, alegria e prazer. Precisamos nos desa-fiar a aceitar todas as facetas de nossa humanidade; do contrário, os personagens que foram expulsos do palco, agora reprimidos, se tornarão os orquestradores silenciosos de nossa vida secreta.
É preciso superar a “divisão diabólica” do nosso coração, para recuperar a densidade humana interna. Para isso, ele precisa “re-ordenar-se”, repensar a interioridade perdida, reconquistar a autodeterminação. Para viver um processo de humanização profundíssimo, é preciso despertar, pacificar-se, reencontrando, na própria história, pontos de referência fundamentais que vão situá-lo, corretamente, na condição de filhos e filhas de Deus.
É indispensável “unificar-nos” por dentro e descobrir que, sob a ação do Espírito, podemos nos inventar a cada dia, conduzindo conscientemente a vida em direção à plenitude e não arrastá-la pelo chão. Pessoa “dividida” é massa anônima empurrada pela multidão. Quem está “unificado” tem a coragem de redefinir-se, de eleger, de assumir-se; é alguém preparado para dar um salto arrojado e criativo. Trata-se de sermos dóceis para deixar-nos conduzir pelos impulsos do Espírito, por onde muitas vezes não entendemos e não sabemos. Como nosso Mestre interior, nos ensinará a deixar-nos conduzir para a bondade, para a doação, para a reconciliação e a alegria. Sua discreta presença nos move a acolher em nós nosso potencial de ternura, de cuidado e de resistência diante de todas aquelas situações e forças que desintegram a vida e nos dividem por dentro.
Textos bíblicos: Mc. 3,20-35
Na oração: É no mais íntimo que se reza ao Senhor. É no mais profundo da interioridade que se escuta o Senhor. Deixe-se invadir pela luz e pela vida d’Aquele que “armou sua tenda entre nós”.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
Diretor do Centro de Espiritualidade Inaciana -CEI
“Isto é o meu corpo” (Mc. 14,22), nos diz Jesus. Ele poderia ter dito: “Esta é minha vida, esta é minha história, eu mesmo...”. Mas diz: “Isto é meu corpo”; e, contido nele, sua maneira de estar na vida e de situar-se nela, seu modo de olhar, de sentir, de estar presente...
O único recurso de que Jesus dispõe é seu próprio corpo. Não tem outra riqueza nem outro dom que oferecer. Esse corpo era sua vida, feita doação.
Como o corpo da mulher, capaz de conter e alimentar com seu sangue a criatura que carrega dentro de si, o Corpo de Jesus é um corpo aberto e vulnerado, quebrado e repartido. Constantemente doado. No encontro com este Corpo podemos nos reconhecer e nos acolher mutuamente, criar comunidade, multiplicar e expandir o amor para que o sonho do Corpo doado se propague no mundo.
Jesus se revela, assim, como autoridade de amor, porque ofereceu seu “corpo”, isto é, sua vida, para que outros pudessem viver. Na multiplicação dos pães, nas refeições com pecadores e, sobretudo, na Última Ceia, Ele oferece aquilo que não pode ser comprado nem vendido: o pão do próprio corpo carregado de humanidade, o vinho de sua vida portador das energias alegres e criativas.
Comungar o pão e o vinho não é só aderir a Jesus, à sua pessoa e à sua mensagem; não é só experimentar sua intimidade, deixando-se transformar por Ele. Implica estar dispostos a comungar com todos, porque Jesus nunca vem só: “traz” com ele toda a realidade. “Não nos devemos envergonhar, não devemos ter medo, não devemos sentir repugnância de tocar a carne de Cristo” (Papa Francisco).
Corpo de Cristo são todos os homens e as mulheres, a humanidade inteira, pois nela se encarnou o Filho de Deus. Essa é a verdade cristã: que todos comam e bebam em amor solidário e real o pão de cada dia, o vinho da festa da vida.
Corpo do Cristo quer ser em especial a Igreja, comunhão daqueles que celebram expressamente sua festa e compartilham seu pão e seu vinho eucarístico, recordando a Palavra: “o Verbo se fez carne”.
Como é bom termos essa oportunidade de mais uma vez celebrarmos o “Corpo de Cristo”, que nos alimenta e nos faz repensar nossa postura diante dos corpos... tanto do próprio corpo, como do corpo do irmão e irmã que amam e sofrem ao nosso lado!
Como seria bom se pudéssemos olhar, valorizar, respeitar, amar, cuidar dos corpos dos nossos irmãos e irmãs mais necessitados com o mesmo amor e zelo que temos pelo Corpo de Cristo!... quem fizer isso a um menor dos meus irmãos, é a mim que o fizestes..., corpos, amor, respeito, doação.
Cristo/Eucaristia... perceber e amar a presença real de Cristo no corpo... do outro.
Celebramos o “Corpo de Cristo”, uma das celebrações mais ricas que nos faz pensar em seu conteúdo e simbolismo... Mas, como celebrar este “Corpo de Cristo” no meio de tantos outros corpos? Temos muito o que pensar e rezar diante dos corpos, tanto diante do Corpo de Cristo, como diante dos corpos que passam fome, que são explorados, que sofrem... Não esqueçamos isto: Corpo de Cristo... pão... comunhão, outro, fome, pão... partilha... celebração, amor, corpos...
Jesus Cristo nos fascina por ter a coragem de ser diferente em sua época, por ser Ele mesmo e estar profundamente integrado com seu corpo, colocando-o a serviço e crescimento do outro... do outro corpo.
Jesus, na vivência de sua corporalidade, destrava e dignifica os corpos dos outros: diante dos corpos doentes... cura; diante do corpo pecador... ama, perdoa, abençoa, encoraja; diante dos corpos esfomeados: alimenta, multiplica os pães; diante do corpo sem vida: “ jovem, levanta-te!” vida nova; diante dos corpos que exploram/roubam: protesta, recusa, não façam da casa de meu Pai um covil de ladrões; ai de vós, fariseus hipócritas, que se preocupam demais com as aparências dos “corpos”... e não vêm o interior.
Seu Corpo mesmo se apresenta como amor compartilhado. O Evangelho nos conduz assim ao princípio de todo amor, que consiste em doar o corpo, a fim de que outro viva. Corpo não é aqui o oposto a alma, exterioridade do ser humano, mas pessoa e vida inteira; é comunicação e crescimento, exigência de alimento e possibilidade de morte, fragilidade e grandeza daquele que enfrenta a violência destruidora e doa sua vida em amor, criando a comunhão com todos.
A celebração de “Corpus Christi” nos revela como será o futuro: uma humanidade reconciliada e fraterna; uma mesa para todos, na qual circularão o Pão e a Palavra; uma comunidade reunida em torno do Corpo Ressuscitado e participando de sua vida.
Ao aproximarmos d’Ele, a partir da experiência dolorosa de um mundo dividido e rompido, nossa esperança se refaz ao celebrar antecipadamente a realização do sonho de Deus sobre o mundo: ser pão compartilhado e presença real do amor de Deus para com os últimos.
Comungar o Corpo de Cristo e não comungar com o outro, é comungar a própria condenação. Não se pode comungar com o Corpo e o Sangue do Senhor sem entrar em solidariedade com corpos violentados, feridos, famintos... “Se em alguma parte do mundo há fome, nossa celebração da Eucaristia fica de algum modo incompleta em todas as partes do mundo” (Pe. Arrupe).
“Na Eucaristia recebemos a Cristo faminto no mundo. Não vem a nós sozinho, mas com os pobres, os oprimidos, os que morrem de fome na terra. Por meio d’Ele vem a nós esses homens e essas mulheres em busca de ajuda, de justiça, de amor expresso em obras. Não podemos, por conseguinte, receber digna-mente o Pão da Vida, se ao mesmo tempo não damos pão para que vivam aqueles que dele neces-sitam, sejam quais forem eles e onde quer que estejam” (Pe. Arrupe)
A Encarnação foi o caminho que a Trindade escolheu para se aproximar da humanidade e fazer história conosco. Nosso corpo humano, feito de barro – vaso frágil e quebradiço – tornou-se o lugar privilegiado da chegada e da revelação do amor trinitário.
“Não sabeis que o vosso corpo é templo do Espírito Santo, que habita em vós?” (1Cor, 6,19)
O nosso corpo é o “templo” santo e santificado, onde Deus Trino faz sua morada.
A Encarnação de Jesus não autoriza qualquer desprezo da corporeidade; pelo contrário, valoriza o ser humano na sua totalidade. Cuidar do corpo para recuperar a saúde, combater o stress, harmonizar mente e corpo, razão e emoção, isto é benéfico. A deturpação desumanizante do corpo aparece quando ele é visto como fim em si mesmo.
Temos muitas ofertas para o corpo: ginásticas, academias, cosméticos, bioenergéticas, yoga, dança, expressão corporal, cirurgias plásticas, implantes, massagem...
Cuidar sim, idolatrar não; é preciso caminhar para a superação do medo do corpo, mas sem idolatrá-lo.
Texto bíblico: Mc 14,12-16.22-26
Na oração: Sinta todo o seu corpo como um templo. E neste templo acolha o Sopro. Procure saboreá-lo internamente. E deixe atuar em você a força da inspiração e da expiração para que todo o seu corpo seja iluminado e plenificado. Deixe vir a Luz e que ela penetre nas partes mais dolorosas do seu ser. Sinta que você é um corpo de argila e também um corpo de diamante.
Simplesmente respire na presença d’Aquele que É.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
Diretor do Centro de Espiritualidade Inaciana-CEI
A liturgia nos convida, neste domingo, celebrar e viver o Mistério da Trindade. Aqui não se trata somente de uma verdade para crer, mas estamos diante do fundamento e do núcleo de nossa experiência cristã. Em vez do “Mistério da SS. Trindade” (talvez algo distante e estranho para nós), o importante é a experiência história do encontro com a atividade vivificadora “da Fonte” de vida (Pai), “da Rota” do Amor (Filho) e “da Respiração” da esperança, que pacifica, alenta e reconcilia (Espírito Santo).
Para facilitar a experiência da presença e ação da Trindade em nossas vidas, nossa proposta é contemplar a escultura da Irmã Caritas Müller (veja foto acima) que está numa casa de oração na Alemanha; toda obra de arte fala mais que muitas palavras. Todo artista capta detalhes do Mistério e nos oferece ricas possibilidades de acesso que a razão nem sempre consegue explicar.
Quem é o Pai-Criador, quem é o Filho Redentor, quem é o Espírito Santificador?
As definições apresentadas pelo “dogma da Trindade” não nos ajudam muito. No entanto, a identidade da Trindade se revela na sua ação salvífica. O Pai, no Filho e pelo Espírito Santo se preocupam com cada um dos seus filhos e filhas. Sua intenção é idêntica; atitudes e gestos o demonstram: uma mesma atenção, uma mesma paixão os move para o ser humano; um mesmo amor para com cada criatura humana brota das entranhas da Santíssima Trindade.
O interessante é que, ao observarmos a escultura, vemos que o ser humano está no centro. Trata-se da pessoa na sua total fragilidade e miséria, caída e sem forças...Essa pessoa está circuncidada pela misericórdia da Trindade. Em Deus o ser humano está no centro, para que o ser humano coloque Deus no centro da sua vida.
Mais uma vez, Deus escolhe para isso o caminho do Amor que se entrega, da inquebrantável misericórdia reconstrutora, da transbordante doação que dignifica cada ser humano.
Percebemos na escultura quatro círculos. O círculo expressa o caráter único de cada pessoa, tanto divina como humana. As Três Pessoas divinas e a pessoa humana encontram-se dentro de círculos. O círculo da pessoa humana está no centro da Trindade, e os círculos das Três Pessoas da Trindade encontram-se abertos em direção a este círculo central. Pela sua Encarnação, Morte e Ressurreição, o Filho é o mediador que introduz o ser humano no coração da Trindade.
É importante notar que os círculos não são fechados, pois as pessoas podem entrar no círculo das outras na medida em que seu amor é atuante e expansivo. O círculo central recolhe uma pessoa humana, que pode ser qualquer um de nós. Não dá para saber se é homem ou mulher, pobre ou rica, jovem ou velha e assim por diante. Parece sim se tratar de uma pessoa ferida nos caminhos da vida.
O círculo, como símbolo de realização, significa que o ser humano, em sua fragilidade e em sua miséria, é chamado à plenitude de vida e de realização. Logo nos vem a lembrança do Bom Samaritano. As três pessoas divinas estão debruçadas, com reverência, sobre a pessoa machucada. É patente que o Deus uno e trino comunga no mesmo sentimento de amor e compaixão. Tudo converge para esta revelação: o ser humano desfigurado e acolhido pela iniciativa amorosa da Trindade. O ser humano desfigurado é transfigurado pelo Amor Trinitário.
A Trindade Misericordiosa envolve a criatura humana por todos os lados. Toda a atenção de Deus está centrada sobre o ser humano.
O Pai (à direita), está carinhosamente inclinado, com um dos joelhos em terra, esforçando-se com cuidado para levantar a pessoa ferida. O sentimento do Pai é de ternura e cuidado, seu rosto se aproxima e beija o rosto inerte da pessoa ferida. Ele revela seu amor misericordioso no calor do abraço, que acolhe e regenera o ser humano. Morre o mal que foi feito e celebra-se a festa da vida nova.
Assim fez o pai que, no regresso do filho pródigo, o abraça, o cobre de beijos e o cumula de seu perdão.
Levantar, rodear de ternura, abraçar, acolhê-lo em seu seio de ternura, tal é o gesto de Deus-Pai para com o ser humano. Gesto de libertação que o coloca de pé, devolvendo sua dignidade.
Jesus, o Filho de Deus (à esquerda), ajoelha e se inclina profundamente. Ele se rebaixa à mesma condição do ser humano. Ele segura e sustenta com suas mãos os pés da pessoa ferida, lava-os, cura as feridas com carinho e beija seus pés. Beijo, gesto de intimidade e de ternura, que convida a pessoa a deixar-se amar. O amor liberta, põe o homem e a mulher de pé.
Jesus nos revela o maior serviço do amor, ao mesmo tempo que realiza o mais humilde serviço. “Eu vim para servir e não para ser servido”. O Filho revela o Deus Amor-serviço, que se põe aos pés da humanidade decaída para restaurá-la, e revela o caminho do serviço como caminha para a vida. Em Jesus Deus se abaixa para estar mais perto da miséria do ser humano. Não o olha a partir de cima, abaixa-se. Não vem ao nosso encontro em nossas perfeições, mas em nossas misérias.
É o que Jesus nos revelou durante toda sua vida e de maneira especial no gesto do lava-pés. Ele põe o centro de sua ação nos seres mais pobres e mais fracos, aqueles que não contam para nada, os descartados, os que sofrem e os pecadores. O ser humano, cada um de nós pessoalmente, é tão importante aos olhos de Deus que Ele o coloca no centro de suas preocupações.
O Espírito Santo, figura que desce do alto e se aproxima do ferido, tanto pode ser a figura de uma pomba, de chamas ou de mãos que trazem vida. O bico da pomba, como o Pai e o Filho, beija a pessoa e lhe transmite o Sopro de vida. Deus quer ter o ser humano, um ser vivente, como interlocutor, um ser capaz de responder seu chamado à vida. Deseja um ser vivente, capaz de amar e de assemelhar-se a Ele.
A Pomba de fogo, voa sobre o ser humano caído e o aquece. A relação entre a Pomba de fogo e o ser humano do centro recorda Pentecostes. Cheios do Espírito Santo, os Apóstolos, antes marcados pelo medo, se transformam em testemunhas audazes de Jesus e do amor de Deus.
Pai, Filho e Espírito se preocupam pela pessoa, criada do barro da terra. A pessoa, no centro, é a figura mais escura de todas. Cor da terra, de húmus, um ser criado por Deus, e que estaria sem vida, se esta não lhe fosse comunicada pelo Criador.
Ao experimentar esta acolhida restauradora, o ser humano é chamado a ser também presença da Trindade Amiga para seus irmãos, construindo a comunhão trinitária no mundo em que vive. Só corações solidários adoram um Deus Trinitário
Texto bíblico: Mt 28,16-20
Coloque-se no lugar do ser humano, no centro da escultura, e faça a experiência de ser acolhido e amado pelas divinas Pessoas trinitárias.
Coloque no coração da Trindade as pessoas que você sabe que precisam da graça desta experiência.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
Diretor do Centro de Espiritualidade Inaciana -CEI
“Soprou sobre eles e disse: Recebei o Espírito Santo” (Jo 20,22)
Há muitos ventos e ruídos ao nosso redor: o ruído alucinante das máquinas e das músicas metálicas; o ruído de tanta violência, gritos, maltratos, mentiras; o ruído da intransigência, intolerância, fanatismo, condenações, ameaças... Em meio à tempestade levantam-se ondas de dor e sem sentido, de medos paralisantes e dúvidas angustiantes, de mortes violentas e prematuras que fazem naufragar barcas cheias de sonhos. O planeta terra grita de um modo ensurdecedor: os últimos terremotos, os incêndios, os furacões, as inundações... nos avisam cotidianamente desse grito do Planeta que não queremos escutar.
Além disso, sopram outros ventos tempestuosos que nos ameaçam, arrastando tantas seguranças que nos sustentaram, tantos barcos nos quais subimos, tantos salva-vidas aos quais nos agarramos... As tempestades e as tormentas nos assustam, tem o perigo de nos converter em pessoas medrosas, buscadoras de seguranças próprias, fugitivas caminhantes para os lugares de calma.
No entanto, em meio à tempestade urge não perder a serenidade, não permitir que o ruído dos ventos nos vença, que os relâmpagos nos ceguem, que as ondas nos levem segundo seu capricho. Nas tempestades também é necessário “soltar amarras e içar velas”, ou seja, atrever-se a “viver no Vento”. Soltar as amarras e âncoras de nossos apegos, de nosso consumismo, nossa prepotência, afã de domínio, exclusivismos, fundamentalismos, patriarcalismo, machismo.... Precisamos perder o medo dos novos ventos e içar as velas da inculturação, da riqueza da pluralidade de culturas, religiões, raças, deixar-nos mover pelo vento dos movimentos de libertação (povos em desenvolvimento, negros, indígenas, os sem terra, os movimentos ecologistas, pacifistas, feministas...), acolher o vento que nos impulsiona em direção ao novo e diferente...
