Deus manifesta-se em Jesus que nasce. Mas a grande pergunta é: como reconhecê-lo? Como reconhecer a passagem de Deus na nossa história? Como reconhecer a sua epifania diária? Com que gramática, de que modo ou com que guia podemos reconhecer a fantástica presença de Deus na nossa vida? Porque Deus está. Fez-se próximo da nossa carne.
O fato é que nos falta a capacidade de o reconhecer. Herodes, por exemplo, estava em melhor posição do que os magos para saber que tinha nascido o rei dos judeus. Tinha sábios na sua corte e a Escritura que dizia: «O Messias nascerá em Belém». O que é que então lhe faltava? Tinha todos os instrumentos, toda a sabedoria, todo o conhecimento, mas Jesus nasce e ele não o sabe. A notícia foi-lhe levada por forasteiros idos de longe. O que é que faltava a Herodes, e o que é que nos falta? Perguntemo-lo com franqueza.
Falta-nos a atenção. A atenção como primeiro dever espiritual. A atenção como aquele gênero de pobreza que têm aqueles que esperem, aqueles que habitam a imanência, que intuem que cada instante não é só tempo que corre, mas é o umbral de uma revelação.
D.José Tolentino Mendonça
In: imissio.net
“...estando fechadas as portas do lugar onde os discípulos se encontravam, por medo dos judeus...”
Lembremo-nos que, no domingo passado, após a Ascensão, os discípulos retornaram ao Templo de Jerusalém: “E estavam sempre no Templo, bendizendo a Deus” (Lc 24, 53). Isso quer dizer que eles ainda não estavam em movimento; eles não tinham tomado consciência de que eram habitados pelo Espírito Santo e que deviam sair do Templo para partir em missão. No entanto, em Pentecostes eles se deram conta de que deviam sair do Templo para transmitir o Sopro de vida (vento), para reunir no Amor todos os povos (fogo) e para comunicar a todos o Amor universal (línguas). A presença do Espírito rompeu os espaços atrofiados e os fez viver de portas abertas. Esta é a missão do Espírito Santo.
A Igreja, como povo de Deus, cheia de graça e de verdade, hoje se veste de festa porque está celebrando seu nascimento. Ela finca suas raízes no acontecimento de Pentecostes quando o Pai, por seu Filho, envia o Espírito da verdade e da vida à humanidade. Os discípulos receberam a força do Espírito em um contexto de debilidade e de medo. As portas estavam fechadas, no meio do mundo, por temor. E é no meio desse mundo desafiador e do medo paralisante que o Espírito rompe as portas e destranca as janelas; o que era realidade fechada e assustada se converte em comunidade “em saída”, apostólica, missionária.
O Ressuscitado cumpre a promessa definitiva: envia seu Espírito. Espírito de vida e confiança, de fortaleza e verdade, de amor e graça. É o Espírito da liberdade, que arranca as portas dos temores e das seguranças e abre as janelas para deixar entrar o vento que faz viver o risco no amor comprometido; é o Espírito do fogo que aviva a luta pela dignidade e a possibilidade da reconciliação do ser humano ferido com o Deus providente e curador, que se revela como compaixão e misericórdia; é o Espírito que torna possível outro mundo, que ativa o cuidado para com a natureza: a ecologia que se faz comunhão e se humaniza, frente ao medo da destruição do universo e daqueles que o habitam.
Com sua presença rompedora, o Espírito enche a casa onde os discípulos estavam juntos. Ele não se deixa sequestrar em certos lugares que dizemos “sagrados”. Agora “sagrada” torna-se a casa: a minha, a tua e todas as casas são o espaço privilegiado da ação Espírito. Ele vem de imprevisto, e nos apanha de surpresa, pois nem sempre estamos preparados para deixar-nos conduzir por Ele. O Espírito não suporta esquemas, rompe o que está programado, é um vento de liberdade, fonte de vida expansiva.
Um vento que sacode nossa casa, que a enche de luz e segue adiante, que traz pólens de primavera e dispersa a poeira, que traz fecundidade e dinamismo para o interior de cada um, «esse vento que faz nascer os garimpeiros de ouro» (G. Vannucci).
Vivemos um permanente Pentecostes. Quando sentimos medo é porque nos centramos em nós mesmos, nos auto-referenciamos, e a realidade nos força a buscar refúgio e proteção. Nossa fragilidade e a violência do mundo nos alarmam e buscamos segurança e conservação. Mas isso dificulta anunciar o evangelho, levar a boa notícia ao mundo e impede nossa própria realização como cristãos, pois apaga nossa criatividade e esvazia nossa presença inspiradora. Celebrar Pentecostes é acreditar que “outra igreja é possível”, que temos de superar nossos medos para construir e ser a comunidade da confiança, aquela que se arrisca na missão e no exercício da misericórdia, aquela que se descobre como fermento no meio da massa e leva a alegria do evangelho.
O medo, a obscuridade e o fechamento da “casa interior” se transformam, agora com a presença do Espírito, em paz, alegria e envio missionário. São sinais palpáveis da ação misteriosa e transformante do Espírito no interior de cada um e da comunidade.
Na vida cristã, ser espiritual faz referência ao Espírito de Deus. “Espirituais”, de algum modo, somos todos, mas a chave para deixar que essa dimensão da vida cresça está em facilitar que, dentro de nós, o Espírito de Deus tenha espaço para mover-se, ressoar e suscitar inquietações. Não se trata de que, ao habitar-nos, o Espírito nos invada. Antes, trata-se de uma convivência que potencia o melhor de nós mesmos, que faz que a solidão seja habitada e mantém os sentidos muito mais alerta.
O Espírito ressoa na oração, na atividade, ao ver o noticiário, ao dar um abraço, ao ler um livro, em uma canção, ao contemplar um quadro, fazendo um passeio, escutando alguém que nos fala de sua vida... Ressoa na história e na imaginação que nos convida a sonhar um futuro melhor. Ressoa no encontro humano. E, sob seu impulso, amadurecem em cada um de nós aquelas atitudes que nos levam a viver com mais plenitude: compaixão, justiça, verdade, amor...
A violência, a injustiça, a intolerância e o preconceito em todos as instâncias da sociedade atual nos enchem de medo, desalento e desesperança. Não vemos saída e preferimos fechar-nos em nós mesmos, em nossos ambientes mofados e práticas religiosas alienadas, esquecendo-nos do grande movimento de vida desencadeado por Jesus, conduzido pelo Espírito de vida. É este mesmo Espírito que irrompe em nosso interior, transpassa as portas do coração e ilumina o entendimento para que compreendamos a novidade do Evangelho e tenhamos presença diferenciada no contexto em que vivemos.
Deixar-nos habitar pelo Espírito implica romper a bolha que asfixia nossa vida e derrubar os muros que cercam nosso coração e atrofia nossa própria existência. A mudança de mente, de coração, de esperança, de paradigmas... exige que todos, em tempos de Pentecostes, revisemos nossas vidas, conservando umas coisas, alterando outras, derrubando ideias fixas, convicções absolutas, modos fechados de viver... que impedem a entrada do ar para arejar o próprio interior.
Nada mais contrário ao espírito de Pentecostes que uma vida instalada e uma existência estabilizada de uma vez para sempre, tendo pontos de referência fixos, definitivos, tranquilizadores... Numa vida assim faltaria por completo o princípio da criatividade, a capacidade de questionar-se, a audácia de arriscar, a coragem de fazer caminho aberto à aventura.
Há em todo ser humano uma tendência a cercar-se de muros, a encastelar-se, a criar uma rede de proteção. Também os cristãos não estão imunes a esta tentação. A cultura da indiferença edifica uma barreira intransponível entre nós e os outros. Tornamo-nos uma ilha sem vida e triste, negamos a condição criatural de vivermos ao lado dos diferentes, nossos semelhantes. Em nós, a indiferença, a intolerância e a violência são sintomas de desumanização. E essa desumanização é tanto prejudicial a nós quanto às outras pessoas. Todo mundo perde. Aos poucos, nos recolhemos em nossos medos, em nossas inseguranças e começamos a acreditar que os diferentes são nossos inimigos. A partir de nossa reclusão religiosa, social, política..., passamos a divulgar discursos fascistas, alimentar práticas fundamentalistas de segregação, apoiar-nos em moralismos estéreis...
O Espírito de Pentecostes nos desarma e nos capacita a viver a cultura do encontro; isso significa desenvolver a própria capacidade de contemplação, de compaixão, de assombro, escuta das mensagens e dos valores presentes no mundo à nossa volta. Ela ativa uma relação sadia com todos; o centro se expande em direção aos outros e à criação, fazendo-nos viver uma conexão livre com toda a realidade, através da íntima solidariedade e do compromisso ativo.
Texto bíblico: Jo 20,19-23
Na oração: Quê sinais da presença dinamizadora do Espírito de Deus você pode perceber em sua vida pessoal, familiar e comunitária?
Você conhece pessoas que atuam sob a ação do Espírito? Por quê? Quê você pode fazer para descobrir e potenciar os dons e ministérios que o Espírito continua suscitando nas pessoas e comunidades?
- Faça um tempo de oração mais profunda, procurando escutar as moções que o Espírito suscita em seu interior e que talvez não tenha condições de escutar na pressa diária.
- Que portas você mantém fechadas? Que portas continuam fechadas nas igrejas? São portas, ou se converteram em fronteiras? Por medo de quê? De quem?
Pe. Adroaldo Palaoro sj
Ver com o coração
Hoje, em muitos países, celebra-se a ascensão de Jesus [em Portugal e no Brasil será no próximo domingo]. Como se lê no livro dos Atos dos Apóstolos, chega o momento em que Jesus nos é subtraído ao olhar, e uma espécie de nuvem oculta agora a sua visão.
Os discípulos terão ade aprender uma coisa que até então não sabiam, e que consiste em viver a presença de Jesus na sua ausência. Viver em Jesus sem o ver, sem o encontrar no espaço físico e quotidiano do mundo.
Isto não significa que perderam Jesus. A Igreja com a Páscoa não perdeu Jesus. Reencontramo-lo numa outra forma, e podemos reconhecer as novas modalidades da sua presença no meio de nós. Por isso é tão importante aquilo que S. Paulo diz: «Deus ilumine os olhos do vosso coração, para voz fazer compreender a que esperança vos chamou» (Efésios 1,18).
Precisamos dos olhos do coração para compreender a qualidade e a extensão da presença de Cristo na história. Mas penso também naquele detalhe que o Evangelho de Mateus (28,17) regista: no momento final da ascensão, alguns discípulos ainda duvidaram.
Todavia, é curioso que essa dúvida não constitua um problema para Jesus. Ele investe os discípulos na missão, mesmo da dúvida. Jesus não disse que aquela missão era apenas para aqueles que acreditaram solidamente.
Jesus confia a missão a todos. As dúvidas e as dificuldades do caminho fazem parte da condição crente.
D. José Tolentino Mendonça
In Avvenire
Imagem: "Ascensão" (det.) | Rembrandt
Publicado em 30.05.2019 no SNPC
“Então Jesus levou-os para fora, até perto de Betânia. Ali ergueu as mãos e abençoou-os.
Enquanto os abençoava, afastou-se deles e foi levado para o céu” (Lc 24,50-51)
Agora que estamos chegando ao final do tempo pascal, vale a pena notar que a Páscoa, chave, centro e ponto de partida da fé cristã, é um acontecimento de uma riqueza tal que é impossível descrevê-lo com uma só imagem. Por isso, celebramos o mistério pascal durante cinquenta dias, e logo prolongamos esta celebração cada domingo. Trata-se de um acontecimento único, embora nós, para entendê-lo melhor, o celebremos por etapas. Dito de outra maneira: Paixão, Páscoa, Ascensão e Pentecostes são a mesma realidade. Pode-se falar de quatro momentos, mas, na realidade são distintas perspectivas do mesmo Mistério.
Quê estamos celebrando com a Ascensão? A Ascensão é mais um aspecto da cristologia pascal.
Cristo alcançou, na Ascensão, uma situação e um estado de infinitude que lhe permite preencher tudo com sua presença definitiva, e para comunicar-nos sua presença divina. Portanto, não se trata de uma Ascensão para um lugar físico que o afastaria para longe da humanidade.
A nuvem que o “oculta”, enquanto subia ao céu, não está nos indicando sua “ausência”, mas uma forma distinta de sua presença. Daqui em diante, Jesus estará presente entre nós através de seu Espírito, cuja missão é ser memória permanente e dinâmica para que não nos esqueçamos do que Ele disse e fez.
Precisamos recordar que, terminada a presença histórica de Jesus, vivemos o “tempo do Espírito”, tempo de criatividade e de crescimento responsável. O Espírito não nos proporciona a nós, seguidores(as) de Jesus, “receitas eternas”. Mas nos dá luz e ânimo para buscar caminhos sempre novos a fim de prolongar hoje o modo original de ser e de atuar de Jesus. Assim Ele nos conduz para a verdade completa de Jesus.
Lucas, o único evangelista que fala de ascensão, termina seu relato apresentando-nos os discípulos como que pasmados, olhando para o alto e a alguns personagens vestidos de branco que lhes repreendem: “Homens da Galileia, porque estás aí olhando ao céu?”
Como Jesus, a única maneira de alcançar a plenitude da vida não é “subir”, mas é “descer” até o mais profundo de nosso ser. Aquele que mais desceu é o que subiu mais alto.
Jesus deixou suas pegadas cravadas na terra, mas os discípulos ficaram assombrados com o olhar fixo nas alturas. Ao céu só se chega caminhando para as profundezas de nosso ser, pois só no mais profundo de cada um (céu interior), podemos encontrar o divino.
Não causa estranheza que, ao narrar a despedida de Jesus deste mundo, Lucas descreva de forma surpreendente: Jesus ergue as mãos e “abençoa” seus discípulos. É seu último gesto. Jesus volta ao Pai levantando as suas mãos e abençoando os seus seguidores. Ele entra no mistério insondável de Deus e sobre o mundo faz descer sua benção. Jesus deixa atrás de si sua benção. Os discípulos, envolvidos por sua benção, respondem ao gesto de Jesus indo ao templo cheios de alegria. E estavam ali “bendizendo” a Deus.
Saboreando com mais profundidade a narrativa da Ascensão, caímos na conta da insistência de Lucas no tema do bendizer de Jesus: “levantando as mãos os abençoou e enquanto os abençoava, se afastou deles...”.
