“Foram, pois, ver onde Ele morava e, nesse dia, permaneceram com Ele” (Jo 1,39)
Queremos marcar a experiência da caminhada contemplativa com Jesus, ao longo deste ano litúrgico, fazendo referência ao início da sua atividade pública, no evangelho do João: um relato de busca e de seguimento. Dois discípulos, que escutaram o Batista, começam a seguir o Mestre de Nazaré, sem dizer palavra alguma. Há algo n’Ele que os atrai, embora ainda não sabem quem Ele é nem para onde os levará. No entanto, para seguir a Jesus não basta escutar o que os outros dizem dele. É necessária uma experiência pessoal.
Por isso, Jesus se volta e lhes faz uma pergunta muito instigante: “quê buscais?”. Estas são as primeiras palavras de Jesus no quarto evangelho. Não se pode caminhar atrás de Seus passos de qualquer maneira; é preciso verificar as reais motivações.
Aqueles dois primeiros discípulos ainda não conseguem imaginar até onde a aventura de seguir Jesus poderá levá-los, mas intuem que Ele poderá ensinar-lhes algo que ainda não conhecem; por isso, a resposta deles é outra pergunta sábia: “Mestre, onde moras?”
Não buscam n’Ele grandes doutrinas nem sábias filosofias. Querem que lhes mostre onde vive, como vive e para quê vive. Desejam que lhes ensine a viver. A resposta de Jesus é a de um verdadeiro mestre: “Vinde e vede”. “Experimentai vós mesmos, percorrei meu caminho, caminhai por ele...” Não lhes dá explicações ou uma exortação, nem lhes impõe condições, nem exige deles algum tipo de submissão.
A pergunta de Jesus – “quê buscais?” – levará os dois discípulos a conectar com seu ser mais profundo, com sua realidade mais íntima, com os desejos de seu coração, ainda não configurados pelo amor. Uma pergunta vital, que desperta a consciência e os conduz a um diálogo consigo mesmos.
Por outro lado, a pergunta dos discípulos – “Mestre, onde moras” – não significa limitar-se a entrar em um determinado espaço físico, mas é expressão do desejo de um retorno à “morada interna”.
Os novos seguidores de Jesus não lhe perguntam sobre o seu ensinamento, nem o que faz, mas onde Ele mora para poder, dessa maneira, estar com Ele, compartilhar sua casa, sendo seus amigos. O verdadeiro discipulado é “estar com”, morar juntos... Esta é a missão chave de Jesus e de sua nova comunidade de seguidores: abrir a casa, não ocultar nada, oferecer com transparência sua vida e caminho aos outros.
“Vinde e vêde!”: Jesus lhes oferece sua morada, com tudo o que há nela, para que aprendam, vivendo com Ele, a fazer o percurso interior, para descobrindo a identidade original, ali presente..
Estes discípulos acolhem o convite, vão com Jesus, veem e convivem com Ele naquele dia; sentem-se impactados e transformados pelo estilo de vida de Jesus, mais que por aquilo que Ele diz. Não há necessidade de mais discursos, de palavras fortes: veem como vive Jesus, vivem com Ele e descobrem que Ele é o Messias de Israel. Esta foi e continua sendo a missão de Jesus e de seus seguidores: criar espaços de vida messiânica, ou seja, vida compartilhada...
As primeiras palavras que Jesus, pronunciadas no evangelho de João, também nos deixam desconcertados, porque vão ao fundo e tocam as raízes mesmas de nossa vida. Jesus continua se dirigindo a cada um de nós com uma pergunta que nos remete ao centro do nosso coração, àquilo que nos move: “quê estais buscando?” Sua pedagogia é a da pergunta que desvela, pois nos move a fazer um percurso interior e a encontrar-nos com a fonte que alimenta e inspira.
O desejo do encontro é força determinante para se manter acesa a chama da dinâmica da busca. É uma chama que se mantém acesa em proporção ao sentido e à importância grande de quem ou do que se busca. A sintonia com Deus que é buscada, justifica, com razões de sobra, o esforço e a recompensa do encontro. Vale a pena buscar o que é importante e encontrar Aquele que responde às razões mais profundas da busca.
É preciso aceitar viver à busca de Deus. A Ele é que se deve buscar. Por iniciativa, Ele busca a todos, vai ao encontro de cada um. Ninguém fica de fora.
Uma lógica de contínua busca deve permear o coração de cada um(a), para aprender a viver da busca d’Ele, o Senhor, e da busca de todos os outros, colocando-se a serviço da vida, unicamente por amor.
No fundo, como todo ser humano, também nós andamos buscando algo mais que uma simples melhora de nossa situação; aspiramos algo que, certamente, não podemos esperar de nenhum projeto político ou social.