A barca de nossa vida naufragará na estreita calma de mares mortos se não formos capazes de desatar os antigos nós de marinheiros que impedem içar as velas para receber os novos ventos da história. “Velas que ao içar-se, se inflariam com o vento dos sinais dos tempos” (Pepe Laguna).
Ancorados na fidelidade a Jesus e a seu Reino, podemos consentir que os Ventos do Espírito levem todos os nossos velhos padrões mentais, ideias fixas e atitudes petrificadas, preconceitos e tudo o que já está caduco e que não nos impulsionam para a outra margem..., Este é o melhor legado que podemos oferecer aos nossos contemporâneos, sacudidos por tormentas que os afundam sem poderem vislumbrar um novo horizonte.
O Espírito insuflou e insufla vida em todas as etapas do universo, na evolução dinâmica para o novo. Ele suscitou ao longo da história, palavras desafiantes, caminhos ainda não percorridos, imagens novas. De fato, tudo se move e se renova: move-se o sol, a lua e a terra, o átomo e a estrela; move-se o ar, a água, a chama, a planta; move-se o sangue, o coração, o corpo, a interioridade. Tudo se move, nada se repete. Tudo é calma e dança, quietude e movimento. Em tudo move-se o Espírito de Deus, energia do amor, possibilitador da Vida. O Espírito é o Mistério que tudo move e tudo impulsiona em direção ao amor e à beleza. Deixemo-nos mover por Ele! Deixemo-nos levar!
Por seu sentido etimológico, “espírito” – “ruah” – na bíblia hebraica, se refere ao vento, ao ar que impulsiona, e ao alento ou a respiração que mantém a vitalidade dinâmica do ser humano. A “ruah” (porque “espírito” é feminino em hebraico) é um modo de descrever a Deus como impulso, alento, força... presença que perpassa tudo, e não se pode retê-la nem dominá-la.
Nós o sentimos soprar no mundo, no amor das mães, no trabalho sacrificado dos pais, na bondade, na ajuda, na ciência, na inteligência, na compaixão... Sentimos a presença do Vento de Deus, que infla as velas de nossas pobres barcas e as leva para outros horizontes. E, mais intimamente, o Vento de Deus é Alento, aquele que faz respirar, que tira o des-alento, o que anima, nos faz viver com ânimo.
Em Jesus de Nazaré vemos soprar o Vento de Deus como em nenhum outro. As angústias mais radicais do ser humano são reunidas e transformadas pelo sopro do Espírito: um sopro vital que possibilita a vitória da esperança contra o desespero, da comunhão contra a solidão, da vida contra a morte. A voz sopra onde quer, a Palavra vem do alto, o Espírito chega impetuoso rompendo o silêncio da morte. O Vento traz a vida, mas não se sabe de onde vem e nem para onde vai.
Quando experimentamos a desorientação, a fragilidade, a falta de sentido, damo-nos conta que precisamos de um novo Sopro que nos fará sonhar e nos deslocar para além de toda estreiteza da vida. O Espírito age de modo silencioso, mas com extraordinária eficácia: a sua força se mostra irrefreável. O seu sopro, penetrando nossos corpos, nos recoloca de pé e nos faz, finalmente, ressurgir.
A santa Ruah é a energia que cria solidariedade, reconciliação, que constrói e mantém a Grande Aliança.
Deixando-nos conduzir pelo Sopro do Espírito Santo, podemos realizar em nosso interior uma boa “ecologia do espírito”, ou seja, recuperar a utopia frente ao desencanto, promover o espírito de comunidade frente ao individualismo, cultivar a abertura ao outro frente ao preconceito cruel, impulsionar o compromisso frente à mera tolerância, apoiar a justiça frente ao puro assistencialismo, incentivar a criatividade frente ao mimetismo, fomentar a solidariedade frente ao autocentramento, promover o espírito de verdade frente à mentira, inspirar a fé frente a um horizonte sem sentido...
Neste dia de Pentecostes, nós, portadores da “Ruah”, tomamos consciência que o Espírito é movimento que transmite o sopro de vida (vento), reúne no Amor todos os povos (fogo) e comunica a todos o Amor universal (línguas). Nas trevas em que muitas vezes ainda tateamos, o Espírito é fogo que abrasa, ilumina e aquece, para que floresça em todos nós a plenitude de vida. Sua força é uma força humanizadora, libertadora e salvadora.
Texto bíblico: Jo 20,19-23
Na oração:
Santa Ruah, és o Amor do Abbá e de Jesus derramado em todos os corações, na humanidade, na natureza. Estás presente no mais íntimo de toda a realidade. Quão difícil para nós detectar tua presença, tua poderosa ação, tua misteriosa e infalível missão!
Santa Ruah, tu és o Ar que nos faz respirar, a causa de todas as nossas alegrias, a Surpresa de todas as nossas surpresas, a Beleza que permanentemente se revela e se expressa de mil formas, embelezando tudo.
Tu és o Espírito que estabeleces o cosmos em meio ao nosso “caos” provocado pelos maus espíritos que nos rodeiam e nos atacam. Tu és, Santa Ruah, que nos modela à imagem e semelhança do Abbá e de Jesus, fazendo de todos nós teu santuário vivente. Tu tens a missão trinitária de conduzir tudo a bom termo, de ir construindo conclusões, de rematar obras, de fazer emergir a bondade, a beleza, a verdade.
Tu és a Santa Ruah que santifica, que nos torna seres transparentes, luminosos, pouco a pouco habitantes de um novo mundo que não somos capazes de entender. É a ti, Santa Ruah, a quem irá se dirigindo nosso último suspiro. És tu, quem nos acolherá e nos levará para junto do Abbá e de Jesus.
És tu, Santa Ruah, quem nos purificará, nos recriará e nos santificará.
Em nome do Abbá, do Filho e da Santa Ruah. Amém.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
Diretor do Centro de Espiritualidade Inaciana – CEI
“Os discípulos então saíram e pregaram por toda parte” (Mc 16,20)
Esta cena final do Evangelho de Marcos está em íntima sintonia com todo o seu evangelho. De fato, os versículos hoje propostos à nossa oração falam do mandato de Jesus aos discípulos: “ide pelo mundo inteiro”. Em outras palavras, não há ruptura entre a missão de Jesus e a dos discípulos. O ministério de Jesus se prolonga no testemunho dos seus seguidores. E é importante não esquecer que Jesus continua caminhando nas estradas da humanidade, nos passos e ensinamentos dos seus discípulos. Isso nos leva a afirmar que a Ascensão de Jesus não nos priva de sua presença; pelo contrário, oferece-nos novos modos de senti-Lo e de encontrá-Lo. Começa, assim, definitivamente o tempo da comunidade cristã.
Os discípulos, portanto, darão sequência ao que Jesus fez, ampliando o campo de ação: Jesus anuncia o evangelho na Galileia; os discípulos, por sua vez, deverão fazê-lo pelo mundo inteiro e a toda criatura.
O seguidor de Jesus é impelido continuamente a uma vivência “fronteiriça”: arrancar-se, desinstalar-se, abrir-se a situações novas, assumir novos riscos, renovar-se sem cessar, adaptar-se às condições de tempo e lugar, tenacidade com uma boa dose de paixão…
A fronteira é espaço tenso e conflitivo; ali o Evangelho se faz mais transparente, o seguimento de Jesus se faz mais radical, a vivência cristã deixa de ser neutra e começa a ser conflitante. Dizer “fronteira” é como dizer novidade; fronteira significa lugares novos, experiências novas, desafios novos. Comporta emoção e descoberta, com sabor do risco, do perigo, da ousadia...
Na história da Igreja muitos homens e mulheres viveram em atitude de permanente êxodo e disponibilidade,numa espécie de itinerância interior e exterior que os converteu em vanguardas da história.
Os grandes desafios atuais exigem 'uma Igreja missionária toda em saída', reafirmou o Papa Francisco.
“A Igreja ‘em saída’ é a comunidade de discípulos missionários que ‘primeireiam’, que se envolvem, que acompanham, que frutificam e festejam. A comunidade missionária experimenta que o Senhor tomou a iniciativa, precedeu-a no amor e, por isso, ela sabe ir à frente, tomar a iniciativa sem medo, ir ao encontro, procurar os afastados e chegar ás encruzilhadas dos caminhos para convidar os excluídos. Vive um desejo inesgotável de oferecer misericórdia, fruto de ter experimentado a misericórdia infinita do Pai e a sua força difusiva (...) Com obras e gestos, a comunidade missionária entra na vida diária dos outros, encurta as distâncias, abaixa-se até à humilhação e assume a vida humana, tocando a carne sofredora de Cristo no povo”. (Evangelli Gaudium).
O evangelho de hoje conclui que os discípulos saíram e anunciaram por toda parte o que o Mestre anunciou: a boa notícia do mundo novo inaugurado com Ele. Este anúncio será acompanhado de “sinais”:
- os dois primeiros sinais (expulsar demônios em nome de Jesus e falar novas línguas) mostram que a ação dos discípulos é libertadora e comunicadora do mundo novo, eliminando tudo o que despersonaliza, oprime e marginaliza as pessoas, e libertando as pessoas de todo tipo de alienação.
- o terceiro e quarto sinais (pegar serpentes ou beber veneno mortal) falam dos confrontos e conflitos que aparecerão no caminho daqueles que, a partir da fé no Ressuscitado, vivem o compromisso com a vida: quem anuncia e realiza o projeto de Deus sofre oposições imprevistas e veladas (serpentes) ou evidentes e abertas (tentativa de matar os discípulos por envenenamento).
- o quinto sinal (impor as mãos sobre os doentes, curando-os); os discípulos, em estreita comunhão com a ação de Jesus, prolongam Suas mãos, curando, abençoando, levantando os caídos, sustentando os fracos.
Como o pe. Vitor Codina sj, podemos também nós, sonhar e permitir que a festa da Ascenção desate em nós um profundo dinamismo pascal e eclesial:
- passagem de uma Igreja poderosa, distante, fria, endurecida, medrosa, reacionária, da qual as pessoas se afastam e abandonam... a uma Igreja pobre, simples, próxima, acolhedora, sincera, realista, que promove a cultura do encontro e da ternura;
- passagem de uma Igreja moralista, legalista, doutrinária... a uma Igreja que vai ao essencial, que se centra em Jesus Cristo contemplado e seguido, que difunde o bom odor do Evangelho e convida a que todos coloquem Jesus Cristo no centro de suas vidas;
- passagem de e uma Igreja centrada no pecado e que fez do sacramento da confissão uma tortura e converteu o acesso aos sacramentos em uma alfândega inquisitorial... a uma Igreja da misericórdia de Deus, da ternura, da compaixão, com entranhas maternais, que reflete a misericórdia do Pai, uma Igreja sobretudo hospital de cam-panha que cura feridas, que cuida da criação, na qual os sacramentos são para todos, não só para os perfeitos;
- passagem de uma Igreja centrada nela mesma, autorrefencial, preocupada com o proselitismo... a uma Igreja dos pobres, preocupada sobretudo com a dor e o sofrimento humano, a guerra, a fome, o desemprego juvenil, os anciãos, onde os últimos sejam os primeiros, onde não se possa servir a Deus e ao dinheiro; uma Igreja profética, livre em relação aos poderes deste mundo;
- passagem de uma Igreja fechada em si mesma, relíquia do passado, com tendência a olhar para o próprio umbigo, com cheiro de mofo, que espera que os outros venham até ela... a uma Igreja que sai às ruas, que vai às margens sociais e existenciais, às fronteiras, aos que estão longe, mesmo sob o risco de sofrer acidentes; uma Igreja que seja semente e fermento, que abra caminhos novos, que vá sem medo para servir, uma Igreja ao ar livre, que sai às sarjetas do mundo, uma Igreja em estado de missão;
- passagem de uma Igreja que discrimina os que pensam diferente, os diversos, os outros... a uma Igreja que respeita os que seguem sua própria consciência, as outras religiões, os ateus, dialoga com não crentes... uma Igreja de portas abertas, atenta aos novos sinais dos tempos;
- passagem de uma Igreja com tendência restauracionista e que tem saudades do passado... a uma Igreja que considera que o Vaticano II é irreversível, que é preciso implantar suas intuições sobre a colegialidade, desclericalizar-se, evitar o centralismo e o autoritarismo no governo, caminhar em meio às diferenças, confiar maiores responsabilidades aos leigos, dar maior protagonismo à mulher...;
- passagem de uma Igreja com pastores fechados em suas paróquias, clérigos de despacho, que buscam fazer carreira, que estão no laboratório e às vezes acabam sendo colecionadores de antiguidades...a pastores que “cheiram a ovelha”, que caminham na frente, atrás e no meio do povo;
- passagem de uma Igreja envelhecida, triste, com gente com cara de velório, a uma Igreja jovem e alegre, fermento na sociedade, com a alegria e a liberdade do Espírito, com luz e transparência, sem nada a ocultar, com flores na janela e cheiro de lar, onde os jovens sejam protagonistas, pois são como a menina dos olhos da Igreja;
- passagem de uma Igreja ONG piedosa, clerical, machista, monolítica, narcisista... a uma Igreja Casa e Povo de Deus, mesa mais que estrado e tapete, que respeita a diversidade, onde os leigos, as mulheres, as famílias jogam um papel relevante. É a Igreja de Aparecida, de discípulos e missionários para que os nossos povos em Cristo tenham vida, uma casa eclesial onde reina a alegria.
Texto bíblico: Mc 16,15-20
Na oração: É Ele o Senhor que com seu chamado planta a Igreja em cada coração, filialmente configurado por e com seu Espírito. O seguidor descobre n’Ele o centro de sua vida e Ele o vai levando à Igreja, como os seus primeiros discípulos. Essa identificação progressiva com Ele desemboca na comunidade eclesial. Por isso, a Igrejaé o lugar dos identificados com Cristo. Ser de Cristo, trabalhar para Cristo, é não só ser da Igreja, senão ser Igreja, sentir-se Igreja.
Rezar a sua pertença e seu compromisso na comunidade eclesial
Pe. Adroaldo Palaoro sj
Diretor do Centro de Espiritualidade Inaciana -CEI
”Eu vos digo isto para que a minha alegria esteja em vós e a vossa alegria seja plena” (Jo 15,11)
É profundamente sábia a afirmação acima, feita por Jesus no contexto da Última Ceia. E é profundamente significativo que Ele pronuncie estas palavras no contexto de seu “único mandamento”. Alegria e Amor são dois nomes da Realidade que somos. E não podem andar separados. Não se trata de nenhuma crença, nem tampouco de uma exigência moral. A Vida é Alegria e Amor.
O evangelho de hoje parece nos indicar que a alegria, junto com o amor, é um dos sentimentos mais terapêuticos: nos centra e nos descentra, nos resitua, nos abre a dimensões de infinito, tirando-nos de mecanismos egocentrados, que nos fazem girar sobre nós mesmos de um modo doentio.
Todos nós podemos fazer a experiência de que, quando nossa capacidade de amar se encontra liberada, a alegria flui espontaneamente. E quando nos sentimos conectados à alegria, o amor flui na mesma medida.
Por isso, caminhamos na direção adequada na medida em que permanecemos conscientemente conectados a ambas realidades. E não por uma exigência moral, mas porque descobrimos que se trata de nossa verdadeira identidade.
Como dom do Espírito, a alegria brota do interior da pessoa e se expande; nesse sentido, a alegria é mais que um estado de ânimo; é o estado da pessoa inteira. Por isso, a alegria não é algo que acontece na pessoa: é a pessoa mesma acontecendo. A alegria é gerúndio: é a pessoa alegrando-se.
A alegria se dá na mesma medida que a vitalidade; de fato, ela é seu primeiro sinal. Quando não há nada que “deprima” a vida da pessoa, automaticamente experimenta a alegria de viver. Só quando a vida se vê bloqueada – geralmente por falta de amor – a alegria de apaga, até o ponto de se crer que ela desapareceu.
Nossa alegria é Cristo ressuscitado. Ele é a causa de nossa alegria. Ele nos dá vida em plenitude.
A alegria é um elemento central da experiência cristã. Nisto consiste a verdadeira alegria: em sentir que um grande mistério, o mistério do amor de Deus, visita e plenifica nossa existência pessoal e comunitária.
“A alegria do Evangelho enche o coração e a vida inteira daqueles que se encontram com Jesus. Com Jesus Cristo sempre nasce e renasce a alegria” (Ev. Gaudium).
Jesus é um homem vital e alegre. Não é um moralista que busca algum tipo de comportamento específico, nem é um legalista que controla a vida das pessoas. Só lhe interessa que as pessoas possam experimentar a Alegria profunda.
Os Evangelhos nos revelam que Jesus vivia sereno, feliz ,alegre . As bem-aventuranças são o fiel reflexo de sua vida; seu íntimo trato com o Pai, sua paixão pelo Reino, suas relações pessoais, suas amizades, seu estilo de vida, sua vivência sob a ação do Espírito... são vividos na paz e na alegria.
Diante dos sinais e prodígios que realiza Jesus exulta de alegria no Espírito Santo; revela-nos que Deus é alegria em si mesmo e para nós e que a salvação definitiva é “entrar na alegria do seu Senhor” (Mt 25,21).
A alegria, sentimento pascal, é um sinal palpável de saúde mental-emocional-espiritual, tanto nas pessoas como nas comunidades. A ausência da alegria, ao mesmo tempo que revela algum mal-estar não resolvido, costuma traduzir-se em rigidez e dureza para com os outros. É como se, ao não poder estar eu alegre, não posso permitir que ninguém esteja.
Esta alegria não está livre da presença de dificuldades, problemas, conflitos... Tudo isto faz parte de nossa condição e da porção da existência. Mas a Alegria de que fala Jesus é aquela que abraça os “bons” e “maus” momentos, do mesmo modo que a calma profunda do oceano permanece estável, haja serenidade ou tormentas em sua superfície. Trata-se de uma alegria unificadora que experimentamos quando estamos em contato com nossa verdadeira identidade.
“Somos Alegria”, embora nos toque passar por momentos de obscuridade, dor, aflição...