Ao fixar a atenção no seu “bendizer” e fazendo uma tradução ao pé da letra do verbo grego “eu-logeo” (“eu”= bem; “logeo”= dizer), ficamos surpresos de que Jesus sobe aos céus dizendo coisas boas de seus discípulos e deixando um “informe final” sobre eles, claramente positivo.
É como se, antes de partir, Jesus tivesse redigido sua avaliação para prestar contas ao Pai e, para alívio nosso, revela-se satisfatória e elogiosa: somos boa gente, com pontos da vida a serem melhorados com certeza, mas, no conjunto, estamos bem. Ele leva anotadas muitas coisas boas de nossas vidas para contá-las ao Pai.
Vamos agora contemplar o gesto das mãos de Jesus que abençoam.
Jesus sempre gostou de “abençoar”. Abençoou as crianças, os pobres, os doentes e desventurados. Seu gesto era carregado de fé e de amor. Ele desejava envolver aqueles que mais sofriam, com a compaixão, a proteção e a benção de Deus.
A partir de então, seus(suas) seguidores(as) começam sua caminhada, animados por aquela benção com a qual Jesus curava os doentes, perdoava os pecadores e acariciava os pequenos.
Nós, seguidores(as) de Jesus, somos portadores(as) e testemunhas de sua benção no mundo.
Como cristãos, esquecemo-nos que somos canais da bênção de Jesus. A nossa primeira tarefa é ser testemunha da Bondade de Deus. Manter viva a esperança, não nos rendermos diante de tanto “maldizer”.
Deus olha a humanidade com ternura e compaixão.
Já faz muito tempo que esquecemos isso, mas a Igreja deve ser, no meio do mundo, uma fonte de benção. Num mundo onde é tão frequente “maldizer”, condenar, prejudicar e difamar, é mais necessária do que nunca a presença de seguidores(as) de Jesus que saibam “abençoar”, buscar o bem, dizer bem, fazer o bem, atrair para o bem.
A benção é uma prática enraizada em quase todas as culturas como o melhor desejo que podemos despertar para com os outros. O judaísmo, o islamismo e o cristianismo lhe deram sempre grande importância. E, embora em nossos dias tenha sido reduzida a um ritual quase em desuso, não são poucos os que ainda destacam seu conteúdo profundo e a necessidade de recuperá-la.
Abençoar é, antes de mais nada, desejar o bem às pessoas que encontramos em nosso caminho. Querer o bem de maneira incondicional e sem reservas. Querer a saúde, o bem-estar, a alegria..., tudo o que pode ajudá-las a viver com dignidade. Quanto mais desejamos o bem para todos, mais possível é sua manifestação.
Abençoar é aprender a viver a partir de uma atitude básica de amor à vida e às pessoas. Aquele que abençoa esvazia seu coração de outras atitudes pouco sadias, como a agressividade, o medo, a hostilidade ou a indiferença. Não é possível abençoar e ao mesmo tempo viver condenando, rejeitando, odiando.
Abençoar é desejar a alguém o bem do mais profundo de nosso ser, mesmo que nós não sejamos a fonte da benção, mas apenas suas testemunhas e portadores. Aquele que abençoa não faz senão evocar, desejar e pedir a presença bondosa do Criador, fonte de todo bem. Por isso, só se pode abençoar numa atitude de agradecimento a Deus.
A benção faz bem a quem a recebe e a quem a pratica. Quem abençoa os outros abençoa-se a si mesmo. A benção fica ressoando em seu interior, como prece silenciosa que vai transformando seu coração, tornando-o melhor e mais nobre. Ninguém pode sentir-se bem consigo mesmo enquanto continua maldizendo o outro no fundo do seu ser. Não é possível ser canal de benção do Criador se do próprio coração brotam palavras de intolerância, de preconceito e julgamento. “Maldizer” o outro é maldizer-se a si mesmo.
Texto bíblico: Lc 24,46-53
Na oração: Fazer memória dos momentos em que você foi canal de benção para muitas pessoas.
- Você usa as redes sociais para “bendizer” ou “mal-dizer”?
Pe. Adroaldo Palaoro sj
Uma das antífonas mais repetidas neste tempo de Páscoa, serve-nos de poderoso contraforte para a fé. Recita ela: “Resurrexit sicut dixit”. Jesus ressuscitou como tinha prometido.
No acontecimento pascal temos assim a confirmação da Palavra do próprio Cristo, na qual podemos depositar toda a nossa confiança. O apóstolo Paulo quer recordar-nos precisamente isto, quando afirma que se Cristo não tivesse ressuscitado, ruiria todo o edifício do cristianismo.
Neste sentido, aquela antífona deve ser considerada como o festivo fundamento da nossa alegria, alavanca da nossa esperança.
Também é belo, todavia, pensar na variação que um copista medieval introduziu, talvez por erro, talvez por um esforço de aprofundamento teológico. Realmente, Deus escreve direito pelas nossas pobres linhas tortas.
Um amanuense escreveu: “Resurrexit sicut dilexit”. Ressuscitou como amou. Ressuscitou não unicamente como tinha predito aos seus discípulos, mas segundo a constante qualidade do seu amor.
É importante ligar a interpretação da ressurreição ao amor, a partir do momento em que isso é uma chave necessária para iluminar o mistério.
Àquele Filho «obediente até à morte, e morte de cruz», Deus permanece fiel com todo o seu amor. E amar é dizer ao outro: não morrerás. É esta a garantia de Deus, o seu gesto definitivo que re-cria a história.
In Avvenire
Trad.: Rui Jorge Martins
“...e nós viremos e faremos nele nossa morada” (Jo 14,23)
Continuamos com o discurso de despedida de Jesus, depois da Última Ceia. O tema do domingo passado era o amor manifestado na entrega aos demais. Terminávamos dizendo que esse amor era a expressão de uma experiência interior, relação com o mais profundo de nós mesmos que é Deus.
Hoje o evangelho nos fala do que significa essa vivência íntima. A Realidade que somos, é nosso verdadeiro ser. O verdadeiro Deus não é um ser separado que está em alguma parte da estratosfera, mas o fundamento de nosso ser e de cada um dos seres do universo. Tudo está admiravelmente condensado e expresso nesta frase com a qual se inicia o evangelho de hoje: “viremos a ele e faremos nele nossa morada”. O ser humano está habitado por Deus, no sentido mais profundo que possamos imaginar.
Quem toma consciência de sua identidade profunda, descobre-se habitado e amado pelo Mistério e não pode fazer outra coisa senão amar e experimentar a unidade com todos. Na linguagem do quarto evangelho, Deus e Jesus são o “centro” último do nosso interior, o que constitui nossa identidade mais profunda. Deus Trindade abraça e se expressa em toda a realidade; habita tudo e em tudo se manifesta; envolve tudo e em tudo está presente. É o que experimentaram e proclamaram os místicos: “Meu Eu é Deus e não reconheço outro Eu que a Deus mesmo” (S. Catarina de Gênova).
João da Cruz escreve: “A alma mais parece Deus que alma, e ainda é Deus por participação”. Não se trata, portanto, de que Deus habite unicamente naqueles que cumprem a palavra de Jesus, num retorno à religião dos méritos e das recompensas. Deus habita já todos os seres: nada poderia existir “fora” d’Ele. Tudo é morada de Deus.
Segundo S. Inácio “Deus habita nas criaturas: nos elementos dando o ser; nas plantas, a vida vegetativa; nos animais, a vida sensitiva; nas pessoas, a vida intelectiva. Do mesmo modo em mim, dando-me o ser, o viver, o sentir e o entender. E também fazendo de mim o seu templo” (EE. 235).
Tudo está inundado de Deus; tudo é sagrado, nada é profano.
Deus não permanece exterior nós, mas habita no mais profundo de cada um; somos o que somos devido à presença de Deus em nós. A dignidade e o significado último de cada ser humano não provêm dele mesmo, mas da presença de Deus em seu interior.
Além disso, nós nunca estamos fora de Deus. Tudo que somos e temos é manifestação de sua força, bondade e amor. Com-viver com Deus tem sempre algo de aventura que assusta e encanta. É a chamada “experiência numinosa”. Pois, Deus e o ser humano não são adversários, mas “diferenças que se amam”. Por isso, ao abraçarmos cada pessoa, estaremos tomando nos braços não apenas os seus limites, fragilidades e sombras, mas também o seu infinito mistério: Deus mesmo.
Igualmente, distanciar-se do outro é expulsar-se de Deus, e quem se fecha à novidade do outro, inevitavelmente limita a ação do Criador no próprio interior. E para onde quer que olhemos, lá está Ele: silencioso, como nosso próprio mistério. Está presente na distante profundeza do universo como suprema fecundidade e nosso Pai, na proximidade dos seres humanos como humildade e nosso irmão, em nós mesmos como sentido e o vigor que nos faz viver.
Jesus viveu uma profunda identificação com o Pai que não podemos expressar com palavras. “Eu e o Pai somos um”. Nós também somos chamados a viver essa mesma identificação. Fazer-nos uma coisa só com Deus, que é presença e que não está em nós como hóspede agregado que chega e sai, mas como fundamento de nosso ser, sem o qual nada pode existir em nós. Essa presença de Deus em nós não altera em nada nossa individualidade. Nós somos totalmente nós mesmos e totalmente de Deus. Viver esta realidade é o que constitui a plenitude do ser humano.
Uma coisa é a linguagem e outra a realidade que queremos manifestar com ela. Deus não tem que vir de nenhum lugar para estar no mais profundo de nosso ser. Está aí desde antes de existirmos. Não existe “alguma parte” onde Deus possa estar, fora de nós e do resto da criação. Deus é Aquele que torna possível nossa existência. Somos nós que estamos fundamentados n’Ele desde o primeiro instante do nosso existir. Deus já não é esse Outro ao qual temos que ir ou esperar que venha, senão que forma parte de nossa realidade, um espaço do qual podemos nos diferenciar, mas não separar.
Descobri-Lo em nós, tomar consciência dessa presença, é como se Ele viesse a nós. Esta verdade é a fonte de toda experiência espiritual. Os místicos ousam dizer: “temos Deus dentro de nós; é tão unido a nós que Ele é a nossa própria profundidade”.
Aqui está a grande novidade da mensagem e da experiência de Jesus: revelar que o lugar da presença de Deus é o ser humano. Ele é experimentado dentro de nós; mas também é preciso descobri-Lo dentro de cada um dos outros seres humanos. A presença surge de dentro e nos sensibiliza a percebê-Lo no outro.
“Deixar Deus ser Deus em nosso interior” significa entrar no fluxo da dinâmica divina, ou seja, viver encontros divinizados, sendo presença divinizada, expressando palavras e atos divinizados...
A presença de Deus em nosso interior fica atrofiada quando nossa vida é carregada do veneno do preconceito, da intolerância, do julgamento, da suspeita e do medo do diferente. É justamente essa presença divina no eu profundo que nos diferencia e nos torna originais. Encontrar-nos com Deus na própria morada interna não é fechar-nos num intimismo estéril; implica ampliar o espaço do coração para acolher o outro que pensa, sente e ama de maneira diferente, porque também ele é morada da Trindade.
O Espírito é o garantidor dessa presença dinâmica do Pai e de Jesus em nós: “Ele vos ensinará tudo e vos recordará tudo o que eu vos tenho dito”. O verdadeiro Mestre – nosso “mestre interior” – que nos irá conduzindo até a verdade é o Espírito de Deus, que se expressa no mais profundo de todo ser humano. É a “voz” de Deus em nós, à qual temos acesso a partir da abertura e disponibilidade interior.
O teólogo Schillebeeckx afirmou: “Se pudesse tirar de mim o que há de mim, ficaria Deus; se pudesse tirar de mim o que há de Deus, ficaria nada”.
Ao nos reconhecermos nessa morada interior, podemos receber a paz da qual fala Jesus; não só isso: descobrimos que somos Paz. Não é a “paz do mundo”, que sempre será oscilante e inconstante, senão a Paz que abraça todas as situações da vida, porque estamos ancorados naquilo que realmente somos.
O “shalom” judaico é muito mais rico que nosso conceito de paz; mas o evangelho de João acrescenta um “plus” de significado sobre o já rico significado judaico. A paz, de que fala Jesus, tem sua origem no interior de cada um. É a harmonia total, não só dentro da pessoa, mas com os outros e com a criação inteira. Corresponde ao fruto primeiro das relações autênticas em todas as direções; expressa a consequência do amor que é Deus em cada um, descoberto e vivido. A paz não é buscada diretamente; ela é fruto do amor. Só o amor, ativado e manifestado no próprio interior, conduz à paz verdadeira. Poder-se-ia dizer que esta “paz” não é algo diferente do Espírito. É a paz de quem permanece ancorado em sua identidade profunda, sem identificar-se com os altos e baixos das circunstâncias, nem perder-se com o “vai-e-vem” da mente.
É a paz que supera toda razão, porque nasce de um “lugar” que está mais além da razão, mais além da mente, na compreensão do Mistério que somos, e que não se vê afetado pelo que ocorre em nosso eu.
Texto bíblico: Jo 14,23-29
Na oração: Considerar, como devo, de minha parte, amar as pessoas de tal maneira que me faça transparente, para que através de mim os outros possam conhecer quem é Deus.
- Eu devo deixar “transparecer” a imagem de Deus, através da bondade, justiça, serviço... Deus “habita em mim”, deixando suas pegadas; através delas sou movido a dar testemunho de quem é Deus.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
“Nisto todos conhecerão que sois meus discípulos, se tiverdes amor uns aos outros” (Jo 13,35)
A revelação bíblica afirma que Deus é o Criador e Senhor, que envolve a criação com seu Amor dinâmico e criativo. É um Deus ativo, providente, fonte de vida, que realiza obras admiráveis e santas. Em seu Amor Oblativo, Ele vem ao nosso encontro e nos introduz no movimento de sua própria Vida. Somos seres agraciados(as). Viemos de Deus e voltamos para Ele. “N’Ele vivemos, nos movemos e existimos”.
Aqui nos encontramos como que no centro do mistério único, que é o mistério do Deus Criador e Providente, do Deus que “dá a Vida”, que cuida do universo, do Deus de quem tudo procede e para quem tudo retorna; em síntese, trata-se do mistério do Amor em excesso de Deus. Portanto, no princípio está o Amor e de suas entranhas tudo procede; cada criatura é uma irradiação de Deus, uma faísca da divindade, um transbordamento do amor de Deus. Tudo fala de Deus, tudo revela o seu Amor. Tudo está “amortizado”; o Amor se faz presença, se faz visível, se manifesta em cada detalhe da criação. No Amor tudo entra em movimento expansivo e aberto.
