“Os pastores voltaram, glorificando e louvando a Deus por tudo que tinham visto e ouvido” (Lc 2,20)
Somos seres de “travessia”...
Mais uma vez nos deparamos com ritos de passagem: final de ano, a expectativa surpreendente da Epifania, a renovação dos desejos que nos humanizam, a ansiedade diante dos desafios do Novo ano...
Tempo celebrativo marcado pela gratidão, para acolher as experiências vividas e aprender com elas; tempo de inspiração e criatividade diante da certeza do novo; e, sobretudo, tempo para recompor a esperança, tantas vezes reprimida ao longo do ano.
Ano Novo nos situa no clima das grandes esperanças da humanidade; neste dezembro mágico nosso coração caminha mais rápido, rompe o tempo, já está lá na frente, pronto para acolher a surpresa.
Tudo aponta para o Eterno que nos escapa e nos encontra. Aqui a imaginação trabalha e cria momentos felizes. Com essa esperança, podemos dar sabor à nossa vida, muitas vezes modesta e simples. A esperança tem raízes na eternidade, mas ela se alimenta de pequenas coisas. Nos despojados gestos ela floresce e aponta para um sentido novo. É preciso um coração contemplativo para captar o “mistério” que nos envolve. É preciso um “coração de pastor” para ver numa criança a presença do Inefável.
Mesmo diante dos profundos dilemas sociais, achamos possível ser e viver de outro modo, inventamos e reinventamos opções, criamos novas saídas... e sem cessar, sonhamos com o “mais” e o “melhor”. Ainda que soframos ventos contrários e as nuvens se adensem no horizonte, sabemos e confessamos com o profeta Jeremias: “Há uma esperança para o teu futuro” (31,17).
Precisamente por vivermos tempos difíceis, precisamos mais do que nunca da pequena e teimosa esperança. Pois “a esperança é uma filhinha que todas as manhãs acorda, lava-se e faz a sua oração com um rosto novo” (Péguy).
Nesse sentido é que compreendemos a esperança como produtora e gestora do futuro; ela se revela como espera criativa e nos prepara para acolher as surpresas da vida. A esperança é algo constitutivo de nossa humanidade, ao mesmo tempo em que nos humaniza; ela carrega uma força misteriosa, um sopro criador que nos leva a olhar tudo com fé e otimismo. O nosso interior está habitado por esperanças de todo gênero. O que faz a diferença é a qualidade, a consistência e o realismo de nossas esperanças.
A esperança, hoje como sempre, não é virtude de um instante. É a atitude fundamental e o estilo de vida daqueles que enfrentam a existência “enraizados e edificados em Jesus Cristo” (Col.2,6). Ela não é a virtude própria dos momentos fáceis. Ao contrário, a esperança cristã cresce, se purifica e se enriquece em meio aos conflitos.
Frente a uma “visão imediatista” da história, sem meta e sem sentido algum, a esperança cristã leva a sério todas as possibilidades latentes na realidade presente. Precisamente porque queremos ser realistas e lúcidos, nós nos aproximamos da realidade, vendo-a como algo inacabado e “em marcha”; não aceitamos as coisas “tal como são”, mas “tal como deverão ser”. Quem ama e espera (esperançar) o futuro não pode “conformar-se” com a realidade tal como é hoje. A esperança não tranquiliza, mas inquieta, gera protesto, nos desperta da apatia e da indiferença... nos desinstala.
Santo Agostinho dizia que a esperança tem dois filhos: a indignação e a coragem. Indignação ao ver como as coisas estão e coragem para não permitir que continuem assim. Nós nos indignamos quando nos sentimos impotentes ante a injustiça, a violência, o abuso do poder, a marginalização em que vivem milhões de crianças e jovens sem futuro… Entretanto sabemos bem que a indignação não basta para mudar essas realidades que não apreciamos.
Por isso Santo Agostinho fala do segundo filho: a coragem, palavra que deriva do latim “cor”, coração. Ter coragem significa ter coração. A primeira prova de coragem é, portanto, atrever-se a escutar o próprio coração e rebelar-se diante da impotência. Coragem é colocar o coração na frente, e não os cálculos racionais da mente ou os medos paralisantes.
Aquele que vive com esperança se sente impulsionado a fazer o que espera. Desejar algo é antecipar o futuro e procurar uma maneira de torná-lo presente.
“Estamos abastecidos de futuro” (Pedro Arrupe)
Há um dado que é absolutamente evidente nestes tempos pós-modernos: o futuro que vamos construindo “carece de marcas de certeza” (Lefort). Nossa concepção de futuro se atrofiou: vivemos “tempos sem futuro”. Não podemos prever o futuro com segurança. Hoje, o futuro se apresenta a nós muito mais aberto que em qualquer outra época de nossa humanidade. Os conhecimentos, os meios de comunicação, as técnicas... não nos asseguram uma certeza do que virá. Aventurar no futuro torna-se cada dia mais complexo e difuso, pois predomina a incerteza que nós mesmos geramos.
Vivemos uma geração que teme o futuro; por isso vivemos um “presente esticado” porque o futuro nos apavora. Já que preferimos não imaginar o futuro, alargamos o presente. Precisamente porque faltam valores e um sentido para a existência é que se irrompe o medo do futuro, a acomodação, o refúgio no efêmero e no imediato, sem raízes e sem esperança. O medo do futuro nos ajuda a entender a mediocridade e o vazio do presente. Ao reduzir nossos sonhos e aspirações ao consumo, reduzimos nossa humanidade e nossa vida.
Precisamos voltar a ter um futuro onde ancorar; um futuro que valha a pena imaginar e que impulsiona as ações de nosso presente; uma esperança que nos dilate. Sem silêncio, sem profundidade, sem a sabedoria que sabe decantar, nunca seremos arrojados e audaciosos frente ao futuro. O futuro que espera se converte em projeto de ação e compromisso, alimenta a solidariedade, desperta a ternura, a acolhida compassiva...
E este compromisso é precisamente o que gera esperança no mundo. No final, seremos todos acolhidos por Aquele que nos quer “eternos”. Porque Ele é “terno”, deitado numa manjedoura, Esperança despojada que dá sentido às nossas perdidas “esperanças”.
Texto bíblico: Lc 2,16-21
Na oração: Esperança, indignação, coragem. Preciosas atitudes para este novo tempo em que temos o privilégio de viver. Você se atreveria de fazer suas essas atitudes? Você se arriscaria, por um novo começo? Que riscos concretos você se sente chamado a assumir?
Um Ano Novo feito de promessas, de caminhos... de ternura infantil.
Um ousado 2015, carregado de esperanças!
Pe. Adroaldo Palaoro sj
Diretor do Centro de Espiritualidade Inaciana - CEI