“Encontrareis um recém-nascido envolvido em faixas e deitado numa manjedoura” (Lc 2,12)
A humanidade de Deus nos assusta, porque, no fundo, temos medo de nossa própria humanidade. Nesse sentido, a festa do Natal é uma ocasião propícia para que pensemos no dano que nos tem causado e continua causando o medo de nossa própria humanidade. Com certeza, nesse medo está a explicação e a raiz de tantas violências e maldades que teriam e que poderiam ser evitadas.
São muitos aqueles que, mesmo tendo fé, passam a vida aspirando ser “como Deus”. E ao forçar tanto querer ser “divinos” deixam de ser verdadeiramente “humanos”. Tanto falso apetite de “divindade” acabou despedaçando nossa própria “humanidade”.
De fato, o que há de verdade nos evangelhos da infância é que o “divino” (ou seja, Deus) se deu a conhecer, se fez presente e se manifestou no “humano”. E precisamente no mais humano: uma criança, sem “títulos”, de condição humilde e em circunstancias de pobreza, desamparo e perseguição.
O “divino” não se fez presente no portentoso, no milagroso, no assustador, como aconteceu com Moisés na sarça ardente ou no monte Sinai. O “divino” se fez presente em um recém-nascido, em um estábulo, entre palhas e animais. E foi anunciado aos pastores, um dos ofícios marginalizados daquele tempo.
A “mensagem religiosa” dos evangelhos da infância é teimosamente clara e provocadora. É a mensagem que nos diz isto: o “divino” se revela e se desvela no “humano”, no mais humano, ou seja, no fraco, no marginalizado, no excluído e no perseguido. Em Jesus, interagem, harmoniosamente, o humilde e o sublime, o divino e o humano; n’Ele o humano é entrada para o divino, o celeste se manifesta no terrestre, um contendo, reconhecendo e beneficiando o outro. Sua maneira de assumir e viver a condição humana nos revela Deus e valoriza a humanidade com toda a Criação.
O Evangelho tem algo muito forte, muito duro, que não cabe em nossa cabeça. O Evangelho é a afirmação mais sublime do humano. A partir do primeiro Natal que houve na história, devemos dirigir nosso olhar para as “margens” e contemplar a presença de Deus que não se encontra no grandioso e notável, mas naquele que é marcado pela simplicidade e despojamento.
Encanta-nos quem é poderoso, o importante, o solene, o que impressiona e chama a atenção, o que se impõe e causa admiração... Mas, o que não é nem mais nem menos que humano, o que é comum com todos os humanos..., precisamente isso que é o que tantas vezes menos valorizamos, isso é o que mais necessitamos. Porque é o que mais nos humaniza, e o que mais humaniza a vida, a convivência, a sociedade. Somos “educados” para sermos importantes, mas não para sermos simplesmente humanos.
Daí, a consequência mais perigosa e mais funesta que todos arrastamos. O poder nos seduz; a glória nos atrai; a vaidade nos faz autorreferentes. Queremos, a todo custo, ser importantes, destacar, ser notáveis... Tais sentimentos nos rompem por dentro e destroçam nossa própria humanidade.
Recuperemos o Natal essencial, o Natal da Vida. Na vida de Jesus, feita de carne solidária, reconhecemos a Encarnação universal, para além de todas as fronteiras de espaço, de tempo, de cultura, de raça, de religião. A Encarnação de Deus em todos os mundos, desde o primeiro Big Bang. Isto é o Natal para além das formas: acolher e viver a eterna Infância ou a Bondade eterna de Deus em todas as coisas, apesar de tudo.
A festa de Natal nos conecta com a essência de nossa própria humanidade. O que se celebra é um Deus-menino, que está chorando entre animais, e que não mete medo nem julga ninguém. É bom que os cristãos voltem a esta imagem: o eterno menino que, no fundo, nunca deixamos de ser.
Eterna infância de Deus. Aquele que não cabe no universo cabe no seio de uma jovem mãe. O Criador é cuidado no colo de uma mulher. O Amor eterno necessita ser mimado e abraçado como uma criança. Ele se faz necessitado para que aprendamos a deixar-nos ajudar e aprendamos assim a ajudar os outros. Ele está desamparado, para que tenhamos lar, pátria, calor. Repousa em um presépio, para que todas as criaturas possam sentar-se junto à grande mesa de toda a Terra.
Ter o “eterno menino” diante de nossos olhos desperta em nós renovação de vida, inocência, novas possibilidades de vida que nos impulsionam em direção ao novo futuro.
- Imaginamos “outro Natal possível”, mais próximo do Menino Jesus nascido humildemente em um presépio, onde em lugar de “dar presentes”, nos “faremos presentes” junto aos famintos, necessitados e excluídos, abriremos corações e portas à chegada Salvadora do Menino Deus. A solidariedade e a ternura abrirão passagem frente ao individualismo, ao egoísmo e ao consumismo.
- Imaginamos um Natal onde aproveitamos para fazer uma viagem ao interior de nosso espírito, ali onde habita o Deus da Vida que dá fundamento à nossa verdadeira identidade.
- Imaginamos um Natal simples, solidário, alegre... sem luxos, onde faremos presentes em nossos corações a todos as pessoas que sofrem e que são as preferidas de Deus Pai e Mãe.
Estes são, pois, os sentimentos que queremos alimentar neste Natal, em meio a uma situação sombria da Terra e de toda a humanidade. Sentimentos de que ainda temos futuro, porque a Estrela é magnânima e o “Menino” é eterno e porque ele se encarnou neste mundo e não permitirá que este se afunde totalmente. Nele se manifestou a humanidade e a jovialidade do Deus de todos os povos. Todo é resto é passageiro.
Todos intuimos que o humano é uma maravilha, mas que precisa ser cuidado e potenciado. O Natal é o anúncio de que a porta para esse cuidado e essa potenciação está aberta. É inegável que temos desfigurado o Natal até torná-lo irreconhecível e anticristão. Mas continua pulsando em nós o desejo de outros natais possíveis.
Texto bíblico: Lc 2,1-14
Na oração: Belém, “a casa do pão” é muito mais que um lugar geográfico; Belém é o nome poético do mistério mais belo e real, o nome de todos os lugares onde a vida é gerada e cuidada, onde o pão é assado e com-partilhado.
Belém é o mistério da vida, tão frágil e divina. Jesus, Maria e José: um pai, uma mãe, um filho. Isso é tudo, isso é o todo: o mistério do cosmos, da Terra e da vida, do homem e da mulher, com suas alegrias e dores, seus amores e medos, suas esperanças e dúvidas.
Tua casa é Belém, quanto mais pobre mais verdadeira. É em tua própria Belém que Deus se encarna novamente.
O Natal não é ruído. O Natal é silêncio. O Natal é quietude. O Natal é paz interior. Neste silêncio é quando se sente e se experimenta, de forma vital, o interior de todo ser humano, sua dignidade compartilhada.
O Natal silencioso nos leva a contemplar esta dignidade de todo ser humano que é divina.
Um “humano” Natal a todos!
Pe. Adroaldo Palaoro sj
Diretor do Centro de Espiritualidade Inaciana - CEI