Jesus, em sua vida, sempre deixou transparecer esse Amor do Pai. O amor de Jesus, extenso e profundo como o oceano, nunca teve fronteiras: envolveu a todos, acolheu a todos sem preconceito de raça, cultura, sexo e religião. O mandamento do amor, mais que um mandato é, antes de tudo, um dom e uma revelação de Jesus a seus discípulos.
O evangelho de hoje também faz parte do discurso de Jesus no evangelho de João, o último e mais extenso, depois do lava-pés. É um discurso que abarca cinco capítulos, e é uma verdadeira catequese à comunidade, resumindo os mais originais ensinamentos de Jesus. Estamos vivendo o tempo Pascal e, com a ressurreição, o amor rompido renasce; com a ressurreição, o amor autocentrado nos faz sair de nós mesmos; com a ressurreição, os olhares desconfiados se tornam acolhedores; com a ressurreição podemos aprender a viver a partir de Deus; com a ressurreição o amor oblativo é capaz de mover nossa vida.
Só quem assume a Vida de Deus como sua, será capaz de expandi-la em sua relação com os outros. A manifestação dessa Vida é o amor efetivo a todos os seres humanos. O distintivo do cristão é o amor fraterno. E o amor é discreto, humilde, conhecedor de sua insuficiência, não é arrogante, não se derrama em palavras, não faz alarde, não vai se proclamando pelas praças, prefere o silêncio, passa desapercebido, prefere as obras às palavras (“o amor deve-se por mais em obras que em palavras” – Santo Inácio).
É o Amor nosso distintivo como seguidores(as) de Jesus? O sinal pelo qual os outros reconhecerão que somos discípulos(as) seus(suas) é a capacidade de amar-nos uns aos outros. Temos insistindo demasiado no acidental: no cumprimento de normas, na crença de algumas verdades e na celebração de alguns ritos. E esvaziamos o essencial que é o Amor. O Reino não se espalha por meio de armas, nem com a propaganda e nem com marketing algum; o Reino se espalha pelo contágio, porque o “Amor é contagioso”.
Porque fracassamos estrepitosamente naquilo que é a essência do Evangelho? Porque dizemos seguir Aquele que é a visibilização do Amor do Pai e o nosso estilo de vida destila doses mortais de indiferença, preconceito, intolerância, julgamento...? Vivemos tempos de ira e de ódio, expressões de um fundamentalismo e de um fanatismo que esvaziam toda possibilidade da vivência do amor oblativo. Estamos nos acostumando a ver o ódio e a vingança como um espetáculo a mais. As mediações digitais e as manipulações ideológicas não nos deixam perceber as verdadeiras consequências do ódio sobre as pessoas. É preciso resgatar a sacralidade do amor; afinal, ele é o motor de uma vida intensa. O amor ágape se expressa justamente como impulso para o diferente, abertura a quem pensa, sente e ama de maneira diferente.
O mandamento do amor continua sendo tão “novo” que está ainda por ser vivido em sua plenitude. Não se trata só de algo muito importante; trata-se do essencial. Sem amor, não há vida cristã. Nietzsche chegou a dizer: “só houve um cristão, e esse morreu na cruz”; precisamente porque ninguém foi capaz de amar como Ele amou. Essa é, com certeza, nossa raiz e nossa essência, nossa mais profunda força que, às vezes nos rompe por dentro, outras vezes nos faz subir ao céu. Podemos amar e ser amados. Vivemos desejando encontro, carinho, palavra de compreensão e reconhecimento. Dizemos de Deus, de quem somos imagem, que é amor. E quando olhamos ao redor e vemos os outros, sonhamos viver a partir da cordialidade de braços que se estreitam, olhos que se compreendem ou mãos que se enlaçam.
O amor tem muitos nomes, muitos rostos, muitas formas e expressões. Tem inumeráveis histórias. É amizade, fé, paixão, enamoramento; é fraterno, filial, paterno/materno; é compaixão pelas vidas feridas ou inspiração por viver intensamente. É encontro, quietude ou tormenta. É aceitação incondicional e, ao mesmo tempo, fé nas possibilidades do outro. Amor é saber compartilhar; e também saber pedir ajuda àqueles a quem confiamos. É desfrutar da presença e encurtar as distâncias. É celebrar juntos a vida e chorar juntos os golpes. Às vezes é sede, e outras vezes é manancial que sacia os desejos. É sinal que estamos vivos, e há ocasiões em que a vida é canto, e outras em que é luto.
Um mandamento novo: “que vos ameis uns aos outros, como eu vos amei”. O “como eu vos amei” não é só comparativo, mas originante. Quer dizer: “que deveis amar-vos porque eu os amei, e tanto como eu os amei”. Jesus é o cume das possibilidades humanas. Amar é a única maneira de ser plenamente humano. Ele ativou até o limite a capacidade de amar, até amar como Deus ama.
Jesus não propõe um princípio teórico, e depois pede que todos o cumpramos. Ele começa por viver o amor e depois diz: “como eu vos amei”. Quem revela sua adesão a Jesus ficará capacitado para ser filho(a), para atuar como o Pai, para amar como Deus ama.
O amor que Jesus pede não é uma teoria, nem uma doutrina; manifesta-se na vida, em todos e em cada um dos aspectos da existência. A nova comunidade dos(as) seguidores(as) não se caracterizará por doutrinas, nem ritos, nem normas. O único distintivo deve ser o amor manifestado em suas ações.
O amor não é um sonho, é o impulso básico das pessoas criadas livres; livres para doar-se livremente, livres para participar da infinita abundância de vida com que Deus nos cumula. O amor é a vida mesma em seu estado de maturidade e plenitude.
Texto bíblico: Jo 13,31-35
Na oração: Repassa sua história de amor. Que nomes são importantes em sua vida? De quê maneira você ajuda o seu ambiente a estar “carregado de amor”?
Em quê circunstância da vida você se revela como pessoa amável?
Quê passos você dá para quebrar o círculo de ódio e violência, que mata o amor na raiz?
Pe. Adroaldo Palaoro sj
“As minhas ovelhas escutam a minha voz, eu as conheço e elas me seguem” (Jo 10,27)
Todo quarto domingo de Páscoa é dedicado ao tema do “Bom Pastor”; a liturgia não apresenta outros relatos de aparições, mas continuamos com mais um texto profundamente pascal. No relato deste domingo, a alegoria do Pastor fala de “escuta”, “conhecimento”, “seguimento” e “vida eterna”, que é a chave do tempo pascal; ao mesmo tempo, num aprofundamento progressivo, o texto remete ao Pai e culmina na Unidade, como Fonte de onde tudo procede e para onde tudo retorna. São estas realidades que nos permitem conectar com o sentido originário da imagem do Pastor, sem cair na literalidade pastor/ovelhas, paternalismo/cordeirinho, poder/submissão..., que acabam provocando uma justificada resistência e rejeição.
Jesus quer estabelecer com seus(suas) amigos(as) uma relação que seja o reflexo daquela que Ele mesmo tem para com o Pai: uma relação de pertença recíproca, na confiança plena, na íntima comunhão. Para expressar esta realidade profunda, esta relação de amizade, Jesus utiliza a imagem do pastor com suas ovelhas: ele as chama e elas reconhecem sua voz, respondem a seu chamado e o seguem.
Esta parábola é muito instigante. O mistério da voz é sugestivo: desde o ventre de nossa mãe aprendemos a reconhecer sua voz e, quando nascemos, vamos reconhecendo outras vozes. Pelo tom de uma voz percebemos o amor ou o desprezo, o afeto ou a frieza, a acolhida ou a rejeição. A voz de Jesus é única! Se aprendemos a distingui-la de outras vozes, Ele nos guiará pelo caminho da vida, um caminho que supera também o abismo da morte.
O contexto do relato deste domingo é o embate de Jesus com as autoridades religiosas judaicas. Depois de dizer que elas não são suas ovelhas, Jesus descreve com todo detalhe o que significa ser dos seus. Destaca dois traços, os mais essenciais e imprescindíveis: “Minhas ovelhas escutam minha voz... e elas me seguem”. Não se trata só de ouvir a Jesus, mas de escutá-lo. Muitas vezes só ouvimos e aceitamos somente o que está de acordo com nossos interesses. Escutá-lo significa aproximar-nos sem pré-juízos e acolher o que Ele nos diz, mesmo que isso implique mudar nossas convicções; escutar é pôr toda nossa atenção para tratar de compreender.
“E elas me seguem”. Não basta escutar, é preciso colocar-nos em movimento e entrar na nova dinâmica da vida. Escutar tem ressonância interna e ativa todas as nossas potencialidades ali presentes. A boa notícia de Jesus consiste em manifestar que há uma nova maneira de assumir a existência humana, uma maneira de viver que esteja mais de acordo com as exigências profundas do nosso ser. Quando alguém é capaz de escutar esse chamado interior e de viver conforme ele, vive uma existência feliz. Vive de acordo com seu mais íntimo e esta adequação entre a vida exterior e a vida interior é a felicidade.
Em um mundo onde há tanto ruído, discursos ocos e palavreado intolerante, não é fácil prestar atenção a alguma voz em especial. O fato é que às vezes vivemos em bolhas onde raramente entram vozes que nos comovam de verdade. E, no entanto, debaixo de gritos, ruídos, músicas estridentes, anúncios, peças publicitárias e frases que apelam ao conservadorismo, continua brotando palavras cheias de verdade. Palavras que valem a pena escutá-las. Talvez, detrás de muitos gestos petrificados, palavras sem sentido, falsas seguranças, estarão vozes que clamam por ajuda, ou simplesmente expressam dor, desejo de paz, de consolo.
O verdadeiro desafio é aprender a escutar, por debaixo desses discursos, a palavra profunda, o canto tranquilo ou a voz que põe em movimento.
Saber escutar o outro é uma simples, mas profunda acolhida humana; trata-se de um ato de hospitalidade, pois consiste em abrir espaço para a presença do outro, sem preconceito. Porque quem escuta de verdade recebe toda palavra como nova e ativa a sensibilidade para deixar-se “tocar” pela voz que alarga a vida.
Vivemos mergulhados num mundo de vozes; um “vozerio” nos cerca: vozes que nos levam à morte, vozes que nos chamam à vida; vozes contaminadas pelo egoísmo, adulteradas pelo medo, deturpadas pela impureza, e vozes que são o eco do paraíso convidando para a festa, comunicando paz, convocando à comunhão... É possível que as vozes do egoísmo, do orgulho e da ambição tentem se disfarçar em voz de Cristo, a fim de arrastar-nos para o vazio e a ruína. Mas o Pastor verdadeiro não fala por ruídos, e sim pelo silêncio; não fala pela força dos pulmões, e sim pelo vento suave de seu Espírito...
Para escutá-la requer-se interioridade e atenção aos sinais de sua presença: pode ser a voz de um irmão pedindo socorro; pode ser a linguagem de um acontecimento alegre ou triste; pode ser uma palavra lida ou proclamada; pode ser uma inspiração misteriosa captada no silêncio...
Na arte do discernimento das vozes, o importante é, através da escuta interior, perceber de onde vem e para onde nos conduz cada voz que ressoa em nós. Se ela nos conduz para o outro, para o Reino...é clara manifestação da voz do Pastor.
Depois de mais vinte séculos, nós seguidores(as) precisamos recordar de novo que o essencial para ser a Igreja de Jesus é escutar sua voz e seguir seus passos. Primeiramente, é preciso despertar a capacidade de escutar Jesus; ativar muito mais em nossas comunidades essa sensibilidade, que está viva em muitos cristãos simples que sabem captar a Palavra que vem de Jesus em todo seu dinamismo e sintonizar com sua Boa Notícia de Deus.
Mas não basta escutar sua voz. É necessário seguir a Jesus. Chegou o momento de decidir-nos entre contentar-nos com uma “religião burguesa” que tranquiliza as consciências mas afoga nossa alegria, ou aprender a viver a fé cristã como uma aventura apaixonante de seguir a Jesus. Parece óbvio afirmar isso: somos seguidores de uma Pessoa (Jesus Cristo) e não seguidores de uma religião, de uma doutrina, de uma moral... Estas são mediações que deveriam nos ajudar a crescer na identificação e vida d’Aquele é o Bom Pastor.
A aventura cristã consiste em crer naquilo que Ele acreditou, dar importância àquilo que Ele deu, defender a causa do ser humano como Ele a defendeu, aproximar-nos dos indefesos e desvalidos como Ele se fez presente, ser livres para fazer o bem como Ele, confiar no Pai como Ele confiou e enfrentar a vida e a morte com a esperança com que Ele enfrentou.
Se, aqueles que vivem perdidos, sozinhos e desorientados podem encontrar na comunidade cristã um lugar onde se aprende a viver juntos de maneira mais digna, solidária e libre, seguindo a Jesus, a Igreja estará oferecendo ao mundo de hoje um de seus melhores serviços.
Texto bíblico: Jo 10,27-30
Na oração: minha voz, está a serviço de quem? Da vida ou da morte? Como ela se expressa: com intolerância, julgamento, preconceito? Sou canal através do qual a Voz de Vida chega até os últimos..., ou coloco minha voz à disposição daqueles que estão a serviço da violência e da morte? Sei distinguir as diferentes vozes que se fazem ouvir ao meu redor? Purifico minha voz no fogo do silêncio ou ela é expressão do ruído da superficialidade?
Pe. Adroaldo Palaoro sj
O místico medieval Ricardo de São Vítor escreveu: «Onde está o amor, aí há um olhar». Não raro, este olhar que o amor nos requer dá-se no contexto de um sofrimento que teríamos absolutamente preferido não viver, mas da qual aprendemos alguma coisa – e alguma coisa de belíssimo – a que, sem ela, não teríamos chegado.
O mundo da dor é vasto e, quando menos o esperamos, encontramo-nos a habitá-lo. Os sentimentos que então irrompem são muitos: recusamo-nos a aceitar, entramos em revolta, em depressão; gostaríamos de fugir para longe; perguntamo-nos “porquê?”, “porquê precisamente a mim?”, “porquê precisamente agora?”; sentimo-nos impreparados para uma travessia muito árdua.
E, pelo menos neste último ponto, temos razão. O nosso tempo fez da doença, da velhice da deficiência um verdadeiro tabu. Vigora uma espécie de interdito em relação à vida vulnerável: cada um tem de viver estas situações em estreita solidão, sem grandes ajudas para aprofundar a sua experiência como um recurso, e não como uma fatalidade. No entanto, a verdade é bem diferente deste desígnio traçado pelo egoísmo ou pelo medo.
