“Mas Jesus estava falando do Templo do seu corpo”. (Jo 2,21
O evangelista João, no relato da expulsão dos “vendilhões do Templo”, revela que os conflitos maiores vividos por Jesus se deram no campo religioso; e isso esteve presente já no início de sua vida pública. Com seu gesto Jesus atinge o centro do poder religioso; Ele arremessa diretamente contra o Templo, pois este deixou de ser espaço de encontro com o Pai e passou a ser um local de comércio explorador.
O Templo já não é mais a morada de Deus, pois Ele foi desalojado pelo poder sacerdotal; por isso, Jesus expulsa seus representantes. O Templo, o sacerdócio, a lei, já não são mais mediadores de libertação para o ser humano. Estão aí, secos e estéreis, e não estão a serviço da vida, mas da exclusão.
Jesus rejeitou o Templo e suas instituições por serem improdutivos e manipuladores; Ele pôs em evidência que a relação com Deus não necessita intermediários, como o Templo e o sacerdócio, e a relação entre as pessoas é relação de encontro e comunhão. Por isso, Jesus não propõe sua restauração, mas seu término. Em lugar do Templo, Ele colocou o ser humano no centro, e diz “não” a uma religião fundada na Lei e no culto externo; rompe com todo o ritualismo e legalismo anterior e oferece uma alternativa encarnada na vida. Deus é adorado em “espírito e em verdade” e não depende de “espaços sagrados” para manifestar sua presença providente.
Os fariseus e sacerdotes queriam um Deus e um céu que não se contaminassem com os deserdados desta terra; queriam um Templo como lugar de pureza e de perfeição, legitimado por uma ordem que se constrói sobre o sofrimento e a exclusão. Eles não queriam um Templo que fosse a casa dos impuros, dos abatidos e excluídos, dos encurvados e oprimidos, dos leprosos, cegos e coxos...
A partir de agora, o encontro com o Pai e com os outros não se realiza no Templo, mas fora, nas casas abertas, nas ruas e estradas, onde todos têm acesso e a partilha criativa possibilita que todos tenham vida. A mesa de Jesus, fora do Templo, estava aberta a todos. Ele não inicia uma nova religião, não cria um novo sacerdócio, não restaura o templo. O templo agora são as próprias pessoas que estão acima da lei e do culto. Todos estão implicados nessa nova maneira de viver e de se relacionar com o Pai, superando o medo do castigo e confiando uns nos outros.
Segundo o evangelista João, Jesus começa sua vida pública denunciando o “deus” apresentado pelos dirigentes religiosos do Templo e em quem eles buscavam a justificação de seus poderes. Tal denúncia desestabilizou o sistema religioso sobre o qual a instituição sacerdotal se sustentava. Por isso, Jesus compreendeu que, para mudar o comportamento dos dirigentes do Templo, a primeira coisa a fazer era desmontar o “ídolo” que legitimava o poder autoritário daqueles que oprimiam o povo indefeso. No fundo, o que preocupava Jesus era o problema de “Deus”; e Deus não era como os dirigentes imaginavam e que estava de acordo com seus critérios e sua posição social.
Deus era tão desconcertante como desconcertante era aquele Nazareno que eles tinham diante de si. Jesus transcende todas as religiões quando propõe uma maneira nova dos seres humanos se relacionarem com o Transcendente e entre si, onde não se faz necessário nem sacerdotes, nem templo, nem culto. O “ser humano” é agora o centro desse culto, que consiste na entrega e no serviço aos outros. Não é mais a Lei que impera, mas o amor; não é condenação que tem mais força, mas a acolhida e a compaixão.
A fé é a que faz vencer o medo diante de qualquer tentativa de domínio ou manipulação, e a solidariedade é a que possibilita que a vida se multiplique. O Deus que Jesus revela não é propriedade de nenhuma religião ou sacerdócio e ninguém pode reduzi-Lo a uma verdade única, porque Ele se revela no amor mútuo e na entrega da própria vida.
“Mas Ele falava do templo de seu corpo”. Este é o verdadeiro Templo de Deus: o próprio “corpo” de Jesus, o Seu e o de todos os homens e mulheres que vem a Ele se unir e constituir um só “corpo de amor e solidariedade”. Este é o Templo, o “corpo messiânico”, o corpo da vida solidária de homens e mulheres que se escutam e se ajudam, se amam e se animam mutuamente. Jesus veio estabelecer um Templo Novo, pois Ele é o verdadeiro construtor, é o autêntico edificador de humanidade. Agora não é preciso sacrificar animais e dar seu sangue a Deus; não precisa de dinheiro ou banco para criar novos negócios e viver da exploração dos outros... Jesus quer humanidade e com sua própria humanidade vai construir o Templo Novo.
Surgiu um novo Templo, nosso próprio corpo, “morada sagrada” da Trindade. Costumamos distinguir entre sagrado e profano. Dentro do templo está o “sagrado”: Deus e as realidades que se relacionam com Ele. Fora do templo está o “profano”, identificado muitas vezes não só como o que não é sagrado, mas como o que se opõe ao sagrado. Curiosamente, a última página da Bíblia afirma que na Jerusalém celeste “não se vê nenhum templo” (Apoc 21,22). Alguém poderia chegar à absurda conclusão que no céu não há lugar para Deus, porque não há templo.
Será esta imagem do futuro uma crítica do presente, ou seja, uma separação entre lugares onde pensamos que está Deus e lugares onde pensamos que Ele não está? Quê acontece na terra, este espaço nosso no qual há tantos templos? Acaso Deus precisa deles, porque foi expulso dos lugares “profanos”? Não será, talvez, porque não O reconhecemos nesses lugares? Deus está em todos os lugares, sua presença providente envolve tudo e todos.
Para nós cristãos, o Templo está em Jesus e em todo ser humano que é morada do seu Espírito. Esse é o lugar do verdadeiro culto, que não se expressa em ritos vazios, mas em “fazer memória” viva de Jesus que nos impulsiona a viver como Ele. Essa é a verdadeira espiritualidade: deixar-nos conduzir pelo Espírito, no grande “templo da vida”: lugar do verdadeiro culto que se faz visível no serviço oblativo e na compaixão solidária.
Estamos nos despertando para esta realidade: hoje, os “templos” estão cada vez mais vazios; o máximo que fazemos é admirar as grandes obras de arte de um passado glorioso. Mas, ao mesmo tempo, vamos amadurecendo a consciência de que os templos são nossos corpos, os de nossos irmãos e irmãs que sofrem fugindo da violência e buscando um lar, os corpos dos “sem teto”, os corpos das vítimas do tráfego de pessoas, os corpos das pessoas exploradas por uma “economia que mata”... O templo é hoje a terra, explorada e espoliada, colocando em risco a teia de relações vitais.
Não se trata de restaurar o “templo-espaço” com todas as suas implicações, mas de voltar às origens desse “movimento itinerante” que Jesus começou pelas aldeias da Galiléia, onde um pequeno grupo, entusiasmado pelo Reino, reuniam-se nas casas e partilhavam pão e vida. O movimento de Jesus é um movimento de “casas”: lugar da acolhida, do encontro, da festa, da celebração...
Seremos nós, seguidores(as) de Jesus que deveremos recordar que o “templo” não é um edifício de pedra mas a vida inspirada pelo Espírito, em meio a um contexto social e religioso que faz da “casa do Pai uma casa de comércio”; que o verdadeiro culto que agrada a Deus é nossa relação filial com Ele, e que isso tem consequências concretas no modo como nos relacionamos com os outros. Em sintonia com o Pai, estamos mergulhados no “sagrado”, porque a vida é sagrada.
Texto bíblico: Jo 2,13-25
Na oração:
- Você sente o “pulsar” do coração de Deus nas realidades mais cotidianas: ambiente familiar, trabalho, relações, oração, descanso...?
- Diante da “cultura de morte”, como viver a “cultura do encontro”, a verdadeira “religião” de Jesus?
Pe. Adroaldo Palaoro sj
04.03.2021
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“E transfigurou-se diante deles” (Mc 9,2)
No 2º. domingo da Quaresma de cada ano, a liturgia nos convida a subir o Monte da Transfiguração para “contemplar Jesus por dentro”, para conhecer seu coração, seus desejos mais íntimos, seus dinamismos de vida... enfim, o desvelamento da sua interioridade. Ao mesmo tempo, diante de Jesus transfigurado, temos também a ocasião privilegiada para nos “olhar” por dentro e descobrir nossa verdadeira identidade.
Todos os grandes personagens bíblicos fizeram sua experiência de Montanha (lugar de intimidade com Deus; de escuta e discernimento; lugar onde receberam uma “missão” e foram abençoados). Do alto da Montanha esta bênção foi se espalhando e atingindo a todos; experiência pessoal de alcance universal.
Também Jesus, o homem dos “vales” (lugar do compromisso, serviço...) sabia reservar momentos de Montanha (comunhão e escuta do Pai); ali Ele buscava sentido e força para a sua missão.
No Monte Tabor Ele deixa “transparecer” seu coração; diante do olhar assombrado dos discípulos Ele “desvela” aquilo que a visão superficial não capta: Ele é todo compaixão, bondade, acolhida, amor...
Jesus de Nazaré foi o homem que não pôs obstáculos ao Mistério para que se expressasse n’Ele; Ele foi pura transparência da Fonte originante, revelação do Rosto do Pai.
A Transfiguração de Jesus que Marcos relata é um símbolo das muitas “experiências de transfiguração” que todos experimentamos. A vida diária tende a fazer-se rotineira, monótona, cansada, deixando-nos desanimados, sem forças para caminhar. Mas, eis que irrompem momentos especiais, com frequência inesperados, em que uma luz desperta nosso interior, e os olhos do coração nos permitem ver muito mais longe e muito mais profundo do que estávamos vendo até esse momento. A realidade é a mesma, mas aparece transfigurada para nós, com outra figura, revelando sua dimensão interior, essa que intuíamos, mas, devido à nossa superficialidade, tínhamos esquecido. Essas experiências, verdadeiramente místicas, nos permitem renovar nossas energias e, inclusive, despertar nosso entusiasmo para continuar caminhando, na certeza de que “vimos o Invisível”.
Uma pessoa transfigurada é alguém que vê o que todo mundo vê, mas de maneira diferente; seu olhar contemplativo capta outra dimensão que se esconde aos olhares superficiais e frios.
Todos carecemos dessas experiências, para que nossa vida tenha outra inspiração, assim como os discípulos de Jesus precisaram desse momento da Transfiguração para que, num relance, tivessem a nítida certeza de que Ele era a “transparência do Pai” e eles próprios sentissem confirmados no seguimento.
Hoje, nós não podemos nos encontrar com Jesus no Tabor da Galiléia. Mas precisamos buscar nosso Tabor interior, onde brilha a luz que nos faz “diáfanos” (transparentes), onde se encontram as forças criativas que sustentarão nosso compromisso, onde ouviremos a Voz que confirmará nossa filiação: “este(a) é meu (minha) filho(a) amado(a)”.
Despojando-nos daquilo que nos desfigura, busquemos o que nos transfigura, o que mais nos humaniza e nos diviniza. É possível que, ao contemplar nosso coração, nos deparemos com muitas surpresas que jamais imaginávamos.
Nesse sentido, a Montanha não é lugar só do encontro íntimo com o Senhor, mas também lugar do encontro com o melhor de nós mesmos, nosso ser essencial; no silêncio do monte poderemos perceber quem somos nós. Por isso a transfiguração é também descoberta do “eu profundo”, da própria realidade pessoal, do Mistério que habita em nós. É nessa manifestação divina que “descobrimos a nós mesmos”. Começamos a descobrir o nosso ser (único, original, sagrado...) quando “mergulhamos” no misterioso relacionamento com Deus e quando permitimos que o “mistério experimentado” se torne fonte de nossa identidade.
Nossa vocação é “transfigurar-nos”, superar nossa própria figura, ir além de nossa aparência para captar nossa originalidade e riqueza interior, nosso “eu original”.
Essa é a nossa verdadeira identidade; em certo sentido, é como se recordássemos quem somos e, ao recordar isso, iniciamos um caminho de volta à casa (as “três tendas”). “Voltar à casa” é deixar transparecer aquilo que é mais nobre em nós; é reconhecer que somos plenitude que transborda, fonte inesgotável de sonhos, criatividade, inspirações...
Cair na conta de nossa condição de “filhos/as amados/as” equivale a reconhecer-nos como transfigurados(as). E é isso mesmo que se pode afirmar de todo ser humano: cada um(a) de nós é “filho(a) amado(a)”, nascido(a) daquela mesma Fonte e, ao mesmo tempo, transparência dela.
Nosso “eu profundo” é luminoso, transparente, simples, verdadeiro... Mas, para percebê-lo, é preciso nos “despertar” e viver ancorados em nossa verdadeira identidade.
É preciso ir para além do “ego superficial”, uma ilusão que acreditávamos ser nossa identidade e que nos fazia viver em função dele, alimentando impulsos de poder, vaidade, imposição...
No entanto, a Transfiguração de Jesus nos possibilita ter acesso a um “lugar” sempre estável, sólido e permanente, onde nos fazemos presentes diante da Presença inefável.
Da transfiguração interior à uma presença que transfigura a realidade em que nos situamos. Não podemos recordar quem somos para permanecer em um “monte”, isolados e acomodados, mas para “descer” à vida cotidiana, com todos os seus conflitos, e viver ali o que “temos visto e ouvido”, a partir de uma atitude de bondade, compaixão e serviço.
A “Transfiguração” desperta em nós um novo “olhar” para perceber, com mais nitidez e intensidade, os lugares por onde transitamos, uma nova disposição para dar sentido e valor às relações cotidianas, uma presença solidária para nos colocar no lugar do outro, uma nova sensibilidade para “ver” a Presença d’Aquele que se “deixa transparecer” em todos os “Tabores” da vida.
O monte da Transfiguração transforma as obscuridades humanas em caminhos de luz e esperança, o ódio em fraternidade, a divisão em vínculo ... É preciso transfigurar nossas relações humanas, rompendo o círculo da intolerância, do juízo rápido e da indiferença. Por que não pensar que é uma nobre maneira de viver? Uma vida, uma cultura, uma sociedade que não se transfigura, que não transcende a existência e seus conteúdos, se desumaniza.
Trans-figurar é deixar trans-parecer toda nossa riqueza interior. E isso não é fácil; normalmente cobrimos nossa verdade com máscaras ou com um “papel” que interpretamos. Vivemos uma quantidade de experiências rápidas, amontoadas, sem possibilidade de avaliação (ativismo, rotina, angústias, trabalho sem sentido; mundo fechado, sem horizontes, sem direção...)
O cotidiano faz-se rotineiro, convencional e, não raro, carregado de desencanto. Frequentemente vivemos o cotidiano com o anonimato que ele envolve; e isso nos desfigura, desumanizando-nos.
A luz da Transfiguração de Jesus nos desvela (tira o véu) e ativa a coragem a olhar para além da “casca de nossa humanidade”, e deixar emergir nossa originalidade e nobreza que não se deixam revelar diante do espelho, mas só numa experiência da interioridade.
A transfiguração de Jesus é um convite a que possamos nos transfigurar e transfigurar os outros e assim poder contemplar a beleza presente em cada um, muitas vezes escondida e que se revela de maneira um tanto quanto obscura.
Crer na Transfiguração é envolver-se no processo da transformação contínua da vida, esperando a transfiguração definitiva.
Texto bíblico: Mc 9,2-10
Na oração: Por vezes somos levados a conceber a aventura espiritual como uma fuga de nós mesmos, uma subida para outra região da atmosfera mais pura que o nosso dia-a-dia.
- “Não! Desça até o fundo de você mesmo! É dentro do seu próprio coração que Deus o espera”.
- A busca de Deus se assemelha mais a espeleologia do que ao alpinismo: tem mais de grutas que de cumes; mais de interioridade que de aparência, mais de “descida” que de “subida”.
- Diante da “transparência” de seu “eu profundo” você sente temores? resistências...? Quais? Por que?
- “Transfigurar” compromete com a vida; você está disposto(a) a descer do seu “Tabor” para ser presença inspiradora no seu meio?
Pe. Adroaldo Palaoro sj
25.02.2021
Imagem: the-transfiguration-of-christ-greg-olsen.jpg
“E imediatamente o Espírito impeliu Jesus para o deserto...” (Mc 1,12)
É um privilégio iniciar este tempo litúrgico, intenso e forte, chamado “tempo quaresmal”, deixando-nos “arrastar” pelo mesmo Espírito de Jesus; tempo único que nos oferece a possibilidade de fazer uma estratégica parada, de buscar o deserto em meio ao cotidiano, de plantar os pés na terra firme do evangelho e assim viver um compromisso transformador em nossa realidade. Nesse espaço e nesse tempo de maior despojamento, podemos sair de nossas inércias, podemos deixar de lado nossas seguranças e comodidades para transitar por novas paisagens. Há muitos modos de fazer isso: assumir com seriedade esse momento, investir no cuidado interior, abster-nos do rotineiro para abrir-nos ao inesperado e surpreendente...
Enfim, Quaresma sempre indica um tempo especial, de crise-crescimento; hoje diríamos, de discernimento. E o que devemos discernir? Qual é o crescimento-maturação que o tempo quaresmal nos propõe? O discernimento implica, em primeiro lugar, uma escuta atenta e uma profunda sintonia com o mesmo Espírito que atuava em Jesus, para fazermos opções mais evangélicas, a serviço da vida. É o Espírito, força de vida e amor, que nos conduz ao deserto para “desintoxicar-nos” de um modo de viver atrofiado, imposto por um contexto social centrado na busca de poder e prestígio, com seus inimigos mortais da competição, do consumismo, do preconceito e que, lentamente, envenenam nossa vida, instigando-nos a romper as relações de comunhão e compromisso. É preciso, de tempos em tempos, sair de nossos espaços rotineiros e “normóticos”, deslocar-nos para os amplos espaços do deserto, lugar despojado de tudo, para ali viver de novo o encontro com a Voz e a Força que nos devolvem à vida, com outra inspiração. Ali, guiados pelo Espírito, teremos a oportunidade de aprofundar nossa relação com a Fonte do Amor que, depois, se expandirá numa nova relação com os outros e com a natureza.