Cristãos tristes? Talvez, pela presença da dor, da injustiça, da prepotência, do mal humor, dos sorrisos superficiais e irônicos..., por tantas coisas contrárias ao amor. Mas alegres no Senhor, seguros de seu triunfo, tranquilos por não ter que aparentar o que não somos, sem medo de fracassar, prontos para conversar como autênticos irmãos. Quê alegria saber-se salvos! Que sabor infinito poder ser simplesmente humanos!
Traços característicos desta Alegria Cristificada. Quando a experimentamos ela transforma a vida; ela é o estado de espírito onde seguramente Deus habita. É o melhor presente: produz contágio e atração; é sintoma evidente de uma vida sadia; é a que ativa a confiança e segurança a tudo o que está ao redor. Ela é opção para que os outros respirem, descansem. Requisito imprescindível é que alargue horizontes, que seja compartilhada com outros. Acompanha toda pessoa aberta que assume o futuro com ombros largos onde cabem outros. É o termômetro do tempo doado, de uma cruz assumida e que pode libertar a muitos.
É a linguagem da novidade, a oferta irrenunciável e, talvez, o desafio mais necessário: recordar ao mundo que Pai se diz sorrindo, que Filho se pronuncia rindo e que é o rastro indiscutível de um Espírito que só pode ser Santo.
A Igreja, por vocação e missão, deve ser alegre. Toda ela é profecia de alegria e esperança.
Na Exortação Apostólica “A Alegria do Evangelho”, do papa Francisco, aflora um sentimento vivo da alegria do evangelho que enche o coração e a vida inteira daqueles que se encontram com Jesus, em contraste com o risco da tristeza individualista, busca de prazeres superficiais e o isolamento do mundo atual. O Evangelho é fonte de alegria e de vida, um contentamento que brota do encontro com o Cristo ressuscitado. É genial que a primeira experiência do Ressuscitado tenha ficado associada ao regozijo extremo, ao júbilo irrefreável e à animação incontrolável. Alegria com sabor de reencontro, satisfação por uma vitória (nada menos que frente à morte), glória bendita.
Esta alegria é a que impulsiona os cristãos a evangelizar, a anunciar a boa e sempre nova notícia da salvação e do amor de Cristo. Por isso, os cristãos não devem ter cara de funeral, nem de quaresma sem Páscoa, mas irradiar ao mundo a alegria de Cristo.
Páscoa é passar de uma Igreja envelhecida, triste, com rosto amargo a uma Igreja jovem e alegre, fermento na sociedade, com a alegria e a liberdade do Espírito.
Texto bíblico: Jo 15,9-17
* A aceitação da própria condição humana lhe ajuda a celebrar a vida em todas as circunstâncias e a saborear a realidade, cheia de riscos, incerta e insegura para todos, mas, ao mesmo tempo, única e irrepetível para sempre.
* Reze de coração alegre uma oração nova, a “oração do sorriso”. Chore os seus pecados, mas ria do pecador que você é. A partir de então, o ruído do riso solto, inexplicável e explosivo, lhe avisará de que Ele está por perto. Abra-se à presença misteriosa do Ressuscitado que quebra a rigidez da vida e desata a alegria contida.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
Diretor do Centro de Espiritualidade Inaciana -CEI
“...e todo ramo que dá fruto, Ele o poda, para que dê mais fruto ainda” (Jo 15,2)
O tempo pascal é o tempo litúrgico que nos desperta para esta realidade: “a sabedoria em tempos de poda”. A “passagem pascal” é passagem pela poda para que a vida se manifeste em sua plenitude.
A sabedoria consiste, justamente, em saber ler e perceber a inspiração e novidade que Deus nos oferece em toda poda; o Pai é o agricultor e pode converter os golpes da poda em um futuro de vida de mais qualidade para tempos novos.
Tal como Jesus, todos nós hoje vivemos, de maneiras diferentes, tempos de poda, tanto na vida eclesial e social como na vida pessoal. Buscamos discernir por onde brota e cresce hoje a novidade de Deus nos ramos podados. Não existe nenhuma situação pessoal ou social onde Deus não esteja trabalhando e onde não possa ser encontrado para criar com Ele sua novidade na história.
A poda pode ser ocasião para nos perguntarmos como enfrentar de maneira criativa os grandes desafios do serviço ao Reino numa cultura que globaliza a sedução, a superficialidade e o consumismo; e, ao mesmo tempo, como deixar-nos conduzir pelo Espírito que trabalha escondido nesta mesma cultura como a seiva na videira. Sem poda, não há criatividade, nem futuro.
Sentimo-nos impulsionados pela seiva do Espírito que alimenta as energias do universo e a nossa própria energia vital e espiritual. Conectar-se com a videira possibilita alcançar a seiva, o pulsar da vida e o equilíbrio nas relações; viver em profunda fusão com a videira desperta as energias criativas, todas as grandes motivações adormecidas, toda bondade aí presente.
Sem a seiva divina que nos atravessa nunca poderemos dar o verdadeiro fruto.
Nas podas o importante é permanecer unidos ao tronco de onde nos chega a vida, embora tudo parece morte. Nesse sentido, “permanecer” é a palavra chave no Evangelho de hoje: permanecer nos compromissos assumidos, nos passos que buscam abrir caminhos novos; permanecer nas lutas por defender os direitos dos mais fracos e pobres, na incansável denúncia daquilo que atenta contra toda vida por mais insignificante que pareça; permanecer na misericórdia entranhável, no serviço escondido...
Permanecer ancorados na fidelidade a Jesus e a seu Reino e consentir que as podas nos libertem de todos os nossos velhos padrões mentais, ideias fixas e atitudes petrificadas, preconceitos e tudo o que já está caduco e que não nos conduzem a uma vida expansiva...; permanecer conectados somente na pessoa de Jesus e no sonho do Reino como o melhor legado que podemos oferecer aos nossos contemporâneos, sacudidos por tormentas que os afundam sem poderem vislumbrar um novo horizonte.
A imagem que João apresenta no Evangelho de hoje é deveras instigante. Quando se poda a videira, ela é despojada de todos os ramos, os sarmentos. Só fica um tronco áspero e escuro, sem uma mínima folha verde. Qualquer um que não entenda de podas dirá que a videira está absolutamente morta em meio ao inverno. Só ficam presos ao tronco alguns centímetros de ramos que deram fruto em outro tempo e que agora parecem cotocos sem futuro.
A “poda” faz parte essencial de todo o processo de crescimento. Poderíamos expressar assim: a poda significa morrer ao que não somos (falsas imagens de nós mesmos, vaidade, prestígio...) para que possa brotar, a partir de nossa interioridade, o que realmente somos. Trata-se da poda do ego (fechado, petrificado, sem vida...) para que possa destravar-se a Vida que carregamos por dentro e que é a nossa verdadeira identidade.
A seiva de nosso ser essencial constitui nossa autêntica vida. Descobri-la, abrir-nos a ela, fazer-nos transparentes a ela e vivê-la cada dia constituem a plenitude de nossa realização. É seiva divina, presente no eu mais profundo, que nos arranca de nosso fechamento e nos faz ir para além de nós mesmos; ela nos abre a uma Realidade maior que nos transcende; é ela que nos faz perceber que temos no coração um espaço que está feito à medida de Deus.
A presença da seiva é um reforço, um suporte, um energético do eu, uma ativadora das capacidades do eu; ela não constrange, não violenta, mas ajuda, esclarece, mobiliza as energias presentes em nós. É nesse conjunto de recursos e dinamismos vitais que a Graça (seiva) de Deus trabalha; Ela pode ser considerada como uma presença dinâmica, um estimulante das energias latentes do eu. Por isso, precisamos viver mais nas raízes de nosso ser; precisamos aprender a viver de uma maneira mais profunda e autêntica, a partir do núcleo mais íntimo de nosso ser, a partir de nosso ser essencial.
Partindo da imagem da videira, podemos extrair dela algumas conclusões (cf. Benjamin Buelta):
- Quando se poda um ramo, podem continuar saindo pelos cortes pequenas gotas de seiva como se a videira chorasse a perda. O importante é acolher a poda, fazer o luto, despedir-se do perdido, e não petrificar-se numa queixa obsessiva que gira sobre si mesma paralisando o futuro. Se não se vive o luto e não se assume a perda, as feridas se prolongam no tempo e deixam um rastro de dor que nunca cicatriza.
- Durante semanas, na videira podada não acontece nada por fora, mas por dentro, no escondimento da interioridade, célula a célula, ela vai sendo novamente gestada através de processos pequenos e invisíveis. O ritmo é lento e não responde às impaciências do agricultor nem a hostilidade do clima que abate sobre ela. Todo o trabalho é interior e silencioso.
- Quando chega a primavera, a casca ressecada e endurecida da videira começa a abrir-se a partir de dentro pela força da vida que cresceu em seu interior. O rigor do frio vai se afastando de seu entorno. Aparecem os brotos, os ramos, as folhas e cachos de uvas.
É tempo de surpresa, uma vitalidade assombrosa em sua pequenez e vulnerabilidade, que já não é possível esconder e deter debaixo da casca. As uvas maduras deixam transparecer o dinamismo da seiva vital.
Texto bíblico: Jo 15,1-8
Na oração: rezar as “podas” na vida pessoal, familiar, profissional, eclesial... como oportunidade para o surgimento do novo: nova vida, nova visão, nova sensibilidade...
Somos chamados a assumir nossos tempos atuais de poda com “fidelidade criativa”, pessoal e institucional, nas “fronteiras existenciais” da realidade onde nos encontramos, ao lado do povo de Deus, podado mais cruelmente que nós, que caminha pela história mutilado e ressuscitado ao estilo de Jesus.
Somos desafiados a nos deixar podar de tudo o que amarra e impede o passo, os pesos mortos que nos paralisam, o ranço que faz perder o sabor e o sentido em nossa missão.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
Diretor do Centro de Espiritualidade Inaciana –CEI
“Eu dou minha vida pelas ovelhas” (Jo 10,15)
Embora o Evangelho de hoje já não fale mais de Aparições do Ressuscitado, na realidade não nos afastamos do tema pascal, pois Jesus afirma expressamente: “O bom Pastor dá a sua vida por suas ovelhas”.
A Vida é o verdadeiro tema da Páscoa. E “a vida sempre tem razão” (Rilke). Para o evangelista João, a “vida” é, antes de tudo, totalidade, vastidão, amplidão ilimitada e que se expressa em infinidades de formas, todas elas habitadas pela mesma e única Vida. Falamos da vida presente, a vida atual, uma vida carregada de tal plenitude e de tal densidade que, com toda razão, podemos chamá-la de “vida eterna”, e que nem mesmo a morte poderá com ela.
Mais ainda, o Deus que Jesus nos revela O encontramos na vida, ou seja, Deus se fundiu com a vida, essa vida que nos entra pelos sentidos. Encontramos Deus, antes de tudo, pelo que vemos e sentimos, pelo que apalpamos com nossas próprias mãos, por tudo aquilo que, ao senti-Lo, se faz vida em nós.
Deus entra pelos sentidos.
Quando alguém se deixa invadir pelo humano, quando uma pessoa se humaniza de verdade e é sensível à dor do mundo, é sinal que Deus entrou pelos seus sentidos. E então justamente é quando, de verdade, se encontra com o “Deus desconcertante”, o Deus que Jesus de Nazaré nos revelou. Por isso, na vida humana, é tão determinante a sensibilidade, o afeto, a ternura, a bondade, a compaixão, o cuidado, tudo o que gera amor, carinho e doação de uns para com outros.
Para fazer-se presente neste mundo, Deus não veio impor-nos uma nova doutrina e uma nova lei, mas apresentou-se a nós na vida de um Homem que nasceu pobre, que viveu entre os pobres e que “morreu de tanto viver”. Por isso, o sinal decisivo de que alguém crê no Deus de Jesus está na vida que leva; em outras palavras, está em viver como viveu Jesus de Nazaré. Isso quer dizer que o sinal de que uma pessoa encontrou o Deus de verdade é que ela se relaciona com os outros como Jesus se relacionou, que sente o que Jesus sentiu, que ama o que Jesus amou. Quem não encontra a Deus “nesta” vida, não o encontrará jamais.
Nas comunidades cristãs precisamos viver uma nova experiência de Jesus, reavivando nossa relação com Ele, colocando-o no centro de nossa vida. Assim, a Vida de Jesus vai se fazendo vida em nós. Esta relação intensa em fazer caminho com Ele se expande na vivência de novas relações com os outros e com a realidade que nos cerca.
Por isso, quem se percebe assim, só pode viver o cuidado para com tudo e com todas as expressões de vida. Um cuidado que Jesus expressa na imagem do “pastor”, imagem que não expressa sua densidade e seu sentido para a maioria de nossos contemporâneos, mas que continha uma extraordinária riqueza no contexto em que Jesus a utilizava. Certamente, não somos “ovelhas” em sentido literal, mas pessoas. Jesus, bom pastor, abre a porta da Vida e nos permite sair para o Espaço da Liberdade e da Páscoa.
O decisivo é “escutar a voz do Pastor” em toda sua limpidez e originalidade. Ele é a voz da Vida. Não confundi-la e nem nos deixar distrair ou enganar por outras vozes estranhas, que, mesmo escutadas no interior da Igreja, não comunicam sua Boa notícia.
Todos nós “conhecemos a voz” da Vida. Por isso, cada vez que vemos, ouvimos ou lemos algo carregado de vida, produz-se uma ressonância em nosso interior. É uma voz que “ressoa” em nós, embora tenha estado apagada durante muito tempo.
Em nosso contexto há muitas vozes e de todo o tipo. São tantas que corremos o risco de ficar confusos. Algumas delas podem apresentar-se especialmente atrativas porque parecem encaixar perfeitamente com o que são as necessidades do ego. Há vozes que prometem, vozes que compensam, vozes que entretém, vozes que distraem, vozes que seduzem, vozes que inflam, vozes que assustam, vozes que ameaçam, vozes que nos dão a razão, vozes que nos rejeitam... Tantas vozes... e não é estranho que, em algum momento, as sigamos. No entanto, se não são a genuína voz da Vida, não nos alimentarão; seu encanto se revelará passageiro e, com frequência, frustrante.
Jesus fala a partir da Vida, ou melhor ainda, como a Vida. Só pode falar a partir da Vida quem se reconhece nela, que descobriu que a Vida é sua verdadeira identidade. Compreende-se, assim, que quem disse “eu sou o bom pastor”, disse também “Eu sou a vida”. Nesse sentido, a vivência pascal está focada na missão de favorecer a vida. “Dar vida” não é algo que o ego possa fazer. A Vida dá-se a si mesma; ela é expansiva, aberta... Necessitamos unicamente reconhecer-nos nela, de um modo cada vez mais consciente e, portanto, destravada, para que flua e se expresse através de nós, em gestos concretos.
Essa é a experiência pascal da vida: experiência da intimidade, da presença, da proximidade, da comunhão, da aliança, da glória de Deus, em nossa própria vida. Vivemos embriagados de vida, sentimo-nos como um peixe no oceano de Deus, dizendo um profundo “sim” às ondas, ao vento, ao sol, à existência... Como ressuscitados, sentimos e sabemos: se Deus não pode ser encontrado no próprio coração e no coração da vida, não será encontrado em lugar nenhum.
Seguir o Bom Pastor e ouvir a sua voz é deixar-se “configurar” por Ele, é movimento pelo qual cada um vai sendo modelado à imagem d’Ele. O seguidor do Bom Pastor sente-se cativado, envolvido, amado, entusiasmado, sintonizado, habitado por Ele de tal maneira que seus olhos, gestos, suas atitudes, palavras, seu coração, sua existência transbordam Deus.
O olhar transparente e livre do Bom Pastor ressuscita o nosso olhar tímido e estreito e nos capacita a olhar amplos horizontes: seu povo, seu mundo dividido e excluído... Seu olhar nos predispõe a encontrar motivações saudáveis e maduras que nos permitam olhar e viver no contexto atual com amor, com entusiasmo e criatividade.
O encontro com o Bom Pastor ativa em nós o “pastor escondido” para que possamos ser a voz de vida que faz a diferença e indique a todos a porta de liberdade ; todos nós temos de ser pastores que os ajudem a encontrar o caminho e o sentido para suas existências..
Queremos ser “bons pastores” que se ajudem mutuamente a sair do aprisco onde estamos fechados (moralismo, legalismo, ritualismo, religião sem vida...), para assim busca e celebrar a liberdade, com o Bom Pastor e com todos os homens e mulheres de boa vontade.
Texto bíblico: Jo 10,11-18
Na oração: revisar a própria vida à luz da Vida Maior do Ressuscitado. Perceber o dom da vida na sua origem, seguindo a voz do bom Pastor, para prolongar seus gestos e o seu cuidado em favor da vida.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
Diretor do Centro de Espiritualidade Inaciana -CEI
“Vede minhas mãos e meus pés: sou eu mesmo!”
Lucas descreve o encontro do Ressuscitado com seus discípulos como uma experiência fundante. O desejo de Jesus é claro. Sua missão não terminou na Cruz. Ressuscitado por Deus depois da execução, entra em contato com os seus para pôr em marcha um movimento de “testemunhas” capazes de contagiar a todos os povos com sua Boa Notícia: “Vós sereis testemunhas de tudo isso”.
Não é fácil converter em testemunhas aqueles homens afundados no desconcerto e no medo. Ao longo de toda a cena do Evangelho de hoje, os discípulos permanecem calados, em silêncio total. O narrador só descreve seu mundo interior: estão cheios de medo; só sentem perturbação e incredulidade; tudo aquilo lhes parece muito bonito para ser verdade.
É Jesus quem vai regenerar a fé em seus corações. Apesar de vê-los cheios de medo e de dúvidas, Jesus confia em seus discípulos. O mais importante é que não se sintam sozinhos. Hão de senti-Lo cheio de vida no meio deles. Estas são as primeiras palavras que escutam do Ressuscitado: “A paz esteja convosco!” “...por quê tendes dúvidas em vosso coração?” Ele mesmo lhes enviará o Espírito que os sustentará. Por isso lhes recomenda que prolonguem sua presença no mundo.
Eles não ensinarão doutrinas sublimes, não vão pregar grandes teorias sobre Cristo, mas irradiar seu Espírito, disponibilizando suas mãos e pés a serviço do Reino.