Escutava há alguns dias um pai falar do seu filho com síndrome de Down, Dizia, sem esconder a sua comoção: «Este meu filho é um membro importante da nossa família. É o nosso ponto de união. Fez de nós pessoas diferentes, mais humanas e atentas aos outros. Alargou a nossa capacidade de amar».
In Avvenire
Trad.: Rui Jorge Martins
Publicado em 30.04.2019 no SNPC
“...e naquela noite não apanharam nada” (Jo 21)
Estamos desfrutando do tempo Pascal no qual tudo na vida dos cristãos (a liturgia, os símbolos, as leituras da Palavra de Deus, as flores, o branco litúrgico, e inclusive, em algumas partes do mundo, o tempo meteorológico) nos fala da vitória da vida. É, sem dúvida, um tempo precioso no qual ressoa o Aleluia da noite de Páscoa e se prolonga na liturgia, na vida e nos corações.
O Evangelho deste domingo (3º Dom Páscoa) nos conduz até à “praia pascal” da Galileia. Depois dos terríveis capítulos anteriores (gritos, sangue, cruz, violência, tortura, morte...), os apóstolos se encontram de novo na Galileia, numa paisagem quase idílica, dedicados outra vez à pesca, como se nada tivesse acontecido. O texto está cheio de simbolismos, de significados insinuados e de sugestões, mas basta recordar que tudo acontece no alvorecer, nessa hora tão charmosa na qual vemos ainda com dificuldade.
O encontro com o Ressuscitado nas praias da Galileia nos motiva a buscar um novo sentido e uma nova inspiração para o cotidiano de nossas vidas. De fato, nem todos os dias são iluminados pelos êxitos; tampouco as noites. Há dias que anoitecem e há noites que amanhecem em meio a muitos fracassos. Nem todas as manhãs nossos pescadores chegam ao porto com suas barcas carregadas de peixes.
A vida tem seus êxitos e seus triunfos. Mas também suas derrotas e fracassos. É preciso saber acolher os triunfos sem que a fumaça do ego cubra nosso coração. E é preciso saber assumir a desilusão do fracasso, sem por isso sentir-nos derrotados. Os triunfos podem alimentar ilusões; os fracassos põem à prova nossa resistência e nossa constância.
Os discípulos, naquela noite não tinham pescado nada, além do cansaço e do frio do lago. Mas não tinham perdido a esperança. A pesca tinha sido um fracasso e, a partir da margem, um estranho personagem lhes sugere que lançassem as redes do outro lado do barco, como se eles não soubessem onde deveriam lançá-las; surpreendentemente eles têm grande êxito na pescaria. Nesse momento, o discípulo amado diz a Pedro: “É o Senhor!”
Adiantou-se a todos sem mover-se do lugar; olhou para frente sem soltar a ferramenta de trabalho; não gritou sua descoberta; simplesmente sussurrou, mas entre admiração e comoção: “É o Senhor!”
Voltou a sentir a água caindo sobre seus pés e o pulsar de um coração na noite do Serviço e do Amor; suas mãos não deixaram a rede de lado, mas seu olhar foi mais além: “É o Senhor!”
E, como sempre, Jesus se encanta com os encontros em torno ao fogo e à refeição. Ele se manifesta nas coisas simples da vida. Não foi preciso palavras. Um coro de silêncios interiores proclamava: “É o Senhor!”, enquanto se espalhava no ar um agradável odor a peixe recém assado.
Podemos considerar que a exclamação do discípulo amado -“É o Senhor”! - mostra o que significa ser contemplativo. O verdadeiro contemplativo pascal olha ao seu redor, à realidade mesma, à vida em sua contradição, com suas obscuridades e suas claridades, com suas grandezas e suas misérias, com seus êxitos e seus fracassos..., e descobre nela os sinais pequenos, frágeis, vulneráveis e, às vezes, aparentemente contraditórios da presença do Ressuscitado em nossas vidas. Talvez seja este um dos desafios mais importantes da vida cristã neste nosso mundo tão cheio de mensagens, de bombardeio de notícias, de imediatismo e rapidez, de encontros e desencontros.
Nós, seguidores(as) do Ressuscitado neste séc. XXI, do mundo digital, da pós-modernidade ou da arqui- pós-modernidade, da “cultura liquida” e dos “não-lugares”, deste mundo complexo e fascinante no qual nos toca viver e ao qual devemos amar, podemos ser esses humildes contemplativos que, em meio aos afazeres cotidianos, sussurram com emoção -“É o Senhor!”- e apontam para o Ressuscitado, presente nas penumbras da vida.
Essa é talvez a missão central da nossa vida cristã hoje: captar com emoção a luz que abre passagem entre as folhas da densa floresta, contemplá-la com gratuidade, indicá-la com humildade e anunciá-la com amor. E, mais ainda, devemos nos sentir chamados a deixar transparecer a luz da ressurreição na própria realidade interior, para poder ser presença iluminante no contexto tão obscuro no qual vivemos.
É a vida inteira que deve ser iluminada pelo acontecimento pascal. Viver, para o cristão, é acolher sua vida, com suas luzes e sombras, à luz do Ressuscitado que, embora não o veja de maneira transparente, continua se fazendo presente nas praias da nossa existência. Não há obscuridade que não possa ser iluminada; não há situações, por mais difíceis que sejam, que não possam ser revertidas pela presença d’Aquele que está no meio de nós.
Gastamos energia em dissimular nossas falhas e fracassos quando, afinal, é pela sua aceitação que a porta poderá abrir-se para esse Outro que, por sua vez, nos ama incondicionalmente. No segredo do coração podemos pressentir que estes fracassos, estas dificuldades são, talvez, a nossa maior sorte. Porque através deles nos libertamos de nossas ilusões sobre nós mesmos. Eles tendem a nos deprimir, mas também podem ser uma ocasião para nos fazer mais humanos e humildes. Acolher o fracasso é retirar nossas couraças, revelar-nos abertos, tolerantes e compassivos.
Segundo um místico “felizmente Deus criou falhas em nós; caso contrário, não vejo por onde Ele poderia entrar em nossa vida!”. Nossa vivência da fé pascal também nos revela que Deus tem mais facilidade de entrar na nossa vida pela porta dos fracassos, das feridas, das crises... Aqui é onde nos sentimos mais desarmados, mais abertos e mais sensíveis à acolhida do Deus surpreendente que sempre vem ao nosso encontro. Por outro lado, Deus encontra muito mais resistência de se fazer presente em nossa vida quando nos centramos na busca da perfeição, das virtudes... Aqui estamos “formatados”, fechados em nossa autossuficiência. Através dos fracassos nos aproximamos de nosso ser essencial e da fonte de recursos que transforma estes fracassos em caminhos de realização.
O Pe. Adolfo Nicolás (ex-superior geral dos jesuítas) afirmou certa vez: “é preciso celebrar nossos fracassos”. Causa estranheza ao ouvir tal afirmação, pois vivemos em um mundo onde somente os êxitos e vitórias são celebrados. Mas, o certo é que, quando compartilhamos e acolhemos nossos fracassos, derrotas e quedas, surge uma corrente de comunhão especial, nos sentimos mais autênticos e vivemos tais situações duras como parte de uma vida que, ao mesmo tempo, é difícil e preciosa, que desafia e recompensa, que golpeia e abraça. Assim, podemos crescer na consciência de que esses momentos também são constitutivos de nossa identidade; eles se revelam como ocasião privilegiada para ativar outros recursos e possibilidades que certamente não brotariam em tempos tranquilos.
Texto bíblico: Jo 21,1-19
Na oração: Percorrendo o cap. 21 de João captamos a profundidade da contemplação inserida na vida ativa.
- Não coloquemos fronteiras ao Espírito que irá moldando nossa visão e nossa escuta e, como João, nos fará proclamar: “É o Senhor!”, sem soltar a ferramenta, nem o computador, nem o carro, nem o bisturi, nem o livro, nem o pincel, nem o microfone, nem a vassoura...
Pe. Adroaldo Palaoro sj
“...mostrou-lhes as mãos e o lado” (Jo 20,20)
Os relatos das Aparições nos advertem de que não se trata de uma crônica de acontecimentos. O que João quer nos comunicar são vivências internas dos discípulos reunidos; o que ele quer nos transmitir está mais além daquilo que entra pelos sentidos ou podemos imaginar.
Destacamos algumas das expressões do relato de João para formular a fé no Crucificado/Ressuscitado.
O relato deste domingo se revela como uma catequese muito rica em conteúdo. Por uma parte, vincula a ressurreição com a paz, o dom do Espírito, o perdão, a fé, a missão... Por outra, parece querer responder aos cristãos da “segunda geração”, que já não haviam conhecido o Jesus histórico, nem haviam participado daquela primeira experiência “fundante”. É a eles, representados na figura de Tomé, que lhes é dito:
“Bem-aventurados aqueles que creram sem terem visto!”
São muitos os que se sentem escandalizados com o Evangelho deste 2º. Dom. de Páscoa. Não é possível que Jesus Ressuscitado conserve as chagas no seu corpo! Pode-se tocá-lo como se tocam as feridas sangrentas de um torturado, as mãos frias de um moribundo, os pés feridos de um imigrante?
Frente aos riscos de um falso espiritualismo que quer esquecer-se da “carne”, frente a todas as tentativas de entender a Páscoa como pura mudança de consciência, o Evangelho de João quis ressaltar a corporalidade do Cristo Ressuscitado e o faz desta forma, ou seja, dando um destaque especial às chagas das mãos e do lado aberto; o mesmo corpo do amor vivido e da entrega, o corpo ferido com cravos e lança, se converte assim em um sinal visível de Ressurreição, sinal que continua presente na realidade das pessoas.
A morte de Jesus não foi um acidente de percurso, não é algo que se esquece, sinal de sua condição humana; o Senhor ressuscitado continua sendo Aquele que leva em suas mãos e em seu lado as feridas de sua entrega, os sinais de seu amor crucificado em favor da humanidade. O Senhor ressuscitado continua sendo Aquele que sofre em todos os que sofrem no mundo. Como cristãos, professamos: “o Ressuscitado é o Crucificado”; por isso é necessário “tocar suas feridas”, ali onde Ele sofre naqueles que sofrem. Portanto, contemplar o Ressuscitado chagado impulsiona a continuar encontrando o mesmo Jesus nas chagas de todos os sofredores da história.
É surpreendente que o evangelho de João tenha conservado o registro da experiência de Madalena; mas, mais surpreendente ainda é o fato de que tenha recolhido a experiência de Tomé, para assim revelar-nos que a Páscoa significa tocar com mais força, de um modo mais profundo, as chagas de Jesus ressuscitado.
Maria Madalena havia “tocado em Jesus” no horto pascal, porque o amava e pela alegria de saber que Ele estava vivo. Mas, depois teve que deixar de tocá-lo fisicamente (“não me toques”), a fim de tocá-lo e conhecê-lo de um modo diferente, levando a mensagem da Vida de Jesus aos discípulos, fechados numa casa. Ela que o tocou com amor, foi a primeira das ressuscitadas com Jesus no jardim de Vida da Páscoa.
À diferença de Madalena, Tomé precisou aprender a ativar os sentidos: olhar, escutar, tocar...; precisou descer do pedestal dos seus dogmas, das ideias separadas, para retomar a experiência concreta do amor de Jesus, que é a vida entregue pelos outros, amor chagado. Não basta crer em Jesus, separado de sua vida de compromisso em favor da vida; para crer nele é preciso querer tocar suas chagas, que são as chagas do mundo ferido por falta de amor.
Tomé começou sendo o apóstolo de uma espiritualidade sem compromisso social, sem entrega profética, sem solidariedade com os pobres e excluídos. Não era um apóstolo “cristão” de Jesus crucificado, mas um praticante da religião desencarnada que alguns, ainda hoje, continuam defendendo.
“Tocar” em Jesus, colocar o dedo em suas chagas e a mão no seu lado aberto, é descobrir a ferida sangrenta da história humana, vinculando assim a ressurreição com a dor dos homens e mulheres oprimidos(as), torturados, enfermos, assassinados... Jesus Ressuscitado continua levando em suas mãos e em seu peito a ferida da história, não só as chagas dos cravos e o corte da lança em seu próprio corpo, mas a chaga dos enfermos e expulsos, dos famintos e oprimidos e a infinidade de pessoas que continuam sofrendo ao nosso lado.
O Ressuscitado se faz reconhecível, é o mesmo Jesus, é o crucificado, é seu corpo chagado. Trata-se de crer no Crucificado. Suas feridas são inseparáveis da morte e da entrega a uma causa: o Reino. Não é a passagem a uma condição superior à do ser humano, mas a mesma condição humana levada a seu cume, assumindo sua história anterior. As chagas, sinal de seu amor extremo, evidenciam que é o mesmo que morreu na cruz. Já não há lugar para o medo da morte. Ninguém poderá tirar de Jesus a verdadeira Vida, nem tirá-la dos seus discípulos. A permanência dos sinais de sua morte indica a permanência de amor; elas são as cicatrizes de um compromisso com a vida. Além disso, elas garantem a identificação do Ressuscitado com o Jesus Crucificado.
Concluindo, podemos dizer que a experiência de Tomé, que é também a nossa, tem um valor importante para nós, seguidores(as) do Ressuscitado. Hoje, ressuscitado, Jesus continua expondo-se, deixando-se tocar sem resistências, mostrando suas feridas, permitindo que, como Tomé, “coloquemos o dedo na ferida”. Quê paradoxo! Os sinais da Ressurreição se encontram aí onde antes se encontravam os sinais de dor e morte. Só quando assumimos esta realidade, poderemos testemunhar, como os primeiros discípulos, que o “Crucificado ressuscitou!”.
São estas suas feridas e chagas nas mãos e no lado aberto os sinais que o Ressuscitado nos mostra para que possamos reconhecer as cicatrizes que também nós carregamos em nossos corpos. São estes os sinais que Ele nos mostra para que possamos pôr também nossas mãos nas feridas que continuam abertas em nosso mundo, nas mãos e lados de tantas irmãs e irmãos, de tantos povos, de nós mesmos. O Ressuscitado continua carregando todas as chagas e convida-nos a tocá-las, a acariciá-las, a acolhê-las, a reconciliar-nos com aquelas que ainda não foram integradas e pacificadas, a empenhar-nos na transformação daquelas que são fruto da injustiça e do mal.