Neste ano, a CF está centrada no tema do “diálogo”; e o deserto quaresmal ajuda a limpar os canais de comunicação que estão obstruídos pelo excesso de gordura do nosso “ego”: auto-centramento, busca dos próprios interesses, vaidades,... Sabemos que o diálogo implica um des-centramento, uma saída de si, para escutar e acolher o outro na sua diferença. O diálogo entre diferentes nos humaniza. Aqui não há mais lugar para o julgamento, a suspeita, o fanatismo, a intolerância..., nas diferentes situações da vida: religiosa, social, política, cultural, racial... Dialogar é abrir-nos ao outro diferente, sair do nosso próprio mundo, criar vínculos com outras pessoas, conhecer seu modo de ser e pensar..., multiplicando assim os pontos de vista, para enriquecer-nos humanamente, dilatar os horizontes, crescer pessoalmente.
Todo primeiro domingo da quaresma a liturgia nos conduz até o deserto, onde Jesus foi “tentado”. Tradicionalmente, as tentações de Jesus foram interpretadas num sentido moralizante; costumava-se dizer que Jesus nos queria dar o exemplo de fortaleza para nos ajudar a superar nossas tentações cotidianas. Tal interpretação não capta em toda sua profundidade o sentido das “tentações de Jesus”.
As tentações não são tanto uma “prova” a superar quanto um projeto que deve ser discernido. O que parece certo, teológica e historicamente, é afirmar que Jesus, depois do batismo, buscou o deserto para um tempo de discernimento, em oração, em solidão, diante do Pai que o proclamou seu Filho, sob o impulso do Espírito; de algum modo teve de refletir e discernir sobre qual seria seu estilo de messianismo que deveria assumir para sua missão, em sua vida pública. É um tempo de confronto interior, de crise.
A “crise” põe à prova sua atitude frente a Deus: como viver sua missão e a partir de quê lugar? buscando seu próprio interesse ou escutando fielmente Palavra do Pai? Como deverá atuar? dominando os outros ou pondo-se a seu serviço? buscando poder e sua própria glória ou a vontade de Deus?...
As tentações são, pois, expressão da oferta de dois tipos de messianismos, dois projetos, duas lógicas que se opõem.
* Por um lado, está a lógica da auto-suficiência, da segurança, a partir do centro, a partir de cima, um messianismo triunfalista, evitando conflitos com o poder político e religioso, alheio ao sofrimento do povo; uma lógica que supõe adaptação ao “sistema”, ser servido antes que servir.
* E, por outro lado, aparece a lógica da solidariedade, a partir da margem e da periferia da sociedade política e religiosa, a partir do povo, a partir de baixo, vivendo a filiação e a confiança no Pai, em gratuidade, num estilo de simplicidade e pobreza alternativo ao “sistema”, optando por servir antes que ser servido; uma lógica de inclusão e de vulnerabilidade frente o sofrimento do povo, na linha do Servo de Javé e dos grandes profetas de Israel.
Fruto da experiência batismal de sentir-se Filho e do discernimento do deserto, Jesus elege a lógica da solidariedade e do serviço, a partir dos últimos. Assim como foi “impelido” pelo Espírito ao deserto, Jesus se deixa conduzir pelo mesmo Espírito em direção às margens excluídas, às “periferias existenciais”.
A partir deste discernimento e opção, o messianismo de Jesus se manifesta como “diferente” daquilo que muitos esperavam em Israel. O fato surpreendente é que Jesus começa a falar e a agir a partir da margem geográfica, cultural, religiosa e econômica da Palestina: a Galiléia. Jesus rompeu com a família, afastou-se da vida normal que levava, iniciou uma vida itinerante e passou a viver a partir de um sonho: a utopia do Reino. Vivendo no meio de uma realidade conflituosa, de exploração, de desintegração das instituições, de injustiças... Jesus, unido ao Pai, torna-se aluno dos fatos, descobre dentro deles a chegada da hora de Deus e anuncia ao povo: “O tempo já se completou e o REINO de Deus está próximo. Convertei-vos e crede no Evangelho!” (Mc 1,15). Ele vem realizar as esperanças do povo, despertadas e alimentadas ao longo dos séculos, pelos profetas. Com sua vida e sua palavra, Jesus interrompe o discurso dos especialistas sobre Deus. Ele não tinha uma instituição em que pudesse se apoiar; tudo brotava de dentro.
Enquanto todos tinham os olhos voltados para o centro (sobretudo para o templo de Jerusalém onde era elaborado o saber que ia se expandindo até chegar à menor das sinagogas), Jesus revela sua presença nas “periferias” do mundo. A partir daí, todos nós também devemos dirigir constantemente o olhar para as “novas periferias”, lugar onde Ele continua nos convocando.
“O discípulo-missionário é um des-centrado: o centro é Jesus Cristo que convoca e envia. O discípulo é enviado para as periferias existenciais. A posição do discípulo-missionário não é a de centro, mas de periferias: vive em tensão para as periferias” (Papa Francisco)
Quê significa “fronteiras geográficas e existenciais”? É preciso sair dos limites conhecidos; sair de nossas seguranças para adentrar-nos no terreno do incerto; sair dos espaços onde nos sentimos fortes para arriscar-nos a transitar por lugares onde somos frágeis; sair do inquestionável para enfrentarmos o novo...
É decisivo estar dispostos a abrir espaços em nossa história a novas pessoas e situações, novos encontros, novas experiências... Porque sempre há algo diferente e inesperado que pode nos enriquecer... A vida está cheia de possibilidades e surpresas; inumeráveis caminhos que podemos percorrer; pessoas instigantes que aparecem em nossas vidas; encontros, diálogos, aprendizagens, motivos para celebrar, lições que aprenderemos e nos farão um pouco mais lúcidos, mais humanos e mais simples...
A periferia passa a ser terra privilegiada onde nasce o “novo”, por obra do Espírito. Ali aparece o broto original do “nunca visto”, que em sua pequenez de fermento profético torna-se um desafio ao imobilismo petrificado e um questionamento à ordem estabelecida.
Texto bíblico: Mc 1,12-15
Na oração: Quaresma é tempo para desintoxicação existencial: feridas mal curadas, fracassos, modos fechados de viver, intolerâncias, legalismos e moralismos, ...
- De quê você precisa se desintoxicar? De quê você precisa se alimentar ao longo deste tempo quaresmal?
Pe. Adroaldo Palaoro sj
18.02.2021
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“Quando jejuares, perfuma a cabeça e lava o rosto...” (Mt 6,17)
O Tempo Quaresmal, como toda liturgia, só tem sentido em função da Páscoa. Por isso, estamos iniciando o grande tempo pascal da Igreja. Quarenta dias de preparação para a festa da Páscoa e, depois, cinquenta dias de celebração da Ressurreição do Senhor e da presença inspiradora de seu Espírito. Estamos no tempo forte da comunidade cristã.
Quaresma: tempo litúrgico de reconstrução de cada um de nós e da comunidade; tempo que nos motiva a colocar em questão a razão de ser da vida – para que vivemos? sobre quê está fundamentada a nossa vida? para onde caminhamos?...
Nesse sentido dizemos que quaresma é um tempo intenso de conversão; para isso ela tem sua linguagem, sua celebração, seus exercícios e seus ritos de conversão...
Mas a conversão não é simples mudança exterior no modo de ser e agir, e sim, “mudança de senhor”; quaresma é tempo forte para consultar o interior e verificar qual é o “senhor” que move o nosso coração. É neste contexto de conversão que se situam as práticas quaresmais: oração, jejum e esmola. Através de uma vivência mais radical dessas práticas começa a acontecer um deslocamento dos “falsos senhores” que habitam o nosso coração e, ao mesmo tempo, amplia-se o espaço interior para a presença e ação do “verdadeiro Senhor”.
Por ser um tempo especial para alimentar nossos laços comunitários, a Igreja no Brasil nos apresenta, durante a Quaresma, a Campanha da Fraternidade, destacando algum aspecto da caminhada cristã que merece ser aprofundada, refletida, rezada, desembocando num compromisso que deve estar sempre em sintonia com o Evangelho.
Este é o tema da Campanha da Fraternidade para 2021: "Fraternidade e diálogo: compromisso de amor”, cuja lema é: “Cristo é a nossa paz: do que era dividido, fez uma unidade” – Ef 2,14).
O isolamento sanitário, pelo qual estamos passando, põe às claras esta dura realidade: já levamos anos praticando o distanciamento social e político, a polarização religiosa, o enfrentamento de extremos, a separação ideológica, a distância como meio para nos fechar em nossas posições fanáticas, preconceituosas e intolerantes, o esvaziamento do diálogo... Uma voz surda sempre esteve presente: devemos nos separar dos outros, daqueles que pensam diferente, sentem diferente, vivem diferente, assumem posições e opções diferentes...
Nenhum tipo de diferença (cultura, gênero, religião, raça, classe social...) deveria romper o fluxo do respeito e diálogo entre os seres humanos, dando lugar a atitudes de violência ou ódio no convívio humano.
Quando analisamos elementos que nos unem, vemos que todos temos origem e destino iguais: habitamos a mesma casa comum, somos formados da mesma matéria (argila) e em todos nós sopra o mesmo Espírito. Já seriam elementos mais que suficientes para reconhecer que há vínculos que nos unem, que podemos ser irmãos e que devemos nos deixar conduzir pelas relações fraterno-igualitárias, pela aceitação mútua da alteridade diferente, sem jamais esquecer do totalmente Outro, de cuja fonte tudo tem sua origem.
As “Cinzas”, que são colocadas sobre nossas cabeças, deveriam despertar em nós a consciência que todos procedemos do pó; são as cinzas que nos unificam e quebram toda pretensão de poder, de vaidade, de querer se colocar acima dos outros... O que a cultura do ódio e da indiferença separa, as cinzas fazem a liga e reatam os vínculos... É com o barro das cinzas que somos reconstruídos como seres humanos, quebrados pela violência, preconceitos e ódios...
Nesse sentido, as conhecidas “práticas quaresmais” – jejum, oração e esmola – visam reconstruir nossa comunhão rompida, para que o diálogo amoroso volte a circular em nossos espaços humanos. Diálogos que se expandem em múltiplas direções: consigo mesmo, com Deus, com os outros e com a natureza.
A vivência quaresmal revela-se, portanto, como um processo dialogal, e isso acontece, em primeiro lugar, no mais profundo de cada um de nós, lugar do “colóquio” íntimo com Aquele que faz do coração humano sua morada.
De sua íntima relação com o Criador, de um “sentir-se amado de coração e um saber amar com o coração”, o ser humano é movido a estabelecer uma relação fecunda com tudo e com todos:
- Na relação consigo, o ser humano é constituído pela abertura em si mesmo e para si, capacitado para a interiorização ou imanência, para ter consciência de si mesmo, para dialogar consigo mesmo, para ser autônomo e responsável em suas decisões, para ser sujeito da própria história. Não é comum prestar atenção ao que acontece no território interior. Corre-se grandes riscos de se viver em horizontes muito estreitos. Tal estreiteza aprisiona a solidariedade, atrofia a capacidade de diálogo e dá margem à indiferença, à insensibilidade social, à falta de compromisso com as mudanças que se fazem urgentes. O próprio território interior se torna uma couraça e o sentido do serviço some do horizonte inspirador.
- O ser humano é chamado a se relacionar com os outros, sem se confundir. Ele é ser de reciprocidade e complementariedade, que reconhece a própria singularidade, bem como a singularidade das demais pessoas. Reconhece-se a si mesmo e reconhece o outro na sua ‘distinção’, coloca-se numa atitude de relação dialogal. É o ser humano solidário que caminha lado a lado com a caravana humana.
Aqui, ganha sentido, a expressão bíblica “esmola” (“elemosyne”) que sempre está ligada à compaixão e piedade. A esmola mantém indissoluvelmente unidos o sentimento de compaixão e ternura com a solidariedade efetiva; significa ser sensível às necessidades dos outros que, em uns casos, será econômica, em outras, psicológica, em muitos, afetiva... A esmola é misericórdia em ação.
- Na relação com o mundo criado, numa perspectiva global e unitária, o ser humano, frente a todas as criaturas e ao universo, coloca-se não como dominador-depredador utilitário, mas como responsável e colaborador no aprimoramento e/ou na transformação, sem violência interesseira, e numa atitude de respeito e reverência para com o universo, dom de Deus. Descobrimos aqui o verdadeiro sentido do jejum.
O jejum nos humaniza, nos faz descer do pedestal e nos torna mais sensíveis e solidários; fazer jejum só tem sentido quando brota da sensibilidade que nos faz sair de nós mesmos para viver a partilha, a comunhão.
Jejuar pode também ser um convite a ordenar a mente, a pacificar o coração, a serenar os olhos, a guardar a língua... Purificar a tendência ao imediatismo, ao falso moralismo, puritanismo e perfeccionismo. Implica também não se deixar levar pela tentação de falar mal dos outros, destruir reputações e ser veiculador de ódios e “fake news”..
- Por fim, segundo uma visão bíblico-cristã, para o ser humano, Deus é o grande Outro que o fundamenta e o constitui e com ele estabelece uma relação dialógica. Reconhece procedente d’Ele e a Ele se sente chamado e capacitado a uma experiência de intimidade e comunhão amorosa.
Aqui se revela o verdadeiro sentido da oração. A oração é uma mão estendida para o divino; não é dobrar a vontade de Deus a nosso favor; pelo contrário, é colocar-nos em sintonia com Ele, para entendermos o que é melhor para nosso verdadeiro bem. É deixar Deus ser Deus, ou seja, deixar que Ele revele sua paternidade/maternidade para com cada um de nós, na sua providência e cuidado.
A melhor a oração não é aquela que nos enche de palavras; não deveríamos preencher a oração de palavra “nossa”, mas de escuta da Palavra de Outro. Na oração, como em toda relação humana, precisamos alimentar uma atitude de escuta que busca “entrar em sintonia”, ser consciente, estabelecer e consolidar relação, caminhar para a verdade, construir pontes...
Texto bíblico: Mt 6,1-6.16-18
Na oração: O diálogo é uma experiência profundamente humana de proximidade, acolhida, respeito para com quem pensa, sente e ama de maneira diferente; o diálogo amoroso desperta os sentimentos mais nobres de compaixão, mansidão, humildade.
- Viver a Quaresma é ser presença de reconciliação em situações onde o diálogo foi quebrado pelo ódio, intolerância, violência, fanatismo...
- Despertar o impulso para ser presença inspiradora e reconstrutora de diálogo, frente a um mundo fragmentado.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
16.02.2021
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Depois de romper com o comodismo de seus discípulos, ao convidá-los para caminhar por outros lugares, Jesus atravessa uma região solitária [conforme Marcos 1,40-45] quando de repente se aproxima dele um leproso. Não tem a companhia de ninguém, leva na pele a marca da exclusão, perdera tudo: casa, trabalho, amigos, abraços, dignidade... As leis condenaram-no a viver afastado de todos. É um ser impuro, decompõe-se em vida, para a sociedade é um pecador, rejeitado por Deus...
Sim, onde falta acolhimento, falta vida; o nosso ser paralisa-se; a criatividade atrofia-se. Numa sociedade em que crescem a insegurança, a indiferença ou a agressividade, é explicável que cada um de nós trate de assegurar a “pretensa felicidade” com aqueles que sentimos nossos iguais. E as pessoas que são diferentes, que pensam, sentem e querem de forma diferente, acabam por produzir em nós sensação de preocupação e medo. E não nos apercebemos que estamos a criar marginalização, isolamento e solidão. E que numa sociedade assim ficará cada vez mais difícil ser feliz.
Outra é a atitude de Jesus: sempre sensível ao sofrimento de quem encontrava em seu caminho, os marginalizados pela sociedade, os esquecidos pela religião ou rejeitados pelos setores que se consideravam superiores social ou moralmente. Ele vê aproximar-se o leproso e não foge, não se esquiva, fica diante dele e o ouve. O leproso deveria ter gritado de longe, assim exigia a Lei de Moisés: "impuro, contagioso"; porém, ousadamente, de perto, de joelhos, cara a cara, suplica humildemente a Jesus... Sente-se sujo. Não lhe fala de doença. Só quer ver-se limpo de todo estigma: “Se queres, podes me limpar”.
Jesus comove-se ao ver a Seus pés aquele ser humano desfigurado pela doença e o abandono de todos. É algo que lhe sai de dentro. Sabe que Deus não discrimina ninguém. Não rejeita nem excomunga. Não é só dos bons. A todos acolhe e bendiz. Assim é Deus! Pois, aquela pessoa representa a solidão e o desespero de tantos estigmatizados: “se você quiser”. ... Simples pedido que revela uma grande questão: O que o coração de Deus realmente quer para mim? A lepra, o abandono, o julgamento, a solidão? É desejo divino que eu seja o lixo do país?
Como que sacudido por um soco no estômago, Jesus vê, pára, comove-se e toca. Por muito tempo ninguém ousou tocar aquela pessoa, sua carne estava morrendo de solidão. Jesus estende-lhe a mão e toca o intocável, contra toda a lei e toda prudência, toca-o enquanto ainda é contagioso; pois é a compaixão e não a norma que cura as pessoas!
Aqui não se trata de um mero sentimento superficial, comparável à pena que ocorre em nossa sensibilidade à dor. É algo infinitamente mais profundo: um choque interior que nos faz vibrar com quem sofre (com-paixão significa literalmente sofrer-com, tanto em latim [cum-passio] como em grego [sym-patheia], termos eloquentes que evocam atitudes de simpatia e empatia). Assim, colocamo-nos na pele da pessoa que sofre, sentimos com ela e mobilizamo-nos para uma ação eficaz de ajuda.