Na verdade, quando nos interrogamos sobre o que buscamos, sobre o sentido de nossa existência, deixamos transparecer, nas profundezas do nosso coração, a “nostalgia da dimensão perdida”, ou seja, nossa morada interior.
Podemos, então, afirmar que a busca de Deus e o encontro com Ele, a partir de Sua iniciativa, coincidem com a busca e o encontro de nós mesmos, de modo que buscar a Deus é buscar-nos a nós mesmos, a nossa própria interioridade.
Buscamos plenitude, felicidade, quietude, unidade, paz, verdade, amor, harmonia… Pois bem, é justamente isso que somos no nosso “eu” mais profundo. Temos nos distanciado de nossa interioridade e esquecemos as beatitudes originais; com isso nos reduzimos ao ego carente e insatisfeito. Ao aquietar o pensamento e voltar ao momento presente, caem todas as nossas antigas identificações egóicas e fica, simplesmente, o que somos. A busca chega a seu fim no dia em que descobrimos que o buscador é o buscado. Somos já – e sempre foi assim – aqueles que buscamos.
No contexto social pós-moderno, as pessoas relatam que perderam não somente seu lar exterior, mas também o interior. Elas se percebem sem o sentimento de acolhida e proteção; elas já não sabem mais quem são. Perderam seu sentimento de pertença, além de não mais saberem o que as sustenta. Não sabem mais onde poderão encontrar segurança e acolhimento.
O que é “estar em casa” para nós hoje, num mundo estranho e em constante mutação? O que significa “morada” para nós atualmente? Que tipo de sentimento está conectado a ela? Onde nos sentimos em casa?
A imagem dos dois discípulos atrás de Jesus é uma excelente mediação para termos acesso à “morada” em nós mesmos.
Neste mundo disperso, o percurso contemplativo da pessoa de Jesus nos dá referências e amparo. A pergunta que Ele dirige aos seus futuros discípulos nos remete à vivência em nossa casa interior. Entramos em contato com algo que sabemos estar encoberto pelas cinzas existenciais. É anseio pelas raízes, a partir das quais podemos viver com mais intensidade e sentido.
Ansiamos um espaço onde possamos ser nós mesmos. Espaço no qual podemos entrar em contato com algo que nos plenifica e nos expande. Nós temos o sentimento de viver das forças que procedem desse local.
É o espaço no qual Deus mesmo habita em nós. Ali, nós somos plenamente nós mesmos, salvos e íntegros. Verdadeiramente em casa. Precisamos apenas olhar para dentro. O céu está em nós e ali, no céu interior, está a verdadeira pátria que ninguém pode nos roubar ou pode destruir.
Texto bíblico: Jo 1,35-42
Na oração: Deixe ressoar em seu interior as perguntas mobilizadoras: o que, ou quem você busca? Por que busca? Tem sentido e valor o que você busca? Para onde o leva a força da busca?...
Estas perguntas ficam ali, continuamente presentes em um rincão de nossa vida; mas enquanto permanecem vivas são como brasas que voltam a acender-se cada vez que a vida as sopra.
Estas perguntas nos fazem humanos e são tão importantes como o ar que respiramos.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
14.01.2020
Gosto de pensar, Maria, que também a tua fraqueza sustém a tua força, que soubeste aceitar atravessar tantas incertezas, fazendo aderir o teu coração a uma confiança que não se via. E que, por isso, não te é estranha a minha agitação confusa, a minha indecisão, os medos que em certas horas me agridem, e que tu, que tudo compreendes, sabes abraçar.
Gosto de recordar quanto foi difícil o teu caminho, repleto de obstáculos mais duros do que aqueles que eu enfrento, fustigado por sombras, derivas e dores. E que o teu olhar se tornou um imenso ventre, onde posso depor tudo aquilo que tanto me custa, e que tu, que tudo compreendes, sabes abraçar.
Gosto de contemplar essa tua capacidade de agradecer. De agradecer a anunciação luminosa e as suas ásperas consequências; essas palavras límpidas e depois uma dolorosa sucessão de momentos passados a perguntar-te como será; a brandura da brisa e a dureza do vento.
E que, por isso, tu abraças o meu cansaço de viver com esperança a minha força e a minha fragilidade; aquilo que levo ao termo e aquilo que deixarei incompleto; aquilo que depende ou não depende de mim – e tudo tu compreendes.
Gosto de saber que encontraste os planos de Deus infinitamente superiores a ti e que, mais uma vez, te sentiste pequena, só e não à altura, como tantas vezes eu me sinto. E também por isto, no fundo de mim experimento que me abraças, tu que tudo compreendes.