Páscoa é tocar e acompanhar Jesus nos chagados da vida. Páscoa é também (ao mesmo tempo) sentir nas mãos e nos dedos, no coração e no olhar, o abraço de amor de todas as pessoas. Não há Páscoa de Jesus sem corpo-a-corpo de intimidade e proximidade, de homens e mulheres, de crianças e idosos, nos diversos tipos de encontro e comunhão, não para possuir mas para compartilhar, não para impor-se, mas para juntos abrir caminhos sempre novos de respeito e admiração. Assim nos toca Jesus, assim se deixa tocar por nós.
Texto bíblico: Jo 20,19-31
Na oração: Trazemos gravadas em nossa geografia corporal infinitas pequenas mortes e feridas; às vezes tão pequenas que não deixam cicatrizes visíveis, mas estão aí, cravadas em nosso corpo.
Contemplando as chagas do Ressuscitado, seremos capazes de reconhecer que fomos criados para ressuscitar, com as nossas feridas integradas, pacificadas, iluminadas...; nossa sensibilidade será ativada o suficiente para poder reconhecer esses mesmos sinais de dor em outros corpos e rostos.
- “Fazer memória” das cicatrizes na sua história corporal, unindo-as às “feridas do Ressuscitado”.
Isso já é ressurreição, plenitude do mistério da comunhão através dos gestos, da proximidade, do abraço...
A cada abraço sentido, uma ressurreição também vivida!
Pe. Adroaldo Palaoro sj
A trajetória do crente é acompanhada pela experiência do “não saber”. Muitas vezes consideramos a ignorância um obstáculo intransponível para a fé, mas quando lemos as narrativas pascais colhemos que ela é parte integrante do ato de crer.
É precisamente este “não saber” que nos abre a porta a uma outra compreensão. Maria de Magdala constatou que Jesus não estava no sepulcro; mas aquilo que tinha acontecido, ainda não o sabia. E foi contar a novidade a Pedro e João, que correram e entraram dentro do sepulcro.
A primeira lição és esta: temos de nos imergir no sentido da morte de Jesus, se queremos entender o sentido da sua ressurreição. Temos, também nós, de entrar no sepulcro, seguindo Pedro e João, e como eles interrogarmo-nos: que morte é, aquela foi apertada nestas ligaduras? Porque morreu aquele Jesus que depois foi envolvido neste sudário, agora vazio? Em nome de quê ofereceu Ele a sua vida?
A segunda lição é depois esta: normalmente, nós vemos para crer – é a maneira mais comum de interagir com a realidade. O Ressuscitado, ao contrário, ensina-nos que só acreditando podemos ver; só aceitando não tocar o corpo do Ressuscitado podemos tocá-lo; só acolhendo o mistério e a distância podemos viver verdadeiramente a intimidade pascal.
Quem crê saberá interpretar o mistério da sua presença todos os dias, até ao fim dos tempos.
In Avvenire
Trad.: Rui Jorge Martins
Publicado em 24.04.2019 no SNPC
A maior verdade que és chamado a acreditar é esta: a ressurreição de Jesus. É a maior, a mais delirante, a mais incrível das pretensões cristãs.
Há um Homem, na história, que ressuscita, e que Deus constitui como princípio de um novo destino para a nossa humanidade.
Verdadeiramente Aquele que contemplaste na cruz está vivo e caminha à frente dos seus, Aquele que viste esmagado pelo sofrimento testemunha um amor capaz de vencer a morte Aquele que viste ser deposto no sepulcro deixou vazio o seu sepulcro.
Esta é a notícia que o teu coração esperava como nenhuma outra, mas na qual nem sequer ousavas pensar. Este é o dia, o primeiro dia da tua re-criação em Cristo.
Alegra-te, por isso. Que tu possas rejubilar imensamente. Reveste o teu coração de festa. Compreende que na ressurreição de Cristo está toda a vida que se amplifica, se ilumina.
Compreende que é a tua própria vida que adquire uma outra forma. Sente-te atraído, lançado, projetado para dentro do Mistério Pascal.
Jesus ressuscitou, e agora vive à direita do Pai, como Senhor da História. E Ele, o Vivente, envia o seu Espírito para que tu te tornes o seu Corpo Místico, presença do Ressuscitado no mundo.
Pede-lhe a força de acreditar naquilo que melhor exprime a sua presença: a comunhão, o perdão, a fraternidade, a compaixão, a misericórdia, a bondade, a mansidão, o serviço.
In Avvenire
Trad.: Rui Jorge Martins
Publicado em 21.04.2019 no SNPC
“...e viu que a pedra tinha sido tirada do túmulo” (Jo 20,1)
A escuridão da madrugada desaparece e desponta a Luz que dá início à nova Criação e à nova história. Depois do silêncio, renasce a Palavra. Parecia o fim e, no entanto, aquele silêncio era o mesmo que precedeu à Palavra criadora: “Faça-se a luz”! O silêncio de Deus é fecundo. É no tempo silencioso que a semente se torna fruto e o ser humano se torna pessoa. O silêncio permite transformar a morte em vida. Aquele túmulo, afinal, era uma fonte pujante de vida e de alegria. Aquele lugar, aparentemente escuro e vazio, veria uma luz que o mundo inteiro não pode conter. Por isso, para nós, as experiências do silêncio de Deus serão sempre um convite à fé e à esperança.
Não há razão para o medo e a tristeza, pois o silêncio esconde a vida e a consolação de Deus. Arrancados do silêncio dos nossos túmulos, também nós podemos gritar como Maria Madalena no primeiro dia de Páscoa: “Vi o Senhor”! Este grito, que nos enche de esperança, rasgará todo o silêncio e ecoará por toda a eternidade.
A pedra que fora removida do túmulo de Jesus revelou a Madalena uma novidade que seu coração buscava, uma novidade que espanta, enche o interior do desejo de procura: “Ele vive”. O caminho de Madalena em direção ao túmulo é símbolo da coragem de atravessar o escuro da madrugada para ver resplandecer uma nova aurora em sua vida, pela força criadora da única Presença que tudo sustenta, tudo recria e enche de amor: a presença do Cristo Ressuscitado.
Ressurreição: experiência de afastamento das pedras que travam o fluir da vida. “Nossa vida está escondida com Cristo em Deus”. Essa vida quer se expandir. Vida que vem de Deus, vivida em Deus e que desemboca, como um rio, no Grande Oceano da Vida.
A experiência da Ressurreição permite transformar todas as pedras da entrada do túmulo em pedra fundamento, sobre a qual construir nossa vida. A ressurreição tudo integra, tudo pacifica, mesmo as pedras que bloqueavam a vida.
A ressurreição nos faz sair da estreiteza da vida e renascer para coisas maiores, do alto.
“Há um risco de acostumarmos e conviver com os sepulcros” (Papa Francisco).
Sepulcro é passagem: é como ventre materno. Há um tempo para germinar, potencializar a vida.
Podemos dizer que a Ressurreição é a “pedra angular” da nossa vida de fé. Pedra sobre a qual a fé pode se construir, base sólida que fundamenta a nossa vida. Diferença entre a Pedra angular e a pedra rolada na entrada do túmulo (que impede o fluir da vida): pedra na entrada no túmulo é sinal de morte, pois se fixa no passado; pedra angular é sinal de vida, base sobre a qual se constrói um futuro inspirador.
Há muitas pedras na entrada do nosso coração, travando a vida (tristeza, fracasso, crise, trauma...); só a experiência de encontro com o Ressuscitado pode rolar estas pedras, integrando-as e dando um novo significado. A experiência de Ressurreição permite transformar a pedra da entrada do túmulo em Pedra angular.
No evangelho de hoje, a experiência dos três personagens (nossos espelhos), revelam pedras na entrada de seus corações. Madalena, vai ao sepulcro sozinha, de madrugada, busca um corpo, carrega uma pesada pedra de tristeza, fracasso e dor pela perda do amigo. Encontra a pedra do sepulcro removida e fica assombrada diante deste fato. A pedra do seu coração também começa a ser removida (vai culminar no encontro com Jesus); ela entra em outro movimento: sai de sua solidão e vai avisar os outros discípulos, embora não tenha clareza do que está ocorrendo.
Sua vida foi uma longa noite até que o encontro com Jesus a libertou e lhe abriu um novo horizonte, restituindo-a em sua dignidade de filha de Deus e potenciando-a para iniciar uma nova vida e formar parte do grupo dos mais achegados a Jesus. Madalena, a “apóstola dos apóstolos”, é uma de nossas grandes mestras na noite e na crise que supõe a passagem pelo Sábado santo.
Pedro e João também carregam a pedra do medo (estavam trancados em casa, como se fosse sua sepultura). Com o aviso de Madalena, começa um movimento interior neles: saem do esconderijo correndo e vão ao encontro do túmulo. João, talvez com uma pedra menor, corre mais veloz. Foi o único apóstolo fiel até o fim. Pedro, que carrega pedra até no nome, permanece na dúvida. João corre e chega primeiro; não entra de imediato no túmulo: precisa de tempo para processar a novidade da pedra removida. Ele é mais místico e se deixa impactar pela surpresa que encontra. Por isso, quando entra no túmulo, mergulha no mistério: viu e acreditou. Bastou alguns sinais (faixas de linho no chão e sudário enrolado), mas foi o suficiente para compreender o que estava acontecendo. Se não houvesse encontro com o Ressuscitado, para ele bastariam os sinais.
Pedro, primário na sua reação, entra abruptamente no túmulo: vê os mesmos sinais, mas ainda permanece na dúvida. Mas ambos, Pedro e João, sentem que as pedras interiores começam a ser afastadas.
“A pedra tinha sido removida”: debaixo de cada pedra que parece amassar-nos, há vida que quer ressuscitar. À luz da ressurreição não há pedra que seja capaz de sufocar o impulso vital. O sepulcro vazio é um convite a saber olhar com o coração para descobrir, nas faixas e sudários de nossa vida, a presença do Ressuscitado. Só o amor nos capacita para um olhar contemplativo; por isso, o amor corre mais depressa que a autoridade. Para quem tem olhar contemplativo, as faixas já representam um grande sinal: apontam para uma vida destravada e plena.
“Viver como ressuscitados” é a marca que identifica os(as) seguidores(as) de Jesus.
Estar atentos às faixas e sudários de nosso cotidiano: elas apontam para a vida.
Texto bíblico: Jo 20,1-9
Na oração: Vamos, no dia de hoje, acompanhar Maria Madalena em seu itinerário da morte à vida, vamos fazer o caminho com ela da nostalgia à fé, do luto à esperança, do vazio à comunidade, do silêncio ao anúncio.
Vamos assumir como nossas as suas perdas, seu pranto e seu desconsolo, e identificar neles também nossas perdas e as de nosso mundo.
Vamos pedir ao Deus de todo consolo que, com sua ternura e cuidado, regue as sementes de nossas perdas, nossas frustrações, nossos ceticismos, nossas expectativas fracassadas, para que engendrem vida nova e não amargura e nem desespero.
Acompanhando Maria Madalena em seu percurso de luto, façamos memória dos nossos lutos e os de nosso povo e peçamos a Deus para sermos consolados, e assim poder ser testemunhas da consolação em meio a tantos fracassos históricos, como estão acontecendo em nosso mundo e em nossos ambientes cotidianos.
- “Olhar o ofício de consolar que Cristo nosso Senhor exerce...” (S. Inácio de Loyola)
Pe. Adroaldo Palaoro sj
“Depois, as mulheres voltaram para casa e preparam perfumes e bálsamos” (Lc 23,56)
* Como se pode passar da SEXTA-FEIRA SANTA ao primeiro DIA da semana sem unir-nos a Cristo no SÁBADO SANTO?
É o Sábado Santo de um credo pascal que sabe que amanhã florescerá a messe. Submergido no sepulcro do Senhor, espera-se simplesmente. Ao sentir a própria incapacidade de levar adiante a exigência do Evangelho, o(a) seguidor(a) de Jesus se apresenta no sepulcro de onde pode irromper a força transformadora da manhã da Ressurreição.
Nossa experiência, como cristãos e como seres humanos, se parece bastante à experiência do Sábado Santo. Não é uma experiência de morte, como a da Sexta-feira Santa; não é tampouco uma experiência de luz, nem de vida, como a do domingo de ressurreição. O Sábado Santo é o dia da ausência e do vazio, o dia do luto, o dia das dúvidas e também das esperanças. É terra de penumbra, tempo de vigília. É um caminho que nos afasta da morte, mas não sabemos para onde nos leva. O Sábado Santo oferece duas possibilidades: ou habituar-nos à ausência, ou arriscar-nos a esperar o “desconhecido”.
O sepulcro é o lugar do silêncio e da espera, onde parece que nada acontece. Há muitos espaços em nosso mundo e em nosso interior que se assemelham a este; muitos lugares onde temos a sensação de apalpar a derrota e o fracasso. Pois bem, esse sepulcro onde jaz a Vida a ponto de explodir, onde a Palavra espera para voltar a ser proclamada com nova força, é hoje o ícone de esperança para todas essas realidades vencidas e atravessadas, que continuam esperando que se faça a luz. Ensina-nos a sentir que, embora não a vejamos, a pedra que cobre tantas realidades está a ponto de romper-se.
Aqui evocamos a palavra talvez mais estranha e misteriosa do Credo: “desceu aos infernos”, ao lugar onde todos os humanos estão unidos no destino comum da morte. Jesus penetrou nesse abismo, chegando assim ao que a Igreja chama “os infernos”, o submundo da morte.
O Credo afirma que Jesus “desceu” ao lugar ou estado desse inferno, para libertar os humanos da morte, oferecendo-lhes sua ressurreição (a tradução em português do Credo afirma: “desceu à mansão dos mortos”). Dizendo que “desceu aos infernos” o Credo destaca o abismo de dureza, destruição e morte onde Jesus revelou sua máxima solidariedade com os humanos. Dessa forma Ele se fez solidário com os mortos, radicalmente. Só é solidário quem assume a situação dos outros. Descendo até à tumba, sepultado no ventre da terra, Jesus se converteu no amigo daqueles que morrem, iniciando, precisamente ali, o caminho ascendente da vida.
Jesus penetrou no abismo da morte e sua presença solidária removeu as entranhas do inferno, como diz Mt 27, 51-52: “a terra tremeu e as pedras se partiram, os túmulos se abriram e muitos corpos dos santos falecidos ressuscitaram”. Dessa forma, realizou radicalmente sua missão messiânica. Jesus já tinha descido ao inferno dos loucos, enfermos, violentados pela miséria, aqueles que estavam angustiados pelas forças do abismo; assumiu a impotência daqueles que padeciam e pereciam arrastados pelas forças opressoras da terra, chegando dessa forma até o inferno da morte.