É assim que Jesus começa a curá-lo, com uma carícia que vem antes da voz, com dedos mais eloqüentes do que palavras. Toque, uma experiência de comunhão, de mão a mão, sempre ação recíproca (quem toca, é tocado, inseparavelmente!). Trata-se de uma comunicação de proximidade, um toque, uma emoção, uma divina vibração, Deus conosco, nós-em-Deus!
Depois, a bela resposta, a pedra angular sobre a qual assenta a toda a boa nova: Deus quer, Ele está envolvido, Ele se preocupa, Ele está no coração, Ele sofre comigo, Ele sente compaixão por mim, compartilha minha dor e vive uma paixão. A segunda palavra ilumina a vontade de Deus: "fique purificado"! Em Deus ninguém é rejeitado, discriminado, abandonado. Ele nos faz participar de sua vida, comunga conosco e nos convoca a viver com Ele, vivendo e acolhendo toda pessoa.
De acordo com a lei, o leproso era excluído do templo, ele não podia se aproximar de Deus até que fosse puro. Em vez disso, o evangelho anuncia o inverso: aproxime-se de Deus e você será purificado. Aceite-se e você será curado. Pode nos soar estranha a ordem de Jesus à pessoa curada... Nada diga a ninguém, apresente-se ao sacerdote... Jesus é discreto diante das pessoas, faz silêncio e pede para se fazer silêncio, para não despertar o aplauso, conhece a arte de buscar os lugares desertos para escapar do fácil consenso dos outros...
Por isso, o gesto de Jesus assume uma especial atualidade para nós. Jesus não só limpa o leproso. Estende a mão e toca-o, quebrando preconceitos, tabus e fronteiras de isolamento e marginalização que excluem pessoas da convivência. Nós, seguidores e seguidoras de Jesus, devemos nos sentir chamados a viver em solidariedade e trazer a amizade aberta aos setores marginalizados da nossa sociedade. Estar cientes de que, como Ele, apenas emprestamos olhos, mãos, voz ao Pai, a Deus que nos envia, pois muitos são os que precisam de uma mão estendida que chegue a tocá-los e de olhos atentos para percebê-los.
Que todos possamos nos identificar com a situação narrada por Marcos, isto é, com o leproso. Todos nós temos algo dentro de nós, muito ou pouco, de que nos sentimos culpados. Podemos negar, escondendo nossas cabeças no subsolo, como uma avestruz. Ou podemos reconhecê-lo e ir humildemente a Jesus, com a certeza de que “se quiseres, podes limpar-me”. Ele tem o poder e a compaixão para mudar nossas vidas. Amém!
Pe. Paulo Roberto Rodrigues
Sexto domingo do tempo do discipulado e da missão
13 de fevereiro de 2021
“Jesus, cheio de compaixão, estendeu a mão e tocou nele...” (Mc 1,41)
O caminhar de Jesus pela Galiléia gera situações de alívio; sua missão é aliviar o sofrimento da humanidade. Pelos caminhos, Jesus se encontra com as pessoas “deslocadas”, sem lugar e fora do convívio social. A partir do “Deus vivo” Jesus se move em direção àqueles que estavam sobrando; sua presença entre os excluídos é portadora de vida. Olhando-as nos olhos e acolhendo-as com suas mãos, Ele se deixa afetar por eles.
Jesus não se esquiva da dor, da solidão e da morte; encara-as, toca-as, revela as entranhas compassivas de Deus onde a lei vê impureza, ativa a compaixão do Pai nas entranhas das pessoas indefesas e estas encontram e recuperam sua fortaleza, sua dignidade de ser humano.
Assim procede Jesus; suas mãos deixam transparecer um coração compassivo, solidário e comprometido.
Muitas vezes, Ele cura os doentes através do toque, da imposição das mãos, da bênção...
O evangelho está cheio de momentos nos quais as pessoas querem tocar em Jesus, mesmo que fosse a franja de suas vestes; em outras circunstâncias, é o próprio Jesus que rompe os “protocolos sanitários” e toca os doentes, leprosos... correndo o risco de se contaminar.
Um leproso tinha, no contexto daquela época, a obrigação de viver separado, fora das povoações e distanciado da família, para evitar o risco da contaminação. E tinha o dever de gritar aos outros, prevenindo-os para que não se aproximassem. No relato deste domingo, porém, o leproso quebra o protocolo e vem ao encontro de Jesus. E faz isso, certamente, porque pressentia no profeta de Nazaré a abertura para tal.
Ora, Jesus não fica apenas na palavra: “quero”. Estende também sua mão, tocando o leproso. Podia simplesmente mandá-lo lavar-se setes vezes nas águas do rio Jordão, como o profeta do AT (2Rs 5,10); mas Ele prefere incorrer no perigo da contaminação, desejando tocar a ferida do outro, querendo compartilhar, como só o toque pode revelar, aquele sofrimento, ajudando o leproso a vencer o ostracismo interiorizado por aquela separação forçada.
Jesus não pensa nas severas restrições da Lei, mas deixa aflorar a compaixão, aquele sentimento divino que Ele encarna e torna visível. É a compaixão que o leva a quebrar o distanciamento social e compromete-se. Quando as mãos estão carregadas de compaixão, elas se tornam oblativas, abertas, servidoras... A compaixão é o sentimento que faz a conexão das mãos com o coração. Ter compaixão é ter coração nas mãos.
Tocar é algo mais que uma simples experiência psicológica; tocar é sentir que uma corrente de vida passa de um para outro. O leproso é tocado no sentido de encontrado, assumido, aceito, reconhecido, resgatado, abraçado. Quando toda a distância é vencida, o toque de Jesus reconstrói a humanidade ferida. Ou seja, a pessoa se sente reconstruída em sua integridade; a acolhida incondicional e o reconhecimento que Jesus lhe confere, fazem o leproso recuperar a confiança em si mesmo, abrindo-lhe um horizonte de esperança.
Sabemos que um doente, quando tocado de forma respeitosa e não invasiva, recebe estímulos de humanidade, de autoestima e confiança que facilitam o curso da sua recuperação. Um profissional de saúde deve saber que, por vezes, um simples toque ajuda a amenizar a perturbação, tranquiliza sentimentos agitados e transmite um conforto que nenhuma máquina ou medicamento transmite.
A imposição das mãos também está sendo redescoberta em seu significado sanador. Ao impor as mãos em outra pessoa, o Espirito curador de Deus inunda-a, invade suas áreas de tensão, suas paralisias, seu caos interior.
“Tocar” é uma experiência especial; o tato é o mais visceral, originário e delicado dos sentidos; e a sensação de tocar e ser tocado é primária; basta ver como os bebês querem tocar em tudo e se acalmam quando se sentem tocados.
O toque é primordial na comunicação mútua. A chamada “fome da pele” é experiência reconhecida na vida humana. O mais leve toque pode despertar emoções, expressar calor humano que não se consegue com palavras. Reduzir os sentimentos a meras palavras cessa qualquer mensagem do coração.
O toque alivia a dor, a depressão, a ansiedade; o toque afetuoso dá segurança, faz a pessoa sentir melhor consigo mesma e com o seu ambiente; seu efeito é positivo sobre o desenvolvimento humano, provoca mudanças naquele que toca e é tocado.
É fácil dizer que na vida é preciso andar “com tato”. É verdade que com o corpo e com as mãos, expressamos ternura, abertura, proteção, acolhida, vinculação... O amor também é físico. E hoje, quando há muito contato físico sem amor, ou muitos contatos sem entrega, é necessário sentir essa unidade.
O amor toca, e assim se expressa, de muitos modos, a relação mais profunda, mais intensa e estável. O amor, atento ao outro, se expressa fisicamente de mil maneiras.
O coração é o lugar onde o ser humano se revela. As mãos são expressão daquilo que está presente no coração; um coração cheio de ternura, bondade, compaixão... se expressa através das mãos ternas, bondosas, compassivas, que praticam a partilha... Um coração cheio de violência, arrogância, ambições, malícias... se expressa através de mãos violentas, maliciosas, fechadas... As mãos... o espelho da alma.
É o coração transformado que dirige a mão santificada, delicada. É o coração agradecido que transforma as mãos em instrumentos de graça.
As mãos, portanto, adquirem uma infinidade de expressões (mãos estendidas, enérgicas, punho fechado, mãos abertas, governar com mão de ferro”, “bordar com mão de fada”, “escrever com mão de mestre”, “abrir mão de algum direito”, “dar uma mão a alguém”, “estar de mãos atadas diante de um problema”, “lançar mão de um estratagema”, “estender a mão para alguém”, “pedir a mão da moça em casamento”, “pôr mãos à obra”, “estar nas mãos de alguém”, “impor as mãos”...
Observando estas expressões, encontramos a “mão” como metáfora para a “força, energia, domínio”.
A aplicação figurada provém do fato de as mãos serem o instrumento mais universal de que o ser humano dispõe. Além de instrumento, as mãos são ainda meio de comunicação entre pessoas de línguas diferentes. Através das mãos comunicamos energia, rompemos distâncias...
Mas também, através das nossas mãos, podemos comunicar algo maior e que não nos pertence. Na nossa mão há a Mão da Vida; encontramos esta expressão em diferentes tradições religiosas: “a Mão de Deus”. Algumas vezes podemos nos sentir guiados, como se tivéssemos uma Mão pousada em nosso ombro, em nossa cabeça, nas nossas costas, para nos fazer avançar, para nos manter de pé. Em hebraico, a mão simbolizada pela letra y (yod), é encontrada no tetragrama YHVH, que significa Javé.
As mãos estão sempre associadas à ação, como a cabeça à razão e o coração aos sentimentos.
“Mãos à obra” é uma expressão acertada e precisa. Não é possível continuar fazendo elucubrações vazias sobre as coisas, divagando sobre o legalismo e o moralismo, especulando ideias piedosas e estéreis... Às vezes, em nosso meio cristão, sobram grandes ideias e palavras em excesso, mas sempre faltam mãos abertas, mãos estendidas, mãos ativas, dispostas a se sujar, a gastar-se e empenhar-se no esforço por construir, por abrir as portas à vida daqueles que estão à margem. Sempre serão mais urgentes mãos capazes de reconciliar e de elevar quem está mais afundado, mais quebrado, mais ferido; mãos capazes de suportar a própria carga e a carga alheia, daqueles que não tem quem os ajude ou de quem os defenda, a de quem não tem forças, nem esperança...
Textos bíblicos: Mc 1,40-45
Na oração: Para rezar com o tato você deve, ainda, aprender outras linguagens: das mãos (cumprimentos, abraços, carícias, aplausos); dos lábios (beijos, consolos, palavras agradáveis); dos olhos (sorrisos, lágrimas); do coração (sensibilidade e afetos...)
Ninguém toca ninguém “de longe”. Você também estará tocando em Deus ao se aproximar d’Ele com uma visita, um telefonema, uma mensagem, uma saudação na rua, um favor, um serviço prestado com amor, um serviço voluntário...
Há templos famosos pela liturgia da oração tátil: orfanatos, hospitais, cárceres, periferias, sanatórios, asilos, favelas... Não deixe de frequentá-los.
- Na sua oração, sinta-se próximo de todos. Toque tudo. Acaricie todas as suas recordações. É uma forma fabulosa de rezar a vida.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
11.02.2021
“Jesus saiu da sinagoga e foi, com Tiago e João, para a casa de Simão e André” (Mc 1,29)
Neste tempo litúrgico conhecido como “Tempo Comum”, nos convém ter referências que nos ajudem a caminhar sem cair na rotina ou na monotonia. O Evangelho deste domingo nos oferece um texto inspirador que sintetiza o modo com que Jesus organizava sua jornada ou dividia o tempo de sua vida pública.
É significativo o fato de que Ele se instale em Cafarnaum, cidade fronteiriça com os povos pagãos, tanto com Tiro e Sidon, como com as cidades da Decápolis. Com isso, Jesus revela que sua missão é universal, e isso será demonstrado em sua incursão pelas terras do Norte ou fazendo travessia para a outra margem do lago, para o leste; por ambas direções adentrava-se em territórios pagãos.
Embora sua presença pública se dê numa cidade comercial e de tanto movimento de pessoas, o início do evangelho de Marcos indica quatro espaços diferentes no quais Jesus se move; cada um deles se converte em ensinamento e inspiração para todos nós.
Pela manhã, vai à sinagoga; ao meio dia, à casa de Simão; ao entardecer atende os enfermos na rua, e na madrugada, de forma sigilosa, se retira a um lugar solitário para orar.
A oração comunitária, a relação doméstica e familiar, a missão evangelizadora e a oração íntima e pessoal com o Pai se conjugam de modo pleno, para nos indicar como deveria ser nossa jornada, quanto à harmonia e ao exercício das relações essenciais: o trato com nosso Deus Pai, a vida social e laboral solidária, a vida de oração e familiar, e a relação interior. Viver a cotidianidade inspiradora: isso faz a diferença.
Quem sabe, poderíamos nos inspirar no modo de viver diário do Senhor, que deverá ser sempre um referente para o nosso próprio estilo de vida. Do equilíbrio que mantenhamos nas diferentes dimensões dependem o crescimento pessoal, a maturação espiritual e a estabilidade na opção de vida cristã.
Um traço característico de nossa sociedade é o individualismo, o isolamento narcisista que nos centra e nos concentra em nosso eu como lugar referencial de atenção, dedicação, cuidado e investimento de quase todas as nossas energias disponíveis. Temos a sensação de que tudo, a partir de fora, convida a viver fechados e surdos às vozes que vem do nosso eu mais profundo. Muitas demandas externas nos impulsionam a reduzir nossa vida ao tamanho de um “bonsai”, a atrofiar nossos desejos mais nobres até reduzi-los aos pequenos bens acessíveis e a conformar-nos com pequenas doses de prazer egoísta.
Ao nos convidar para percorrer, junto ao Mestre, numa de suas estadias em Cafarnaum, o evangelista Marcos nos apresenta uma cena na qual vemos, como num relance, tudo o que vai ser a existência de Jesus: Ele se dirige à casa de Simão e André; ali encontrava-se acamada a sogra de Pedro.
Uma mulher anônima, que só a conhecemos quando referida a seu genro e possuída pela febre, foi introduzida na festa comunitária do serviço fraterno pela mão libertadora de Jesus.
É o primeiro relato de cura em que o Mestre vai ao encontro de uma enferma. Jesus ouve a conversa dos discípulos sobre a doença da sogra de Pedro, toma a iniciativa, vai até a mulher doente e a toma pela mão. Ao tomá-la pela mão, compartilha a sua força. E assim, revigorada pela sua força, a febre a deixa, ela consegue se levantar e se põe a servir.
Assim soam e ressoam em nosso interior as palavras do evangelista Marcos: “Jesus se aproximou, tomou-a pela mão e a ajudou a levantar-se”. Gestos cheios de carinho, de compaixão, de autoridade interior. Tudo o que faltava à religião oficial, é revelado agora por este galileu diferente, desafiador, que não age movido por leis frias, mas por um coração e uma mente integrados, em sintonia com o Pai.
Vale destacar uma constante no evangelho de Marcos: a casa como lugar preferencial da ação de Jesus e da missão dos seus discípulos. Certamente Jesus ensinava nas sinagogas, mas ali sempre encontrava a resistência e o fechamento daqueles que faziam da Lei o centro da vida; por isso, Jesus, como um inspirado mestre, revela um “novo ensinamento”, não em lugares fechados e controlados, mas em espaços abertos, nos campos, à beira do lago de Genezaré, indo pelos caminhos...; Jesus se dirige aos lugares onde homens e mulheres realizam suas atividades comuns, no simples ambiente do trabalho cotidiano e, de maneira privilegiada, nas casas, começando pela sua própria, em Cafarnaum, onde fora residir.
Jesus, como itinerante, dá início a um “movimento de casas”. É que a casa acaba sendo o espaço alternativo que melhor corresponde à atuação do Mestre, enquanto ponto de partida e de chegada de sua missão itinerante. É a partir das casas que Jesus exerce, à margem do que está estabelecido, sua autoridade em favor da vida, sem depender de instituições e funções previamente normatizadas.
Assim, através de uma rede eficiente, ampliada e centrada no Mestre e com funções complementárias, seus seguidores, a partir das casas, prolongam o ministério de Jesus: “viver em saída”, deslocar-se em direção aos excluídos, revelar a presença do Pai na simplicidade do cotidiano das pessoas, etc. Neste sentido, a casa cumpre uma função vital para a expansão da causa do Reino de Deus. Em outras palavras, a causa de Jesus (Reino) encontra nas casas seu lugar natural.
É fácil concluir que esta rede de seguidores nas casas acabe se organizando de uma forma concêntrica, ao mesmo tempo que horizontal, favorecendo de modo definitivo e natural o avanço do Reino; tal organização se diferencia das estruturas piramidais e hierárquicas, próprias de toda e qualquer instituição, com os riscos de esclerose que lhe são inerentes. Aqui, revela-se sumamente estimulante resituar a continuidade da causa de Jesus de Nazaré nos ambientes fraternos e igualitários, onde a casa se revela como espaço próprio da simplicidade e da cotidianidade.
Trata-se, pois, de uma alternativa urgente, frente à persistência petrificada de conservar formas e estruturas anacrônicas que, em função do poder, continuam a predominar em nossos ambientes cristãos, apesar dos apelos insistentes do próprio evangelho.
O Evangelho de Jesus é experiência de casa, de comunhão e palavra para todos, lugar aberto à novidade do Reino. A primitiva comunidade dos seguidores de Jesus não começou formando uma nova religião instituída, nem se preocupou com construções de templos ou com organizações hierarquizadas; ela se apresentou como uma federação de casas abertas, a partir dos pobres e para os pobres, criando redes de comunicação e de vida fraterna, casas-família, impulsionadas pelo testemunho e presença do Espírito do mesmo Jesus.