“Vede minhas mãos e meus pés”: para despertar e ativar a fé dos seus discípulos, Jesus não lhes pede que olhem Seu rosto, mas suas mãos e pés. Quer que vejam suas feridas de crucificado, que tenham sempre diante de seus olhos seu amor serviço entregue até a morte. Não é um fantasma: “Sou eu mesmo!”, o mesmo que conheceram e amaram pelos caminhos da Galileia. Jesus é o mesmo, é o crucificado.
Quando o Senhor Ressuscitado se apresentou diante de seus discípulos, não tinha poder nem prestígio; não veio sentado em um trono de ouro nem desembainhou a espada para derrotar seus algozes. Simplesmente mostrou as feridas da crucifixão, as marcas da doação total. As cicatrizes que ele mostrou em seu corpo depois da ressurreição, nunca mais desapareceram.
Olhando as mãos de Jesus, os discípulos faziam “memória” das mãos que curavam os doentes, cuidavam dos frágeis, elevavam os caídos, abençoavam e acariciavam as crianças, acolhiam os pecadores e pobres...
Olhando os pés de Jesus, os discípulos faziam “memória” dos pés peregrinos, que rompiam distâncias, que faziam a travessia em direção à “margem”, que O aproximavam dos excluídos, que ultrapassavam fronteiras religiosas e culturais... Com suas mãos e pés Jesus tecia seu dizer e seu fazer.
Contemplando as mãos e pés de Jesus, os discípulos tomam consciência que eles estavam com as mãos atrofiadas e os pés paralisados pelo medo e pela dúvida. As chagas, sinal de seu amor extremo, evidenciam que é o mesmo que morreu na cruz. A permanência dos sinais de sua morte indica a permanência do amor; elas são as cicatrizes de um compromisso com a vida. Além disso, elas garantem a identificação do Ressuscitado com o Jesus Crucificado.
A experiência do encontro com o Ressuscitado destrava as mãos e pés dos discípulos, arrancando-os do lugar fechado e lançando-os para os outros. Suas mãos e pés serão o prolongamento das mãos e pés de Jesus Ressuscitado. Mãos e pés marcados com as feridas da doação, da entrega. Mãos e pés carregados de vida: pés que facilitam fazer-se presentes juntos às vidas feridas, excluídas...; mãos que se fazem vida ao sustentar a vida fragilizada.
O ser humano se define pelas mãos e pés, e não pelo rosto; não adianta ter um rosto se as mãos e os pés estão petrificados. As mãos e os pés expressam aquilo que vem do coração: se o coração está cheio de medo, dúvidas, perturbações, ressentimentos, mágoas... as mãos e os pés revelam-se atrofiados; se o coração está cheio de compaixão, de acolhida, de espírito solidário... as mãos e os pés se expressarão como serviço, colocando a pessoa em movimento em direção aos outros.
É o coração transformado que dirige as mãos santificadas, delicadas, que move os pés solidários. É o coração agradecido que transforma as mãos e pés em instrumentos de graça. Por isso, Ressurreição é movimento e ação: é movimento, porque é saída de si; é ação porque é construção, compromisso em favor da vida, serviço expansivo e criativo.
Para encontrar-nos com o Ressuscitado hoje, temos de percorrer o relato dos Evangelhos: redescobrir essas mãos que abençoavam os enfermos e acariciavam as crianças, esses pés cansados de caminhar ao encontro dos mais esquecidos; redescobrir suas feridas e sua paixão. Esse é Jesus ressuscitado pelo Pai e que agora vive.
A verdadeira identidade do seguidor de Jesus está nas mãos e pés que se fazem vida, que se humanizam e humanizam os outros. Mãos e pés que destravam as mãos e pés petrificados e atrofiados dos outros. Somos chamados a ser testemunhas das mãos e pés do Ressuscitado.
As mãos e os pés são os membros que nos alargam, nos ampliam para o encontro; eles nos tiram de nossa estreiteza de atitudes, de ideias , nos arrancam de nossos preconceitos e de nossos medos...... Mãos e pés ressuscitados que nos fazem sair de nossos lugares fechados , e nos movem em direção a largos horizontes. Por isso são membros que mais nos “humanizam”, ou seja, nos fazem “descer” ao “húmus” de nossa existência, ao chão da vida, abrindo-nos aos outros.
Nossas mãos e pés... sacramento de Deus. Fazem presente as mãos e os pés do Ressuscitado. Seremos a Sua mão amiga e carinhosa, forte e libertadora, criadora de vida, que protege e cuida a vida.
Seremos os Seus pés desgastados para pisar os solos sagrados da humanidade.
Texto bíblico: Lc 24,35-48
Na oração: Fazer a experiência da Ressurreição é ter mãos e pés do Ressuscitado: membros a favor da vida.
- em direção de quem me levam os pés?
- em favor de quem uso as minhas mãos? A serviço de quem?...
Pe. Adroaldo Palaoro sj
Diretor do Centro de Espiritualidade Inaciana
”Põe o teu dedo aqui e olha as minhas mãos. Estende a tua mão e coloca-a no meu lado” (Jo 20,27)
Estamos vivendo uma cultura profundamente desconectada do sensitivo. Os sentidos estão ficando atrofiados e nos lançamos desesperadamente em busca de compensações virtuais. Nossos medos estão impossibilitando os sentidos ocuparem o lugar que lhes corresponde em nossos comportamentos e atitudes.
Extirpamos nosso olfato pelo temor a um mau odor. Desprezamos com indiferença os odores de nosso entorno, das pessoas, dos objetos... se não vem com a garantia de um perfume etiquetado. Buscamos espaços descontaminados, assépticos..., pois o odor da pobreza, da exclusão, da fome... nos inquieta e nos causa medo. No entanto, nossa mente está cheia de recordações olfativas...
Em estreita relação com o olfato, nossa respiração, fonte vital de energia, se faz cada vez mais doentia. Praticar uma respiração profunda e tranquila está se transformando em um luxo.
O “viver com sabor” transformou-se numa loteria onde poucos tem possibilidade de acessá-la. Ficamos cada vez mais impossibilitados de “gostar” a fruta pelo sabor, para passar à alimentação ingerida mais pelos olhos. São os invólucros de nossos alimentos que nos alimentam. O sabor não conta para os experts em manipulação genética. O saborear as coisas pertence ao passado. A arqueologia não tardará em incluir o elemento gustativo em suas anotações de campo.
Nossos ouvidos, assaltados pelos ruídos virtuais, se desconcertam ao descobrir o silêncio. Perdemos a sintonia dos sons naturais. É exagerado pedir que distingamos o cantar de um pássaro. A contemplação auditiva não registrada em aparelhos tecnológicos nos parece uma perda de tempo.
A visão que, sem dúvida, é o sentido por excelência e o mais estimulado, é, ao mesmo tempo, o mais manipulado e violentado pelo excesso de imagens virtuais. Nosso campo de visão é cada vez mais reduzido, unicamente ampliado pelas telas digitais. Vemo-nos assaltados pela cidade de cimento e asfalto, nossos lugares de trabalho se reduzem a “bolhas cúbicas” e nossos olhos se vêem obrigados a ocultar-se, com o pretexto de proteção, sob óculos de sol.
No tempo de férias, no afã de fugir da cidade para espaços de beleza natural ou artística, nossa máxima preocupação é registrar tudo em câmaras fotográficas. Em nossas agências de viagens não consta um programa para deter-nos numa atitude contemplativa.
Fazemos constantemente “zappin” num afã desesperado de alcançar experiências pontuais, registradas mas não sentidas e, menos ainda, vividas e compartilhadas.
O tato supõe proximidade, imediatez... Tocar ou nos sentir tocados é, em determinadas circunstâncias, a linguagem mais inteligível do amor. No entanto, nosso mundo está cheio de alambrados, muros, valas e fronteiras; usamos de artimanhas para “ver de longe”. Com isso nos defendemos dos que são de outra raça, cor, religião, sexo, classe social... e nos fechamos no preconceito e na rigidez dos relacionamentos.
Precisamos de um autêntico transplante de pele.
É preciso “ressuscitar os sentidos” para que encontrem seu lugar insubstituível na experiência de fé. E só podemos descobrir o “lugar e o sentido” dos sentidos através do confronto com a “sensibilidade de Jesus”. Educar nossa sensibilidade “ao estilo de Jesus” implica empapar-nos de sua forma de ser e de sentir, de vibrar com tudo aquilo que lhe fazia vibrar, de rejeitar tudo aquilo que Ele rejeitava, e assim reagir frente à realidade e às pessoas do mesmo modo que Ele reagia.
As contemplações dos relatos das Aparições se apresentam como “uma aprendizagem, um aprofundamento e um discernimento deste sentir de Jesus” (Melloni). Na realidade, trata-se de querer ter sempre – na expressão de S. Paulo – os “mesmos sentimentos de Cristo Jesus”, a quem o cristão deseja seguir mais de perto.
Através dos nossos sentidos, o mundo de Jesus entra imaginativamente em nossa intimidade, e por meio deles respondemos também à realidade de um modo novo. Buscando e desejando a identificação com Jesus, nossos sentidos aprendem d’Ele a ter ternura, visão, escuta, sabor...
Segundo o relato do evangelho de hoje, para fazer o encontro com o Ressuscitado não podemos colocar entre parênteses o uso de nossos sentidos; pelo contrário, trata-se de introduzir “pneuma”, sopro em cada um deles, para que se tornem órgãos contemplativos e facilitadores da experiência de Deus.
Quando falamos de “sentidos espirituais” estamos fazendo referência aos sentidos espiritualizados, habitados, animados pelo Espírito de Deus. Os sentidos não são destruídos, mas transfigurados; eles se tornam “sentidos divinos”, pois tornam o ser humano cada vez mais “capaz de Deus”.
“Ressuscitar os sentidos” significa harmonizá-los com a presença do Espírito, torná-los silenciosos, despojados diante d’Aquele que é.
Quando falamos em “cristificar a sensibilidade” , apontamos diretamente a um “plus de humanidade” que “sai de dentro” e permite que os cinco sentidos não se limitem somente a ver, ouvir, gostar e tocar – que podem ser respostas só mecânicas - , senão que aprendem, além disso, a “olhar, escutar, saborear, acariciar e beijar”.
Nascemos com olhos, mas não com o olhar; temos, sim, ouvidos, mas não sabemos escutar; podemos cheirar e gostar as coisas, mas nem sempre somos capazes de desfrutar e saborear a vida. Tocamos e abraçamos os outros, mas quantas vezes nossos “toques” não chegam a ser “carícia”.
Uma opção de seguimento evangélico que não conte com a “ressurreição dos sentidos” está destinada ao fracasso, pois, sem uma identificação com a sensibilidade de Jesus nossos sentidos passeiam vazios e sem bússola pelo mundo, como que afundados na noite.
Inversamente, uma sensibilidade evangelizada é uma graça que permite um seguimento constante. Como conseqüência, a conversão evangélica tem que chegar a alcançar a sensibilidade para ser efetiva.
“...mostrou-lhes as mãos e o lado”: suas mãos chagadas e seu lado aberto – credenciais de sua entrega e expressão de seu amor radical. Chagas para serem contempladas, sentidas, tocadas..., lembrando que não amaremos de verdade enquanto não mostrarmos nossas chagas no serviço aos outros.
Concluindo, podemos dizer que a experiência de Tomé, que é também a nossa, tem um valor importante para nós, seguidores do Ressuscitado.
“O pedido de Tomé de querer colocar os dedos nas chagas das mãos e dos pés de Jesus e suas mãos na chaga do seu lado, é uma afirmação muito importante para a nossa fé: o Jesus ressuscitado ainda traz as marcas e as chagas da sua paixão. A ressurreição de Jesus não o fez retroagir ao passado, como se sua morte nunca tivesse acontecido. Pelo contrário, venceu a morte e ainda traz as marcas da crucificação. A ressurreição de Jesus muda o nosso olhar sobre o ser humano. As chagas de Jesus dizem que o ressusci-tado carrega em si todas as chagas de todos os humilhados do mundo. Elas dizem também que nenhu-ma chaga, por mais injusta e humilhante que seja, pode nos impedir de nos tornarmos pessoas de cabeça erguida no coração do mundo. De agora em diante, nenhuma das nossas chagas pode nos impedir de ser livres: Jesus ressuscitado é, em primeiro lugar, aquele que carrega as chagas da nossa condição humana. De maneira clara, não esperemos nos livrar dos nossos males para vivermos de cabeça erguida. Jesus ressuscitou e é hoje que, mesmo com as nossas chagas, podemos nascer para a liberdade". (Jean Debruynne)
Texto bíblico: Jo 20,19-31
Na oração: Após sua ressurreição, Jesus só permite que se toquem suas feridas. A questão é esta: onde estão hoje as feridas de Jesus? Ou dito de outra maneira: onde Jesus põe hoje seu coração? Jesus põe seu coração em suas feridas que permanecem abertas neste mundo: os pobres, os doentes, os excluídos, os violentados... É ali onde devemos pôr a mão se queremos encontrar o coração de Jesus.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
Diretor do Centro de Espiritualidade Inaciana - CEI
Duas frases mais repetidas pela Igreja neste domingo são: “Cristo Ressuscitou” e “Deus ressuscitou a Jesus”. Elas condensam as afirmações mais frequentes do NT sobre este tema.
No entanto, o evangelho indicado para este domingo não tem como protagonista nem a Deus, nem a Cristo, nem confessa sua ressurreição. Os três protagonistas que menciona são puramente humanos: Maria Madalena, Simão Pedro e o discípulo amado. Nem sequer há um anjo. O relato de João se centra nas atitudes muitos diferentes destes três personagens.
Maria Madalena reage de forma precipitada: ao ver que a pedra tinha sido retirada da entrada do túmulo logo conclui que alguém tinha levado o corpo de Jesus; a ressurreição nem sequer passa pela sua cabeça. Simão Pedro atua como um inspetor de polícia diligente: corre ao sepulcro e não se limita, como Maria, a ver a pedra removida; entra, observa as faixas de linho no chão e o sudário enrolado, num lugar à parte. Algo muito estranho. Mas não tira nenhuma conclusão.
O discípulo amado também corre, inclusive mais que Simão Pedro; mas quando chega ao sepulcro, espera pacientemente. E vê a mesma coisa que Pedro, mas conclui que Jesus ressuscitou. O evangelho de João oferece hoje uma mensagem esplêndida: diante da Ressurreição de Jesus podemos pensar que é uma fraude (Maria), não saber o quê pensar (Pedro) ou dar o salto misterioso da fé (discípulo amado).
Há, neste texto, um progressivo caminho de fé. Começa com Maria Madalena: ela busca, sai de seu esconderijo vai ao encontro de um corpo. Ainda está presa à morte e ao passado, mas é levada pela coragem a buscar um sentido para sua dor e tristeza. Trata-se de um primeiro passo, embora incipiente: colocar-se em movimento, sair, romper com seu lugar estreito...
A atitude de Pedro é um pouco mais profunda: depara-se com os sinais de Ressurreição e busca entender o que tinha acontecido. Certamente ficara confuso diante do sudário dobrado, colocado à parte: “como é possível, alguém, no momento glorioso de sua vida, encontrar tempo para dobrar um sudário!”.
A razão ainda não é suficiente para mergulhar no mistério da fé.
Somente João é capaz de dar o salto da fé: mergulha no mistério. Deixa-se afetar pelos sinais, não buscando razões que expliquem o que tinha acontecido. Assume a atitude de acolhida do mistério. Seu olhar é um olhar contemplativo: vai além dos sinais.
Os três viram os mesmos sinais; João, com um olhar contemplativo, vai além das aparências; é preciso ter os olhos destravados para “ler” os sinais da Ressurreição. João fica assombrado diante de tantos sinais; ele “entra” no túmulo de maneira diferente; não faz de maneira apressada, como Pedro. Ele pára, dá um tempo, tem paciência... Tem uma atitude de acolhida e não de investigação.
Os relatos dos próximos dias de Páscoa nos ajudarão a alcançar a terceira atitude.
Qual atitude prevalece em mim?
“No primeiro dia da semana, Maria Madalena foi ao túmulo de Jesus, bem de madrugada,...”
No relato do evangelho de hoje, a ressurreição é apresentada como uma “nova Criação” levada a termo pela intervenção providente de Deus. Não nos damos conta de que é o primeiro dia da semana, e que tudo mudou, que tudo é novo; é o primeiro dia da nova criação, do tempo novo, da vida nova, do ser humano novo.
A Páscoa deixa tudo igual enquanto o coração humano não faz a experiência de que Deus está vivo.
Tudo é Vida, que pode expressar-se como vibração, energia... A Vida não é algo que temos, mas o que somos; o que temos, podemos perder; o que somos, permanece. Desse modo, nos experimentamos conectados à Fonte de tudo o que é e à Vida que somos. Nisto consiste a sabedoria e a libertação: na conexão consciente ao Mistério da Vida, a Deus, sem nenhum tipo de separação, nem distância, sem costuras.
“Agora” é a Vida, “agora” é a Ressurreição, embora tenhamos dificuldade para descobri-la, como os três personagens da cena de hoje. O ego corre, como os discípulos, pensando que no futuro se sentirá melhor. Com frequência, corre tão depressa que não repara em nenhuma outra coisa que não seja sua própria expectativa. Em algumas ocasiões, parece receber a graça de poder ver as “faixas de linho” e de ver através delas. Na realidade, para quem está atento, tudo são “faixas”, sinais, aberturas, ranhuras, gretas... por onde a Vida se infiltra. Tudo pode ser oportunidade para nos despertar para quem realmente somos e reconhecer-nos conectados à Vida. Isso é viver ressuscitados.
Mas, para poder ver o significado que as “faixas” contém, requer-se atenção. Uma atenção que nos faz estar no momento presente e calar o falatório mental. Nesse Silêncio, poderá desvelar-se diante de nossos olhos a Presença que nos chama pelo nome.
Maria Madalena madruga para encontrar-se com a morte na sepultura; e Deus madruga mais ainda para recuperar a vida. Madalena madruga para a morte e Deus madruga para a vida. Enquanto estamos a caminho da morte, Deus está a caminho da vida; enquanto continuamos presos no passado, Deus já está no presente novo; nós visitamos sepulcros e Deus visita corações que vivem e tem garra de viver; nós nos empenhamos em encher os sepulcros, e Deus se encarrega de esvaziá-los.