Havia sobre o mundo outros infernos de injustiça, solidão e sofrimento; mas só o inferno da morte era total e decisivo. Mas Jesus derrubou suas portas, abrindo assim um caminho que conduz para a plena liberdade da vida (à ressurreição), na dimensão da graça. A este nível podemos falar de reconstrução da realidade, salvação definitiva. Por isso, em princípio, estão (estamos) todos salvos pelo Cristo.
Jesus “desceu até o inferno” para encarnar-se plenamente, partilhando a sorte daqueles que morreram. Mas, ao mesmo tempo, “desceu” para anunciar-lhes a vitória do amor sobre a morte, revelando-se como Grande Evangelista que proclama a mensagem de libertação definitiva, visitando e libertando os cativos do inferno.
Quando afirmamos que Jesus “desceu aos infernos” estamos falando desta realidade radical de não-vida, onde Ele revela uma presença “iluminante”, abrindo um horizonte de luz a todos que “jazem na sombra da morte”. A morte redentora de Jesus estende sua influência até o espaço misterioso dos mortos. Não se trata de uma influência externa; foi Jesus mesmo quem partilhou o estado da morte, do inferno. Sua solidariedade simplesmente é anúncio de Evangelho, é salvação, é extensão inesperada da Misericórdia de Deus.
Em nosso contexto social, o inferno continua se expressando nas diversas opressões da história humana (desde a fome ao cárcere, da exclusão social à enfermidade, da injustiça à intolerância...). O Papa Francisco nos fala cada dia da necessidade de “descer aos infernos da história humana” (lugares de opressão, bolsões de fome, violências, exclusões...) para libertar os homens e as mulheres dos infernos atuais do mundo, esperando a grande libertação de Deus.
O pior inferno é aquele alimentado justamente pelos que se dizem seguidores(as) de Jesus, mas que assumem atitudes preconceituosas e intolerantes, fazem apologia da “posse de armas”, criam guetos sociais, políticos, religiosos..., onde a morte continua tendo a primazia. Neste inferno se situam aqueles que preferem fechar-se em sua violência, de maneira que não aceitam, nem neste mundo nem no novo mundo da páscoa, a graça messiânica e o amor universal de Jesus. Sabemos que Jesus não veio para condenar ninguém; mas se alguém se empenha em manter-se em seu egoísmo e violência, pode converter-se, ele mesmo (apesar da graça de Jesus) em inferno perdurável.
Só acredita n’Aquele que “desceu aos infernos” quem está disposto a descer com Ele e comprometer-se a tirar do inferno tantas pessoas oprimidas, torturadas, violentadas...Não tenhamos pressa no Sábado Santo. Não passemos tão rapidamente da Sexta-feira Santa ao Domingo da Ressurreição. Deixemos que o Sábado Santo estenda suas sombras em nosso interior. Reconheceremos, então, que essa é a chave para entender o que nos acontece e o que acontece na manhã de Páscoa.
Com Jesus, que desce aos “infernos” da humanidade, somos também movidos a descer em direção aos nossos “infernos interiores” (lugar dos traumas não pacificados, das vivências não integradas, das feridas não curadas). Na sombria obscuridade interior há pontos de luz que são alimentados pela presença de Jesus que, na morte e descida, integra tudo e tudo redime. Nada do que é humano é descartado.
Nosso interior, a terra, a humanidade, o cosmos… estão grávidos de Ressurreição.
Texto bíblico: Lc 23,50-56
Na oração: Como as mulheres, nos afastamos do túmulo para preparar aromas e perfumes. As orações são aromas que o Espírito recolhe em sua taça. A esperança é o perfume que faz ultrapassar a putrefação das intolerâncias e preconceitos.
Na noite do Sábado Santo nos propomos dormir pouco e levantar-nos muito cedo, porque algo surpreendente vai acontecer. A Luz está para chegar. O Espírito ficou sem palavra, mas já sussurra. A voz do silêncio já geme; nele vislumbra-se a chegada da Vida. Algo grandioso está sendo gestado.
Da escuridão da morte do Filho de Deus brota a Luz de uma esperança nova: a luz da Ressurreição reflete-se no rosto das mulheres esperançosas; a transparência feminina da “Ruah” nos mantém no ritmo da espera.
Aproximam-se os rumores de ressurreição. É Páscoa.
Não basta renascer; é preciso assumir nossa condição de responsáveis de uma Nova Vida.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
“Perto da Cruz de Jesus, estavam de pé a sua mãe, a irmã de sua mãe e Maria Madalena” (Jo 19,25)
Na história do cristianismo tivemos sempre duas grandes tentações: eliminar a cruz ou exaltá-la. A cruz não tem a última palavra no Evangelho, mas é uma página incômoda que não podemos saltar, como tampouco podemos negar nem ocultar a densidade do sofrimento. Negá-lo é negar o humano.
Há algo muito perturbador na ideia de um “Deus crucificado”. Escândalo para uns, contradição para outros, absurdo para muitos... Onde fica a grandeza, a força, o poder? Que sentido tem ainda hoje em dia ajoelhar-se ou fazer reverência diante do crucificado? Como olhar a face da derrota? Como aceitar a morte do Justo? Como compreender o silêncio do Pai diante da morte do Filho?
E aí surge a eterna pergunta pela questão do mal, pelo sofrimento dos inocentes, pela tragédia que atravessa a criação. Como é possível? E um grito se eleva ao céu, entre a queixa e a incompreensão: “por que?”
O Deus crucificado é, junto à ressurreição, a intuição mais radical de nossa fé. Fala-nos da fragilidade humana, assumida pelo mesmo Deus; fala-nos da paz como único caminho, frente a outras sendas construídas sobre o rancor, a violência ou a lei implacável; fala-nos do amor como a maior transgressão em um mundo que etiqueta muitas pessoas como indignas de serem amadas; fala-nos da dor de Deus, um Deus que não é distante, alheio nem indiferente à criação que saiu de seu coração; um Deus próximo até o ponto de esvaziar-se em nós, conosco, por nós; fala-nos das entranhas de misericórdia d’Aquele que se comove diante dos sofrimentos humanos; fala-nos de compromisso, de uma aliança inquebrantável, e de risco; fala-nos de vítimas inocentes e verdugos inconsciente que não sabem o que fazem.
Mas, nem para verdugos nem para as vítimas a Cruz há de ter a palavra definitiva. Tudo isso, e muito mais, é o que podemos ver quando contemplamos o Crucificado.
Gólgota, o monte da Cruz, do Amor e do pranto. Um lugar carregado de densidade. Nele está o amor fiel e atravessado de uma mãe, a fidelidade de um discípulo e a coragem das mulheres que não abandonam nem fogem; ali se expressa a esperança ferida de um bom ladrão, o reconhecimento assombrado de um centurião, a zombaria daqueles que não são capazes de compreender e pedem provas, a indiferença daqueles que repartem as roupas do crucificado; e, sobretudo, Gólgota desvela uma morte que é consequência de uma vida de entrega, feita de gestos, palavras e obras; desvela uma vida que se fez doação radical nas mãos daquele que se revela Misericórdia.
A vida de Jesus é inseparável de sua execução, de sua morte. Estas são consequência de seu modo de ser e de estar na vida e com as pessoas, sendo misericórdia em ação, misericórdia em relação.
O Crucificado é a expressão máxima da ternura entregue até o extremo na missão de aliviar o sofrimento dos últimos. Por isso, a ternura é também subversiva, porque inverte a ordem “colocando como primeiros os últimos” (Mt 20,16). A ternura vivida até o extremo, à maneira de Jesus, tem repercussões sociais e políticas e por isso se faz insuportável para aqueles que “fazem de sua força a norma da justiça” (Sb 2,1-17) e “reprimem a verdade com a injustiça” (Rom 1,18).
Jesus é condenado porque sua atuação e sua mensagem sacodem na raiz o sistema organizado a serviço dos poderosos do império romano e da religião do templo. A vida de Jesus se havia convertido em um estorvo que era necessário eliminar, como as vidas de tantas pessoas que hoje se tornam molestas ao sistema ou que são consideradas “presenças perigosas”. Este é o mistério que hoje estamos contemplando.
A liturgia da Sexta-feira Santa nos ajuda a abrir os olhos diante dos crucificados de hoje e a impotente proximidade de Deus com eles.
É preciso olhar sempre a Cruz por dois lados: o dos crucificadores e o das vítimas. Do lado dos crucificadores, a cruz é morte. “Maldita seja a cruz”. Nós cristãos já temos nos acostumados a cantar “Ó Cruz, tu nos salvarás”, e esquecemos que há cruzes que não são cristãs, mas legitimadoras da dor e da injustiça que recai sobre as vidas as pessoas mais feridas e excluídas. A Cruz nunca vai nos poupar da dor, mas nos dá lucidez. Ela nos impede cair em espiritualidades evasivas, depura nossas imagens de Deus, às vezes demasiado burguesas e light, que não suportam a prova do fracasso, da obscuridade e do silêncio.
A violência e a injustiça geram vítimas e contam com nossas cumplicidades. A Boa Notícia do evangelho se manifesta a partir do reverso da história e assume a miséria, a debilidade humana, o limite físico e psíquico, o fracasso. Por isso, a sexta-feira santa nos revela também os aspectos mais obscuros de nossa condição humana.
Há lugares e situações de vida diante dos quais não podemos deixar de exclamar: “Sempre é sexta-feira Santa!”: miséria, exaltação da violência, relações centradas na intolerância, solidão, sonhos quebrados...
Aproximar-nos de cada um desses lugares é tocar as chagas do Crucificado, chagas que criamos e geramos com nossa indiferença e nossa omissão; chagas que nos molestam porque cheiram mal, porque gritam e nos desmascaram, devolvendo-nos à nossa verdade mais íntima. Adentrar-nos em suas vidas é também apalpar o mistério, o mistério do mal e da injustiça, o mistério de uma Vida com maiúsculas que sempre é mais e que brota a partir de baixo e a partir de dentro para dar à luz a esperança, embora nós, muitas vezes, não saibamos percebê-la.
No Crucificado, Deus nos mostra a densidade mais profunda de seu mistério. Um Deus que não só está a favor das vítimas, mas que, à mercê de seus verdugos, revela sua máxima solidariedade e proximidade para com “os sem poder”, com aqueles que “desfigurados, nem pareciam homens” (Is. 52,14). Quando acompanhamos Jesus na paixão, também “vamos sendo talhados” pelas cenas que contemplamos, com o coração aberto à dor e à aflição. Essa dor esvazia nossas autossuficiências e purifica nossas autoimagens triunfais, humanizando-nos. Ao contemplar o amor redentor de Deus revelado em seu Filho Jesus, nós nos perguntamos onde está Ele no sofrimento. Há aqui uma inversão de perguntas:
Para responde à interrogação -“Onde está Deus nas situações de sofrimento e morte?”-, Deus nos desafia a responder à sua própria questão: “Onde está você no meu sofrimento?”.
Contemplando o Crucificado vamos pedir ao Senhor neste dia que nos ajude a permanecer solidários nas situações onde a “Divindade se esconde” (S. Inácio), que nos ajude a olhar a Cruz e escutar o grito dos crucificados nela; escutar os gritos daqueles que vivem na noite do sofrimento, da violência, da injustiça e do desamor. A Cruz é um grito no qual cabem todos os gritos da humanidade, desde o primeiro choro de uma criança até o último suspiro de um moribundo.
Escutemos neste dia os gritos daqueles que vivem na noite do sofrimento, os gritos dos empobrecidos, o grito dos povos e culturas condenadas à exclusão...; todos esses gritos unidos ao grito da mãe-terra, destruída em seus ecossistemas e explorada pela ganância.
Escutemos grito das vítimas do bilionário negócio da venda das armas; o grito dos “descartados” e de todos aqueles que o sistema considera como sobrantes: os sem teto, sem-terra, sem trabalho; o grito daqueles que são julgados por leis injustas em tribunais que, como Pilatos, lavam as mãos....
Texto bíblico: Jo 19,16-30
Na oração: nos Gólgotas deste mundo, continuar apostando, gritando e proclamando Vida, apesar daqueles que investem na cultura da morte.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
“Estavam tomando a ceia” (Jo 13,2)
Na Quinta-feira Santa celebramos o Amor de Jesus até o extremo, a radicalidade de sua ternura que se faz cuidado até o ponto de identificar-se com a humanidade mais ferida.
Não é só o “dia do amor fraterno”, mas do amor pleno, em todas as suas dimensões, tal como se revelou na vida e mensagem de Jesus, culminando neste dia através de quatro expressões:
- É Amor de Ceia, compartilhar o pão e o vinho (Eucaristia), em gesto de comunhão aberta a todos os homens e mulheres da terra, amor que protesta contra a fome e marginalização de milhões de pessoas;
- É Amor de Lava-pés, ou seja, de serviço concreto aos outros, na casa, no trabalho, nas relações... É lavar os pés, dar dignidade a quem está próximo ou distante, em gesto concreto de compromisso e ajuda humana;
- É o Amor do Novo Mandamento, o único mandato de Jesus, que marca a identidade dos seus seguidores.
- É Amor que se institui em forma de Ministério concreto de serviço aos demais. Este é o dia do sacerdócio, que não é posição de poder sobre os outros, mas um modo de viver, acompanhando e ajudando os outros, homens e mulheres, em gesto concreto de amor (“como eu vos tenho amado” e “vos lavei os pés”).
Enfim, Jesus pede aos seus que amem assim, que se lavem os pés, que se ajudem e sirvam a todos. Esta é sua Páscoa de Quinta-feira Santa. E tudo isso junto a uma mesa, despojada e provocativa.
Modelada pelo ser humano, a mesa, ao mesmo tempo modela todo aquele que dela se aproxima; na perspectiva cristã, a mesa desperta em nós aquela sensibilidade e delicadeza de servidores, como Jesus teve, ao se prostrar, com o avental, aos pés dos apóstolos para lavar-lhes os pés.
Jesus, antes de se deixar no sacramento do pão, “desejou ardentemente” cear com os seus, ou seja, Ele teve fome, desejo ardente, motivação para... A mesa e a refeição foram o “lugar sagrado” do pão, dos afetos, dos desejos de relações livres, de compromisso, de justiça e de solidariedade vividos por Ele durante sua peregrinação, passando de mesa em mesa, até se fazer alimento, numa mesa de refeição e de festa: a da sua Páscoa.