Ser seguidor(a) é ser chamado(a) a viver no seu dia-a-dia esta mística do amor da maneira como Jesus viveu (na família, no trabalho, no descanso, na luta em favor da vida, nos compromissos sociais...).
O cotidiano é o meio no qual o amor toma densidade e se expressa preferentemente; ele é o lugar privilegiado da vivência da espiritualidade do seguimento, deixando-nos conduzir pelo mesmo Espírito que animou Jesus e o levou a inserir-se na trama da vida humana e a dignificá-la.
Falamos de uma cotidianidade humana, isto é, daquelas atividades de nossa vida diária que, embora irrelevantes em sua aparência, tem uma razão de ser, uma motivação que não se reduz à mera casualidade ou a um impulso instintivo de repetição ou automatismo.
Sabemos que o cotidiano revela um perigo que é a rotina, essa sensação de fazer tudo mecanicamente, inclusive a vivência da fé, e de perder com isso o ardor do novo ou o impacto do extraordinário.
O amor é precisamente o lubrificante que dá sentido à nossa vida cotidiana e nos faz superar as dificuldades inerentes à mesma; o descentramento de nós mesmos, a busca da verdade e do bem comum, a ação comprometida com a vida dos outros... se tornam “normais” quando cultivamos o amor.
Texto bíblico: Mc 1,29-39
Na oração: O Espírito nos faz abrir os olhos às realidades novas em nossa vida cotidiana; mas nossos olhos somente se abrirão se formos fiéis à voz do Espírito nos simples atos de nossa vida cotidiana.
- suas atividades diárias fazem parte do seu caminho para Deus? Você tem consciência que cada dia é um “tempo de graça”? Você “apalpa” a presença de Deus nas “rotinas diárias”?
Pe. Adroaldo Palaoro sj
04.02.2021
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Das margens do mar da Galiléia (evangelho do domingo passado), partimos com Jesus, Simão, André, Tiago e João para a Vila da Compaixão (Cafarnaum). É sábado, dia do descanso e da celebração da liberdade, momento de reunir a comunidade e alimentar a esperança na escuta da Divina Palavra. Entramos na sinagoga, casa de oração, onde se manifesta a boa nova segundo a Comunidade de Marcos (1,21-28): Jesus assume o ritmo do existir de sua gente (trabalho e descanso, cotidiano e culto) e revela o rosto misericordioso de Deus!
Aqui as pessoas ficam maravilhadas com o seu ensinamento (cf. Marcos 1,22), que rompe a seca repetição da rotina, trazendo novidade, fazendo vibrar o que antes parecia amortecido... Ao escutá-lo, aquela gente desarma-se! O motivo: Jesus ensina com força, sua palavra carrega vida não apenas conceitos, sua fala - jamais gélida e distante - é melodia que embala e faz crescer. Jesus diz o que é e faz o que diz; é acrescimento de vida, respiração ampla, horizonte livre.
Não ensina como os escribas… Pessoas inteligentes, de muito estudo, que conhecem bem as Escrituras, mas escutam-nas apenas com a cabeça, numa leitura que não move o coração, não o acende, não se torna pão e gesto. (Lucas 24) Muitas vezes também nós somos como os escribas, basta-nos juntar o Evangelho à razão, parece-nos que o compreendemos, porém, nossa existência não muda. “A fé não é saber coisas, mas fazê-la tornar-se sangue e vida.” (Ermes Ronchi, padre italiano)
O ensino de Jesus provoca mudanças... Na sinagoga está um homem possuído por um espírito impuro, pelo jeito habituado a frequentar aquele espaço, alguém que já ouvira muitas pregações! Sim, pode se passar toda uma vida requentado a sinagoga todos os sábados, a igreja em todos os domingos, rezar e escutar a Palavra, e ainda assim manter dentro de si um espírito doente, uma alma distante que não se deixa alcançar, uma vida vazia e sem perspectivas. Pode viver-se toda uma vida como cristãos de domingo, sem nunca se deixar tocar pela Palavra de Deus, sem que faça verdadeiramente nova a vida.
Então, o homem possuído pelo espírito impuro se contrapõe a Jesus, o possuído pelo Espírito Santo! Gritando, busca demonstrar seu domínio e força sobre o Mestre através de perguntas: ‘Que queres de nós, Jesus Nazareno? Vieste para nos destruir? (Marcos 1,23)... Aqui a Comunidade de Marcos denuncia que na figura deste homem presente no espaço e no tempo sagrados, mostra como aquela prática religiosa havia perdido a capacidade de combater o mal, o potencial de humanizar a vida.
Cabe-nos perguntar: até que ponto nossa vida religiosa produz transformações em nosso cotidiano? Que relações estabelecemos entre nossa fé em Jesus e nossa rotina do dia-a-dia? Podemos participar do rito no domingo, ficar na comunidade, falar das alturas do sentido e dos santos nos altos céus... Mas, que repercussão concreta isto encontra em nosso existir? Será que cremos realmente? Só o saberemos se, esta frequência e esta escuta, mudar realmente nossa vida.
A resposta de Jesus é firme: pede ao espírito que se cale, exige o silêncio e a saída daquela pessoa. A palavra se faz ação e provoca muito espanto entre os presentes. Pois, Jesus vem para arruinar os espíritos que subjugam as pessoas, vem libertar-nos das atitudes religiosas que sufocam a vida e alienam a existência. Jesus veio para destruir as espadas, para que se tornem foices; Ele é a ruina das lanças, para que se tornem arados, das duras conchas que aprisionam as pérolas. Jesus é "minha doce ruína" – como diz David Maria Turoldo, frade da Ordem dos servos de Maria – pois estraga máscaras e medos, e tudo que arruína o ser humano.
Assim, depois de chamar aos primeiros discípulos – “pescadores de seres humanos” –, hoje Jesus nos ensina a natureza desta pescaria: ser agente de libertação para a humanidade, livrando o ser humano das situações de opressão, escravidão e morte. Como entre todas as alienações humanas a pior é a religiosa, foi no espaço (e tempo) dito sagrado que Ele inicia sua missão. Ali onde se permitia que os seres humanos fossem “afogados”, ou seja, privados de sua liberdade e vida plena, Jesus cuida daquela vida sofrida, arrancando-o do mal (do mar, da morte). Hoje, também somos interpelados a reconhecer quais são as estruturas de domínio do mal e lutar para superá-las. Vale a pena recordar que, ainda hoje, o mal continua disfarçado de “boas” doutrinas, ritos “exatos” e “corretos” preceitos.
A quem temos escutado? Com quem temos aprendido? Que possamos encontrar ensinamentos que nos ajudem a crescer em sabedoria e graça, isto é, na capacidade de espanto infinito. Que saibamos escolher o que nos dá asas. Aqueles que nos desafiam a voar... Que possamos acolher a ensino autorizado de Jesus, que transforma e liberta vidas, com compaixão. Amém.
Pe. Paulo Roberto Rodrigues
31.01.2021
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“Ele manda até nos espíritos maus, e eles obedecem!” (Mc 1,27)
Depois do chamado dos primeiros seguidores de Jesus, junto ao lago, o evangelho deste domingo nos leva com eles à sinagoga, que era a escola e casa de oração dos judeus. Fazendo com que falem mais os fatos que as palavras, Marcos nos quer ajudar a ver, como através da atuação de Jesus, o Reino de Deus se faz presente.
Não por casualidade, o evangelista situa a cura do homem possuído por “espíritos maus” em Cafarnaum (centro da atividade de Jesus), na sinagoga (espaço da religião), no sábado (dia de culto e oração) e entre mestres da lei, que tinham poder sobre a assembleia e sobre a interpretação da Palavra. Mas, aqueles que tinham “poder” não curaram o homem de seu espírito imundo.
“Espírito mau” significa tudo o que bloqueia a relação com Deus e a comunhão com os outros; representa o que há de mais contrário a Deus e a possibilidade de uma convivência sadia com aqueles que o rodeavam; é o símbolo de tudo aquilo que no ser humano está em radical oposição ao Pai.
A presença de Jesus desata, liberta, purifica o ser humano que se encontrava oprimido dentro de uma sinagoga. Frente à exclusão nesse espaço comunitário, Jesus profere sua palavra que cura e liberta o enfermo/oprimido de sua situação desumanizadora. O relato deste domingo não fala da enfermidade que o oprimido padecia. Diz simplesmente que era “impuro”, alguém que era considerado “manchado”, dominado por um espírito anti-humano e que Jesus desmascara, para que pudesse falar e agir com autonomia.
Jesus, na sinagoga, não discute sobre Deus de forma abstrata; não propõe teorias sobre pureza mais intensa, sobre ritos e alimentos; também não oferece uma doutrina sapiencial de tipo moralista; não apresenta uma doutrina melhor sobre leis ou normas de conduta; não é o rabino mais sábio, nem o escriba mais agudo. Tudo isso é secundário para Marcos. O ensinamento novo de Jesus se identifica com sua autoridade humana, com sua capacidade de destravar a vida dos enfermos na sinagoga. Por isso, seu “ensinar com autoridade era novo”; não era o ensino que repetia o que outros diziam ou aquilo que se lê nos livros; não era um ensinamento aprendido na escola de um professor especializado.
Tratava-se de um ensinar novo, diferente dos mestres da lei; a verdadeira autoridade de Jesus residia em sua pessoa, em sua vida. Seus pensamentos eram expressão de sua vida, era expressão do que fazia; e o que fazia era expressão de seu pensamento. Seu ensinar é novo porque Jesus não é o “profissional das ideias”, mas o “profissional da vida”, o profissional do coração, o profissional que ensina vida, o profissional que sara os corações.
Nosso contexto, social e religioso, também precisa de “profissionais” que nos deem razões para viver, nos deem razões para a esperança, para amar, nos deem razões para aprender a sermos pessoas, livres e criativas; precisamos de “profissionais” que nos mobilizem a viver uma vida plena, sem esses “maus espíritos” que nos atormentam cada dia e nos fazem viver uma vida medíocre.
Jesus fala e atua com “autoridade”; mas sua autoridade é diferente. Não vem da instituição. Não se baseia na tradição. Tem outra fonte. Está cheia do Espírito vivificador de Deus. Jesus não tem “autoridade do poder”, mas o “poder de sua autoridade moral”; não tem a autoridade da força que domina, se impõe e arrasta. Jesus tem o poder da autoridade que brota de seu interior, de seus valores, de sua liberdade. Autoridade que o descentra e o mobiliza a ser presença provocativa frente a todo poder que exclui. Não é o mesmo “poder” e “autoridade”.
O poder é exterior, vem de fora. Uma pessoa tem poder porque lhe foi dado nas urnas, porque foi instituído a partir de “fora” em uma presidência, em uma instituição, em uma empresa... Pode-se ter, pois, poder: títulos, cargos, prestígio,... mas poder não confere autoridade. A autoridade, pelo contrário, é interna à pessoa, e não consiste em ter títulos, nomeações; é a qualidade daquelas pessoas que tem o carisma de suportar as cargas e aliviar o sofrimento dos outros; pessoas que deixam emergir de seu interior a bondade, o alívio, a competência, a liderança solidária...
A pessoa pode ter poder, e poder legítimo, mas pode ser que não tenha a mínima autoridade. É muito perigosa uma pessoa que atua com poder, mas sem autoridade. Pelo contrário, há pessoa que não tem poder na sociedade ou na igreja, mas tem autoridade. Jesus mesmo não tinha nenhum poder no templo, na lei, diante dos escribas, fariseus, sacerdotes... Mas Jesus tinha autoridade: falava e atuava com autoridade. O poder não torna as pessoas boas, nem quem ostenta o poder e nem sobre quem recai o poder.
Sabemos e sentimos que o poder exerce um grande atrativo; ele é sedutor: “quem é que não foi picado pela mosca azul do poder?” É a paixão mais forte do ser humano; este pode até “perder a cabeça” por umas migalhas de poder político, econômico, religioso ou mesmo na família, nas empresas, etc. Atrás de toda busca de poder, ou das atitudes de poder, se esconde uma ansiedade de domínio, de prepotência, de ego inflado; ao mesmo tempo, uma pessoa fanática por poder revela um intenso medo, uma angústia profunda de perder prestígio, um pânico diante da possibilidade de ficar sem pedestal, sem cátedra, sem a atenção dos outros...
Nestes casos, o poder acaba se descambando para o fundamentalismo fanático. Uma pessoa fanática é alguém cuja mente é rígida, esclerosada, bloqueada pelo medo e pânico visceral frente à verdade, das pessoas e dos fatos. Por isso, o fanatismo se identifica com o pensamento dogmático mais intransigente. Em alguns cargos políticos e em algumas posições religiosas se dá uma atitude de poder despótico, agressivo, violento, porque o poder fanático não é capaz de pensar, de dialogar, somente agride.
A autoridade faz bem; o poder se impõe; a autoridade acompanha. O poder dispõe, a autoridade liberta. O poder crucifica, a autoridade está crucificada ou ao pé da cruz. Só a autoridade traz a paz, ilumina e faz crescer; o poder, pelo contrário, gera ansiedade, medo e faz o outro se sentir inferior. Quem tem autoridade, inspira e motiva as outras pessoas a fazerem as coisas com boa vontade e ânimo; o poder, no entanto, as obriga, por causa de sua posição de força.
Por seu caráter impositivo, o poder deteriora relacionamentos, resvalando-se para o terreno pantanoso da competição, da suspeita, da intriga, da violência. A autoridade, por sua vez, não tem nenhuma relação direta com a obediência: repousa, isto sim, sobre o reconhecimento da riqueza e da possibilidade do outro. Ela anima, sustenta, desafia e toca aquilo que cada um tem de melhor em seu interior.
A cultura do poder suga o “espírito” da vida de uma comunidade, minando sua criatividade e fragilizando seus laços de convivência. Quem tem poder não age, dá ordens; jamais suja as próprias mãos; é impune e não deixa impressões digitais.
O poder não constrói comunidade, pois a pessoa se cerca de subservientes que cumprem suas ordens, dizem amém às suas ideias ou calam-se coniventes. Sorrateiramente este mal toma conta do coração humano e o petrifica, impedindo a vida de desabrochar e a criatividade de se expressar.
Texto bíblico: Mc 1,21-28
Na oração: Todos nós somos habitados por dois dinamismos internos: um, que nos impulsiona para o bem, a verdade, a comunhão...nos descentra; outro, que nos fecha, nos faz autoreferentes, prepotentes, violentos...
- Qual dos dois dinamismos se faz visível no seu agir e falar cotidianos?
Pe. Adroaldo Palaoro sj
28.01.2021
Muitas vezes, sobretudo nestes dias, sentimo-nos paralisados e indecisos. Acomodados às rotinas e janelas virtuais; acostumados às más notícias (confusões, abusos, violência, injustiça) coletadas em nossas redes digitais, silenciosamente argumentamos: “nada de novo há debaixo do sol”... “nada há de novo para se fazer”!
Somos, contudo, surpreendidos com a Boa Notícia testemunhada pela comunidade de Marcos! No capítulo primeiro, versículos de 14 a 20 (sete versículos, duas cenas, sete nomes), Jesus caminha pela Galiléia, depois da prisão de João Batista, sem medo, anuncia e convida para o novo, para a mudança. Onde as grades impediam a profecia, rompe suave e densa a Palavra que congrega e propõe movimento. (No centro, o verso 17: chave de compreensão do evangelho: “Segui-me e eu farei de vós pescadores de homens”!)
Belas paisagens: das margens do Rio Jordão, na Judéia; passamos às aldeias e povoados da Galiléia! Entre o povo rebelde e desprezado da periferia, espalha-se a provocante mensagem: o tempo se cumpriu e o Reino de Deus está perto! Eis a janela que se abre! Cada instante é ocasião, oportunidade de vivenciar o reinado de Deus... Mesmo vivendo num mundo insuportável, marcado pelas injustiças e opressão, com lideranças religiosas e políticas totalmente corrompidas, a oportunidade de criação de um mundo novo não pode ser desperdiçada.
Sim, em meio ao povo simples é possível viver de forma alternativa, diferente, buscando solidariedade e compaixão. Não basta observar ritos e cumprir normas; urge acolher a vida como dom e compromisso! Para tanto, é preciso mudar a maneira de ver e viver, confiando na boa nova de Deus! Não se trata de “fazer penitência ou dizer-se arrependido”, mas mudar o modo de pensar e de viver. Para poder perceber essa presença do Reino, temos que começar a pensar, a viver e a agir de maneira diferente.
Temos que mudar de vida e encontrar outra forma de convivência! Temos que deixar de lado o legalismo e o ritualismo, nossa auto-referência e confiança cega na meritocracia, para permitir que a nova experiência de Deus invada nossa vida e nos dê olhos novos para ler e entender os fatos.
Acreditar nesta oportunidade, confiar nesta possibilidade, não é fácil e imediato. Como aparece no relato do evangelho! Não é fácil começar a pensar de forma diferente de tudo que aprendeu desde pequeno. Isto só é possível através de um ato de fé. Algo muito diferente de listar um conjunto de crenças...
Quando alguém nos traz uma notícia diferente, difícil de ser aceita, só a aceitamos se a pessoa que traz a notícia for de confiança. A comunidade de Marcos nos diz: em Jesus podemos confiar! Sim, Ele deu a própria vida por desejar e realizar o Reinado do Pai. Podemos aceitar, Jesus não engana, demonstrou isto com sua paixão, morte e ressurreição.
Em seu movimento, com seu anúncio-convite, passando pelo mar da Galiléia, Jesus vê pescadores e os (nos) chama: “venham atrás de mim, farei de vocês pescadores de homens”. Eis uma bela pintura onde se revela o rosto de Deus encarnado, que prefere o tempo ao templo, o pequeno ao extraordinário, a atividade diária ao evento espetacular! Assim, Moisés e Davi são chamados quando pastoreavam seus rebanhos; Eliseu quando arava sua roça com seis pares de bois; Levi quando estava sentado na coletoria de impostos...
