“O menino crescia e tornava-se forte, cheio de sabedoria; e a graça de Deus estava com ele” (Lc 2)

 

A liturgia de hoje nos propõe a “Família de Nazaré” como horizonte de inspiração para nossas famílias. Uma festa estabelecida recentemente para que nós cristãos pudéssemos celebrar e aprofundar aquilo que pode ser  um projeto familiar entendido e vivido a partir do espírito de Jesus.

Uma família cristã procura viver uma experiência original no meio da sociedade atual, indiferente e consumista: construir o seu lar a partir da referência da Casa de Nazaré: José, Maria e Jesus que alentam, sustentam e orientam a vida humana e inspiradora de toda família. 

Entre os cristãos defende-se quase instintivamente o valor da família, mas nem sempre paramos para refletir no conteúdo concreto de um projeto familiar, entendido e vivido a partir do Evangelho.

Não podemos celebrar dignamente a festa de hoje sem escutar o desafio de nossa fé: como são nossas famílias? Vivem responsavelmente e comprometidas com uma sociedade melhor e mais humana, ou fechadas exclusivamente em seus próprios interesses? Educam para a solidariedade, a busca da paz, a sensibilidade para com os mais necessitados, a compaixão..., ou ensinam a viver somente para o bem-estar insaciável, o consumismo, o máximo lucro e o esquecimento dos outros? É espaço de humanização, de relações sadias..., ou ambiente limitador das possibilidades de seus membros?... 

No evangelho da Infância em São Lucas, o relato do nascimento de Jesus é desconcertante: não há lugar para acolhê-lo; os pastores o encontram deitado em um presépio, sem outras testemunhas a não ser Maria e José. Temos a impressão que Lucas sente a necessidade de construir um segundo relato no qual o menino é resgatado do seu anonimato para ser apresentado publicamente. E o Templo de Jerusalém é o lugar mais apropriado para que Jesus seja acolhido solenemente como o Messias enviado por Deus a seu povo. 

Mas, de novo, o relato de Lucas é desconcertante. Quando os pais se aproximam do Templo com o menino, não são os sumos sacerdotes nem os demais dirigentes religiosos que saem ao seu encontro. Também não é recebido pelos mestres da Lei que pregam suas “tradições humanas” nos átrios do Templo. Jesus não encontra acolhida nessa religião fechada em si mesma e distante do sofrimento dos mais pobres; não encontra amparo em doutrinas e tradições religiosas que não ajudam a viver uma vida mais digna e mais humana. 

Somente os olhos apagados de dois idosos (Simeão e Ana) conseguem ver o Salvador; somente os braços cansados desse casal ancião conseguem abraçar o Salvador; somente eles conseguem estreitar em seus corações Aquele que é a Esperança dos povos. Uma vida cheia de promessas e esperanças; agora, marcados pela gratidão, cantam de alegria e louvam o privilégio de acolher a Quem tinham esperado durante toda uma vida.

Em seguida, a família de Jesus retorna ao cotidiano de Nazaré, onde o menino “crescia” e se “humanizava”. De fato, o ambiente familiar é o lugar privilegiado para o amadurecimento físico, espiritual, social... de todo ser humano. É também o espaço propício para que cada um vá desenvolvendo a ampliando suas capacidades, seus sonhos, seu projeto de vida... Se Jesus, mais tarde, pregou e viveu o amor, a entrega, o serviço, a solicitude para com o outro, quer dizer que Ele foi incentivado a viver tudo isso no seu ambiente familiar. Na escola da vida, comum e cotidiana, Jesus também foi aprendiz.

Ele viveu a vida como um processo lento e progressivo, a partir da própria condição humana no meio dos seus, no meio do povo e em vista do Reino de Deus, graças a uma criatividade transformadora. 