Os sepulcros não são lugares de encontro com Ele; a Ele o encontramos na comunidade reunida no amor. A verdadeira Páscoa não acontece ao lado do sepulcro; ela acontece quando os corações começam a pulsar de novo com um novo ritmo de vida e de esperança.
É Pascoa não só quando Deus ressuscita Jesus de entre os mortos mas quando Deus se faz acontecimento de vida em nós. Deus celebra a Páscoa não junto à pedra do sepulcro mas na vida das pessoas.
É de madrugada, e nós ainda continuamos com os olhos vendados do passado. Mas Deus já faz resplan-decer a luz da madrugada, esperando iluminar as mentes e despertar os corações para acolher a Vida.
Texto bíblico: Jo 20,1-9
Na oração: A Luz da Ressurreição desperta em nós a nostalgia de outra luz, de outra beleza...
A tensão de luz e sombra também está viva em nosso interior, no espaço interior de cada um de nós. Somos filhos da luz e do dia, pertencemos ao dia e à luz. Mas ninguém pode apagar esta luz nova que busca expressar-se no cotidiano de nossa vida.
Em sua tensão de luz e obscuridade... contemple o Ressuscitado.
Uma Santa e Inspirada Páscoa.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
“Eles tomaram o corpo de Jesus e o envolveram em panos de linho com aromas...
e o depositaram no sepulcro” (Jo 19,40)
Podemos começar este dia recordando outra experiência muito humana: imaginemos o regresso do enterro de uma pessoa querida, depois de uma longa temporada de lutas e temores, com um tratamento pesado, com momentos de otimismo, momentos de frustração, etc..., até o instante último em que dizemos em nosso interior: “descansou”. Quem não regressou alguma vez do cemitério com esta sensação?
Partindo desta experiência, contemplemos um momento como descem do Gólgota Maria, o discípulo amado e algumas mulheres que estavam junto à Cruz, com a horrível sensação de que tudo acabara. Nós nos identificamos com aquele pequeno grupo que volta triste para casa; nossa vida cristã se situa neste tempo intermédio entre a morte de Jesus e sua posterior ressurreição. Por isso, o teólogo Uns von Balthasar nos diz que a vida cristã precisa de uma boa teologia do Sábado Santo: uma reflexão profunda sobre essa situação que nos constitui: o Senhor se foi e ainda não temos o Ressuscitado...
É preciso aceitar essa ausência, depois de examiná-la em muitos momentos de nossa vida. Mas, ao mesmo tempo é preciso reconstruir a esperança porque sabemos que a Páscoa de amanhã ilumina a Cruz, embora não a elimina. E essa esperança é dupla: é a esperança de uma vitória sobre o mal e a injustiça; é também uma vitória sobre a morte.
Sábado Santo, portanto, é tempo não só de espera mas de esperança, é deixar que o grão de trigo morto comece a dar fruto, é tempo de um inverno que tornará possível as flores da primavera, é tempo de imaginar, de criar, de abrir-se a algo novo e inesperado, de sonhar um mundo melhor e uma Igreja nazarena. O Sábado Santo é ao mesmo tempo sepulcro e mãe, como diziam os Pais da Igreja, ao falar do batismo.
É o sábado para acompanhar Maria meditando em seu coração à espera da Páscoa. É o sábado no qual a Mãe não espera junto ao sepulcro mas em seu coração. Sábado da ausência; é um dia vazio, sentimos que falta algo no mundo; a liturgia guarda silêncio; as igrejas estão fechadas...
Sábado do silêncio; cala a palavra mas fala o coração; cala a palavra mas o coração sente a voz daquele que já está no silêncio do sepulcro. É o silêncio do coração que espera o momento, que escuta o mistério por dentro; é o silêncio do coração que medita e guarda dentro o mistério, que espera a nova palavra pascal. É o sábado das esperanças que começam a verdejar.
Este espaço de silêncio não é de morte senão de vida germinal, é noite que aponta à aurora, são as noites escuras da vida cristã que desembocam na alegria da alvorada; é tempo de fé e de esperança, é momento de semear ainda que não vejamos os resultados, é tempo de crer que o Espírito do Senhor, criador e doador de vida, está fecundando a história e a terra para seu amadurecimento pascal e escatológico, para a terra nova e o céu novo. O Espírito também não abandona os seguidores do Crucificado, dá-lhes vida, porque é o mesmo Espírito que ressuscitou Jesus no meio dos mortos e que se derramou em Pentecostes sobre a Igreja nascente e sobre toda a humanidade.
Abre-se aqui um horizonte de esperança, de justiça, de paz, de cuidado da criação. Por isso se diz com forte convicção que “outro mundo é possível”.
Nós cristãos temos muito que dizer e compartilhar com nossos contemporâneos a respeito da esperança. O cristianismo é esperança, olhar e orientar-se para frente; e é também, por isso mesmo, abertura e transformação do presente. Nossa fé no Deus da história se transforma em esperança: “a fé que mais amo é a esperança” (Charles Péguy). Esta é a herança que temos recebido: o Evangelho da esperança.
A esperança é uma virtude teologal, ou seja, é como uma “patía” (paixão) que se apodera de nós e nos determina. É uma “teopatia” (paixão por Deus) que nos faz participar do amor fiel e dinâmico do Deus da Aliança.
Esta teopatia nos dá a certeza de que Deus cumprirá todas as suas promessas e que o Reino de Deus se realizará. O causante desta teopatia da esperança e o Espírito Santo, derramado em nossos corações, que geme pela manifestação da Glória de Deus, em nós e na criação inteira.
Esta teopatia, dom que é preciso acolher e cultivar, modifica nossas atitudes vitais, eleva nossa tensão, ativa todo nosso ser, elimina nossos medos e nos envolve no compromisso; ela nos faz criativos, inovadores, impacientes antecipadores daquilo que esperamos.
Ao mesmo tempo que é paixão criadora, a teopatia da esperança é paixão-sofrimento. A esperança inclui também uma tremenda dose de sofrimento: foi assim que Jesus experimentou a esperança na sexta-feira santa. É a esperança que grita a Deus e que se atreve a exclamar: “Meu Deus, meu Deus, por que me abandonaste”. Na celebração da Sexta-feira Santa a Igreja se atreve a cantar: “Ave Crux, spes única!”.
O Sábado Santo, ao fazer memória de Jesus no sepulcro, torna-se “memória da esperança”. Por ela, tantos outros a atravessaram anteriormente; nela, experimentaram a distância de Deus e seu maior sofrimento foi, precisamente, essa distancia.
Esta é a esperança que brota da dor do Sábado; esta é a esperança que o Espírito concede àquele que é pobre, que chora, que é perseguido por causa da justiça, que tem limpo o coração, que responde com ternura à violência. É a esperança das bem-aventuranças de Jesus. É a esperança daqueles que sofrem com os outros e pelos outros.
A virtude teologal da esperança tem, portanto, uma face luminosa e outra face escura: é paixão criadora e é paixão-sofrimento. É tensão criativa para o futuro e resistência dolorida diante das contradições do presente. Na vida cristã também experimentamos as duas faces da esperança: sua noite e sua luz. A esperança – como luz e noite – rejuvenesce a vida cristã. A esperança suscita perguntas, novas perspectivas, lança para frente, abre futuro.
A teopatia da esperança nos leva ao Sábado Santo. O sábado santo foi o dia do silêncio de Deus Pai e o dia da descida de Jesus, morto e sepultado, “aos infernos”. Foi o dia do Espírito Santo que não tinha “onde repousar” e fica como sem alento.
Normalmente o Sábado Santo não merece maior reflexão de nossa parte; acabada a Sexta-feira Santa já pensamos no Domingo da Ressurreição. No entanto, o Sábado Santo reivindica uma intensa experiência.
O Sábado Santo é um dia de penumbra: entre a sombra da Sexta-feira e a luz do Domingo. É o dia da ambiguidade, do luto e da possível boa notícia, da espera e da esperança.
Texto bíblico: Jo 19,38-42
Na oração: depois de um dia de luto, de silêncio e ausência... os sinos voltarão a soar, o glória voltará a ser cantado, o aleluia ressoará pelos espaços. Em meio às sombras da noite, o Círio Pascal começará a iluminar. E cada um de nós poderá acender em sua chama a vela de nossas vidas.
Com voz forte, gritaremos: “Ressuscitou!” e tudo ressuscitará em nós. É a alegria pascal. Novamente a primavera se fará presente em nossos corações ; o que parecia ausência, agora se fará presença; o que parecia fracasso, agora se fará esperança; o que parecia morte, agora se fará vida; o que parecia ser o final de tudo, agora tudo se fará começo.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
Diretor do Centro de Espiritualidade Inaciana - CEI
Há um dado que nos afeta a todos nestes tempos pós-modernos: a incapacidade cultural de abordar os limites, perdas, fracassos, mortes... Vivemos uma cultura na qual a dor e a morte foram expulsas da experiência humana. É algo feio, de mau gosto, algo a ser eliminado da vida cotidiana.
Mas o confronto com a morte não precisa desembocar em um desespero que possa destituir a vida de todo sentido. Ao contrário, ela pode ser uma experiência que nos faz despertar, nos faz reingressar na vida de uma maneira mais rica e apaixonada.
A negação da morte sempre cobra um preço – o encolhimento da nossa vida interior, o embaçamento da visão, o achatamento da racionalidade, a atrofia dos sonhos. Ao final, o autoengano toma conta de nós. A angústia sempre acompanhará nossa confrontação com a morte.
Na perspectiva de fé, nossa cultura prescinde do Getsêmani na nossa vida cotidiana; no entanto, este é o lugar de depuração radical, o lugar no qual devemos situar nossos fracassos e nossas solidões; é no Gólgota que devemos pôr nossas enfermidades e nossas mortes. Nossa cultura nos impede pôr a vida nesses lugares porque nega e não quer ver a fragilidade da condição humana, fonte de dor e sofrimento.
Em Getsêmani, quando todos o abandonaram e fugiram, o Compassivo permanece em radical solidão, ninguém se interessa mais por Ele; esta solidão vital lhe provoca uma angústia de morte, o sacode e o aflige, levando-o à prostração. No Gólgota, Jesus experimenta, junto ao abandono, o fracasso, tudo se dilui, o mundo lhe cai em cima.
Adentrar-nos em nosso próprio Getsêmani e Gólgota é abordar nossa radical solidão. Mesmo que produza vertigem e nos enche de angústia, é preciso olhar o túnel de frente e entrar nele. Então, invocamos Àquele que nos pode sustentar e saímos do túnel com uma solidão habitada, com o sentimento de uma presença, com a vida enraizada no único que é fonte de vida e liberdade. Começamos a ver tudo com olhos novos, o sofrimento e a angústia transformam-se em Vida.
O teólogo e mártir Bonheoeffer afirma: “Em Jesus crucificado se rompem todas as ideias sobre Deus que as pessoas construíram através da história. Nele aparece a debilidade e o sofrimento de Deus. Só um Deus que sofre pode ajudar-nos”. É a partir da Cruz onde Deus nos diz que o mais divino que há em nós é a luta solidária por fazer um mundo mais justo e mais humano. Nossa missão será a de fazer descer da Cruz os crucificados da história, e unir-nos, indignados, aos milhões de pessoas que se manifestam a favor de uma sociedade mais justa e menos desigual.
Contemplar a paixão e morte de Jesus em toda sua crueza, nos leva a mergulhar na condição humana, a descobrir dimensões de nossa própria humanidade que, nesta cultura mentirosa, são mutiladas e reprimidas de tal maneira que nos tornam incapazes de ser portadores de Boa Notícia.
Junto à Cruz somos levados a crer que aliviar o sofrimento neste mundo não é uma questão puramente analgésica, quando, na realidade, o que se trata é da implicação compassiva nesse território tão humano e tão divino no qual nossas razões, doutrinas e morais fracassam: a “loucura” de um Deus Comunidade implicado no sofrimento de suas criaturas.
A crucifixão não foi um ato isolado, mas o cume de uma vida comprometida. Não agrada ao Pai a Cruz pelo que tem de sofrimento, mas porque supõe uma vida que se entrega até esse extremo. A Cruz não é um adorno, nem um objeto de culto, nem um amuleto. É um sinal; e, como todo sinal, indica algo: nos indica até onde pode chegar a brutalidade humana, quando os interesses, as ideias políticas ou religiosas, as leis... são colocados acima do ser humano.
E indica algo mais: até onde chega o amor e a generosidade de Jesus, que não duvidou em sua entrega; até onde chega o amor do Pai que em Jesus se fez visível.
Por isso, aquele que pensa que, diante da Cruz, temos de oferecer atos dolorosos a Deus não sabe “ler” a Cruz. Aquele que pensa que carregar a cruz de cada dia é aguentar a injustiça, não sabe “ler” a cruz. Aquele que converte a Cruz em uma condecoração para premiar um ato de violência ou uma joia que pode ser presenteada à pessoa amada, não sabe “ler” a cruz. Aquele que coloca a Cruz nas paredes das repartições públicas (delegacias, hospitais, tribunais, assembleias legislativas, câmara e senado federal), onde as sentenças são barganhadas e compradas, onde a corrupção é a moeda mais forte, onde os pobres morrem sem atendimento... não sabe “ler” a Cruz.
Sabemos “ler” este sinal, quando escutamos Jesus que nos diz: “Ninguém tem maior amor que aquele que dá a vida por seus amigos”. Não podemos tirar nenhum espinho da coroa de Jesus, nem diminuir as chicotadas nas suas costas, nem a humilhação e a dor de sua tortura. O que podemos hoje fazer é tomar posição solidária ao lado dos excluídos, humilhados e desgraçados de nosso mundo, como Ele fez; nossa primeira responsabilidade é aliviar o sofrimento do outro, lutar contra o sofrimento provocado pela injustiça sobre os mais pobres e excluídos.
O mistério da Cruz nos des-vela (tira o véu) e re-vela que toda entrega generosa, que a prepotência esmaga com a morte, não acaba em morte, mas em vida, e em vida que não termina. Podemos, então, fazer dois tipos de Via Sacra: uma, fixando-nos em Jesus, porque assim nos aproximamos da fonte do Evangelho; outra, fixando-nos nas brutalidades, violências, sofrimentos de nosso povo para ativar em nós uma generosidade ainda tímida. E, então, é quando começaremos a compreender o Evangelho.
Com os olhos fixos no Crucificado vamos aceitando com maior cordialidade e gratuidade que somos “faíscas da criação”, que nos cabe redimir a parcela da criação que nos foi encomendada e que a compaixão solidária é tecida com muita humildade, sem prepotência; ao mesmo tempo vamos descobrindo que a vida começa a emergir ali onde o mundo só vê fracasso e morte, e que orar a partir de nossas fragilidades nos põe no caminho para experimentar o dom da Páscoa.
Texto bíblico: Jo 19,31-37
Na oração: No silêncio, convém permanecer um bom tempo olhando “Aquele que traspassaram”. Para muitos olhos é só a imagem de um entre tantos “terroristas” que cruzavam as ruas de Jerusalém a caminho do Gólgota. Você pode se perguntar como é que, de todos aqueles, só a imagem e o nome deste Compassivo atravessaram a espessura dos tempos, chegaram até nós e hoje nos congrega em seu entorno.
E, dando um passo a mais, pergunte: creio de verdade n’Aquele crucificado que gritava: “Meu Deus, meu Deus, por que me abandonaste?”
Pe. Adroaldo Palaoro sj
Diretor do Centro de Espiritualidade Inaciana-CEI
“Se eu, o Senhor e mestre, vos lavei os pés, também deveis lavar-vos os pés uns dos outros”
(Jo 13,14)
Jesus sente que sua “hora” se aproxima, reúne os seus discípulos e manifesta-lhes o último desejo com um gesto que marcará para sempre a história da humanidade: o “lava-pés”.
O texto joanino nos diz que Jesus realizou o “lava-pés” durante a ceia. Todas as refeições tinham o “lava-mãos”. Algumas ceias especiais tinham o “lava-pés” no início como sinal de acolhida e de hospitalidade.
Jesus realiza seu gesto enquanto a refeição está acontecendo. Pode ser que Ele esteja colocando uma relação muito estreita entre o comer e o servir, melhor dizendo, entre a Eucaristia e o serviço solidário.
Até Jesus, os convidados para a refeição eram servidos e saiam satisfeitos. A partir de Jesus, os convida-dos para a refeição servem-se uns aos outros e saem da refeição para servir outros. O dom recebido é partilhado entre os seus, mas isso não basta, ele precisa ser colocado à disposição de todos, a começar pelos mais carentes. O dom é, ao mesmo tempo, graça e missão. A força que ele traz é para conduzir à vida em abundância.
Jesus “levantou-se da mesa, tirou o manto, pegou uma toalha e amarrou-a à cintura”.
“Levantou-se da mesa”: este gesto de Jesus assume um significado especial. Revela-nos que não se pode servir permanecendo em nosso comodismo. O gesto de levantar denota que há algo por ser feito.
“Ficar de pé” é posição que expressa prontidão para servir; para isso é preciso deslocar-se do próprio “lugar” e descer até o “lugar” do outro. É desinstalar-se do próprio bem-estar, é dinamismo.
Jesus não faz um gesto teatral; Ele revela aos apóstolos um “novo ângulo” ou um novo modo de ver as coisas: não a partir do lugar dos comensais, mas a partir da perspectiva de quem não está sentado à mesa.
O gesto de Jesus nos convida a deslocar-nos, ou seja, ocupar o lugar da pessoa que não participa da mesa. Quê novidade percebemos a partir deste lugar?
“Estar à mesa” é sempre sinal de fraternidade, de comunhão, mas é necessário saber levantar-se na hora certa para poder servir com amor.
“Tirou o manto”: Ele mesmo se despoja. Abrir mão do manto é uma iniciativa livre e soberana, que nasce de seu próprio interior. O manto impede a liberdade de movimentos, não permite fazer o serviço com facilidade. Há “mantos” que são sinais de poder.
O Senhor assume, em tudo, a condição de servo, para servir. Troca o manto pela toalha-avental: este parece ser o distintivo fundamental, divisor de águas entre a religião antes e depois de Jesus Cristo.
As autoridades religiosas vestiam-se do distintivo de autoridade-poder para servir o povo. Jesus despe-se dele para servir. Ele serve verdadeiramente como servo. Os outros serviam como senhores.