Segundo a comunidade de Marcos, o primeiro chamado, fruto da pregação de Jesus, é direcionado a quatro, duas duplas de irmãos: Simão e André, João e Tiago. Esse número simbólico nos faz pensar nos quatro pontos cardeais, acenando para a universalidade do Reino e do Evangelho. O convite é direcionado a pessoas de todos os lugares, dos quatro cantos da terra. O convite é de graça, mas a resposta se converte em compromisso: deixar as redes, as antigas redes e modos de relacionar. Pois onde Jesus passa, coloca vidas em movimento.
Jesus faz o convite, os quatro nada perguntam, tudo parece imediato: deixaram pai, barco, redes, colegas de trabalho... E seguem atrás dele. Seguem-no porque foram pescados por suas palavras: o tempo acabou, o reino chegou, convertam-se e creiam na boa notícia. Foram cativados pelo seu agir, envolvidos neste novo movimento. Quem sabe, cada um de nós, também nos permitamos ser pescados, abandonando nossas redes para seguir no caminho, para entrar em movimento. Deixando nossas pequenas embarcações e rotineiras pescarias, para encontrar a aventura do sentido no coração de Deus e de suas criaturas.
Um sonho está nos faltando, e Jesus, pescador de sonhos, nos oferece o sonho de novos céus e novas terras, quando dois pares de irmãos silenciosos se tornam o primeiro núcleo, aperitivo da proposta de Jesus: a fraternidade aberta e inclusiva. Esta figura de um grupo fraternal, que falará de Deus com a linguagem da intimidade do lar (Abba), nos coloca em caminho para atingir toda a humanidade.
Jesus nos convoca a gerar comunidades, não uma seita, facção dos perfeitos e santos, dos corretos e sabidos, mas uma experiência onde se congregam buscadores e buscadores, com altos e baixos, erros e acertos, colocada a serviço da vida, configurando uma só família: todas as criaturas, "irmãos e irmãs todos" (como sugere o Papa Francisco em sua carta “Fratelli tutti”)! Que abramos esta janela, deixando as redes, para hoje seguir Jesus. Amém.
Paulo Roberto Rodrigues
24.01.2021
“O tempo já se completou” (Mc. 1,15)
Não há filósofo que se preze que não lhe tenha dedicado parte de sua reflexão; não há poeta que não o cite em suas obras; não há namorado(a) que não pense que ele “voa”; não há político que não o utilize em suas promessas; não há pregador que não o faça aparecer em seus sermões; não há ser humano que não sinta sua passagem. Estamos falando do “tempo”.
Tem-se dito tantas coisas sobre o tempo...: que “ele tudo cura”, que “temos todo o tempo do mundo”, que “é preciso fazer as coisas a tempo”, que “há um tempo para cada coisa”, que “não podemos apressar o tempo”, que “o tempo passado foi melhor”...
Quando falamos de tempo, não estamos nos referindo, necessariamente, ao tempo físico, ao tempo cronometrado (“chronos”). Esse tempo não é o mais importante. O verdadeiramente importante é o tempo psicológico, o tempo interior, o tempo espiritual, o tempo tal e como nós lhe damos valor.
A Bíblia não concebe o tempo como uma entidade abstrata, vazia, quantitativa, irreversível e retilínea, medida por anos, dias, horas, minutos e segundos, dentro do qual tudo é contido e tudo acontece.
A ideia bíblica de tempo é algo concreto, vivo, experimental e qualitativo, que incorpora os seres e as coisas, marcado por eventos significativos...
A mentalidade judaica considerava que a natureza do tempo presente era determinada tanto pelos atos de salvação de Deus no passado (Êxodo), quanto pelos atos de salvação de Deus no futuro.
Os profetas tinham a tarefa de contar às pessoas o significado do tempo específico no qual estavam viven-
do, em vista do novo ato divino que estava prestes a acontecer.
Este acontecimento futuro iminente qualifica o tempo presente, dá sentido à totalidade da nossa vida no presente e determina aquilo que deveríamos estar fazendo. Se o tempo presente é inteiramente inspirado e qualificado por este ato novo e sem precedentes de Deus, então o próprio tempo presente é tempo totalmente novo, nova era.
Cada coisa, ao ter seu próprio tempo, está numa relação de parceria com outros tempos e outras coisas.
Há uma constante vinculação do tempo ao “ser e acontecer de cada coisa”. Isso porque o tempo é “carregado” da presença de Deus, que continuamente trabalha, realizando a salvação.
É o “Kairós”, tempo de salvação.
Com Jesus chega um “novo tempo”, um tempo decisivo para a história da humanidade.
É Deus quem irrompe de maneira definitiva na temporalidade. A partir desse momento, a história fica dividida em dois tempos: o anterior e o posterior ao nascimento de Jesus.
Desta maneira, o Senhor do tempo faz de Jesus o centro e o ponto de referência do tempo dos homens. Todos os acontecimentos do mundo, tanto passados como futuros, encontrarão sua localização e sentido a partir do “tempo central”, que é o tempo de Jesus.
Jesus vive cada momento numa relação completamente livre com o tempo.
Com os olhos fixos na “Hora do Pai”, Jesus mostra com sua mobilidade que, participando no tempo humano, não se deixa prender pelas ataduras da preocupação, da ansiedade, da pressa...
O tempo de Jesus é kairós, presente, dom, tempo de salvação. É a plenificação de todos os tempos.
É o “tempo esgotado”, capaz de abarcar todas as dimensões da vida e da história.
Jesus acomoda seu tempo ao “tempo de Deus, avança sem pressa nem inquietude e busca viver com alegria e prazer cada momento como um dom inesperado.
É no movimento do “Kairós” de Jesus que acontecem o chamado e o seguimento; por isso, Marcos situa o encontro com os primeiros discípulos nesse momento denso, decisivo, inspirador. É no interior do kairós que o Reino vai se expandindo, e movendo a história em direção à sua plenitude.
Todos carregamos uma certa visão pessimista que desvaloriza o tempo: vemo-lo como efêmero, passageiro, finito, caduco e, inclusive, como ilusório.
Também existe entre nós uma certa concepção que pretende reduzir toda realidade a tempo, a mero tempo; na maioria dos casos, tempo desabitado, sem presença, sem sentido e sem abertura ao futuro.
Outros colocam um preço no tempo: “time is money”. Muitas pessoas, pressionadas pela agenda desumana do ativismo, não conseguem dar um sentido existencial àquilo que fazem. Nada detém o tempo. Sua dinâmica não se submete a nenhum controle humano. O tempo corre como as águas de um rio. Arrasta tudo.
O “tempo novo”, tal como o vive Jesus, é original em cada um de seus momentos, e em nenhum caso torna-se banal. O Pai se mostra propício na temporalidade, e por isso a atitude de Jesus é a de descobrir em cada um dos momentos e dos acontecimentos o dom de seu Pai.
Cada tempo particular é sinal de um Deus benevolente e deve ser acolhido com gratidão.
A pressa descontrolada, o ritmo frenético, o estresse, a antecipação dos acontecimentos, a impaciência diante do desejado, a falta de respeito pelo tempo interior das pessoas,.., são atitudes que caracterizam o ser humano pós-moderno, mas que estão ausentes na pessoa de Jesus.
A liturgia cristã nos diz que estamos no “tempo” para tomar consciência de nosso verdadeiro ser e descobrir que estamos já na eternidade, que nosso verdadeiro ser não está no “chronos”, mas no “kairós”. Seremos cada ano mais jovem se formos cada dia mais livres. Nosso verdadeiro ser é constituído do divino que há em nós, e isso é eterno. Não precisamos esperar nada, pois já somos a plenitude e estamos na eternidade. Sem a eternidade da “alma” que pulsa em nós, que nos unifica e nos integra por inteiro, a vida se empobrece. Na “alma”, no nosso interior, o eterno tem seu templo.
Quando alguém fala de “coisas” eternas, bem que poderíamos olhar para dentro de nós mesmos. Aí, no nosso interior, há tanto de eterno. A eternidade dialoga com a gente, fala por dentro. Talvez ainda somos a onda que ainda não se despertou de que é oceano. Estamos mergulhados no “hoje eterno” de Deus e isso ilumina e dá sentido a cada gesto, cada ação, cada encontro.
Kairós: eis que irrompe a eternidade – eterna idade. Nesse sentido, a própria eternidade é sentida como o fluir de um presente sem fim, dom para ser vivido a cada instante.
A espiritualidade cristã, marcada pelo “tempo” de Deus, pode nos ajudar a fazer a “passagem” do “tempo insensato” (sem sentido) ao “tempo sensato” (com sentido). Tal espiritualidade é uma boa notícia com respeito ao modo de “estar no tempo” e nos introduz na dinâmica da vida que se abre às surpresas do “Senhor dos tempos”. Jesus irrompe em nossa história e nos coloca diante de uma decisão inadiável e única que marca de maneira definitiva nossa existência: “convertei-vos e crede no Evangelho!”
Encontramo-nos mergulhados no tempo da história, levados e sustentados por Deus, “Senhor do tempo”, que nos fala no tempo, comunica-se a nós no tempo, nos conduz no tempo, nos perdoa no tempo, nos convida a trabalhar com Ele no tempo...; no tempo, Ele nos sacode e nos interpela, no tempo, Ele nos capacita para anunciá-Lo e transformar o mundo segundo seu desígnio original. Por isso, o transcurso do tempo, longe de se constituir um peso, é um grande aliado de nosso desejo, de nossa vida e de nossa fé.
Texto bíblico: Mc 1,14-20
Na oração: Tempo é vida e a vida é feita de tempo: ordenar seu uso nada mais é do que ordenar a própria vida, dando-lhe sentido e direção. A maneira como cada um assume o tempo determina a forma como direciona sua vida.
- Você vive o tempo como dom ou como “inimigo” a ser derrotado? Seu estilo de vida é agitado, sempre de olho no relógio, em permanente estado de ansiedade, ou é marcado pela gratidão que descansa?
Pe. Adroaldo Palaoro sj
21.01.2021
Imagem: pexels.com/pexels-giallo
Depois de mergulhar com Jesus nas águas do Jordão (domingo passado), acolhemos a Boa Notícia testemunhada pela comunidade do Discípulo Amado, capítulo primeiro, versículos de 35 a 42, apresentando-nos as sementes da caminhada cristã. Somos colocados diante de cinco figuras: dois mestres e três discípulos! João (de olhos penetrantes) que ensina com gestos e humildade; Jesus (andarilho e acolhedor) que ensina perguntando, dois discípulos que não se acomodam nem incomodam, e um terceiro, que aceita o testemunho do irmão e no encontro com o Mestre, troca de nome (de rumo e vida)!
Um relato temperado de liberdade e coragem, espelhando movimento e fraternidade! Desapegado, o mestre aponta outro Mestre, aquele que serve ao divino desejo de ao mundo libertar (o Cordeiro de Deus)! Tirar o pecado do mundo não significa o sacrifício de carregá-lo nas costas! É antes o trabalho (sacro-ofício) de libertar da opressão os oprimidos! Verdadeiro sentido do cordeiro imolado na Páscoa: memória atualizada da libertação do Egito. Arrastados por esta fulgurante imagem, os primeiros seguidores, são desafiados pelas primeiras palavras de Jesus neste Evangelho: o que estais procurando?
Assim, o Mestre começa pondo-se à escuta. Ele que estava à frente, volta-se para encontrar e perguntar; não quer nem impor nem doutrinar, desafia os que o seguem a ditar a agenda. A pergunta funciona como um anzol lançado para o interior deles... Jesus, com maestria, toca o tecido profundo e vivo de cada pessoa: o que desejas verdadeiramente? Qual é o vosso desejo mais forte? Palavras que se repetirão no final do relato evangélico, num jardim depois de seu sepultamento: mulher, quem procuras? Sempre o mesmo verbo, aquele que define nossa humanidade: somos buscadores e buscadoras, movidos pelo sopro do Espírito...
A resposta (agenda) dos discípulos é outra pergunta: Rabi, onde moras? O que se transforma num divino convite: Vinde e vede! Jesus revela-nos que o anúncio cristão, antes das palavras, é feito de olhares, testemunhos, experiências, encontros, proximidade. Numa palavra, Vida. E é isso que Jesus veio trazer, não teorias, mas vida em plenitude (cf. João 10,10). E os dois vão com Ele: a conversão é deixar a segurança de hoje para o futuro aberto de Jesus; passar de Deus como dever a Deus como desejo e espanto!
Muitas pessoas desejam/sonham poder passar o resto de suas vidas de pijama, no sofá de casa. Isto talvez seja o pior que nos possa acontecer: sentirmo-nos acabados, permanecer imóveis, acomodados. Ao contrário, os discípulos, os primeiros cristãos, foram formados, treinados, ensinados a não parar, a andar e a andar, em busca de Deus. Por isso, o relato nos apresenta André que vai ao encontro do irmão e o conduz a Jesus, pois Simão compartilhava de sua expectativa, também ele estava em busca daquele cuja vinda o Batista anunciava. A espera acabara, a busca teve êxito. A expressão “encontramos”, no plural, já indica o “nós” da comunidade de Jesus, que, a partir deste momento, ressoará em todo o Evangelho para confessar a fé e dar testemunho.
Jesus, mestre do desejo, hospedeiro e intérprete do coração humano, pergunta a cada um e cada uma de nós: que fome torna viva a tua vida? De que sonhos caminhas atrás? E não pede renúncias ou sacrifícios, nem imolações sobre o altar do dever, mas reentrar em si, regressar ao coração, olhar para o que acontece no espaço vital, acolher as dores do mundo e dos irmãos e irmãs, guardar aquilo que se move e germina no íntimo de si e do mundo. Perceber tudo como bênção, pois feliz o homem, feliz a mulher que tem caminhos no coração (cf. Salmo 83,6).
Um passo decisivo, ao ler este evangelho, é procurar pessoalmente a verdade de Jesus. Não faz falta saber muito para entender sua mensagem. Não é necessário dominar as técnicas mais modernas de interpretação. O decisivo é ir ao fundo dessa vida a partir de minha própria experiência. Guardar suas palavras dentro do coração. Alimentar o gosto da vida com seu fogo. Ler o evangelho não é exatamente encontrar «receitas» para viver. É outra coisa: é experimentar que, vivendo como Jesus, se pode viver de forma diferente, com liberdade e alegria interiores.
Este é o convite de Jesus para todos nós: trilhar os seus caminhos, reconhecer sua palavra, acolher a sua vida. Mesmo que isto se dê no final da tarde... Quando acaba um dia e começará outro... Na hora em que se imolava o cordeiro, sinal da vida oferecida para a libertação de todos. Que não nos privemos de seguir Jesus e habitar em sua morada, isto é, permanecer em Deus! Amém!
Pe. Paulo Roberto Rodrigues
Campinas, 17 de janeiro de 2021
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“Foram, pois, ver onde Ele morava e, nesse dia, permaneceram com Ele” (Jo 1,39)
Queremos marcar a experiência da caminhada contemplativa com Jesus, ao longo deste ano litúrgico, fazendo referência ao início da sua atividade pública, no evangelho do João: um relato de busca e de seguimento. Dois discípulos, que escutaram o Batista, começam a seguir o Mestre de Nazaré, sem dizer palavra alguma. Há algo n’Ele que os atrai, embora ainda não sabem quem Ele é nem para onde os levará. No entanto, para seguir a Jesus não basta escutar o que os outros dizem dele. É necessária uma experiência pessoal.
Por isso, Jesus se volta e lhes faz uma pergunta muito instigante: “quê buscais?”. Estas são as primeiras palavras de Jesus no quarto evangelho. Não se pode caminhar atrás de Seus passos de qualquer maneira; é preciso verificar as reais motivações.
Aqueles dois primeiros discípulos ainda não conseguem imaginar até onde a aventura de seguir Jesus poderá levá-los, mas intuem que Ele poderá ensinar-lhes algo que ainda não conhecem; por isso, a resposta deles é outra pergunta sábia: “Mestre, onde moras?”
Não buscam n’Ele grandes doutrinas nem sábias filosofias. Querem que lhes mostre onde vive, como vive e para quê vive. Desejam que lhes ensine a viver. A resposta de Jesus é a de um verdadeiro mestre: “Vinde e vede”. “Experimentai vós mesmos, percorrei meu caminho, caminhai por ele...” Não lhes dá explicações ou uma exortação, nem lhes impõe condições, nem exige deles algum tipo de submissão.
A pergunta de Jesus – “quê buscais?” – levará os dois discípulos a conectar com seu ser mais profundo, com sua realidade mais íntima, com os desejos de seu coração, ainda não configurados pelo amor. Uma pergunta vital, que desperta a consciência e os conduz a um diálogo consigo mesmos.
Por outro lado, a pergunta dos discípulos – “Mestre, onde moras” – não significa limitar-se a entrar em um determinado espaço físico, mas é expressão do desejo de um retorno à “morada interna”.
Os novos seguidores de Jesus não lhe perguntam sobre o seu ensinamento, nem o que faz, mas onde Ele mora para poder, dessa maneira, estar com Ele, compartilhar sua casa, sendo seus amigos. O verdadeiro discipulado é “estar com”, morar juntos... Esta é a missão chave de Jesus e de sua nova comunidade de seguidores: abrir a casa, não ocultar nada, oferecer com transparência sua vida e caminho aos outros.
“Vinde e vêde!”: Jesus lhes oferece sua morada, com tudo o que há nela, para que aprendam, vivendo com Ele, a fazer o percurso interior, para descobrindo a identidade original, ali presente..
Estes discípulos acolhem o convite, vão com Jesus, veem e convivem com Ele naquele dia; sentem-se impactados e transformados pelo estilo de vida de Jesus, mais que por aquilo que Ele diz. Não há necessidade de mais discursos, de palavras fortes: veem como vive Jesus, vivem com Ele e descobrem que Ele é o Messias de Israel. Esta foi e continua sendo a missão de Jesus e de seus seguidores: criar espaços de vida messiânica, ou seja, vida compartilhada...