Podemos dizer que a mesa tem um “quê” de mistério pascal, pois ela nos capacita para acolher o inesperado que vem: o “outro” em sua aflição, em sua fome, em sua dor. Nela, o coração humano encontra repouso, alento, força e vigor para caminhar com sentido de viver no mundo que o cerca, ora em sua paixão, ora em sua morte, mas também em sua ressurreição, até que toda a Criação seja plenificada em Deus.
Palco da realidade cotidiana, a mesa da refeição e da festa transforma-se num grande teatro, onde o personagem principal é a vida e suas aventuras. Nesse teatro cotidiano, nós contamos, re-contamos e nos re-conectamos com a nossa própria história, muitas vezes enterrada pelo esquecimento. Como seres pensantes e pulsantes, somos desafiados, junto à mesa, a compor uma nova história.
O importante é que estejamos à mesa da refeição sempre inteiros, para que nada seja perdido, alienado aos nossos olhos, mas sim resgatado, redimido pelo “mistério do encontro”. Mesa criativa, solo de onde brota o alimento material, emocional, psíquico e espiritual em suas múltiplas formas, cores, aromas e sabores do Reino do Pão e da Festa da Vida.
A grande e sublime refeição foi a Última Ceia que se apresenta como o cume de todas as refeições que Jesus participara com diferentes pessoas, porque nela desembocam as aspirações de todos os tempos.
Na Eucaristia, estão a mesa, a comida e a bebida, os comensais, sem exclusão de ninguém, provocando, como na mesa humana, a partilha, o encontro, a troca, a comensalidade, a união e a comunhão.
O altar se torna o móvel sagrado por excelência, em torno do qual se reúne a povo peregrinante, que marcha para o festim do Reino, mesa definitiva, preparada para todos aqueles que ouviram e atenderam o convite do Senhor. A mesa do Senhor oferece pão e vinho, os quais são distribuídos sem distinção de pessoas. A eucaristia reúne os participantes na comensalidade divina, recordando-lhes o grave compromisso que os une a todos os homens e mulheres. Unir-se a Cristo é unir-se a toda e qualquer pessoa.
Quê fazia e quê queria fazer Jesus na Última Ceia?
A chave de resposta está no evangelho de hoje; a única forma de compreender a Eucaristia é entender o Lava-pés. O gesto escandaloso de Jesus revela um enfoque nem sempre percebido em seu sentido último. Jesus não faz um gesto teatral; Ele revela aos apóstolos um “novo ângulo” ou um novo modo de ver as coisas: não a partir do lugar dos comensais, mas a partir da perspectiva de quem não está sentado à mesa. O gesto de Jesus convida a nos deslocar, ou seja, ocupar o lugar da pessoa que não participa da mesa.
Quê novidade se percebe a partir deste lugar?
Quando me situo no lugar fora da mesa, a primeira coisa que percebo é que falta um lugar junto à mesa, precisamente o meu lugar. Suponhamos que os comensais me admitam à mesa e arrumem um lugar para mim. Automaticamente se revela um problema: redistribuição de espaço, de alimentos, etc... Portanto, olhar a refeição a partir do ângulo de quem não participa muda totalmente as perspectivas.
Assim fica claro que não é normal que haja pessoas excluídas da refeição, quando todos fomos criados para sentarmos como irmãos(ãs) na mesma mesa do Pai. Enquanto houver excluídos não será o banquete que Jesus quis, e portanto, será necessário cair-nos na conta da exigência de mudança para que todos eles possam participar. Somente fazendo-nos solidários da promoção e libertação daqueles que não se sentam à mesa comum poderemos realizar, na verdade, a prática do sacrifício de Jesus.
Esse era o desejo que habitava o mais profundo do coração d’Ele: reunir todos os homens e mulheres ao redor de uma mesa, sem exclusões e nem marginalizações. Não é possível reconhecer o Corpo do Senhor presente na Eucaristia se não reconhecemos o Corpo do Senhor na comunidade onde alguns passam necessidades. Pois, se fechamos os olhos às divisões e às desigualdades mentimos ao dizer que Cristo está presente na Eucaristia.
Enquanto não nos mobilizamos a mudar nossa sociedade de maneira que mais pessoas aceitem a alegria de compartilhar o pão e a vida, faltará algo em nossa Eucaristia.
Essa “ferida” o cristão deve sempre tê-la presente.
Texto bíblico: Jo 13,1-15
Na oração: O apelo, neste dia, é “cristificar nossas mesas cotidianas”; e ao participar delas nos descobrimos solidários com todo o povo que caminha; ao mesmo tempo, elas prolongam em nossas casas a “mesa do Senhor”, quebrando em nós qualquer solidão ou muralha e nos ajudando a acolher as pessoas, a amá-las na sua diferença. A “mesa cristificada” desperta em nós outras fomes: justiça, solidariedade, compaixão...
- Jesus, companheiro de mesa, nos convida a ser mesa de acolhida e de partilha.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
Hoje há consenso sobre o fato de que os Evangelhos começaram a ser redigidos a partir do relato da Paixão; e que antes de serem constituídos na forma a que chegaram, já existia, como seu embrião, a narrativa da Paixão.
Por isso, quando os primeiros cristãos se reuniam, era para recordar a Paixão do Senhor. Ela é, efetivamente, o núcleo vital de tudo o que diz respeito a Jesus. E é a história que nos funda como cristãos, que nos confere a identidade, que nos faz ser.
Quer estejamos ou não conscientes, nós, cristãos, somos uma consequência da Paixão de Cristo. Disponhamos por isso o nosso coração a acolhê-la uma vez mais.
Pode dar-se o caso de nunca estarmos verdadeiramente confrontados com ela. Talvez nunca a tenhamos ainda considerado uma história especialmente dirigida a cada um de nós.
A Paixão de Jesus atesta a verdade fundamental do seu amor, que não é abstrato ou sem destinatário. É um amor real, que podemos experimentar sempre.
Jesus vive a sua Paixão como um ato de compaixão sem medida a nosso favor. Jesus abraça a nossa condição, a nossa inconsistência, abraça aquilo que em nós nos agrada e que não nos agrada, abraça aquilo que nos entristece ter acontecido ou simplesmente não ter acontecido.
Jesus aceita ser provado em tudo para abraçar tudo em nós: «Eu estive sempre ao vosso lado, nunca estive longe de vós, nunca alguma coisa vos separou do meu amor»
In Avvenire
Trad.: Rui Jorge Martins no SNPC 14.04.2019
“E levaram o jumentinho a Jesus” (Lc 19,35)
Celebramos hoje o chamado “Domingo de Ramos”, a entrada triunfal de Jesus em Jerusalém. Nada de mobilizações, nada de comissão de preparação da festa; não teve um mestre de cerimônias para que tudo acontecesse dentro das normas estabelecidas; não pediu que a polícia lhe acompanhasse, nem guarda-costas para sua segurança pessoal. Jesus nunca buscou as grandes manifestações populares. A improvisação contou com a espontaneidade do povo simples e, como tal, nada de grandes solenidades, de aparato espetacular. Para Jesus, bastava-lhe um jumentinho. O resto ficou a cargo da iniciativa da multidão que se uniu a Ele, enfeitando o caminho e entoando hinos messiânicos.
Todos sabemos que as “mudanças profundas e duradouras” na sociedade não vem de cima, mas de baixo, a partir da solidariedade e da identificação de vida com os últimos deste mundo. Ali, nas periferias e nas margens, há uma esperança latente e alentadora daqueles que se empenham por imprimir um movimento novo à história; é nele que está a semente de uma vida diferente, criativa e mais promissora. E Jesus foi o ponto de partida de uma ousada mudança na história da humanidade.
Os evangelistas sinóticos relatam a vida pública de Jesus como uma subida das “periferias” até a capital política e religiosa. E Jesus “entra” em Jerusalém, montado num jumentinho e aclamado por seus seguidores. Escolhe um jumentinho como símbolo de um messianismo de paz e simplicidade. Nada, portanto, de uma manifestação espetacular; Ele rompe com a imagem de um triunfador e despoja-se de todo indício de poder. Jesus, presença de vida nos povoados, vilas e campos, quer levar vida a uma cidade que carregava forças de morte em seu interior. Ele quer pôr o coração de Deus no coração da grande cidade; deseja recriar, no coração da capital, o ícone da nova Jerusalém, a cidade cheia de humanidade e comunhão, o lugar da justiça e fraternidade...
Mantos colocados como tapetes pelo solo, ramos de oliveira e palmas e tudo o que saía de dentro das pessoas: o canto, o grito de louvor, as vivas, os aplausos. O povo simples faz as coisas de maneira simples, mas que se tornam simpáticas, festivas. Além disso, Jesus não precisava mais que isso. Jesus não quis entrar em Jerusalém como os conquistadores militares, mas como o homem simples, como o Salvador simples. Porque, para Jesus era uma entrada que queria ser como uma nova oferta de salvação à cidade de Jerusalém, e a salvação não é oferecida com títulos de grandeza; isso sim, ela é oferecida com cantos, danças, alegria. Jesus quer que todos descubram a novidade do Evangelho com vibração e com sentido festivo; quando Ele nos oferece o dom salvação, faz com alegria e é também com alegria que somos chamados a acolhê-lo.
Como mensageiro de paz, chegou Jesus a Jerusalém montado num jumentinho. Não precisava de soldados e nem de instituições de violência para se defender. Sem armas de guerra, sem um possante cavalo, sem poderes e nem ambições..., mas montado num jumentinho de paz; um jumentinho emprestado e novo, não domado, pois Jesus não possuía nem um jumentinho.
O texto de Lucas supõe que Jesus tinha conhecidos naquela região, à entrada da aldeia (Betfagé). O jumentinho não era seu, mas contava com amigos que o emprestaram. Este jumentinho é símbolo da vida campesina e pacífica, animal do pobre; é conhecida sua resistência na lida do cotidiano do campo: carrega peso, lavra a terra, suporta longas viagens... Não é animal para a guerra e nem para alimentar a vaidade daqueles que querem demonstrar seu poder diante dos outros. Jesus se serve de um jumentinho para dizer que não quer se impor pelas armas e pela força; seu senhorio é diferente, retomando as tradições campesinas de seu povo.
Como o jumentinho não tem arreio, nem apetrechos (é um jumentinho novo, nunca montado), os discípulos estendem seus próprios mantos na garupa, para que assim Jesus pudesse montar com dignidade e, sobre sua garupa, pudesse entrar na cidade, descendo pelo Monte das Oliveiras. Jesus chegou a Jerusalém de maneira pacífica, mas muito provocadora, pois instaurar o Reino como Ele propunha implicava um desafio para o sistema imperial de Roma e para a política sacerdotal do templo.
Que Jesus era uma pessoa desconcertante, não resta dúvida. Continuamente Ele assumia atitudes que desconcertavam a todos, ou realizava alguns gestos que causavam assombro... Sempre evitou grandes manifestações que poderiam se prestar a enganos e equívocos em torno à sua pessoa. Quando quiseram fazê-lo rei, escapou e se refugiou na montanha. Como é que agora, o primeiro dia de sua última semana, lhe ocorre armar um rebuliço? Como profeta, Jesus toma consciência que agora já não é mais o momento dos discursos, mas dos gestos; já não é o momento das palavras, mas dos fatos; já não é o momento de esconder-se, mas de mostrar a cara; já não é o momento das prudências, mas dos riscos; já não é o momento de ocultar sua messianidade, mas de proclamá-la.
A Igreja também necessita de gestos, mas de gestos evangélicos. Muito mais que grandes discursos, a Igreja necessita de gestos simples que o povo entenda, viva e sinta. Temos demasiados “exibicionismos clericais” que tem pouco a ver com a simplicidade de Jesus; temos grandes solenidades, que possivelmente são bem-intencionadas, mas que expressam pouco da simplicidade e da pobreza de Jesus.
Com frequência confundimos nossa vitalidade cristã com as grandes massas em torno às grandes figuras da Igreja. Medimos nossa fé pelas estatísticas daqueles que assistem a essas grandes manifestações. E logo, todos somos conscientes de que tudo continua igual, que as grandes massas não vão mudar depois dos grandes aplausos e vivas.
Jesus mesmo viveu essa experiência. Essa mesma multidão que hoje o acompanha, dentro de uns dias pedirá que o crucifiquem. Os entusiasmos massivos têm muito pouco de personalização da fé. É mais o sentimentalismo do momento que uma experiência profunda do Evangelho. Jesus não fundou uma Igreja de grandes massas. Pelo contrário, falou de uma Igreja “pequeno rebanho”, “sal e fermento”, esvaziada de vaidades e carregada de simplicidade.
Não estamos insistindo em demasia no prestígio da Igreja? Não estamos por demais preocupados com uma Igreja que brilha, em vez de uma Igreja simples, pobre e despojada? Não temos na Igreja “carros possantes” em excesso e pouquíssimos jumentinhos?
Texto bíblico: Lc 19,28-40
Na oração: Nosso zêlo e amor pelo Evangelho e pela semente do Reino que nele está contida, deve favorecer o advento de uma “Nova Jerusalém”; é preciso cuidar o coração, esvaziá-lo, limpá-lo, aquecê-lo, transformá-lo em humilde receptáculo, para que o Espírito do Senhor possa ali pousar e nele habitar como num ninho acolhedor, transmitindo-lhe vida, luz, calor, paz, ternura...
- Como você descreve sua “Jerusalém interior”: cidade da paz e do encontro ou cidade da intolerância e da violência?
Pe. Adroaldo Palaoro sj
“Mestre, esta mulher foi surpreendida em flagrante adultério” (Jo 8,4)
“Um país que empequenece seus cidadãos para que possam ser mais dóceis em suas mãos, logo descobrirá que, com seres humanos apequenados, nenhuma coisa grande poderá ser realizada” (Stuart Mill). Em outras palavras, uma sociedade que “empequenece” as pessoas, nunca realizará grandes obras.
Uma afirmação assim, serve de advertência diante do nosso contexto social, político e religioso em que vivemos, onde a intolerância, o julgamento, o preconceito, a crítica destrutiva... assumem contornos assustadores, humilhando os outros, ridicularizando-os, descartando-os... Quando proferimos, contra uma pessoa ou grupos, acusações ou expressões que ferem a reputação, estamos esvaziando nossas relações de humanismo, desembocando na barbárie. E quando os meios de comunicação, sobretudo as redes sociais, se colocam a serviço deste movimento desumanizador, passamos a viver na “sociedade do desprezo”.
