“Quando jejuares, perfuma a cabeça e lava o rosto...” (Mt 6,17)

O Tempo Quaresmal, como toda liturgia, só tem sentido em função da Páscoa. Por isso, estamos iniciando o grande tempo pascal da Igreja. Quarenta dias de preparação para a festa da Páscoa e, depois, cinquenta dias de celebração da Ressurreição do Senhor e da presença inspiradora de seu Espírito. Estamos no tempo forte da comunidade cristã.

Quaresma: tempo litúrgico de reconstrução de cada um de nós e da comunidade; tempo que nos motiva a colocar em questão a razão de ser da vida – para que vivemos? sobre quê está fundamentada a nossa vida? para onde caminhamos?...

Nesse sentido dizemos que quaresma é um tempo intenso de conversão; para isso ela tem sua linguagem, sua celebração, seus exercícios e seus ritos de conversão...

Mas a conversão não é simples mudança exterior no modo de ser e agir, e sim, “mudança de senhor”; quaresma é tempo forte para consultar o interior e verificar qual é o “senhor”  que move o nosso coração. É neste contexto de conversão que se situam as práticas quaresmais: oração, jejum e esmola. Através de uma vivência mais radical dessas práticas começa a acontecer um deslocamento dos “falsos senhores” que habitam o nosso coração e, ao mesmo tempo, amplia-se o espaço interior para a presença e ação do “verdadeiro Senhor”.

Por ser um tempo especial para alimentar nossos laços comunitários, a Igreja no Brasil nos apresenta, durante a Quaresma, a Campanha da Fraternidade, destacando algum aspecto da caminhada cristã que merece ser aprofundada, refletida, rezada, desembocando num compromisso que deve estar sempre em sintonia com o Evangelho.

Este é o tema da Campanha da Fraternidade para 2021: "Fraternidade e diálogo: compromisso de amor”, cuja lema é: “Cristo é a nossa paz: do que era dividido, fez uma unidade” – Ef 2,14). 

O isolamento sanitário, pelo qual estamos passando, põe às claras esta dura realidade: já levamos anos praticando o distanciamento social e político, a polarização religiosa, o enfrentamento de extremos, a separação ideológica, a distância como meio para nos fechar em nossas posições fanáticas, preconceituosas e intolerantes, o esvaziamento do diálogo... Uma voz surda sempre esteve presente: devemos nos separar dos outros, daqueles que pensam diferente, sentem diferente, vivem diferente, assumem posições e opções diferentes...

Nenhum tipo de diferença (cultura, gênero, religião, raça, classe social...) deveria romper o fluxo do respeito e diálogo entre os seres humanos, dando lugar a atitudes de violência ou ódio no convívio humano.

Quando analisamos elementos que nos unem, vemos que todos temos origem e destino iguais: habitamos a mesma casa comum, somos formados da mesma matéria (argila) e em todos nós sopra o mesmo Espírito. Já seriam elementos mais que suficientes para reconhecer que há vínculos que nos unem, que podemos ser irmãos e que devemos nos deixar conduzir pelas relações fraterno-igualitárias, pela aceitação mútua da alteridade diferente, sem jamais esquecer do totalmente Outro, de cuja fonte tudo tem sua origem. 

As “Cinzas”, que são colocadas sobre nossas cabeças, deveriam despertar em nós a consciência que todos procedemos do pó; são as cinzas que nos unificam e quebram toda pretensão de poder, de vaidade, de querer se colocar acima dos outros... O que a cultura do ódio e da indiferença separa, as cinzas fazem a liga e reatam os vínculos... É com o barro das cinzas que somos reconstruídos como seres humanos, quebrados pela violência, preconceitos e ódios...

Nesse sentido, as conhecidas “práticas quaresmais” – jejum, oração e esmola – visam reconstruir nossa comunhão rompida, para que o diálogo amoroso volte a circular em nossos espaços humanos. Diálogos que se expandem em múltiplas direções: consigo mesmo, com Deus, com os outros e com a natureza.

A vivência quaresmal revela-se, portanto, como um processo dialogal, e isso acontece, em primeiro lugar, no mais profundo de cada um de nós, lugar do “colóquio” íntimo com Aquele que faz do coração humano sua morada. 