As primeiras palavras que Jesus, pronunciadas no evangelho de João, também nos deixam desconcertados, porque vão ao fundo e tocam as raízes mesmas de nossa vida. Jesus continua se dirigindo a cada um de nós com uma pergunta que nos remete ao centro do nosso coração, àquilo que nos move: “quê estais buscando?” Sua pedagogia é a da pergunta que desvela, pois nos move a fazer um percurso interior e a encontrar-nos com a fonte que alimenta e inspira.
O desejo do encontro é força determinante para se manter acesa a chama da dinâmica da busca. É uma chama que se mantém acesa em proporção ao sentido e à importância grande de quem ou do que se busca. A sintonia com Deus que é buscada, justifica, com razões de sobra, o esforço e a recompensa do encontro. Vale a pena buscar o que é importante e encontrar Aquele que responde às razões mais profundas da busca.
É preciso aceitar viver à busca de Deus. A Ele é que se deve buscar. Por iniciativa, Ele busca a todos, vai ao encontro de cada um. Ninguém fica de fora.
Uma lógica de contínua busca deve permear o coração de cada um(a), para aprender a viver da busca d’Ele, o Senhor, e da busca de todos os outros, colocando-se a serviço da vida, unicamente por amor.
No fundo, como todo ser humano, também nós andamos buscando algo mais que uma simples melhora de nossa situação; aspiramos algo que, certamente, não podemos esperar de nenhum projeto político ou social.
Na verdade, quando nos interrogamos sobre o que buscamos, sobre o sentido de nossa existência, deixamos transparecer, nas profundezas do nosso coração, a “nostalgia da dimensão perdida”, ou seja, nossa morada interior.
Podemos, então, afirmar que a busca de Deus e o encontro com Ele, a partir de Sua iniciativa, coincidem com a busca e o encontro de nós mesmos, de modo que buscar a Deus é buscar-nos a nós mesmos, a nossa própria interioridade.
Buscamos plenitude, felicidade, quietude, unidade, paz, verdade, amor, harmonia… Pois bem, é justamente isso que somos no nosso “eu” mais profundo. Temos nos distanciado de nossa interioridade e esquecemos as beatitudes originais; com isso nos reduzimos ao ego carente e insatisfeito. Ao aquietar o pensamento e voltar ao momento presente, caem todas as nossas antigas identificações egóicas e fica, simplesmente, o que somos. A busca chega a seu fim no dia em que descobrimos que o buscador é o buscado. Somos já – e sempre foi assim – aqueles que buscamos.
No contexto social pós-moderno, as pessoas relatam que perderam não somente seu lar exterior, mas também o interior. Elas se percebem sem o sentimento de acolhida e proteção; elas já não sabem mais quem são. Perderam seu sentimento de pertença, além de não mais saberem o que as sustenta. Não sabem mais onde poderão encontrar segurança e acolhimento.
O que é “estar em casa” para nós hoje, num mundo estranho e em constante mutação? O que significa “morada” para nós atualmente? Que tipo de sentimento está conectado a ela? Onde nos sentimos em casa?
A imagem dos dois discípulos atrás de Jesus é uma excelente mediação para termos acesso à “morada” em nós mesmos.
Neste mundo disperso, o percurso contemplativo da pessoa de Jesus nos dá referências e amparo. A pergunta que Ele dirige aos seus futuros discípulos nos remete à vivência em nossa casa interior. Entramos em contato com algo que sabemos estar encoberto pelas cinzas existenciais. É anseio pelas raízes, a partir das quais podemos viver com mais intensidade e sentido.
Ansiamos um espaço onde possamos ser nós mesmos. Espaço no qual podemos entrar em contato com algo que nos plenifica e nos expande. Nós temos o sentimento de viver das forças que procedem desse local.
É o espaço no qual Deus mesmo habita em nós. Ali, nós somos plenamente nós mesmos, salvos e íntegros. Verdadeiramente em casa. Precisamos apenas olhar para dentro. O céu está em nós e ali, no céu interior, está a verdadeira pátria que ninguém pode nos roubar ou pode destruir.
Texto bíblico: Jo 1,35-42
Na oração: Deixe ressoar em seu interior as perguntas mobilizadoras: o que, ou quem você busca? Por que busca? Tem sentido e valor o que você busca? Para onde o leva a força da busca?...
Estas perguntas ficam ali, continuamente presentes em um rincão de nossa vida; mas enquanto permanecem vivas são como brasas que voltam a acender-se cada vez que a vida as sopra.
Estas perguntas nos fazem humanos e são tão importantes como o ar que respiramos.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
14.01.2020
Gosto de pensar, Maria, que também a tua fraqueza sustém a tua força, que soubeste aceitar atravessar tantas incertezas, fazendo aderir o teu coração a uma confiança que não se via. E que, por isso, não te é estranha a minha agitação confusa, a minha indecisão, os medos que em certas horas me agridem, e que tu, que tudo compreendes, sabes abraçar.
Gosto de recordar quanto foi difícil o teu caminho, repleto de obstáculos mais duros do que aqueles que eu enfrento, fustigado por sombras, derivas e dores. E que o teu olhar se tornou um imenso ventre, onde posso depor tudo aquilo que tanto me custa, e que tu, que tudo compreendes, sabes abraçar.
Gosto de contemplar essa tua capacidade de agradecer. De agradecer a anunciação luminosa e as suas ásperas consequências; essas palavras límpidas e depois uma dolorosa sucessão de momentos passados a perguntar-te como será; a brandura da brisa e a dureza do vento.
E que, por isso, tu abraças o meu cansaço de viver com esperança a minha força e a minha fragilidade; aquilo que levo ao termo e aquilo que deixarei incompleto; aquilo que depende ou não depende de mim – e tudo tu compreendes.
Gosto de saber que encontraste os planos de Deus infinitamente superiores a ti e que, mais uma vez, te sentiste pequena, só e não à altura, como tantas vezes eu me sinto. E também por isto, no fundo de mim experimento que me abraças, tu que tudo compreendes.
Cardeal Dom José Tolentino Mendonça
[In Avvenire] 11.01.2021
Depois da manifestação aos magos, acompanhamos Jesus de Nazaré até o Rio Jordão, onde é batizado por João. Como muitos peregrinos e buscadores de experimentar o Divino, Jesus deixa os montes da Galiléia para descer muito abaixo do nível do mar, para ouvir a pregação do profeta e mergulhar nas águas, testemunhando o desejo de conversão. Assim o Amor transbordante, retira Jesus de trinta anos de anonimato para nos apresentá-lo: carne de nossa carne, trilhando nossos caminhos, participando de nossas buscas.
A comunidade de Marcos, de forma muito concisa (1,9-11), traduz a experiência vivida por Jesus: um Deus que tanto nos ama, que não cabe em si, rasgando o céu para nos abraçar e assumir. Os céus estão abertos, rompem-se por um amor irreprimível, provocados pela urgência de vida da terra e dos pobres. Um vento que envolve e supera os sinais de morte (mergulho/batismo) para anunciar a Vida; um sopro divino que acaricia e pronuncia palavras restauradoras...
Três palavras poderosas, renovadoras: “Tu és o meu Filho amado; em ti encontro o meu agrado”! Dirigidas à Jesus, e através dele, a todos nós. “Filho” é a primeira palavra, um termo poderoso para o coração, para toda a vida. Somos gerados por Deus: todos temos uma fonte no céu, um cromossomo divino em nós, carregamos o seu sopro, sua marca, sua inspiração! O céu não está vazio, não é mudo, fala palavras grávidas de vida, de futuro!
Segunda afirmação: não sou apenas filho, mas amado. Antes de fazer qualquer coisa, antes de qualquer resposta minha, sou amado por Deus! Por que eu sou, como sou, deve-se ao fato de ser amado. E se sou amado, isto não depende de mim, não é minha iniciativa! Deus é o ponto de partida (e de chegada) deste amor... O que leva à terceira palavra divina: eu coloquei minha satisfação em você. A Voz grita/clama do alto do céu, clama/chora pelo mundo e no meio do coração, a alegria de Deus: é bom estar com você!
Em Jesus, o próprio Deus nos diz: “Eu amo você, filho/filha, e estou feliz com você. Antes de dizer sim, antes mesmo de abrir seu coração, você me dá alegria, você é manifestação da beleza, um prodígio que olha e respira, ama e encanta.” E assim nos convoca a viver como filhos e filhas, irmãos e irmãs, singela moradia de sua presença... transformando nossa casa em seu Reinado, nossa história em sua Custódia, nosso viver em sua Oferta, nossa dança em sua Festa!
Tão distante de nossa costumeira experiência religiosa pautada nas obrigações. Não são poucos os cristãos praticantes que entendem a sua fé como um conjunto de crenças que se “devem” aceitar, mesmo que não conheçamos o seu conteúdo ou se saiba o interesse que podem ter para a vida; como também um código de leis que se “deve” observar, mesmo que não se compreenda bem tanta exigência de Deus; ou ainda, um punhado de práticas religiosas que se “devem” cumprir, mesmo que de forma rotineira. Uma religião sem nenhum atrativo: um peso difícil de suportar que a não poucos produz alergia e repulsa.
Pois, “onde falta o desejo de encontrar-se com Deus, não há crentes, mas sim pobres caricaturas de pessoas que se dirigem a Deus por medo ou interesse” (Simone Weil, mística do século passado). A boa nova da celebração do Batismo de Jesus é que Deus nos chama de filhos, nos deseja com amor e nos acolhe como somos! Não precisamos entender a fé cristã como um “sistema religioso”, mas sobretudo como um convite a caminhar com e no divino, como Jesus caminhou!
Conscientes que num percurso há de tudo: marcha alegre e momentos de busca, provas que devem ser superadas e retrocessos, decisões incontornáveis, dúvidas e interrogações. Cada um têm de fazer o seu próprio caminho. Pois, tudo faz parte do caminho; também as dúvidas, que podem ser mais estimulantes do que não poucas certezas e seguranças detidas de forma rotineira e simplista. Cada um tem o seu próprio ritmo. Não há que forçar nada. O importante é «caminhar», não parar, escutar a chamada que a todos é feita, de viver de uma forma mais digna e feliz.
Assim como a dança do Espírito sobre as águas é o primeiro movimento da Bíblia (Gênesis 1:2) e uma dança nas águas do útero é o primeiro movimento de cada criança na Terra... Uma pomba dançando sobre o rio é o início da atividade pública de Jesus. Um princípio, fundamento, eterna boa notícia: três palavras (filho, amado, meu agrado) são lâmpada para nossos passos, luz acesa em nosso caminhar! Natal-Batismo: manifestação do Amor divino! Amém
Pe. Paulo Roberto Rodrigues
Campinas-SP - Festa do Batismo do Senhor, 10 de janeiro de 2021
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“...ao sair da água, viu o céu se abrindo, e o Espírito descer sobre ele” (Mc 1,10)
Com a Epifania, encerra-se o tempo do Natal. De um salto a liturgia nos leva até o Jesus adulto, passando dos magos sábios que buscam o menino-Deus nascido em Belém ao Jesus renascido nas águas do Jordão, para iniciar sua missão messiânica que culminará na Páscoa.
O relato do batismo de Jesus nos situa diante de um fato histórico, mas os evangelhos não se restringem a narrar simplesmente um rito externo, e sim a experiência fundante de sua vida: sentir-se Filho amado do Pai. Por isso, cada evangelista acentua os aspectos que considera mais importantes para destacar a identidade e a missão de Jesus. A narração junto ao Jordão busca concentrar em um só momento o processo que durou toda a vida de Jesus.
O batismo de Jesus revela uma profunda experiência espiritual, muito ligada à sua atitude humilde de aproximar-se do rio Jordão, onde as pessoas simples do povo buscavam, no batismo de João, uma purificação de suas vidas.
Jesus “desce” ao Jordão, gesto que condensa sua descida do céu à terra, sua “kénosis”, a radicalização de sua Encarnação. É uma “descida” às águas da humanidade
Nesse sentido, o batismo é a prova de da verdadeira humanidade de Jesus; Ele “desce” ao Jordão, submerge na vida e na condição humana e ali faz a experiência de ser conduzido pelo Espírito em favor da humanização de todos. Ao “entrar na fila dos pecadores” Jesus descobre novos rostos, novos dramas, novas histórias... e se deixa empapar (banhar) por esta realidade carente de sentido e de horizontes. Ao conectar-se com esta realidade, Jesus começa a ver tudo a partir de um horizonte diferente, no qual cabem outras possibilidades e outras responsabilidades. Descobre uma perspectiva mais ampla que o ajuda a formular melhor o sentido de seu chamado e de sua própria missão.
Ao descer às margens do Jordão, Jesus rompeu com a “normalidade” de sua vida cotidiana, deslocou-se para as margens da humanidade, rompeu fronteiras, abriu os olhos a uma realidade mais instigante e desafiadora. Ao mesmo tempo, no Batismo, Jesus se compreendeu a si mesmo, compreendeu sua missão, compreendeu sua relação com o Pai e com os homens. E compreendeu até o sentido de sua própria morte.
“Sua vida começou a ter um novo sentido”. Porque também Jesus precisou descobrir o “porquê e o “para quê” de sua vida, a partir de sua condição humana.
Jesus, ao saber-se e sentir-se amado infinitamente por um Pai que o chama de “Filho amado”, descobre em si o eixo de seu equilíbrio vital. O amor que experimenta na experiência de seu Batismo se transforma em chamado vocacional, em investidura para uma missão universal e libertadora.
Cessa o tempo da espera, abre-se o céu, escuta-se a voz. E aquele Homem, equilibrado pelo Amor experimentado em seu interior, começa a transformar as mentes e corações desequilibrados por falsas religiosidades que alimentavam temor e submissão. Jesus começa a ativar o equilíbrio em todas as pessoas, libertando-as, com a autoridade que o Espírito lhe conferia, de cargas desumanas e injustas que as desequilibravam: a culpa doentia, a enfermidade, a exploração, a miséria, o legalismo, o moralismo...
Todos estamos de acordo que a primeira experiência humanizadora é a do amor: amar e de sentir-se amado. Isso nos dá segurança e equilíbrio interno como pessoas.
Aqui está a experiência vital de Jesus, onde alcança o equilíbrio entre aquilo que pensa e sente com aquilo que recebe e acolhe em seu interior: “Filho amado, complacência do Pai”.
Sua experiência interior, no batismo, é tão potente que transforma para sempre o modo de entender e viver sua relação com o Pai. Jesus, frente a uma religião centrada na lei e no rito, estabelece uma linha de comunicação (céu aberto) direta de toda pessoa com Deus e Pai, sem necessidade de intermediários e sem necessidade de oferecer “sacrifícios” para “pressioná-lo” em favor próprio.
Jesus acolhe a filiação que lhe é revelada através da voz amorosa do Pai e, também de igual maneira, acolhe o Espírito que lhe dá a força para a missão, a grande tarefa do Reino: equilíbrio entre diálogo com Deus e e compromisso em favor da vida (isso será confirmado pela sua experiência de discernimento no deserto).
A festa do batismo de Jesus, portanto, é uma ocasião especial para retomar nosso batismo, um convite permanente a relançar-nos em Sua aventura, a deixar-nos invadir pelo Seu Espírito, a comprometer-nos com Seu Reino. Na vivência cristã, nosso maior risco é o esquecimento de Jesus e o descuido de seu Espírito. É preciso voltar às fontes, à raiz, recuperar o Evangelho em toda sua pureza e verdade, deixar-nos batizar pelo Espírito de Jesus. Se não nos deixamos reavivar e recriar por esse Espírito, nós cristãos não teremos nada importante a contribuir com a sociedade atual, tão vazia de interioridade, tão incapaz para o amor solidário e tão carente de esperança.
A pergunta para nós, seguidores(as) de Jesus, poderia ser esta: acolhemos o dinamismo despertado pelo batismo e que se expressa como capacidade de encontro com Deus e com Seu amor, para ir criando equilíbrio nos ambientes por onde transitamos ou nos fazemos presentes?
A mesma “voz interior” de Deus, ouvida por Jesus no seu batismo, tem ressonância em nosso interior, marca e define nossa identidade cristã; aqui está, em sua raiz, o que dará equilíbrio à nossa existência, entendida como experiência profunda de sentir-nos amados(as) por Deus Pai/Mãe.
O que o Pai diz a Jesus também nos diz a todos e a cada um em particular: “Tu és o(a) meu(minha) filho(a) amado(a), em ti ponho o meu bem-querer”.
Para isso, é preciso submergir-nos continuamente nas águas do nosso “jordão” interno; a água nos acompanha e nos convida a entrar, a soltar, a escutar. De um lado, o rio, o movimento das águas, que recorda a do Jordão do qual todos procedemos, porque ali surgiu um projeto que evolui em nós.
Do outro, a fila das pessoas, com suas vidas, suas dores e amores, suas paixões e rotinas..., com suas infinitas possibilidades ainda latentes, ou estancadas em seus medos paralisantes.
Nascemos do cosmos, da água... Sem água pura, sem vento, sem terra e sem fogo, sem estrelas do céu, não podemos nascer... Da terra com água brotamos; sem batismo de água (de mundo) não somos humanos.
Não nos batizamos se não deixamos que Deus nos mergulhe nas águas de Sua Vida, de tal maneira que n’Ela vivemos, crescemos, nos movemos e somos, como Jesus.
Não há batismo se esse renascer em e por Deus (como Jesus), pelo Espírito, não nos coloca, como “Ele”, a serviço da Vida, que é a saúde e salvação de todos, a fraternidade na justiça, em gesto de amor ativo, de compromisso pela liberdade, de entrega pela chegada do Reino...
Texto bíblico: Mc 1,7-11
Oração: Ao “descer” junto às margens do nosso Jordão, podemos atingir experiências imprevistas e surpreendentes, ou reconhecer, através do murmúrio das águas, “vozes novas” que nos incitam a peregrinar para as regiões desconhecidas do nosso próprio interior. Só assim, poderemos vislumbrar o outro lado e tocar as raízes mais profundas que dão sentido e consistência ao nosso viver.