A família continua sendo o espaço humanizador privilegiado para o desenvolvimento de cada pessoa, não só durante os anos da infância e da juventude, mas durante todas as etapas de sua vida. O ser humano só pode crescer em humanidade através de suas relações sadias com os outros. A família é a atmosfera insubstituível e o lugar de referência para que essas relações profundamente humanas sejam amadurecidas. Seja como casal, como filho, como irmão, como pai ou mãe, como avós..., em cada uma dessas situações a qualidade da relação os fará aproximar da plenitude humana, quando todo encontro com o outro é vivido para destravar e ativar suas ricas possibilidades e sua capacidade de amar. O espaço familiar desvela o humano que em todos habita.

A experiência e vivência familiar, portanto, vem responder a uma demanda própria deste momento pós-moderno e se revela capaz de restituir ao ser humano de hoje a espessura de humanidade e os valores que lhe são próprios. 

O clima familiar não só mobiliza a pessoa em sua integralidade (corporal, afetivo, cognitiva, volitiva...), mas a acompanha para um sentido sapiencial da vida e que a faz saboreá-la como descoberta, como oportunidade, como dom. 

A espiritualidade familiar, centralizada em cada um de seus membros, visa mobilizá-los em todas as suas dimensões, promove distensão, paz e alegria, propõe um caminho de plena humanização, forma para a abertura aos outros e para a doação por amor, impele, em suma, a criar as condições para que todos atinjam a maturidade e se realizem.  

Esse itinerário existencial constitui-se como o impulso para aventurar-se na busca da verdade e do sentido primeiro e último das coisas, o estímulo de crescimento e descoberta de si, até fazer das suas capacidades pessoais um meio para transformar o mundo, agindo nas estruturas sociais e dando à humanidade uma contribuição que tenha o sabor do Reino de Deus. 

A mística familiar situa-se, com toda a densidade, no contexto da experiência de humanidade e de fé do ser humano, de modo que cada um possa caminhar, dentro de si e diante de si, na direção daquela verdade, daquele bem e daquela beleza que constituem a positividade do mundo e a força da humanidade, fundamentados em Deus e garantidos por Ele. Por isso, a família pode ser considerada como uma tarefa humanizadora, capaz de tocar as fibras mais sensíveis do ser humano e convidá-lo para a valentia do serviço, da solidariedade e da liberdade. 

O espaço familiar visa, portanto, à reorganização da vida de cada um  segundo coração do Pai e, por conseguinte, um ótimo desenvolvimento dos talentos e dos carismas recebidos. O objetivo primeiro da família é ajudar o ser humano a tomar nas mãos, diante de Deus, a própria vida, ajudá-lo a tornar-se verdadeiramente ser humano. Seu verdadeiro desafio é exatamente o crescimento do ser humano enquanto descoberta de um projeto, escolha e determinação de empenhar-se pelos outros. 

Ela possibilita “educar”, no sentido de “educere”: extrair a verdade da pessoa, para que consiga ter uma visão ampla de si mesma e realizar-se da melhor maneira possível em suas potencialidades. Cada um é diferente, único, com saberes, expectativas, medos, ansiedades e desejos, pontos fortes e fraquezas, com seu ritmo e modo próprios de viver. 

Assim, a pedagogia familiar evoca a verdade do ser humano, comporta uma provocação, uma proposta que pede o máximo dele mesmo e, por isso mesmo, revela o que ele é capaz...Uma autêntica experiência familiar tem efeitos explosivos: é novidade que surpreende e às vezes assusta, cria novas expectativas e solicitações, traz tensão e também insatisfação, pede a mudança dos costumes e velhos estilos de vida, leva adiante o equilíbrio da pessoa em direção a horizontes imprevisíveis, abre uma nova fase de vida... 

Texto bíblico:  Lc 2,22-40 

Na oração: contemplar seu espaço familiar: é ambiente instigante, provocativo, inspirador... onde todos se sentem livres para expressar sua identidade e originalidade? Ali educa-se para viver  uma consciência moral responsável, sadia, coerente com a fé cristã? Ou favorece um estilo de vida superficial, consumista, sem metas nem ideais, sem critérios e valores evangélicos?

Em quê dimensões você sente que sua família pode e deve crescer mais, tendo como referência a Família de Nazaré? 

Pe. Adroaldo Palaoro sj

Diretor do Centro de Espiritualidade Inaciana - CEI