Cardeal Dom José Tolentino Mendonça
[In Avvenire] 11.01.2021
Depois da manifestação aos magos, acompanhamos Jesus de Nazaré até o Rio Jordão, onde é batizado por João. Como muitos peregrinos e buscadores de experimentar o Divino, Jesus deixa os montes da Galiléia para descer muito abaixo do nível do mar, para ouvir a pregação do profeta e mergulhar nas águas, testemunhando o desejo de conversão. Assim o Amor transbordante, retira Jesus de trinta anos de anonimato para nos apresentá-lo: carne de nossa carne, trilhando nossos caminhos, participando de nossas buscas.
A comunidade de Marcos, de forma muito concisa (1,9-11), traduz a experiência vivida por Jesus: um Deus que tanto nos ama, que não cabe em si, rasgando o céu para nos abraçar e assumir. Os céus estão abertos, rompem-se por um amor irreprimível, provocados pela urgência de vida da terra e dos pobres. Um vento que envolve e supera os sinais de morte (mergulho/batismo) para anunciar a Vida; um sopro divino que acaricia e pronuncia palavras restauradoras...
Três palavras poderosas, renovadoras: “Tu és o meu Filho amado; em ti encontro o meu agrado”! Dirigidas à Jesus, e através dele, a todos nós. “Filho” é a primeira palavra, um termo poderoso para o coração, para toda a vida. Somos gerados por Deus: todos temos uma fonte no céu, um cromossomo divino em nós, carregamos o seu sopro, sua marca, sua inspiração! O céu não está vazio, não é mudo, fala palavras grávidas de vida, de futuro!
Segunda afirmação: não sou apenas filho, mas amado. Antes de fazer qualquer coisa, antes de qualquer resposta minha, sou amado por Deus! Por que eu sou, como sou, deve-se ao fato de ser amado. E se sou amado, isto não depende de mim, não é minha iniciativa! Deus é o ponto de partida (e de chegada) deste amor... O que leva à terceira palavra divina: eu coloquei minha satisfação em você. A Voz grita/clama do alto do céu, clama/chora pelo mundo e no meio do coração, a alegria de Deus: é bom estar com você!
Em Jesus, o próprio Deus nos diz: “Eu amo você, filho/filha, e estou feliz com você. Antes de dizer sim, antes mesmo de abrir seu coração, você me dá alegria, você é manifestação da beleza, um prodígio que olha e respira, ama e encanta.” E assim nos convoca a viver como filhos e filhas, irmãos e irmãs, singela moradia de sua presença... transformando nossa casa em seu Reinado, nossa história em sua Custódia, nosso viver em sua Oferta, nossa dança em sua Festa!
Tão distante de nossa costumeira experiência religiosa pautada nas obrigações. Não são poucos os cristãos praticantes que entendem a sua fé como um conjunto de crenças que se “devem” aceitar, mesmo que não conheçamos o seu conteúdo ou se saiba o interesse que podem ter para a vida; como também um código de leis que se “deve” observar, mesmo que não se compreenda bem tanta exigência de Deus; ou ainda, um punhado de práticas religiosas que se “devem” cumprir, mesmo que de forma rotineira. Uma religião sem nenhum atrativo: um peso difícil de suportar que a não poucos produz alergia e repulsa.
Pois, “onde falta o desejo de encontrar-se com Deus, não há crentes, mas sim pobres caricaturas de pessoas que se dirigem a Deus por medo ou interesse” (Simone Weil, mística do século passado). A boa nova da celebração do Batismo de Jesus é que Deus nos chama de filhos, nos deseja com amor e nos acolhe como somos! Não precisamos entender a fé cristã como um “sistema religioso”, mas sobretudo como um convite a caminhar com e no divino, como Jesus caminhou!
Conscientes que num percurso há de tudo: marcha alegre e momentos de busca, provas que devem ser superadas e retrocessos, decisões incontornáveis, dúvidas e interrogações. Cada um têm de fazer o seu próprio caminho. Pois, tudo faz parte do caminho; também as dúvidas, que podem ser mais estimulantes do que não poucas certezas e seguranças detidas de forma rotineira e simplista. Cada um tem o seu próprio ritmo. Não há que forçar nada. O importante é «caminhar», não parar, escutar a chamada que a todos é feita, de viver de uma forma mais digna e feliz.
Assim como a dança do Espírito sobre as águas é o primeiro movimento da Bíblia (Gênesis 1:2) e uma dança nas águas do útero é o primeiro movimento de cada criança na Terra... Uma pomba dançando sobre o rio é o início da atividade pública de Jesus. Um princípio, fundamento, eterna boa notícia: três palavras (filho, amado, meu agrado) são lâmpada para nossos passos, luz acesa em nosso caminhar! Natal-Batismo: manifestação do Amor divino! Amém
Pe. Paulo Roberto Rodrigues
Campinas-SP - Festa do Batismo do Senhor, 10 de janeiro de 2021
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“...ao sair da água, viu o céu se abrindo, e o Espírito descer sobre ele” (Mc 1,10)
Com a Epifania, encerra-se o tempo do Natal. De um salto a liturgia nos leva até o Jesus adulto, passando dos magos sábios que buscam o menino-Deus nascido em Belém ao Jesus renascido nas águas do Jordão, para iniciar sua missão messiânica que culminará na Páscoa.