O espírito da acusação e de humilhação do outro, é um espírito de morte. Este mal espírito de nosso tempo, em seu exagero cancerígeno, aparece também, com muita frequência, na Igreja e em suas comunidades e grupos. Por meras aparências, suspeita-se do outro, pensa-se mal dele, condena-o no coração, marginaliza-o. Quantas pessoas já temos “empequenecidas” em nossa opinião! Diante do desapreço generalizado é preciso deixar ressoar em nosso interior as palavras de Jesus: “quem dentre vós não tiver pecado, seja o primeiro a atirar-lhe uma pedra”.
As “pedras na mão” são fáceis de serem encontradas também em nossas vidas. Hoje são as pedras do WhatsApp, do twitter, das mensagens preconceituosas, das fake-news..., que bloqueiam o futuro das pessoas através da crítica sem piedade, do desprezo que destrói, da indiferença que congela as relações... A arrogância também tem raízes em nosso interior; manifesta-se no nosso pensar e agir cotidianos. Ela é a base de nossas intransigências, dos nossos preconceitos, dos nossos dogmatismos, de nossas críticas amargas, dos comentários maldosos... A arrogância mora no nosso desprezo e nas nossas ironias. Ela nos paralisa.
O convite de Jesus a reconhecer nosso pecado é a única via para que essas pedras não caiam sobre nenhum inocente e, ao mesmo tempo, nós possamos encontrar a possibilidade da transformação e da mudança. Enquanto nos habite este “espírito mau”, nada bom, nem grandioso poderá ser construído. Uma sociedade que “empequenece” seus homens e mulheres não poderá ter futuro; uma igreja que “empequenece” seus membros, através de um moralismo e um legalismo doentio, também não poderá ser testemunha do evangelho; um grupo, dentro da igreja, que faça o mesmo, estará traindo o modo compassivo e acolhedor de Jesus.
“A misericórdia de nosso Senhor se manifesta sobretudo quando Ele se inclina sobre a miséria humana e demonstra sua compaixão, para quem necessita de compreensão, cura e perdão. Tudo em Jesus fala de misericórdia; mais ainda, Ele mesmo é a misericórdia” (Papa Francisco). A presença misericordiosa de Jesus aparece claramente na cena da “mulher adúltera”, relatado pelo evangelho deste domingo. Ali, a mulher é colocada no centro, pelas autoridades religiosas que tem a lei na mão: constrangimento, humilhação, olhares julgadores, juízo de morte... sobre ela. Vítima de julgamento, ela está no centro da morte. Não há saída, perante a lei. Jesus, no entanto, toma outra atitude: desloca-se para o centro das atenções e se faz centro junto com a mulher; sua presença solidária continua deixando a mulher no centro; porém, Ele inverte a situação dela: ela agora está no centro da misericórdia, portanto, no centro da vida.
Jesus, com sua presença misericordiosa, inverte o sentido do centro: antes, centro de exclusão e violência, agora, centro como ponto de partida para nova vida. Antes, um centro atrofiado que conduzia à morte; agora, centro expansivo, pois ativa e impulsiona a vida em direção a um novo horizonte de sentido.
A partir desse centro, junto a Jesus, a mulher poderá ser autora de sua nova existência; ela é movida a expandir esse centro, indo ao encontro dos outros para testemunhar a experiência que viveu: “vai e não peques mais”. Ela, agora, torna-se centro da vida pois recupera sua autonomia e poderá abrir-se ao novo futuro, como oferta da misericórdia.
Vivamos a Quaresma como um novo tempo para nossa sociedade, para a igreja, para as comunidades! Queira Deus que nos “beatifiquemos” uns aos outros “em vida”! Só reconhecendo, com um olhar apreciativo, o profundo, o que há de bondade no coração, a luz que cada um emite, engrandeceremos os outros e faremos que nossa sociedade, nossa comunidade, seja cada vez maior. A cultura do encontro, da acolhida, do apreço pelo outro, faz chegar o Reino de Deus.
Jesus sempre revelou um “olhar alternativo”, longe do julgamento, do desprezo e da humilhação. Ele não via as pessoas através do filtro “justos ou pecadores”, nem projetava nelas suas simpatias ou antipatias, seus medos e suas necessidades.
Jesus sempre foi a luz, sem sombras nem exclusões. Ninguém nunca ficou à margem da sua luz, pois seu olhar pousava sobre todo rosto, sem diferenças de raças, línguas ou religiões. Quando Jesus se aproximava da realidade condenada, a olhava de maneira diferente do olhar domesticado pelo moralismo. Por isso, diante da insistência das autoridades religiosas que argumentavam com as pedras nas mãos, Jesus faz um silêncio, tempo e espaço que também ajudam os acusadores a olhar de outra maneira. Olhando com amor há, sim, saída para a mulher adúltera. Se não olharmos a realidade com amor, toda a nossa visão estará adulterada. Compreendem-no as autoridades religiosas quando Jesus as convida a olhar a mulher com misericórdia e a partir de sua própria realidade de pecadores. Os varões deixam cair as pedras de sua segurança e da lei, abrindo suas mãos para acolher outra visão. Assim, a mulher é salva da morte, da lei, de seu pecado e do cerco social que lhe negava a vida, simbolizado nesse grupo de homens que a rodeava. Jesus olha a interioridade, ali onde essa mulher é amada pelo Pai, e resgata sua vida dos olhares de morte que a capturam. Nesse dia, o povo que rodeava Jesus aprendeu a olhar.
Jesus é o mestre do olhar alternativo. Precisamente porque conhece o coração humano, Jesus acerta ao dizer: “Quem não tem pecado, que atire a primeira pedra”. Diante destas palavras, que desnudam as atitudes farisaicas daqueles que se achavam “justos”, todos se afastam. Ninguém é melhor que ninguém. Com quê direito julgamos, desqualificamos e condenamos?
Texto bíblico: Jo 8,1-11
Na oração: Em muitas situações difíceis da vida, o que salva é o olhar. Olhar com os “olhos cristificados”: eis o desafio. Não se trata de qualquer olhar. É o olhar limpo, diáfano, que desarma, que não esconde engano ou segundas intenções.
Contemplar o rosto do outro é sentir sua presença, sem pré-conceitos e pré-juízos..., vendo nele o sinal da ternura de Deus. Olhar admirado e gratuito, como aquele de Jesus, que transforma, que liberta e que se comove diante da realidade, especialmente da frágil realidade humana.
- Seu olhar: marcado pelo peso da lei ou pelo peso do amor?
Pe. Adroaldo Palaoro sj
“Quando ainda estava longe, seu pai o avistou e foi tomado de compaixão.
Correu-lhe ao encontro, abraçou-o e o cobriu de beijos” (Lc 15,20).
As parábolas mais belas que saíram dos lábios de Jesus, elaboradas nas profundezas de seu coração, foram aquelas nas quais deixou transparecer a todos a incrível misericórdia de Deus. A mais cativante, com certeza, é a parábola do “pai misericordioso”. Aqueles que a escutaram pela primeira vez certamente ficaram surpreendidos. Não era isto o que eles ouviam dos escribas ou dos sacerdotes. A insistência “moralista” no pecado nos fez interpretar esta parábola de uma maneira unilateral. É incorreto chamar o relato de “parábola do filho pródigo”. Ela não é dirigida aos pecadores para que se arrependam, mas aos fariseus e mestres da lei para que mudem sua ideia e imagem de Deus.
Nesta parábola, Jesus justifica sua postura para com os publicanos e pecadores, desvelando quem é o Deus de misericórdia para todos nós, sejamos “bons” e “maus”. Na maneira de atuar com os dois filhos, o pai da parábola torna visível o rosto do Deus compassivo revelado por Jesus e não o “deus legalista do templo”; a maneira como Jesus acolhe os pecadores e excluídos, torna presente o Deus que ama a todos indistintamente.
Jesus não fala nunca de um Deus indiferente ou distante, esquecido de suas criaturas ou interessado por sua honra, sua glória ou seus direitos. No centro de sua experiência religiosa não nos encontramos com um Deus “legislador” procurando governar o mundo por meio de leis, nem com um Deus “justiceiro”, irritado ou irado diante dos pecados dos seus filhos e filhas. Para Jesus, Deus é compaixão, e a compaixão é o modo de ser de Deus, sua primeira reação diante de suas criaturas, sua maneira de ver a vida e de olhar às pessoas, o que move e dirige toda sua atuação. Deus sente para com suas criaturas o que uma mãe sente para com o filho que leva em seu ventre. Deus nos carrega em suas entranhas misericordiosas.
A compreensão da “parábola do amor paterno-materno de Deus” pode ser para nós uma verdadeira iluminação. Ela revela não só o “coração compassivo” de Deus, mas também vemos, refletida nela, de maneira sublime, tudo o que devemos aprender sobre o “falso eu” e o nosso verdadeiro ser. Os três personagens representam diferentes aspectos de nós mesmos.
A “parábola dos dois filhos” trata de uma denúncia implacável contra a espiritualidade farisaica. Em primeiro lugar, tanto o filho mais novo como o primogênito habitam em cada um de nós; podemos encontrar em cada um deles, elementos que nos levem a identificar-nos com ambos.
Temos considerado a parábola como dirigida aos “filhos pródigos”. O “filho mais novo” simboliza nossa natureza egocêntrica e narcisista que nos domina enquanto não descubramos o que realmente somos. Dá por suposto que todos temos muito do filho mais novo, que é aquele que rompeu a aliança e se distanciou da casa paterna. A verdade é que a atitude do filho mais velho também deveria ser objeto de uma atenção mais cuidada. É relativamente fácil sentir-nos “filho pródigo”. É fácil tomar consciência de ter di-lapidado um capital que nos foi entregue sem ter merecido. É fácil cair na conta que temos rompido com o pai e com a casa, que temos desejado que ele estivesse morto para herdar seus bens, temos renegado o entorno no qual se desenvolveu nossa existência. Tudo para potenciar nosso egoísmo, para satisfazer nosso hedonismo à custa daquilo que nos foi entregue com amor. O fracasso do filho mais novo e a desesperada situação à qual chegou, facilita a tomada de consciência de que tomou o caminho equivocado.
É difícil descobrir em nós o “irmão mais velho” e, no entanto, todos temos mais traços deste que do filho mais moço. Com frequência, não entendemos o perdão do Pai para com os pródigos, nos irrita que outra pessoa que se comportou mal seja tão querida como nós; não percebemos que rejeitar o irmão é rejeitar o Pai; caímos facilmente na queixa que envenena e no julgamento que mata. Não só não nos sentimos identificados com o Pai, mas buscamos, por todos os meios, que o Pai se identifique conosco; coisa que não se passa na cabeça do irmão mais novo. A partir desta perspectiva, tampouco descobrimos que precisamos de conversão e temos de regressar ao Pai. Por isso, a parábola deixa em um suspense inquietante a resposta do irmão maior; não nos diz se ele acolheu o apelo do Pai e se incorporou à festa. Isto nos faz pensar.
A descoberta de que somos o irmão mais novo e, ao mesmo tempo, o irmão mais velho, nos faz perceber o objetivo da parábola, que é o Pai. Todo temos de deixar de ser “irmão mais novo” e “irmão mais velho” para converter-nos finalmente em “Pai”.
Todos somos chamados a deixar de ser irmãos e identificar-nos com o Pai, como Jesus (aqui podemos descobrir um profundo significado da frase de Jesus: “Eu e o Pai somos Um”). Nossa maturação pessoal acontece quando deixamos transparecer em nós a figura do Pai. “Sede misericordiosos como vosso pai é misericordioso”. A parábola de hoje nos faz tomar consciência que sempre haverá, em nossa vida, etapas a serem superadas, na direção do coração compassivo do Pai.
Permanecer distanciados de nosso verdadeiro ser é afastar-nos de Deus e caminhar na direção oposta à nossa plenitude. Daí a necessidade de interpretar a parábola não a partir da perspectiva de um Deus externo a nós, mas a partir da perspectiva de um Deus que se revela dentro de nós mesmos. Nós mesmos somos o Pai/Mãe que perdoa, acolhe e integra tudo o que há em nós de fragilidade e engano. Ser verdadeiro(a) filho(a) não é viver submetido ao pai ou afastado dele, mas imitá-lo até identificar-nos com ele.
O “pai” é nosso verdadeiro ser, nossa natureza essencial, o divino que há em nós. É a realidade que temos de descobrir no fundo de nosso ser. Não faz referência a um Deus que nos ama a partir de fora, mas ao que há de Deus em nós, formando parte de nós mesmos. É o fogo do amor compassivo que derrete a frieza nos nossos relacionamentos, queima toda pretensão de julgamento e intolerância, e ativa o impulso ao contínuo retorno à casa paterna. Essa realidade fundante tudo abarca e tudo integra nela mesma.
Para re-descobrir o(a) “pai-mãe que nos habita”, não supõe ignorar nossa condição de “irmão mais novo” e “mais velho”; é preciso aceitá-la, é preciso saber conviver com o que ainda há em nós de fragilidade e imperfeição. Devemos buscar superá-la, mas enquanto esse momento não chega, é preciso aceitá-la e ultrapassá-la, ativando o amor incondicional do Pai. Tanto o irmão mais novo como o irmão mais velho que há em cada um de nós, deve ser objeto do mesmo amor. A parábola não exige de nós uma perfeição absoluta, mas que caiamos na conta de que nos resta um longo caminho a percorrer. O que ela pretende é colocar-nos no caminho da verdadeira conversão: a superação do auto-centramento e do perfeccionismo.
Falta-nos dar o último passo no desprendimento do ego e para nos identificar com o que há de divino em nós, o Pai.
Texto bíblico: Lc 15,1-3.11-32
Na oração: “Eu e o Pai somos Um”: é a melhor expressão de quem foi Jesus.
Você também é “Um com Deus”, mas talvez não tenha se inteirado disto; descubra-o e esta frase saltará do mais profundo do seu ser.
- Descubra o que há em você do irmão mais novo: deixar-se levar pelo hedonismo individualista, buscar o mais fácil, o mais cômodo, o que o corpo pede... Seu objetivo é satisfazer as exigências de seu falso “eu”.
- Descubra o que há em você de irmão mais velho: distante do coração do pai, fechado na queixa amarga e incapaz de expressar um gesto de acolhida.
- Descubra as marcas do Deus Pai/Mãe nas profundezas de seu ser: cheio de compaixão, festeiro, aberto à vida...
Pe. Adroaldo Palaoro sj
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