É necessário arrancar “todos os mantos do poder” para poder redescobrir a verdadeira dignidade humana desnuda e despojada de todas as aparências. Não há serviço sem se despir de todas as aparências de poder, de força, de prestígio. Não é possível amar colocando-se longe do outro.
“Coloca água numa bacia e começa a lavar os pés dos discípulos e a enxugá-los com a toalha com que estava cingido”. Normalmente os preparativos ficam por conta de outros; é o servo que prepara a bacia com água para que o senhor lave os pés de outro. Aqui Jesus assume os preparativos, não faz trabalho pela metade. A água derramada não é feita com violência, nem com força, mas com extrema delicadeza, com atenção e amor. Amar é tocar de perto, ajudar, caminhar juntos...; nesse gesto de elevação Jesus revela um amor “físico”, de contato corporal e de serviço, de ajuda humana e de dignidade. Ele não quis só ensinar, dar comida, mas aproximar-se, ajoelhar-se, lavar.
O gesto que Jesus faz expressa o que Ele é. Ele é inteiramente servo. Todo o seu ser está a serviço. Ele se dá naquilo que faz, e faz o que propõe aos discípulos.
Lava os pés dos discípulos. Inclina-se aos pés deles, até o chão. Com reverência, o mestre lava os pés dos discípulos: essa é a dinâmica que revela a novidade do Reino de Deus. “Lavar os pés” dos discípulos é cuidar dos que servem os servos.
Jesus sabia que seus discípulos tinham pés frágeis, pés de argila. E se os pés são, na mentalidade judaica, símbolo de infância e prazer, seus pés precisariam, sem dúvida, ser lavados de todas as suas memórias negativas. Cada discípulo era uma criança doente, e era preciso, em primeiro lugar, curar essa criança antes que ela se colocasse a caminho para anunciar o Evangelho, a Boa-Nova.
“Depois que lhes lavou os pés, retomou o manto, voltou à mesa e lhes disse: ‘compreendeis o que vos fiz?’” Jesus volta ao lugar em que estava antes, mas volta diferente. Ele repõe o manto, mas não depõe a toalha-avental. Ele assume e visibiliza uma nova realidade que caracteriza o novo modo de ser, que é próprio dos cristãos. O amor-serviço tem como primeiro símbolo o avental. O avental é o selo de autenticidade que orienta, credita e dignifica a autoridade que se faz serviço. A autoridade cristã nasce do serviço, se sustenta nele, só persevera servindo.
Jesus pede que a dinâmica iniciada por Ele tenha continuidade, seja progressiva e circular, partindo do meio para a periferia em forma de círculo a fim de atingir a todos. O novo modo de exercer a autoridade é praticado primeiro entre todos os que participam da ceia, mas deve ser exercido sem limite de tempo ou de espaço, isto é, deve atingir toda criatura em todos os tempos até a plenitude.
Todos os gestos do lava-pés possuem uma sacralidade própria, uma reverência, uma paz e calma especial. Não há pressa, não há agressividade, não há nada que possa dar a mínima aparência de algo que fosse obrigado. No corre-corre da vida é urgente reassumir a linguagem dos gestos que se perdem na pressa, na mania de fazer muitas coisas porque outras nos atropelam e nos distraem do essencial.
Texto bíblico: Jo 13,1-15
Na oração: Seja você alguém que, na admiração da gratidão, se aproxima deste gesto ousado de Jesus (tirar o manto e vestir o avental), a fim de purificar sentimentos, endireitar caminhos e aprofundar a caminhada na convivência com os irmãos.
A sua identificação com Jesus lhe confere um novo modo de ver, avaliar, escolher e posicionar. É a contemplação, a postura mais envolvente, que lhe pode fazer enxergar o milagre; e, sensibilizado, abrir-se-á à dimensão do maior serviço, por pura gratuidade.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
Diretor do Centro de Espiritualidade Inaciana – CEI
“...encontrareis amarrado um jumentinho que nunca foi montado; desamarrai-o e trazei-o aqui”
Nas celebrações da Semana Santa, muitas vezes corremos o risco de nos deter no secundário e esquecer o essencial. E o mais essencial é que as diversas celebrações (procissões, via sacra, liturgias...) nos aproxi-mem e nos façam crescer na identificação com o protagonista principal: Jesus de Nazaré.
Por isso, precisamos voltar constantemente ao Evangelho para compreender o mais essencial sobre Jesus. Recuperemos, como diz o papa Francisco, o frescor original do Evangelho.
E a primeira coisa que o Evangelho nos diz é que Jesus foi um buscador de alternativas.
Ele não foi conivente e nem compactuou com a estrutura social-política-religiosa de seu tempo, que era profundamente desumanizadora. Sonhou novas possibilidades de vida e novas relações entre as pessoas. Por isso, ao anunciar o Reino, transgrediu a situação vigente e, a partir das periferias, foi despertando uma alentadora esperança nos corações dos mais pobres e excluídos, vítimas de um mundo fechado.
Com sua entrada em Jerusalém, Jesus quis recuperar a cidade como lugar do encontro e da comunhão, como espaço da paz e da solidariedade... desalojando aqueles que se fechavam a qualquer tentativa de mudança. Por isso, seu gesto provocativo e escandaloso de entrar na cidade montado num jumentinho, símbolo da simplicidade e do despojamento de qualquer pretensão de poder e força, causou violenta reação naqueles que se beneficiavam da estrutura política e religiosa da cidade.
Jesus participava do sonho de todo o povo de Israel que via em Jerusalém a cidade da promessa de paz e plenitude futura, lugar onde deviam vir em procissão todos os povos da terra. A tradição profética havia anunciado uma “subida” dos povos, que viriam a Jerusalém para iniciar um caminho de comunhão e justi-ça e adorar a Deus no Templo, que estaria aberto para todos. Toda a cidade se converteria num grande Templo, lugar onde se cumpre a esperança dos povos.
Jesus sobe a Jerusalém anunciando a chegada do Reino de Deus que deveria manifestar-se ali, mas de uma forma diferente: com um Templo sem culto sacrifical, aberto para todas as gentes, com uma nova estrutura humana aberta ao senhorio de Deus.
Jesus, Filho de Davi, tinha que subir à cidade de seu antepassado Davi, não para conquistá-la militarmen-te e reinar, a partir dela, sobre o mundo, mas para instaurar ali outro Reinado, fundado precisamente nos pobres e expulsos dos reinos da terra. Para Jesus, Jerusalém deveria ser entendida como centro da nova humanidade messiânica, capital do Reino dos excluídos da velha história humana.
Jesus tomou a cidade sem conquistá-la. Dom do Reino. A subida a Jerusalém foi um gesto profético, de caráter pacífico (não violento) e por isso de forte conotação política, não na linha da tomada do poder (Jesus não conquistou Jerusalém), senão de oferecimento e comunicação de vida. Não quis invadir a capi-tal com armas e exército, para que mudasse simplesmente de dono (sentando-se sobre o trono de Davi para reinar), nem quis estabelecer um Estado melhor (com bons administradores), senão algo mais revolu-cionário: “tomou” a cidade sem dominá-la, com seu anúncio do Reino e com seu ensinamento.
A entrada de Jesus em Jerusalém nos revela que Ele foi transgressor e rebelde frente ao poder estabele-cido, sobretudo o poder religioso que impõe suas normas de verdade e de pureza acima da vida. Jesus sabia que com isso arriscava a vida. Mas, ao pressentir seu final violento, não arredou pé, senão que fez frente ao Templo e ao Palácio. O que estava em jogo era mais que sua vida, era a Vida: era a antiga promessa de todos os profetas, era a libertação universal esperada, era a igualdade de homens e mulheres ainda sem construir, era a erradicação de toda violência e poder, era a instauração do Reinado da justiça e da paz. Tudo isso estava em jogo, e a fé de Jesus, mansa e rebelde, foi maior que seu medo. Montou sobre um humilde jumentinho e desafiou o Império e o Templo, com suas cortes e legiões e todas as suas inumanas ordens sagradas.
Jesus entra em Jerusalém rodeado do povo, das pessoas simples. Este povo escravo e oprimido o aclama porque vê em n’Ele uma luz de esperança, de vida, de libertação. Escutaram suas palavras e viram seus feitos durante alguns anos. Escutaram palavras de vida, de justiça, de amor, de misericórdia, de paz...
Viram seus gestos de cura dos enfermos, de defesa dos fracos, de dar alimento aos famintos, de reabilitar os desprezados, de acolher os marginalizados, de enfrentamento dos opressores...
Jesus quer continuar anunciando e realizando na cidade de Jerusalém aquilo que fizera na região excluída da Galiléia; quer também humanizar esta cidade para que ela seja sol de justiça e paz para todos os povos.
E nós, se queremos continuar a percorrer o caminho que Jesus abriu, temos de ser também buscadores de alternativas. Vivemos em uma sociedade na qual parece que já não é possível outra economia nem outra política, que temos de nos resignar com o que é imposto, que não há alternativas, que só são possíveis pequenos retoques no sistema sócio-econômico que nos rodeia.
Hoje, nós seguidores do Nazareno, temos de crer firmemente que é possível um mundo diferente, uma cidade diferente, uma sociedade diferente onde a fraternidade, a igualdade e a verdadeira democracia se façam realidade. Um mundo, em definitiva, em que se respeitem os direitos de todas as pessoas e os direi-tos da mãe Terra, onde o compartilhar seja o mais normal e natural.
“A fé nos ensina que Deus vive na cidade, em meio a suas alegrias, desejos e esperanças, como também em meio a suas dores e sofrimentos. As sombras que marcam o cotidiano das cidades, como exemplo a violência, pobreza, individualismo e exclusão, não nos podem impedir que busquemos e contemplemos o Deus da vida também nos ambientes urbanos. As cidades são lugares de liberdade e oportunidade. Nas cidades é possível experimentar vínculos de fraternidade, solidariedade e universalidade. Nelas, o ser humano é constantemente chamado a caminhar sempre mais ao encontro do outro, conviver com o diferente, aceitá-lo e ser aceito por ele” (Doc. Aparecida, n.514).
A espiritualidade da presença cristã no meio urbano convida a descobrir e indicar as presenças reais do Deus que in-habita em pessoas, casas, bairros, povos, cidades e metrópoles. “O coração dos povos é o santuário deDeus”. Trata-se de “passear com o Absoluto pelas ruas da cidade” (Michelstaeder)
O Deus presente nas cidades é um Deus que nos chama e interpela a partir do reverso da história, a partir dos lugares ocultos, dos “outros-espaços” de nossas cidades.
A cidade que Deus quer: uma praça e uma mesa para todos. A praça é de todos e todos podem caber na praça quando esta começa pelas vítimas e pelos últimos, onde todos podem circular livremente, criar relações e convivência, com a experiência de ser aceito e reconhecido como humano.
A mesa, no centro da praça, é lugar de hospitalidade, de aceitação e de encontro, lugar de chegada e entrada da pluralidade e diversidade como a Nova Jerusalém.
“Entrar na nossa Jerusalém” é comprometer-nos com uma cidade mais humana e humanizadora; a cidade que sonhamos e que queremos: a Cidade Nova. E o seguidor de Jesus tem em quem se inspirar.
Texto bíblico: Mc 11,1-10
Na oração: rezar sua presença na cidade onde mora: é presença inspiradora, profética, de compromisso com a construção de relações humanizadoras?...
Fazer “memória” daquilo que é mais desumano na sua cidade: como você reage diante disso? passivo? suporta? denuncia? atua?...
Você participa de alguma instituição, organismo, Ong... que ajuda a humanizar mais a sua cidade?
Pe. Adroaldo Palaoro sj
Diretor do Centro de Espiritualidade Inaciana - CEI
“Se o grão de trigo que cai na terra não morre, permanecerá só; mas, se morre, produz muito fruto”.
Declaração impactante e central na mensagem de Jesus. Qual é a pérola de grande valor que se esconde por detrás desta afirmação? O sentido profundo está na descoberta de que só existimos na medida em que nos doamos aos outros, que a razão de nossa existência a encontraremos na entrega e no serviço. Só através de contínuas perdas e mortes é que poderemos ter acesso à verdadeira Vida.
O transcurso de nossa vida é uma inevitável sucessão de perdas e mortes; aceitá-las é dar-nos conta de nossa limitação fundamental como criaturas, como seres vivos, e descobrir a possibilidade de ser mais naquilo que temos de especificamente humano.
As perdas e mortes trazem mudanças para a vida em suas raízes: o que antes era o centro de nossa vida (uma pessoa, uma posição, um trabalho, um estilo de vida...) já não existe; nossa vida já não voltará a ser a mesma, pois o que antes nos dava identidade, sentido e direção, conforto e apoio, desaparece.
A função das perdas e das mortes é libertar-nos para avançar para o futuro, não nos deixando determinar pelo passado. Então elas, uma vez aceitas e acolhidas, se convertem em um dom precioso. Já não somos os mesmos de antes, mas podemos nos converter em uma pessoa completamente nova. Estamos na disposição de aprender precisamente quando não temos nada, quando parece que não nos sobra mais nada. E é que possuímos no mais profundo de nós mesmos algo que ninguém pode nos tirar e que é impossível perder: dons em abundância nunca descobertos nem tocados antes, um desejo que está esperando que lhe abramos a porta, uma inspiração pronta a se tornar realidade...
Esta ideia de “morrer para produzir fruto” é original de João. Sabemos que o grão de trigo morre no acidental e revela o essencial: na semente há vida, mas está latente, esperando a oportunidade de expandir-se. Comunicar Vida foi a missão de Jesus; por isso, sua mensagem não implica um desprezo à vida, mas pelo contrário, só quando nos atrevemos a viver intensamente, dando pleno sentido à vida, alcançaremos a plenitude à qual somos chamados.
A vida não se perde quando se converte em alimento da verdadeira Vida. A vida humana chega à sua plenitude quando transcende o puramente natural. O biológico não fica anulado pelo espiritual, mas potenciado e “plenificado”.
O grande segredo revelado no Evangelho, é que o ser humano, partindo da vida biológica aspira outra realidade que chamamos Vida. Esta é a verdadeira meta do ser humano. O sentido dessa Vida com maiúscula está em destravar todas as ricas possibilidades de plenitude que pulsam por expressar-se e que se encontram no mais profundo de nossa interioridade.
Se investimos todas as nossas energias na vida minúscula (apegos, medos, resistências...) nunca descobriremos a Vida maior. Aquele que se empenha a todo custo em salvar sua vida menor, terminará perdendo-a. Mas dará pleno sentido a esta vida se descobre e ativa outro nível mais profundo e encontrar a verdadeira Vida. Estamos aqui para pôr Vida onde só há vida.
Se queremos dar fruto, ou seja, dar sentido à nossa existência, teremos que nos desgastar, consumindo-nos. A vela só adquire sentido quando está acesa; mas se está acesa, ela se consome. A rosa, ao espalhar sua fragrância, entrega algo de si mesma; e assim está manifestando seu verdadeiro ser.
A vida é movimento e, portanto, energia expansiva. Podemos consumi-la em benefício do ego (falso eu) e então vem o fracasso. Podemos consumi-la em benefício dos outros e da causa do Reino, e então, consumá-la, dando-lhe plenitude. Ter apego à própria vida é destruir-se, é desprezar a própria vida. Entregar a vida por amor não é frustrá-la, mas levá-la a seu completo êxito.
Aquí há uma inversão na lógica natural das coisas; ganha-se quando se perde, vive-se quando se morre, multiplica-se quando se divide.
“Morrer” e “perder” é este instante de ruptura, onde toda uma vida incubada, trabalhada no silêncio e no sofrimento, marcada de alegrias e tristezas, vitórias e fracassos, desponta luminosa para a vida eterna.
Uma vida pensada sem “mortes” e sem “perdas” acaba-se, no final, na total irresponsabilidade. E viver significa esvaziar-se do ego para deixar transparecer o que há de divino em seu interior. O grão de trigo que não morre, apodrece, e não multiplica as mil possibilidades latentes em seu interior.
“A tragédia não é quando um ser humano morre; a tragédia é aquilo que morre dentro da pessoa enquanto ela ainda está viva” (Albert Schweiter). Pois vida é um contínuo despedir-se e partir; ela nos desaloja de nossos “lugares estreitos” e nos faz caminhar em direção a novos horizontes.
Alguém já afirmou que a morte é a realidade mais universal, pois todos morrem, mas nem todos sabem viver. Por isso, viver é uma arte; é necessário reinventar a vida no dia-a-dia, carregá-la de sentido. A maior perda da vida é aquilo que “resseca” dentro de nós enquanto vivemos: sonhos, criatividade, intuição. A vida é fecunda, é um turbilhão energético, é explosão de criatividade, é potencialidade.
Mais ainda: tudo aquilo que fomos desenvolvendo no centro de nós mesmos (valores, a esperança, a busca, a absoluta confiança em Deus, os sonhos...) está agora em nós como o ouro escondido em uma mina, para ser extraído, contemplado e admirado e para brilhar como nova vida. Temos em nós o material da vida ainda bruto para ser lapidado.
Com frequência, só a perda permite valorizar toda essa riqueza acumulada. Privados da segurança do passado, livres dos “afetos desordenados”, estaremos livres para encontrar em nossa interioridade a força espiritual que nos permite viver de um modo expansivo. A perda é, ironicamente, a ocasião da novidade, a porta aberta para outras dimensões da interioridade que ainda permanecem em estado letárgico em nós, mas nelas está pulsando a vida.
Nesse sentido, a vida tem a dimensão do milagre e até na morte e na perda anuncia o início de algo novo; ela carrega no seu interior o destino da ressurreição. A Vida é fruto do amor, mas o egoísmo é a casca que impede germinar essa vida, mesmo que esteja dentro de cada um de nós. Amar é romper a casca e doar-nos, desfazendo-nos, consumindo-nos.
A morte do falso eu é a condição para que a verdadeira Vida se liberte. É preciso passar pela morte do que é terreno, caduco, transitório (paixões, apegos desordenados...) para deixar emergir a vida interior, a vida divina, a vida de Deus em nós.