- Re-cor-dar (lembrar com o coração) dimensões da vida que precisam ser ampliadas a partir da vivência do batismo. Recordar medos, entraves, obstáculos... que limitam sua vivência batismal.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
07.01.2020
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Neste primeiro domingo de 2021, ouvimos a boa nova da Comunidade de Mateus (2,1-12). É tempo de esperançar: por mais distante que Deus possa nos parecer, sempre haverá um caminho para seguir ao Seu encontro... Estrelas e sonhos, céus abertos, noites claras, dunas infinitas, trilhas e desertos... Deus nos faz ser e respirar! Ele quer ser encontrado na periferia e não no centro, manifesta-se em uma casa e não no templo, se oferece pequeno em Belém e não grande, em Jerusalém!
Muitas são suas manifestações (em grego, epifania), embora no Evangelho se mostre na contramão dos que detém o poder! Está oculto aos que se julgam merecedores e escolhidos. Para reconhecê-lo é preciso abrir os olhos e o coração, mesmo que os Herodes de plantão venham a se opor, retardando o encontro ou desviando o caminho... Jamais poderão impedir sua revelação: Ele resplandecerá de qualquer maneira. Mesmo que se apresente tão pequeno, tão fraco, como uma criança!
Nesta festa em que celebramos a salvação universal, dirigida a toda humanidade, muito temos a aprender com esses sábios do Oriente, peregrinos que representam os buscadores de hoje, gente de coração e olhar puros que sabem ler os sinais de Deus, sejam eles a estrela que desponta ou o sonho que desvela, uma e outro indicadores de caminhos novos, insuspeitos, renovados.
Acompanhemos seus passos! O primeiro é saber sair da caixa, da casa, do conforto... Abrir-se para outro, o novo, olhando além do costumeiro e seguro, correr atrás de um sonho, seguir a intuição do coração! Assumir que somos seres do desejo (desiderato, do latim, vem de sidere, raiz de sideral, caminho das estrelas)! O segundo passo é pôr-se a caminhar. Não basta sonhar e desejar... Para conhecer o Senhor é necessário viajar, com inteligência e coração e não como quem faz turismo. Arriscar-se, tentar, de tradição para tradição, de livro para livro, de pessoa para pessoa. Caminhar, mesmo nas noites escuras e nos desertos da vida... Assim, estaremos vivos.
O terceiro passo: olhar juntos. Os Magos representam um pequeno grupo que olha na mesma direção, olha para o céu e para os olhos das criaturas, estão atentos às estrelas e atentos uns aos outros. Contemplar a amplitude e a profundidade de tudo! O quarto passo: não temer erros. E como erraram estes sábios! Chegam na cidade errada; perguntam sobre o novo para um decadente rei, falam sobre a criança com um tirano disposto a matar recém-nascidos; perdem a estrela e o rumo, procuram um rei e encontram uma criança nos braços de sua mãe, imaginam um trono e contemplam um colo... Erram muito, no entanto, não cedem aos seus erros, eles têm paciência para começar novamente, até que ao reencontrar a estrela que os guiara, podem sentir uma verdadeira e grande alegria.
A razão da alegria vai além da estrela: na casa (não no templo; na periferia e não no centro) eles veem a criança e sua mãe... Da estrela no céu eles contemplam a Luz que ilumina toda vida: não só Deus é como nós, não só ele está conosco, mas ele é pequeno entre nós! Manifesta-se a estrela de Davi: o rebento que germina, um menino que nos foi dado. Os Magos e, com eles, a toda humanidade, orientam para aquele Menino toda a sua vida: este é verdadeiro significado do verbo “adorar”! Esta adoração pessoal é o verdadeiro culto que podemos prestar, o efetivo presente que podemos oferecer.
Eis um autêntico modelo de adoração! Estes sábios sabem olhar o cosmos até o fundo, captar sinais, aproximar-se do Mistério e ofertar sua humilde homenagem a esse Deus encarnado na nossa existência. Como sabemos, desde Irineu de Lion (130-203), o ouro simboliza a realeza, o incenso a divindade, e a mirra a morte e o sepultamento. Presentes que significam não somente a identidade do Menino Deus (Rei, Divino e Humano), mas a própria vida (jornada) dos sábios: ofertando sua realidade, seu culto e sua fragilidade para ser tocadas e transfiguradas por Deus.
Também todos nós podemos oferecer nossa vocação de reis/rainhas (ouro), sacerdotes/sacerdotisas (incenso) e profetas e profetizas (mirra) para participar do Reino do Filho de Maria! Esta adoração a Deus não afasta do compromisso, não aliena da existência. Quem adora Deus, luta contra tudo o que destrói o ser humano, que é a Sua “imagem sagrada”. Quem adora o Criador respeita e defende a sua criação. Na adoração unem-se intimamente a solidariedade e o cuidado com a casa comum. “Quanto mais o ser humano se humaniza, mais experimentará a necessidade de adorar” (Teilhard de Chardin)
Por fim, neste pequeno relato, com traços de síntese de todo Evangelho, já antevemos a rejeição de Jesus pelas autoridades (Mateus27,32-44) na perturbação vivida por Herodes e toda Jerusalém com a visita dos magos (Mateus 2,3) e a alegria das mulheres, antes de verem o Senhor Ressuscitado (Mateus 28,8) antecipada na alegre experiência dos magos ao ver novamente a estrela (Mateus 2,10); como também, o inútil domínio das Escrituras por parte dos “sacerdotes e escribas do povo”, que sabem a verdade acerca do Messias, mas são incapazes de reconhece-Lo em Belém (Mateus 2,4-6).
O último passo é o retorno (conversão) inspirado em sonhos: “por outra estrada regressaram à sua terra” (Mateus 2,12). Quem viu o que os Magos viram, quem encontrou o que eles encontraram, quem experimentou o que eles experimentaram, quem viu e contemplou Jesus, já não pode mais limitar-se a continuar andando por caminhos velhos. Terá mesmo que abrir um caminho novo: voltar para o oriente (onde nasce o sol) sem passar pelo palácio (templo) do rei em Jerusalém... Deixar Belém, casa do Pão, alimentados de luz, caminhar sempre em direção à Luz que nasce, sem se deixar enganar pelas falsas luminárias do poder estabelecido.
Eis o convite que nos é feito hoje, festa das manifestações de Deus a todas as nações: que as comunidades cristãs pratiquem o acolhimento e à abertura; a coragem de ler os sinais de Deus e pôr-se a caminho; não temer a escuridão e pacientemente acolher os erros e aprender com eles; reconhecer Deus que vem ao nosso encontro na fragilidade de nossa história e na pequenez de uma criança. Encher-se da verdadeira alegria que nos faz enxergar além das aparências e transparências. Amém!
Pe. Paulo Roberto Rodrigues
Festa de Basílio Magno e Gregório de Nazianzo, 03 de janeiro de 2021
"Nós vimos a sua estrela no Oriente e viemos adorá-lo” (Mt 2,2)
A festa da Epifania é a mais antiga que se conhece. Era a única festa de Natal celebrada em toda a Igreja, até que no Ocidente passou a ser celebrada no dia 25 de dezembro. A palavra “epifania” significa, em grego, “manifestação”, referindo-se sobretudo à primeira claridade da manhã, antes do nascer do sol. Depois passou a significar a “manifestação” de Deus a todos os povos, pois Ele inunda com sua Luz todos os recantos escuros de nossa existência.
Mais uma vez a Epifania grita para que nos levantemos e, iluminados pela Luz do Nascimento de Jesus, sejamos espelhos que refletem essa mesma Luz, iluminando toda a realidade envolta em trevas.
Tanto no nível pessoal como comunitário, sejamos luz do mundo, e não nos cansemos de proclamar a todos que nosso Deus se manifesta nas coisas simples e palpáveis, próximas: como um menino que nasce, ou como uma expressão infantil de assombro e surpresa frente ao diferente, ou como cada um dos gestos que podemos e devemos fazer para abrir espaço ao Deus da Vida e àqueles que, como novos “magos”, vêm ao nosso encontro...
A celebração da Epifania nos lança para além dos estreitos limites de qualquer instituição religiosa, de todo dogmatismo, fanatismo e intolerância... Deus se manifesta sempre a todos os povos e em todas as épocas. Todos os homens e mulheres estão sob a mesma mão providente de Deus. No momento em que nos sentimos privilegiados por Deus, fazemos a mensagem desta festa virar pó. Todos recebemos tudo de Deus e todos temos a obrigação de aprender e ensinar uns aos outros; todos temos a nobre missão de acender uma luz, em lugar de maldizer as trevas; todos temos uma estrela a nos guiar até à fonte da verdadeira Luz.
Aqui não se trata de buscar, no relato da Epifania, um fundo histórico, no sentido moderno da palavra. O importante não é o que está por “detrás” da narração, mas o que nela se manifesta, a saber: os sábios do oriente representam a humanidade em busca de paz, verdade e justiça; representam a aspiração profunda do espírito humano, a marcha das religiões, da ciência e da razão humana ao encontro de Cristo.
O caminho dos magos que buscam o Menino Jesus é o caminho de todos os homens e mulheres, de todas as raças e religiões... O Jesus de Belém está sempre disposto a receber o ouro da cultura dos povos, o incenso de todas as expressões religiosas, a mirra de todas as dores.
Os Magos do Oriente são o símbolo de tantos homens e mulheres que, em qualquer parte do mundo, a partir de outras sendas e tradições espirituais, se perguntam, buscam e caminham.
Uma lenda os apresenta como um rei jovem, outro ancião e outro negro, querendo significar que a humanidade toda é mobilizada a “fazer-se caminho”.
Nesse percurso, os Magos escutam outras palavras e sinais, aprendem a filtrar aquilo que “ajuda para o fim” e a não seguir qualquer conselho. Herodes e os escribas estarão sempre presentes e ameaçam reaparecer antes, durante e depois do encontro com o Menino.
E toda viagem que culmina na manjedoura, é ponto de partida para novos caminhos.
O ícone bíblico do relato dos Magos ilustra o risco do fechamento em nós mesmos, de enredar-nos nas armadilhas da nossa própria inteligência, ou de petrificar-nos em nossas sacralidades doutrinárias e legais. Isso se manifesta como rigidez para a mudança, a intensa necessidade de manter a própria imagem, a resistência em aceitar coisas novas que rompam nosso frágil equilíbrio ou os limites da nossa vontade...
A experiência da Epifania supõe uma capacidade de encontro e de escuta de Alguém que chama, uma atenção especial para distinguir vozes diferentes da própria voz, uma sensibilidade para escutar os gritos de nosso mundo e para receber a palavra da comunidade cristã.
O Deus, escondido na fragilidade humana, não é encontrado naqueles que vivem encastelados em seu poder ou fechados em sua segurança religiosa. Ele se revela àqueles que, guiados por pequenas luzes, buscam incansavelmente uma esperança para o ser humano, na ternura e na pobreza da vida.
A viagem dos Magos se torna, assim, o símbolo da vida cristã, entendida como seguimento, como discipulado, como busca.
A viagem exige desapego, coragem, movimento, esperança. Quem está prêso à terra pelo peso das coisas, pelos apegos, pelos egoísmos, não é capaz de se tornar peregrino. Não pode peregrinar aquele que não se dispõe sinceramente a ultrapassar as fronteiras e os esquemas pré-concebidos que muitas vezes lhe fecham e lhe dão segurança. Isto não o deixa livre para encontrar o Deus da Vida que se manifesta.
Quem está convencido de possuir tudo, inclusive o monopólio da verdade, não tem a gana da busca
contínua; é semelhante aos sacerdotes de Jerusalém, frios exegetas de uma Palavra que não os atrai nem converte. Quem está bem instalado na cidade não precisa ir a Belém; ao contrário, Belém se reduz a um insignificante vilarejo de província.
Quando aprende a aceitar e amar a sua própria viagem, novamente a estrela surgirá à sua frente, indicando o sentido de sua existência e mantendo acesa a chama da busca inspiradora.
Os “magos” somos todos. Esta é a festa do Deus que atrai a todos em seu amor. Quando parece que tudo está definitivamente fechado vem os Magos para abrir as portas da vida. Quando parece que o céu está escuro, brilha uma estrela para aqueles que querem continuar caminhando.
O Menino Jesus, Messias de Deus, não está fechado no templo e na estrutura religiosa, mas é coração aberto em Belém para todos os que dele se aproximam. Não é rei que impõe seu direito, mas criança necessitada, nos braços de sua mãe. Não é sacerdote que controla a sacralidade divina a partir do tabernáculo do tempo, mas menino ameaçado que se faz imigrante, assumindo assim a história de todos os excluídos.
Nós somos “magos” para anunciar a todos que há estrelas que apontam para a Gruta onde um Menino é acolhido, na rota da vida, que continua sempre aberta. Devemos mobilizar a todos para criar um mundo onde nenhum menino-Deus morra abandonado.
Somos “magos” quando experimentamos e anunciamos que a vida é um dom, que o ouro do mundo é um presente para todos os homens e mulheres, que os bens da terra estão a serviço da vida, que toda riqueza é para ser compartilhada para o bem de todos.
Somos “magos” quando temos de dizer a todos, com nosso exemplo, que a vida é prazer e glória, é incenso de admiração e de ternura, de intimidade orante e de proximidade. É preciso proclamar que não buscamos a glória do poder, a vitória da imposição, o incenso da mentira, mas buscamos e compartilhamos o incenso do amor que pode ser celebrado na intimidade da família, nas relações pessoais e sociais, no compromisso solidário. Diremos que sempre haverá um perfume ao nosso lado, ao lado de todos os homens e mulheres que poderão festejar, sonhar...
Somos “magos” quando revelamos que a vida é feita também de mirra. Somos todos “mirróforos(as)”, portadores do perfume, para levar o agradável odor em meio aos ambientes fétidos de ódio, intolerância e violência. A mirra é o perfume de amor, mas também é o bálsamo da morte. A mirra é como uma flor preciosa que pode nos acompanhar na vida, no crescimento de cada dia, na comunhão com os outros, na tristeza e na esperança de cada despedida.
Que cada morte seja tempo de amor, esperança de amor e não fruto da violência.
Enfim, a Epifania nos destrava e nos coloca a caminho, seguindo as “pegadas” dos Magos, fazendo opções, usando desvios, lançando-nos pessoalmente a ações concretas..., movidos pela experiência de encontro com a Vida, no despojamento de uma Gruta.
Texto bíblico: Mt 2,1-12
Na oração: Às vezes tenho de me deter na vida, como os magos, para pensar e sempre me perguntar: onde estou? Em quê momento da vida me encontro? A quê estrela sigo? Meu caminho tem coração?... É a arte do discernimento.
A Graça também me precede, me acompanha sempre e libera meus melhores recursos e minha inteligência para abrir-me ao novo, a abertura que permite reconhecer o “Mistério” e deixar-me inspirar por Ele.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
02.02.2020
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“Tendo-o visto, contaram o que lhes fora dito sobre o menino” (Lc 2,17)
“Vede que realizo algo novo; já está brotando, e vós não percebeis?” (Is 43,19)
Foi essa a experiência vivida pelos pastores quando se deslocaram até à Gruta de Belém: viram a “eterna Novidade de Deus” revelada no rosto de um recém-nascido; é do interior de uma gruta que surge um novo tempo, um novo modo de viver, uma nova maneira de olhar as pessoas e a realidade, um novo compromisso... enfim, uma nova humanidade.
Podemos imaginar o momento do primeiro olhar dos pastores no encontro com o Menino Jesus... Surpresa, espanto, comoção, gratidão, alegria…!
Naqueles olhos que se entrelaçam e se contemplam mutuamente, descobre-se o novo olhar de Deus sobre o ser humano, e o novo olhar do ser humano sobre Deus e sobre os irmãos. Deveríamos, ao longo deste novo ano que se inicia, situar-nos diante de Deus desse modo, com mais freqüência, deixando os olhos, os d’Ele e os nossos, se falarem silenciosamente.
O cristão é aquele que conserva límpido os seus olhos interiores, prontos para perceber a maravilha que está sendo gestada em sua vida e ao seu redor. Movido por um olhar novo, ele acolhe a surpresa de Deus, passa a ser surpresa para os outros, com seu gesto de amor imprevisto, com sua palavra que reanima, com sua visita que consola, com sua atenção para com todos os que levam uma vida obscura e monótona.
Nesse “estado interior”, tudo é sempre novo. “Eis que faço novas todas as coisas” (Ap 21,5). Não se trata da ação de um Deus que intervém a partir de fora, mas do reconhecimento de que, sempre e em todo momento, tudo é novo, pois “Deus é Presença” em tudo e em todos. Mas só pode saborear isso quem sai do nível da superficialidade, na qual está hipnotizado ou enfeitiçado pelas exigências do próprio ego, e se situa naquela dimensão profunda que é essa mesma Presença.
A capacidade de assombro dos pastores pode ser uma boa disposição para iniciar o Ano Novo. O contrário do assombro é a rotina; o “eu já sei” ou “sempre foi assim” nos faz imunes ao milagre cotidiano da vida e seus sinais. Precisamos continuar aprendendo a olhar com profundidade a realidade em seus gestos peque-nos e dirigir nossa atenção para aquilo que, muitas vezes, nossa lógica racional, invisibiliza ou despreza. Talvez, só assim entraremos em sintonia com o mistério do Amor que tudo habita e faz tudo novo.
A maior “novidade” que ninguém podia esperar é colocada nas mãos dos pobres e simples, aqueles que nunca tiveram uma oportunidade de serem escutados e valorizados. Mas, surpreendentemente, serão eles os mensageiros autorizados da transmissão da Novidade de Deus.
Aqueles pastores, surpreendidos em meio ao trabalho, são convidados a sair, a deixar sua cotidianidade para abrir-se à novidade de um Deus que irrompe em suas vidas para transformá-las. Ao chegar no lugar onde estão Maria, José e o recém-nascido, imediatamente eles os reconhecem e sua alegria se converte em proclamação entusiasta daquilo que viram e ouviram. Seu anúncio é tão convincente que todos aqueles que os ouvem ficam impactados por seu testemunho.