De sua íntima relação com o Criador, de um “sentir-se amado de coração e um saber amar com o coração”, o ser humano é movido a estabelecer uma relação fecunda com tudo e com todos:

- Na relação consigo, o ser humano é constituído pela abertura em si mesmo e para si, capacitado para a interiorização ou imanência, para ter consciência de si mesmo, para dialogar consigo mesmo, para ser autônomo e responsável em suas decisões, para ser sujeito da própria história. Não é comum prestar atenção ao que acontece no território interior. Corre-se grandes riscos de se viver em horizontes muito estreitos. Tal estreiteza aprisiona a solidariedade, atrofia a capacidade de diálogo e dá margem à indiferença, à insensibilidade social, à falta de compromisso com as mudanças que se fazem urgentes. O próprio território interior se torna uma couraça e o sentido do serviço some do horizonte inspirador.

- O ser humano é chamado a se relacionar com os outros, sem se confundir. Ele é ser de reciprocidade e complementariedade, que reconhece a própria singularidade, bem como a singularidade das demais pessoas. Reconhece-se a si mesmo e reconhece o outro na sua ‘distinção’, coloca-se numa atitude de relação dialogal. É o ser humano solidário que caminha lado a lado com a caravana humana.

Aqui, ganha sentido, a expressão bíblica “esmola” (“elemosyne”) que sempre está ligada à compaixão e piedade. A esmola mantém indissoluvelmente unidos o sentimento de compaixão e ternura com a solidariedade efetiva; significa ser sensível às necessidades dos outros que, em uns casos, será econômica, em outras, psicológica, em muitos, afetiva... A esmola é misericórdia em ação.

- Na relação com o mundo criado, numa perspectiva global e unitária, o ser humano, frente a todas as criaturas e ao universo, coloca-se não como dominador-depredador utilitário, mas como responsável e colaborador no aprimoramento e/ou na transformação, sem violência interesseira, e numa atitude de respeito e reverência para com o universo, dom de Deus. Descobrimos aqui o verdadeiro sentido do jejum.

 O jejum nos humaniza, nos faz descer do pedestal e nos torna mais sensíveis e solidários; fazer jejum só tem sentido quando brota da sensibilidade que nos faz sair de nós mesmos para viver a partilha, a comunhão.

Jejuar pode também ser um convite a ordenar a mente, a pacificar o coração, a serenar os olhos, a guardar a língua... Purificar a tendência ao imediatismo, ao falso moralismo, puritanismo e perfeccionismo. Implica também não se deixar levar pela tentação de falar mal dos outros, destruir reputações e ser veiculador de ódios e “fake news”..

- Por fim, segundo uma visão bíblico-cristã, para o ser humano, Deus é o grande Outro que o fundamenta e o constitui e com ele estabelece uma relação dialógica. Reconhece procedente d’Ele e a Ele se sente chamado e capacitado a uma experiência de intimidade e comunhão amorosa.

Aqui se revela o verdadeiro sentido da oração. A oração é uma mão estendida para o divino; não é dobrar a vontade de Deus a nosso favor; pelo contrário, é colocar-nos em sintonia com Ele, para entendermos o que é melhor para nosso verdadeiro bem. É deixar Deus ser Deus, ou seja, deixar que Ele revele sua paternidade/maternidade para com cada um de nós, na sua providência e cuidado.

A melhor a oração não é aquela que nos enche de palavras; não deveríamos preencher a oração de palavra “nossa”, mas de escuta da Palavra de Outro. Na oração, como em toda relação humana, precisamos alimentar uma atitude de escuta que busca “entrar em sintonia”, ser consciente, estabelecer e consolidar relação, caminhar para a verdade, construir pontes...

Texto bíblico:  Mt 6,1-6.16-18

Na oração: diálogo é uma experiência profundamente humana de proximidade, acolhida, respeito para com quem pensa, sente e ama de maneira diferente; o diálogo amoroso desperta os sentimentos mais nobres de compaixão, mansidão, humildade.

- Viver a Quaresma é ser presença de reconciliação em situações onde o diálogo foi quebrado pelo ódio, intolerância, violência, fanatismo...

- Despertar o impulso para ser presença inspiradora e reconstrutora de diálogo, frente a um mundo fragmentado.

Pe. Adroaldo Palaoro sj

16.02.2021

imagem: pexels.com