Quaresma é um convite a começar outra vida, a concentrar nossas energias e nos deslocar em outra direção. A vida não é um caminho só: são muitos caminhos, muitos deles inexplorados; e quando chega a perda (romper a casca), Deus como criador vem a nós abrindo-nos caminhos que podem nos conduzir para a nova criação que Ele tem começado em cada um de nós. Por isso, temos que continuamente nos perguntar: o que ainda existe em nós sem terminar e que está começando a ser?
Todo caminho escolhido não nos deixa formatados e fechados; ele é ocasião para ampliar nossa vida e permitir que “Aquele que começou em vós a boa obra, a levará termo até o dia de Cristo Jesus” (Fil. 1,6)
Texto bíblico: Jo 12,20-33
Na oração: Quando vou começar a viver como ressuscitado? Há na vida muitas coisas – pequenas ou imensas – que vão morrendo e nascendo de novo, diferentes, melhores, reconciliadas...
Há sepulcros esperando esvaziar-se, em mim e nos outros.
Quais são minhas pequenas mortes, meus espaços sepultados, minhas feridas incuradas?...
Pe. Adroaldo Palaoro sj
Diretor do Centro de Espiritualidade Inaciana -CEI
“...porque Deus amou tanto o mundo...” (Jo 3,16)
Esta afirmação faz parte do núcleo essencial da fé cristã. Deus ama o mundo, e o ama tal como é: inacabado e imperfeito, cheio de conflitos e contradições, capaz do melhor e do pior... Este mundo não percorre seu caminho sozinho, perdido e desamparado. Deus o envolve com seu amor de ternura.
Isto tem consequências de máxima importância. O mundo inteiro transforma-se em objeto do nosso interesse e da nossa preocupação.
Se há um “hábito do coração” que poderia ser ativado nesta Quaresma é este: a “leitura orante da realidade do mundo”. Este “hábito do coração” tem suas raízes no relato evangélico de hoje, onde Jesus nos convoca a olhar o mundo como Deus olha: com amor e compaixão.
Assim como a Salvação do mundo foi determinada a partir de um “olhar” que saiu do coração de Deus, que pousou sobre o mundo e que voltou ao seu coração, estremecendo-O de compaixão e movendo-O à ação, assim também toda nossa presença no mundo tem de ter sua origem num olhar misericordioso e compassivo, amoroso e esperançoso...
Inspirados na afirmação de Jesus, contemplamos com o olhar do Deus compassivo nosso mundo fragmentado, cheio de conflitos que geram sofrimento, exclusão, morte... E esses espaços e fronteiras são cada vez mais extensos e problemáticos; mas, nas profundezas de todos esses “mundos que nos são estranhos” se revela a presença amorosa do Pai. Pois tudo foi alcançado e redimido pelo amor expansivo de Deus.
A Quaresma nos conduz à contemplação da realidade na qual vivemos e à qual somos enviados apostolicamente; tal exercício nos possibilita ter presente, como uma visão de conjunto, as grandes questões sociais e eclesiais que desafiam hoje os cristãos, enquanto seguidores de Jesus e comprometidos com a fé e a justiça, em diálogo com a cultura e com as tradições religiosas.
Esta contemplação da nossa realidade (“ver o mundo”) nos ajudará a nos aproximar e a conhecer mais profundamente o mundo no qual estamos imersos. Nesse sentido, contemplar o mundo a partir de Deus será um convite a encarnar-nos nele para transformá-lo.
Tal aproximação e conhecimento deste mundo devem ser feitos a partir de uma atitude de compaixão: não de confrontação ou enfrentamento, mas movidos pelo desejo de compreender as entranhas do mundo no qual vivemos. Não se trata de fazer um juízo moral sobre ele, nem para aprová-lo nem para condená-lo. Assumimos uma atitude crítica valorizando o que nele há de potencialidades abertas e emergentes, bem como detectando suas limitações, desvios... Ao mesmo tempo queremos nos deixar interpelar por ele, fazendo com que ressoem em nós suas perguntas e suas inquietações, suas luzes e suas sombras, suas riquezas, seus paradoxos e suas contradições.
Estamos mergulhados no mundo trabalhando junto e com as pessoas, mas na mesma ação somos contemplativos porque “encontramos a vida divina no mais profundo da realidade”.
Existe uma forma contemplativa de viver no meio do mundo, ou seja uma forma diferente de descobrir o Deus oculto no centro das realidades. Como um pêndulo, o cristão oscila entre o mundo e Deus. É tão familiar com Deus que admira a variedade e a multiplicidade do mundo, e não teme o mundo com todo seu “mundanismo” e complexidades. É tão familiar com o mundo que sente o Espírito de Deus, que trabalha no mundo, em todos os lugares e da maneira mais inesperada.
O tempo Quaresmal nos sensibiliza e nos capacita para nos aproximar do nosso mundo com uma visão mais contemplativa. O “subir” até Deus passa pelo “descer” até às profundezas da humanidade.
A pessoa contemplativa, movida por um olhar novo, entra em comunhão com a realidade tal como ela é. É olhar o mundo como “sacramento de Deus”. Um olhar capaz de descobrir os sinais de esperança que existem no mundo; um olhar afetivo, marcado pela ternura, pela compaixão e por isso gerador de misericórdia; um olhar que compromete solidariamente.
As grandes fronteiras do mundo (globalização, diferentes culturas, ciência e tecnologia, ecologia, bioética, migrações...) vão adquirindo cada dia proporções novas e surpreendentes; elas constituem os grandes desafios que pedem de nós, seguidores de Jesus, uma presença inspiradora e samaritana.
Esta é a atitude contemplativa: ver Deus no mundo e o mundo em Deus.
Tal atitude fundamenta uma grande paixão e interesse pelo mundo. Para descobrir Deus não é preciso fugir do mundo; o seguidor de Jesus não é aquele que, por medo, se distancia do mundo, mas é aquele que, movido por uma radical paixão, desce ao coração da realidade em que se encontra, aí se encarna e aí,
“esvaziando-se”, participa ativamente da solidariedade de Deus com a humanidade, que é o centro da salvação; ele estabelece sua moradia no mundo, inserido nos “extremos” do trabalho, da vida, dos direitos, da ética na política..., ali onde se faz mais necessária a atividade profética.
Neste momento em que tudo parece confuso, incerto e desalentador, nada nos impede introduzir um pouco de amor, de compaixão, de sensibilidade e justiça, no mundo. É o que fez Jesus. Sua presença nas periferias da pobreza e exclusão deixou transparecer o rosto humano e compassivo do Pai.
O mistério Pascal nos convida a “olhar” nossa terra cotidiana, nossa humanidade, fragilidade, paixões, sentimentos, fracassos, imperfeições... Deus se encontra misturado com tal realidade, salvando-a.Nesta contemplação vai se purificando nossa imaginação e nosso mundo afetivo para poder seguir a Jesus em um serviço como o seu, no lugar mesmo onde Ele se fez presente para fazer Redenção.
A espiritualidade quaresmal abre-nos à missão apostólica, desvelando os aspectos criativos e esperançosos da realidade, denunciando as forças que desagregam ou excluem, propondo novos modos de viver o compromisso eclesial e social..., enfim, impulsionando a sermos agentes de transformação e atuantes no âmbito público.
Isso demanda lucidez, conhecimento rigoroso e sapiencial da realidade; para isso é preciso deixar-se afetar pela realidade (compaixão), incorporar uma leitura compassiva e entrar no fluxo da graça expansiva de Deus, que tudo redime.
Texto bíblico: Jo 3,14-21
Na oração: diante de Deus responda: quê impacto tem sua vida cristã na realidade social que o(a) cerca? Verificar, diante de Deus, se a experiência quaresmal está despertando em seu interior uma sensibilidade social, um espírito solidário e um compromisso com o mundo da exclusão.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
Diretor do Centro de Espiritualidade Inaciana -CEI
“Fez então um chicote de cordas e expulsou todos do templo” (Jo 2,15)
Na história da humanidade, frente a uma ordem social e religiosa injusta estabelecida, surgiram aqueles que que se rebelaram...Há transgressores necessários, para o bem da humanidade. Eles se opõem a uma ordem social e religiosa injusta, para assim criar uma humanidade mais justa e solidária, abrindo um espaço para os excluídos, um caminho de amor para os rejeitados...
Entre esses transgressores está Jesus. Por isso o rejeitaram e o mataram. Em nome de um Deus que a todos acolhe e chama, que é Pai de todos, Jesus transgrediu a norma da “boa sociedade”, mergulhou no submundo da exclusão, da miséria...
Normalmente os transgressores rompem alguns limites para traçar outros, mudando um sistema que julgam imperfeito por outro que lhe parece mais perfeito. No entanto, Jesus, o transgressor messiânico, superou e quebrou as barreiras anteriores não para criar outras, senão para abrir um espaço e caminho de vida que pode ser universal.
Os seguidores de Jesus se identificam como “transgressores” reunidos a partir da gratuidade do amor, acima da lei. O gesto de Jesus não pode se converter em princípio de uma nova lei religiosa, mas deve ser compreendido como fonte humanizadora, manancial de autonomia criadora. Isso significa que Ele quis que os seus seguidores assumissem e deslanchassem um caminho de autonomia criadora sobre o mundo.
Segundo o relato do evangelho de João, na sua primeira subida ao Templo, Jesus, com seu gesto ousado, rompe esse mundo religioso fechado, introduzindo uma novidade; com uma audácia desconhecida surpreende a todos, abrindo um novo caminho entre nós para humanizar a religião. O mundo querido por Deus vai mais além da tirania do Império e mais além do estabelecido pela religião do Templo.
Atacar o Templo era atacar o coração do povo judeu: o centro de sua vida religiosa, social e econômica. O templo era intocável. Ali habitava o Deus de Israel. Jesus, no entanto, se sente um estranho naquele lugar: aquele templo não é a casa de seu Pai nem é o espaço da acolhida dos marginalizados, mas um mercado. O Pai dos pobres não pode reinar a partir deste templo. Com seu gesto profético, Jesus está denunciando, na raiz, um sistema religioso, político e econômico que se esquece dos últimos, os preferidos de Deus.
Jesus nasceu e viveu numa sociedade religiosa. Seguramente foi educado na religião de seu contexto. Mas em seu processo pessoal foi questionando uma religião que oprimida as pessoas e não as fazia felizes, e que, além disso, justificava a opressão de umas classes sociais (sacerdotes, grupos próximos ao Templo, ricos, fazendeiros, poderosos politicamente...) sobre outras (pobres, mendigos, camponeses empobrecidos, excluídos sociais, enfermos, viúvas, escravos...).
Jesus se encontrava com o Pai não no espaço sagrado do Templo, nem no tempo sagrado do culto religioso, mas no espaço “profano” da convivência com as pessoas. A partir de sua religiosidade Jesus foi descobrindo um Deus não distante nem cruel, mas próximo, misericordioso, a quem chamava “Abba”. E começou a anunciar que Deus queria para os seus filhos e filhas uma dignidade, uma felicidade, uma humanidade e relações de amor que as levariam a uma sociedade igualitária, fraterna, justa...
Jesus era visto como um forasteiro perigoso e um subversivo que entrou em conflito com a religião oficial (Templo e Lei). Viveu e pregou na Galileia: era o melhor lugar para anunciar sua mensagem e seu projeto, região de pobres, ignorantes e impuros. Com eles Jesus assumiu uma “conduta desviada”.
Seu conflito com o Templo o levou à ação mais violenta. Com seu gesto Jesus reprova os profissionais da religião que se servem do Templo para justificar as maiores violências. Mas Jesus não fez isso para “purificar” ou “restaurar” uma religião muito primitiva e substitui-la por um culto mais digno e ritos menos sangrentos; seu gesto transgressor tem um conteúdo mais radical: a destruição de tudo o que o Templo significa, pois Deus não pode ser conivente com uma religião tecida de interesses e egoísmos. Jesus não pode ver ali a “nova família de Deus” que começou a formar com seus seguidores.
A “religiosidade” de Jesus é radical porque se fundamenta na comunhão. Historicamente temos comprovado que as religiões normalmente separam, dividem, marginalizam, excluem, condenam. Daí tanta intolerância e violência religiosa.
De fato, o poder religioso é o mais nefasto e o mais desumanizador quando transforma a religião em um sistema opressor dos seres humanos, e é utilizada por aqueles que detém o controle dela para dominar as pessoas com argumentos religiosos (pecado, demônio, inferno, medo da condenação eterna...). Assim tem sido durante muitos séculos e em muitas culturas e civilizações.
O projeto de Jesus é radicalmente diferente do projeto da religião. Na realidade, Jesus não estava preocupado em fundar uma nova religião. Nem os primeiros cristãos consideravam o seguimento de Jesus como uma religião, mas como um “caminho” (eram conhecidos como seguidores do “caminho”), um projeto de vida, um modo de viver. Para uns eram considerados uma “seita”, para outros, como “ateus”.
Literalmente falando, podemos dizer que Jesus não “fundou” uma religião, mas Ele é o fundamento da religião cristã. O que, com certeza, se pode afirmar é que deslocou a religião: tirou-a do “espaço sagrado” e a colocou “na vida”, nas relações amorosas de uns para com os outros, no espírito de serviço compassivo para com os mais sofredores. Por isso, a única fez que o NT utiliza a palavra “religião” é para dizer que ela consiste em “cuidar dos órfãos e viúvas em suas necessidades e em não se deixar contaminar pelo mundo” (Tg. 1,27).
Da mesma maneira, quando o NT exorta os cristãos a pôr em prática o ato central da religião, o “sacrifício”, afirma que os sacrifícios que “agradam a Deus” são a “solidariedade e fazer o bem” (Heb 13,16). O NT desloca a religião, do “sagrado” ao “cotidiano”, dos ritos às relações entre as pessoas.
A religião daqueles que seguem a Jesus deve estar sempre a serviço do Reino de Deus e sua justiça.
Texto bíblico: Jo 2,13-25
Na oração: O gesto “indignado” de Jesus no Templo deve despertar em nós, seus seguidores, uma pergunta provocativa: quê religião estamos cultivando em nossos templos?
- Temos de revisar se nossas comunidades cristãs são um espaço onde todos possam se sentir acolhidos na “casa do Pai”; uma comunidade acolhedora onde não se fecham as portas a ninguém e onde não se exclui nem discrimina ninguém; uma casa onde todos aprendem a escutar o sofrimento dos mais desvalidos e não o próprio interesse; uma casa onde todos podem invocar a Deus como Pai porque todos se sentem seus filhos e buscam viver como irmãos (cf. Pagola).
- Considerar se o templo de nosso coração é realmente “casa de oração”, “casa de encontro com Deus e comunhão com os outros”, ou antes, uma espécie de “feira” onde compra-se, vende-se e negocia-se de tudo.
Se olharmos para nossa interioridade, podemos cair na conta de que carregamos uma quantidade de “bois, ovelhas, pombas e mesas de cambistas” que tornam nossa vida pesada e auto-centrada. Como se sentiria Jesus ao visitar nossos corações?
Pe. Adroaldo Palaoro sj
Diretor do Centro de Espiritualidade Inaciana -CEI
“E uma voz, que saiu da nuvem, disse: ‘Este é o meu Filho amado; escutai o que Ele diz’” (Mc 9,7)
O centro do relato da “transfiguração de Jesus” é ocupado pela Voz que vem de uma estranha nuvem, símbolo que a Bíblia usa para nos falar da presença sempre misteriosa de Deus que se manifesta e, ao mesmo tempo, se oculta. A Voz diz estas palavras: “Este é o meu Filho amado; escutai-o”.
Com este relato, Marcos quer indicar que o seguimento implica muito mais que uma simples confissão de fé no Jesus como Messias; os discípulos, no Monte Tabor, também passam por uma transformação: eles devem ser curados da cegueira e surdez espiritual que os impede de ver as exigências do amor e de escutar os apelos que os levam, como Jesus, a uma entrega radical de suas vidas.
Subindo ao Tabor interior, também nós seremos transfigurados: através desta experiência nossos olhos e ouvidos do coração se abrirão, capacitando-nos para contemplar a realidade tal como Deus a contempla.
Esta experiência igualmente nos capacita para alcançar também uma percepção diferente das outras pesso-as; não julgaremos mais as pessoas pelas suas aparências externas, mas as veremos com mais profundidade, no coração, como se estivéssemos aprendendo a “ver” com os olhos de Deus; da mesma forma, estaremos mais sensibilizados para escutar os outros com mais atenção, deixando ressoar em nosso interior as vozes que nos chegam das margens. Continuaremos descobrindo que olhar para o mundo e escutar seus clamo-res será um desafio e uma tarefa contínua que vai mais além de uma experiência isolada de encontro divi-no-humano sobre o alto da montanha.
A Transfiguração nos fala da verdade que carregamos dentro de nós, mas também de novos olhos e ouvidos abertos para entrar em sintonia com esta realidade interior. Sem escuta profunda a vida se desumaniza e o ser humano se automatiza egoísticamente.
A escuta é o caminho da originalidade, é a condição para não se viver na inércia. A verdadeira sabedoria nasce não do que está acumulado na memória, mas de uma transparente escuta no momento presente, essa simples acolhida que torna sábios os pobres, sensíveis ao sopro de Deus, este Deus sempre livre, sempre presente, desconcertante.
Já diziam os antigos: “Fides ex auditu”; a fé vem pelo ouvido; o próprio Deus deixa-se perceber pelo ouvido; faz-se “audível” para o ser humano. Dentre os seres vivos criados por Deus, o ser humano é o único capaz de escutar e de falar, porque é o único criado à imagem e semelhança d’Ele, d’Aquele que é a Palavra cheia de verdade e a escuta cheia de ternura. “Deus é a Palavra suprema e o Silêncio infinito”.
Na Sagrada Escritura, o exercício do ouvido, a escuta, é prerrogativa tanto de Deus como do ser humano. Escutar o “mistério” entranhável e sempre livre de Deus é o caminho para encontrar nossa originalidade, nosso nome, para nos encontrarmos n’Ele, como no melhor eco de nossa oculta beleza.
É Deus mesmo que abre cada manhã os ouvidos dos discípulos e os torna atentos à escuta. Em toda Palavra de Deus existe sempre um dinamismo que nos des-vela e re-vela nossa verdade original. Voltar a escutar é voltar a ser criança. Tudo é palavra e silêncio. Tudo no universo vibra, emite, transmite, fala, vive. E ao mesmo tempo tudo é escuta e percepção.