Aquela noite, à margem dos grandes centros e dos interesses humanos de poder e vaidade, revelou-se como uma noite cheia de “encontros e conexões”, onde deu-se início a uma nova rede de comunicação acessível a todo aquele que, de boa vontade, deseja entrar nela. É um sistema protegido pelo Espírito do Senhor, de alta fidelidade, que nunca cai, mas que é preciso entrar nele livre de vírus: do ódio, da intolerância, do preconceito, da busca de poder, vaidade...
A imagem dos pastores pede de todos nós uma atitude de abertura e de deslocamento frente ao outro, o que implica colocar-nos em seu lugar, deixar-nos questionar e desinstalar por ele... Importa, pois, redescobrir com urgência o encontro humanizador como valor ético e como hábito permanente de vida. Somos chamados a viver o encontro como um estilo de vida, fundado no encontro de Deus com a humanidade.
O encontro, que nos faz sair de nós mesmos, nasce da compaixão e nos leva a reconhecer no outro uma dignidade e uma capacidade criativa para superar toda divisão e conflito
A experiência da Gruta, lugar onde se visibiliza o “novo” de Deus, nos mobiliza a levar adiante a missão, a ir aos lugares do mundo onde há mais necessidade e ali realizar obras duradouras de maior proveito e fruto.
Esta é a dura contradição que estamos vivendo neste início de ano: se, estar separados fisicamente de nossos seres queridos e vizinhos é o mais eficaz para combater a pandemia, precisamos, então, buscar outras expressões de proximidade para que essa distância não se converta em ecossistema e modo de vida. A distância sanitária não pode servir de cortina de fumaça para reforçar outras distâncias que se abrem diante de nós, no campo social-político-religioso-cultural...
Não podemos deixar que o mistério natalino se dilua em meio às distâncias artificiais que desumanizam. Hoje, mais do que nunca, devemos celebrar e recordar que juntos, orientados pela Luz que procede de uma Gruta, poderemos enfrentar, com criatividade, toda e qualquer crise que nos venha. Talvez, esta pandemia nos oferece uma ótima oportunidade para crer e viver isso, de verdade: de transformar declarações ocas em atos sólidos, de resumir tudo o que é a humanidade numa só palavra: proximidade.
Proximidade com aqueles que sofrem, com aqueles que buscam um mundo melhor, com aqueles que estão à frente no combate à pandemia, com aqueles que foram excluídos... Em meio a um mundo onde a distância e a suspeita crescem e se enraízam, a solidariedade é a alternativa de proximidade e colaboração que todos precisamos. O mundo precisa de místicos(as) que descubram onde está Deus criando algo novo, para proclamar esta boa notícia.
À luz da Gruta de Belém podemos afirmar: fisicamente distanciados é quando nos sentimos mais próximos.
Para realizar esta nobre missão, não podemos permanecer sentados. Seguir Aquele que nasceu nas periferias da humanidade exige de nós uma dinâmica continuada, um colocar-nos a caminho em direção às margens. Não podemos nos situar diante da Gruta da Vida a partir de uma cômoda instalação pessoal. A disponibilidade, o despojamento e a mobilidade são exigências básicas.
Como seguidores(as) de Jesus, nosso desafio não é fugir da realidade, mas aproximarmos dela com todos os nossos sentidos bem abertos para olhar e contemplar, escutar e acolher, percebendo no mais profundo dela a presença ativa do Deus que nos ama com criatividade infinita.
Neste dia, fazemos memória dos humildes pastores que se deslocam para uma gruta e vivem um encontro surpreendente; eles se fazem próximos d’Aquele que tomou iniciativa para se aproximar de toda a humanidade. Tal mistério deve nos inspira a provocar encontros e diálogos que ajudem a integrar, a reunir, a religar, a articular o tecido comunitário. Há tantas vidas esparramadas, isoladas, rejeitadas... esperando por sinergia. Na verdade, o Nascimento de Jesus provocou as pessoas a saírem de seu isolamento e padrões alienados de relacionamento para se expandir em direção a uma nova forma relacional com tudo o que existe; tal relação é a concretização do sonho do “Reino de Deus”.
Texto bíblico: Lc 2,16-21
Na oração: entrar na Gruta requer uma atitude de reverência para deixar-se impactar pelo Deus “que se faz sempre Novo” e que nos move a sonhar e construir o “novo” na nossa história.
- qual é o “novo” que você está vislumbrando no seu horizonte pessoal, social, familiar, eclesial...?
A partir deste humilde espaço por onde flui minhas reflexões dominicais,
deixo ressoar a expressão: “feliz Tempo Novo de Deus!”.
Se conseguirmos que 2021 seja “novo” com a eterna novidade do amor e da bondade,
então também teremos um ano feliz.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
30.12.2020
Imagem: Gerrit Van Honthorst - The adoration of the shepherds
Chegamos ao Natal! Em muitos persiste um sentimento de estranheza: momentos de isolamento, incerteza de confraternizações, impaciência diante dos decretos de cuidados sanitários, uma epidemia em anunciado crescimento... O que fazer? Como viver este tempo? Para cristãos ou não, o Natal pode ser um momento de intimidade, possibilidade de degustar afetos, celebrar a vida em grupo, ocasião de gratuidade: de se sentir amado, de estar juntos, de receber e dar atenção, olhares e palavras trocados na alegria e de dizer sim à vida.
É o que proclamamos na aventura de ser cristãos e cristãs: Deus está conosco, vem para participar da vida e isto é festa para nós! Não um espetáculo nem entretenimento! É uma boa notícia: uma realidade que transforma a nossa vida! Assim proclama Lucas (2,22-40): um casal muito jovem e um recém-nascido vão à Cidade Santa para oferecer, em agradecimento, a pobre oferta dos pobres (duas pombas) e seu bem mais precioso: uma criança! Eles vão para a casa de Deus, mas é o Senhor que virá ao seu encontro através de duas criaturas mergulhadas na vida e no espírito, dois anciãos, Simeão e Ana, olhos cansados da velhice e jovens corações para desejar: a velhice do mundo acolhe em seus braços a juventude eterna de Deus!
Neste encontro ocorre a verdadeira liturgia: no pátio aberto a todos, Simeão toma Jesus em seus braços e abençoa a Deus, Ana espalha o louvor e espalha entre a multidão presente uma onda de esperança. Um leigo faz o gesto sacerdotal, uma leiga guiada pelo Espírito Santo começa a bendizer a criança e a Deus: uma liturgia autêntica, possível para todos e em todos os tempos. Um ancião e uma ancião, cheios de esperança, revelam espiritualidade: a bênção não é um encargo da elite, mas uma exuberância de alegria que todos podem oferecer a Deus.
Maria e José também são abençoados; toda a família está envolta em um véu de luz para o louvor e a profecia daquele casal de anciãos leigos, formando uma ampla família, profética e sacerdotal ao mesmo tempo: bênção e profecia não são propriedade exclusiva de oficiais religiosos, é dom de Deus e é oferecido no pátio aberto a todos. O Espírito havia revelado a Simeão que não morreria sem antes ver o Messias. Palavras que são para mim e para você: não morreremos sem ter visto a inciativa de Deus, a iniciativa da luz já está presente em todos os lugares, num recém-nascido, numa semente lançada na terra, na levedura do fermento na massa!
Simeão diz três palavras imensas sobre Jesus: ele está aqui como queda, ressurreição, como um sinal de contradição. Jesus provoca a queda de nossos pequenos ou grandes ídolos, ruína do nosso mundo de máscaras e mentiras, de vida insuficiente e doente. Ele veio para arruinar tudo o que arruína o ser humano, para trazer espada e fogo para cortar e queimar o que é contra a vida. Ele está aqui para a ressurreição: é a força que nos faz levantar quando imaginamos que tudo está acabado, que nos faz sair mesmo que sintamo-nos vazios e envoltos pela escuridão. Jesus está aqui e garante que viver é a experimentar a paciência infinita de recomeçar. Cristo contradiz nosso equilíbrio ilusório entre dar e ter; que contradiz toda a nossa mediocridade, todos os nossos equívocos sobre Deus.
A figura de Ana enfatiza o papel feminino na nova aliança, está junto com Maria, irmã de Moisés e Aarão (Êxodo 15,20), Débora (Juízes 4,4), Hulda (2Reis 22,14), a esposa de Isaías (Isaías 8,3). Mulheres que, além de Isabel e Maria, são capazes de encantar-se na frente de um recém-nascido porque sentem Deus como cumpridor das promessas, aliado dos pequenos e marginalizados. Sua presença testemunha a divina misericórdia e alimenta em todos nós a esperança de consolo e libertação.
Neste primeiro domingo após o Natal, portanto, a Igreja nos convida-nos a contemplar a Família de Nazaré, caminhando de Belém a Jerusalém. Mostra-nos o encontro desta pequena família com Simeão e Ana, ajudando-nos a perceber que o sagrado se manifesta na grande família dos que esperam em Deus. O centro deste acontecimento é Jesus. Ele é aquele que aproxima as gerações. Jesus é a fonte daquele amor que une as famílias e as pessoas, vencendo cada divisão, cada isolamento, cada distanciamento.
Possamos todos vivenciar esta experiência sagrada de viver o Natal, se não na companhia de todos aqueles que gostaríamos de ter ao nosso lado, pelo menos com os nossos entes queridos, com aqueles que moram conosco. Numa refeição preparada com amor, compartilhada na alegria, que possa significar: “Eu me sinto bem com vocês”; “Vocês são importantes para mim”. E na partilha de presentes, possamos reconhecer que estamos presentes e desejamos ser presença uns para os outros. Viveremos a antiguidade dos sentidos na juventude eterna de Deus. Amém!
Pe. Paulo Roberto Rodrigues
27.12.2020 - Festa de são João Evangelista
Imagem: Rupinik
“Maria e José levaram Jesus a Jerusalém, a fim de apresentá-lo ao Senhor” (Lc 2,22)
É profundamente inspirador que a liturgia cristã uma intimamente estas duas realidades: família e Natal. Nestes dias, todas as pessoas, mesmo que a situação sanitária não permita, tem a instintiva necessidade de agrupar-se, encontrar-se e celebrar. Brota em todos nós uma compaixão solidária para com aqueles que, no tempo natalino, não tem com quem compartilhar. Natal e solidão são conceitos contraditórios.
Naquela noite de Belém, Deus não só se humanizou, mas entrou em uma família humana; “Deus se fez família”. Com sua presença, diviniza a família. E toda família é divina se é verdadeiramente humana.
A família de Nazaré é a escola do Filho do Homem, rodeado de gente comum, com sua paisagem natal, como um entre tantos; sua linguagem, seu modo pessoal, sua conduta, sua fé...
Para Jesus, Nazaré é um tempo de aprendizagem: observar o que acontece ao seu redor: cala, vê, escuta nesta escola. Exercício de preparação diante das urgências do Reino. “Tempo de guardar no coração”.
Sabemos muito da vida pública de Jesus: nazareno, filho de um carpinteiro, pobre, livre, compassivo, comprometido com a vidar, que fazia milagres e falava com uma autoridade inegável, que anunciava a utopia do Reino, que logo foi crucificado como o pior dos criminosos, e cujos seguidores asseguraram que tinha ressuscitado... Não podemos negar que Ele mudou a história da humanidade.
Mas, antes de tudo isto, houve 30 anos de vida desconhecida, escondida, silenciosa.
Temos poucos dados sobre grande parte de sua vida no seio de uma família humilde em Nazaré, um povoado que não gozava de boa fama. Assim viveu Jesus, aprendendo a ser humano na escola da família e da comunidade. Se não entendemos que Jesus foi plenamente humano é que não aceitamos a encarnação.
Mas, há algo que podemos trazer à luz daqueles 30 anos “ocultos”: que na lentidão do dia-a-dia, da monotonia e do lar, Deus preparava o caminho. Pouco a pouco, a fogo brando. Em meio à rotina de uma vida simples, Jesus foi fazendo-se perguntas, esperando as respostas, ouvindo o que seu coração lhe dizia e discernindo o que o Pai queria dele. Ano após ano, em um pequeno lugar, detrás de uma vida que nada tinha de diferente das outras vidas. Até que chegou o momento de Deus.
Cozinhar a fogo lento é bem difícil neste mundo de pressas e imediatismos. E hoje, mais do que nunca, se fazem necessários os “tempos de Nazaré”, esses tempos de aparente rotina nos quais se alimentam os sonhos, onde se forjam as vontades, se domam as impaciências, se aclaram os caminhos, se discerne a Voz, se dissipam as névoas do caminho... Em definitiva, esse tempo onde nosso canto e o de Deus se afinam juntos para formar uma única melodia e fazê-la soar no mundo.
As grandes histórias são tecidas na trama do cotidiano; os “tempos” de Deus não são os da eficácia, da produção, do ritmo estressante... Também são os tempos do silêncio, da rotina inspirada e da aprendizagem silenciosa. Todo crescimento pessoal demanda previamente tempo, ritmo, reconhecimento e aceitação da própria verdade, sólidos fundamentos sobre os quais podemos construir nossa pessoa.
Jesus desenvolveu sua vida humana como qualquer outro ser humano. Como homem, precisou passar pelo processo do amadurecimento lento, lançando mão de todos os recursos que encontrou em seu próprio interior e ao seu redor. Foi um homem inquieto que passou a vida buscando, procurando descobrir quem ele era em seu ser mais profundo. Sua experiência pessoal o levou a descobrir onde o Espírito do Pai estava fazendo brotar o “novo” da Salvação, e entrou por esse caminho de libertação.
Jesus, no cotidiano familiar, nos revela que Ele é o homem das “grandes sínteses”: entre o particular e o universal, entre o Deus da intimidade e os irmãos da convivialidade, entre os momentos de cuidado de si e as ocasiões de solidariedade, entre sua interioridade e sua abertura a todos sem restrição, entre ação e contemplação...
Jesus mesmo foi este personagem instigante, que fez brilhar a “novidade” de Deus nas vilas e campos da Palestina. Ele nos fala de “sínteses” com o vigor de alguém que é inspirador para todos nós: Ele sintetiza a ternura de um irmão, a lucidez de um profeta e a revolução de um Messias.
Foi no cotidiano familiar que Ele aprendeu, aos poucos, a ampliar seus horizontes, seus interlocutores e o sentido de sua missão. É a vida cotidiana que nos revela que Jesus foi uma pessoa profundamente humana e humanizante, que vivenciou um processo de maturação, de releitura de suas tradições e assimilação do novo, até chegar à proposta original da Boa-Nova.
Ali, no ambiente familiar Jesus se destaca por sua docilidade, discrição, familiaridade, aprendizagem, bondade, sensibilidade, vivência da fé no Deus Providente... que aprendeu de Maria e de José.
Jesus, em Nazaré, continua sendo luminoso e inspirador para todos nós, num momento em que as transformações são rápidas e exigem de nós maturidade, aprendizado, diálogo, novas expressões de fé...
A família de Nazaré evoca o dia-a-dia do nosso seguimento de Jesus, onde os acontecimentos extraordinários são pouquíssimos. Chega um momento em que a vida cristã parece muito rotineira. Nazaré alimenta o seguimento de Jesus no cotidiano e comum da vida. Nazaré é a escola na qual aprendemos a descobrir a presença de Deus na vida “tal como ela é”, no trabalho das pessoas e nos rostos daqueles que estão ao nosso lado. No lugar onde nos cabe viver é onde o Senhor nos ama e nos convida a descobri-Lo.
São muitos os lares que vivem a dor da ruptura e separação. No entanto, a casa familiar continua sendo o lugar entranhável, a referência segura, a possibilidade restauradora.
Lar: lugar da surpresa, do novo, do desafio... onde a interação pais-filhos possibilita o desenvolvimento e amadurecimento natural de todos.
Lar: do “lugar estreito” ao “lugar amplo” onde é possível a expansão de todos.
Regado pelo amor, o lar torna-se espaço aberto ao futuro.
Mas Nazaré é também um alerta contra a rotina. Cada dia é preciso renovar o seguimento. Por isso Nazaré é o lugar da perseverança, da fidelidade, de dizer cada dia um novo “sim” ao Senhor. No cotidiano há momentos favoráveis e momentos de crise. Mas o cotidiano é a oportunidade para ampliar o olhar para a frente. Nazaré pode ser um lugar de esperança, de onde se pode vislumbrar um futuro melhor.
Nazaré evoca também a comunhão dentro da diversidade. Num pequeno povoado as pessoas são tão diferentes como numa cidade grande, mas a vulnerabilidade delas nos faz despertar a consciência da necessidade que temos uns dos outros. Numa comunidade pequena os problemas de um afetam os outros. Suas fragilidades se fazem fortes quando se apoiam mutuamente; suas solidões que se unem criam comunhão. Vivamos em nossas famílias a grandeza de sermos plenamente humanos!
Texto bíblico: Lc 2,22-40
Na oração: - descubra o significado profundo da sua vida cotidiana mais simples: trabalhos, relações, família...
O ambiente familiar, quando espaço humanizador, integra a vida cotidiana de Nazaré com os desafios de Jerusalém (família que se alarga, sai de si, se compromete, abre-se às causas humanas...)
- Como é sua família? Vive comprometida buscando uma sociedade melhor e mais humana, ou fechada exclusivamente em seus próprios interesses? Educa para a solidariedade, a paz, a sensibilidade para com os necessitados... ou só ensina a viver para o consumo insaciável, o máximo lucro e o esquecimento dos outros?
- No seu ambiente familiar cuida-se da fé, dos valores do Evangelho... ou se favorece apenas um estilo de vida superficial, sem metas nem ideais...? É espaço instigante, de crescimento, aberto ao novo e diferente... ou ambiente atrofiante, sufocante...?
Pe. Adroaldo Palaoro sj
26.12.2020
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