A escuta estabelece a verdadeira relação entre os seguidores e Jesus. No evangelho de hoje, o apelo à escuta nos interpela com força; é um apelo que brota da nossa própria vida, como abertura à profundidade de uma existência com sentido e horizonte; trata-se de um chamado a escutar uma palavra nova e original e que nos abre a uma dimensão transcendente, sempre apaixonante, de uma relação pessoal com o Criador e com os outros.
Desde nosso nascimento, começamos a viver uma relação com o meio ambiente que implica uma escuta e uma resposta. E assim nossa personalidade humana e espiritual vai se definindo. No contexto atual, a atitude de escuta é um desafio; inimiga número um da escuta é a pressa e a ansiedade que ela costuma trazer consigo. O ritmo da vida não nos permite “lê-la” com claridade, com a entonação que ela exige e merece. Cremos ter uma riqueza interior que queremos proclamar, e preferimos que nos escutem, mas ao falar não articulamos bem nossa mensagem, desconhecendo que nossa riqueza interior se desperta primordialmente na escuta.
É preciso destravar nossa capacidade de escuta interior, para acolher e discernir as diferentes vozes que ali se fazem presentes. Sem interioridade e sem escuta do próprio coração, nós nos desumanizamos.
Educados na escuta interior, estaremos sensibilizados para a escuta da realidade. Permitir que cada realidade fale para nós sua própria linguagem. Isso é ter ouvidos para a escuta.
Aqui não se trata de ser puramente receptivos a algumas idéias, escutar determinadas palavras, senão de escutar com o ouvido do coração, de procurar captar a vida que pulsa no coração do outro. E isto exige uma profundidade que talvez esteja faltando, quando estamos nos movendo na superficialidade da vida.
Além disso, saber escutar o outro é uma simples, mas profunda acolhida humana. Saber escutar é acolher o outro. Há muita carência dessa capacidade em nossa sociedade globalizada, individualizada e sobretudo informatizada ou tecnologizada. Estamos rodeados de aparelhos e não de pessoas; tudo são ruídos e vozerio crônico. Todo o mundo quer falar, expressar-se. Mas falta o interlocutor que escuta sabiamente.
O Evangelho nos quer colocar no caminho de uma verdadeira humanização; daí a insistência em ter uma atitude aberta e acolhedora de escuta.
Texto bíblico: Mc 9,2-10
Na oração: Como restaurar em nós essa capacidade de escutar? A escuta se restaura no Silêncio, na capacidade de acolher Aquele que fala no silêncio. Desse prolongado silêncio, acaba-se ouvindo a Palavra da qual brota todas as palavras humanas.
- Tomo consciência daquilo que obstrui os meus ouvidos e os torna “incapazes de prestar atenção”.
- Tomo consciência da superficialidade diante da voz da consciência e da incapacidade de escutar o outro, não deixando ressoar a sua voz no meu coração.
- Tomo consciência de todas as mensagens negativas que transformaram, seduziram e enganaram meus ouvidos, tornando-os surdos às mensagens celestes, à Palavra da verdade e da vida.
- Tomo consciência da hipersensibilidade auditiva que me faz reagir bruscamente frente à incompreensão ou me faz sucumbir frente aos slogans da moda.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
Diretor do Centro de Espiritualidade Inaciana - CEI
“Vivia entre os animais selvagens, e os anjos o serviam” (Mc 1,13)
A afirmação ousada do Evangelho de hoje, onde Jesus no deserto “vivia entre animais selvagens e os anjos o serviam”, pode servir de ocasião para nos ajudar a “des-velar” (tirar o véu) a nossa interioridade e deixar emergir os “animais” e os “anjos” que nos habitam.
Jesus, radicalmente humano, tem consciência dos diferentes animais e anjos presentes em seu interior.
Sabe conviver com eles e integrá-los ao seu processo humanizador. As tentações não significam uma “luta desgastante” que atrofia seu interior. Ele se deixa conduzir pelo Espírito, e os anjos o alimentam.
Nosso interior é morada de animais selvagens e de anjos. Todos eles tem sua importância na nossa vida.
À luz do Tempo Quaresmal, sentimo-nos envolvidos por uma grande irmandade universal que aponta para a corrente única de vida e de sua imensa biodiversidade, numa grande teia de interdependências e de comunhão de todos com a Fonte originante de tudo. Pela carne e pelo sangue, por todas as células, as fibras e as energias de nosso ser estamos vinculados com o universo.
Segundo o relato da Criação, o ser humano vem da argila, do húmus... Por isso ele carrega em si os mesmos elementos físico químicos da natureza: minerais, plantas, animais... O ser humano não está acima ou abaixo das outras criaturas; ele é “um” com elas e é chamado a cuidar delas. Sua vocação primeira é a de ser jardineiro.
Cada ser humano carrega latente em seu íntimo toda a sabedoria do universo. O poeta americano Walt Whitman nos legou uma frase maravilhosa e emblemática sobre este tema: "Eu sou contraditório, eu sou imenso. Há multidões dentro de mim".
Há multidões dentro de nós, não só de animais irracionais como também de homens e mulheres de todas as etnias, os jardineiros da criação divina. E, embora nesta grande diversidade, somos unidade na capacidade de pacificar e de fazer conviver todas as criaturas. Somos como a “arca de Noé”, no grande Oceano da vida, carregando em seu interior todos os animais, com seus instintos selvagens e primitivos, numa harmonia e convivência, onde cada um deles tem sua importância, seu papel sagrado e revelador da identidade humana. A aliança de Deus com Noé implica uma aliança com todos os animais, domésticos e selvagens. E o maior desafio é, justamente, a convivência com todos os animais que carregamos em nosso próprio interior. São eles que nos facilitarão o acesso às nossas riquezas interiores.
Nossa animalidade não deve ser esquecida, recusada, extirpada, controlada ou domesticada. Na mística judeu-cristã, nossa animalidade deve ser salva. Salvar nossa animalidade exige explorar nomes, identidades, símbolos e energias animais. O relacionamento entre humanidade e animalidade não é antagônico, excludente. Cada pessoa é chamada a conhecer, reconhecer, nomear e levar a termo os animais que a habitam. E caminhar fraternalmente com seus irmãos animais (cf. Evaristo de Miranda).
É preciso, antes de tudo, pacificar nossos animais interiores. Trata-se de conhecê-los, aprender a linguagem deles, fazer amizade com eles para que eles não nos destruam por dentro.
Faz parte da maturidade e crescimento pessoal encontrar e entender, em cada um de nós, a mensagem e o desafio de animais interiores como a rã, a pomba, o cachorro, o corvo, a serpente, a raposa, a perdiz, o lagarto, o falcão, o lobo, o leão... Cada animal deve ser verbalizado, integrado harmoniosamente no tempo certo e no lugar adequado. Ao fazer isso, descobrimos as diferentes dimensões da ecologia espiritual.
No entanto, no nosso processo formativo e a partir de uma visão exageradamente antropocêntrica, fomos coagidos a viver uma espiritualidade que nos ensinou a reprimir e a manter presos todos os animais na gruta interior e a levantar junto dela um edifício de “grandes ideais”. E com isso, passamos a viver constantemente com medo de que os animais pudessem fugir e nos devorar.
Com isso nos excluímos do prazer de viver, porque tudo é reprimido e nossa animalidade é violentada.
Sabemos que tudo quanto nós reprimimos nos faz falta à nossa vida. Os “animais selvagens” tem muita força. Quando os prendemos, gera um desgaste muito grande e fica nos faltando a sua força, de que temos necessidade para o nosso caminho para Deus, para nós mesmos e para os outros. Somos obrigados a fugir de nós mesmos, ficamos com medo de olhar para dentro de nós, pois poderíamos correr o risco de nos deparar com eles. Quanto mais os amarramos, tanto mais perigosos eles se tornam; eles nos atacam por dentro, tirando a disposição, o ânimo de viver.
Cada um deles representa os instintos, impulsos, paixões, fragilidades, sensualidade, sentimentos... que, quando não pacificados e integrados, criam uma desarmonia interior. Lutar contra os animais interiores é permanecer na superfície de si mesmo e não ter acesso às reservas de riqueza do próprio coração.
Quando todas as energias animais são ordenadas, elas colaboram para o conhecimento pessoal, o refinamento da identidade e a busca da autenticidade, elas são fonte interior de sabedoria e de desfrute espiritual. Então eles irão nos conduzir ao mais profundo e nos mostrar onde o tesouro está escondido.
Os “anjos” que nos habitam e nos servem são os “consolos” que aparecem em nosso caminho, em forma de paz, de luz, de fortaleza, de amor... O crescimento espiritual implica abraçar toda a nossa verdade, os “animais selvagens” e os “anjos”. As “tentações” de Jesus nos inspiram a avançar em direção à nossa verdade profunda, tirando-nos de nossa superficialidade, ou talvez da nossa “zona de conforto” na qual estávamos instalados, conformando-nos com um viver estreito e sem sentido. A integração dos “animais” e “anjos” nos fará criativos e ousados na missão à qual somos chamados a realizar.
Como Noé, podemos nomear e salvar - em nossa arca interior - todos os “animais” e “anjos”.
Resgatar os nossos animais interiores do dilúvio do inconsciente, é aceitar as diferenças e aprender a viver na diversidade. É fazer despertar a consciência dos nossos limites físicos, emocionais, espirituais com a certeza de que caminhamos em direção à plenitude da Criação, para um dia vibrarmos com todas as criaturas do universo no espírito do amor. Com isso, a luz e a fortaleza angelical se expandirão em nosso interior e nos impulsionarão a uma presença harmoniosa e acolhedora numa realidade tão desintegrada e conflituosa.
Texto bíblico: Mc 1,12-15
Na oração: A oração visa também atingir uma relação terapêutica com a nossa animalidade, num novo ambiente, numa ecologia espiritual paradisíaca e harmônica para bem viver a maravilha da vida plena e em abundância.
Diante do Deus criador, trazer os seus animais interiores e anjos à luz, deixá-los apresentar-se, serem reconhecidos e ocupar o seu lugar na ecologia espiritual. Trata-se de fazer uma aliança de Vida, entre viventes.
Os cantos e pios, urros e berros, zumbidos e silvos dos animais interiores despertam nossa atenção para dimensões esquecidas, reprimidas de nossa existência. O sussurro dos anjos nos apontará para as dimensões ricas de nossa vida que ainda não foram destravadas. Basta escutar e sentir.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
Diretor do Centro de Espiritualidade Inaciana -CEI
O Ano Litúrgico é um “tempo terapêutico” que toca, desvela e transforma todas as dimensões da vida. A partir desta perspectiva, a Quaresma e a Páscoa são consideradas tempos de intensa mobilização para a mudança interior e comunitária. A expressão bíblica para indicar essa transformação é “metánoia”, que indica mudança, conversão, fazer o retorno, ter diante dos olhos outro caminho a percorrer, tomar outro atalho com uma mudança de direção.
De acordo com este tempo litúrgico, o caminho para a transformação começa simbolicamente com a “Quarta-feira de Cinzas”. Com a imposição das cinzas, reconhecemos a necessidade de dar outro rumo à vida, com todo o nosso ser. Mudar nosso coração de pedra por um coração de carne, misericordioso, com entranhas, humano. A liturgia na Igreja expressa isso mediante uma fórmula ritual: ao traçar a cruz com cinzas a fronte de cada um, proclama: “Convertei-vos e crede no Evangelho”. Ou seja, mude de caminho, com renovada decisão, e assuma a causa de Jesus de Nazaré: seu Reinado de justiça e de paz.
As “cinzas” são o símbolo daquilo que morreu e foi reduzido à sua expressão mínima. Cinzas obtidas dos ramos que na celebração do ano anterior nos ajudou a fazer memória da entrada triunfante de Jesus em Jerusalém. O modo de louvar, de rezar, de celebrar do ano passado, já não serve mais; não podemos usar os mesmos ramos, os mesmos argumentos, a mesma intensidade. Daqui brota a necessidade de não nos apegarmos àquilo que serviu alguma vez para nosso crescimento espiritual e comunitário, para fazer aparecer a novidade de uma notícia que sempre desperta mais assombro.
Os ramos transformados em cinzas, passaram pelo fogo. Essa é a nossa garantia: que aquilo que passa pelo fogo, é necessariamente renovado. Animar-nos, neste tempo de travessia, a acender o fogo para converter em cinza o que é caduco e ultrapassado em nós; e ao nos ver rodeados de cinzas, sentir-nos-emos esvaziados de nossas falsas seguranças e ilusões, de nossa prepotência e autocentramento.
Das cinzas surgirá a maturação; as folhas caídas darão lugar ao novo broto e isto implica atrever-nos a viver com mais intensidade e criatividade, fazendo a dura travessia em direção ao novo que nos humaniza. As cinzas, também, apresentam a textura e a leveza para deixar-se espalhar pelo vento, para que o “sopro do Espírito” as leve para onde quer que seja, as lance em terras novas, conferindo-lhes novas fertilidades.
Marcados pelas cinzas, deixamo-nos conduzir pelo Vento do Espírito para lugares onde seja necessário nossa presença, nosso testemunho, nossa profecia. Quaresma é tempo para confiar nas cinzas e no vento, para sair e criar o novo, preparar o novo mundo e fecundar a nova terra.
Para ajudar a fazer a “travessia” de uma vida estreita e limitada a uma vida expansiva, aberta e comprometida, a liturgia quaresmal nos convida a viver as chamadas “práticas quaresmais” ou seja, o jejum, a esmola, a oração como atitudes que nos permitem abrir e ampliar espaços em nosso coração, para Deus e para os outros. São também práticas que nos fazem crescer na identificação e no seguimento de Jesus Cristo, pois a Quaresma implica “ter os olhos fixos n´Ele”, para deixar-nos impregnar pelo seu “modo de ser e viver”, alargando cada vez mais as quatro dimensões básicas da vida: relação consigo, com os outros, com a criação e com Deus.
Fazer jejum não se limita a renunciar algo (alimento, bebida, vícios…); tal atitude pode nos levar a farisaísmos ou voluntarismos, quando o centro somos nós mesmos. Fazer jejum significa ativar e reforçar os dinamismos humanos oblativos, ou seja, aqueles que nos descentram e nos expandem na direção do serviço e do compromisso com o outro, sobretudo os mais pobres e excluídos. Se o jejum não nos faz mais compassivos, solidários, com espírito de partilha... ele se reduz a uma simples penitência, vazia de sentido. No seu horizonte, o outro não está presente.
A quaresma deverá, então, ser um tempo para “jejuar alegremente”; e isto implica duas coisas:
- jejuar de julgar os outros e festejar a nobreza escondida em cada um; jejuar de preconceitos que nos afastam e fazer festa por aquilo que nos une na vida; jejuar das tristezas e celebrar a alegria; jejuar de pensamentos e palavras doentias e alegrar-nos com palavras carinhosas e edificantes; jejuar de lamentar fracassos e festejar a gratidão; jejuar de ódio e festejar a paciência santificadora; jejuar de pessimismos e viver a vida com otimismo como uma festa contínua; jejuar de preocupações, queixas e lamentações, e festejar a esperança e o cuidado providente de Deus; jejuar de pressas e ativismos e saber festejar o repouso reparador;...
Algo disto também é vivido através da prática da “esmola”, que não se reduz a renunciar algo próprio, o que sobra. Implica fazer da vida uma contínua “oferta”, ou seja, uma atitude de vida atenta à realidade do outro, deixando-se afetar pela sua pobreza, sofrimento e exclusão. Trata-se de viver o espírito de partilha, colocando “pitadas” de misericórdia nos gestos de proximidade; ter um olhar contemplativo que sabe ler entre linhas, que está atento à sede de compaixão daqueles que o cercam; revelar uma forma de se relacionar com os outros de outra maneira, mais gratuita e desinteressada; não é tirar da bolsa, mas do coração; compartilhar o que se é e o que se tem, em suma, que seja expressão de amor.
Enfim, outra prática quaresmal que nos faz crescer na identificação com Jesus e a viver na perspectiva do outro é a oração. A oração, é vista, muitas vezes, como um modo de “terceirizar” soluções: pedir a Deus que faça o que nós não fazemos; e se Ele não faz será sua suprema vontade que tudo se mantenha igual, fechando a pessoa em sua cápsula tão distante da vida das pessoas. Quaresma é tempo propício para ter Jesus orante diante dos olhos, como referente e inspirador.
A oração de Jesus o fazia mergulhar de cheio nas dores, nas exclusões e nas injustiças cotidianas, e o provocava a revisar suas práticas concretas, para cultivar vínculos mais semelhantes aos que Ele descobria como o sonho do Pai. Na oração, Jesus exalta os pequenos e excluídos; nas experiências compartilhadas de oração vai delineando sua missão e ampliando seus próprios limites, abre-se aos “pagãos”, reconhece e aceita o novo que brota das margens.
Em atitude orante, Jesus abre os olhos e ouvidos dos cegos e surdos, põe de pé os paralíticos, anima os desfalecidos a recomeçar, cura os doentes... A solidão no monte o impulsiona a compreender com mais profundidade o sentido daquilo que vive e a comprometer suas mãos com maior decisão nas vidas daqueles com quem se encontra...
Texto bíblico: Mt 6,1-6.16-18
Na oração: Em nosso interior há todo um mundo de vozes, ruídos e imagens que surgem de nós mesmos, daqueles que nos rodeiam, de nossa comunidade e também de Deus. É preciso tomar consciência dos “movimentos internos” que acontecem na oração, acolhê-los, interpretá-los e verificar a direção que eles estão indicando.
Daí a importância do silêncio na oração; ele é a chave a raiz da palavra carregada de vida; o silêncio é o território da palavra ousada e criativa; a palavra mais significativa brota de uma longa espera, de um prolongado silêncio; do silêncio brota a palavra que torna nossa vida mais intensa, abrindo-nos a Deus e aos outros; na oração aprendemos a distinguir e dar nome àquilo que vem de Deus; vamos aprendendo a escolher as cores que nos ajudam a preencher nossa vida, por dentro e por fora, com as tonalidades que melhor nos harmonizem com a paisagem que Deus quer pintar no mundo.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
Diretor do Centro de Espiritualidade Inaciana -CEI
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