O relato do batismo de Jesus nos situa diante de um fato histórico, mas os evangelhos não se restringem a narrar simplesmente um rito externo, e sim a experiência fundante de sua vida: sentir-se Filho amado do Pai. Por isso, cada evangelista acentua os aspectos que considera mais importantes para destacar a identidade e a missão de Jesus. A narração junto ao Jordão busca concentrar em um só momento o processo que durou toda a vida de Jesus.
O batismo de Jesus revela uma profunda experiência espiritual, muito ligada à sua atitude humilde de aproximar-se do rio Jordão, onde as pessoas simples do povo buscavam, no batismo de João, uma purificação de suas vidas.
Jesus “desce” ao Jordão, gesto que condensa sua descida do céu à terra, sua “kénosis”, a radicalização de sua Encarnação. É uma “descida” às águas da humanidade
Nesse sentido, o batismo é a prova de da verdadeira humanidade de Jesus; Ele “desce” ao Jordão, submerge na vida e na condição humana e ali faz a experiência de ser conduzido pelo Espírito em favor da humanização de todos. Ao “entrar na fila dos pecadores” Jesus descobre novos rostos, novos dramas, novas histórias... e se deixa empapar (banhar) por esta realidade carente de sentido e de horizontes. Ao conectar-se com esta realidade, Jesus começa a ver tudo a partir de um horizonte diferente, no qual cabem outras possibilidades e outras responsabilidades. Descobre uma perspectiva mais ampla que o ajuda a formular melhor o sentido de seu chamado e de sua própria missão.
Ao descer às margens do Jordão, Jesus rompeu com a “normalidade” de sua vida cotidiana, deslocou-se para as margens da humanidade, rompeu fronteiras, abriu os olhos a uma realidade mais instigante e desafiadora. Ao mesmo tempo, no Batismo, Jesus se compreendeu a si mesmo, compreendeu sua missão, compreendeu sua relação com o Pai e com os homens. E compreendeu até o sentido de sua própria morte.
“Sua vida começou a ter um novo sentido”. Porque também Jesus precisou descobrir o “porquê e o “para quê” de sua vida, a partir de sua condição humana.
Jesus, ao saber-se e sentir-se amado infinitamente por um Pai que o chama de “Filho amado”, descobre em si o eixo de seu equilíbrio vital. O amor que experimenta na experiência de seu Batismo se transforma em chamado vocacional, em investidura para uma missão universal e libertadora.
Cessa o tempo da espera, abre-se o céu, escuta-se a voz. E aquele Homem, equilibrado pelo Amor experimentado em seu interior, começa a transformar as mentes e corações desequilibrados por falsas religiosidades que alimentavam temor e submissão. Jesus começa a ativar o equilíbrio em todas as pessoas, libertando-as, com a autoridade que o Espírito lhe conferia, de cargas desumanas e injustas que as desequilibravam: a culpa doentia, a enfermidade, a exploração, a miséria, o legalismo, o moralismo...
Todos estamos de acordo que a primeira experiência humanizadora é a do amor: amar e de sentir-se amado. Isso nos dá segurança e equilíbrio interno como pessoas.
Aqui está a experiência vital de Jesus, onde alcança o equilíbrio entre aquilo que pensa e sente com aquilo que recebe e acolhe em seu interior: “Filho amado, complacência do Pai”.
Sua experiência interior, no batismo, é tão potente que transforma para sempre o modo de entender e viver sua relação com o Pai. Jesus, frente a uma religião centrada na lei e no rito, estabelece uma linha de comunicação (céu aberto) direta de toda pessoa com Deus e Pai, sem necessidade de intermediários e sem necessidade de oferecer “sacrifícios” para “pressioná-lo” em favor próprio.
Jesus acolhe a filiação que lhe é revelada através da voz amorosa do Pai e, também de igual maneira, acolhe o Espírito que lhe dá a força para a missão, a grande tarefa do Reino: equilíbrio entre diálogo com Deus e e compromisso em favor da vida (isso será confirmado pela sua experiência de discernimento no deserto).
A festa do batismo de Jesus, portanto, é uma ocasião especial para retomar nosso batismo, um convite permanente a relançar-nos em Sua aventura, a deixar-nos invadir pelo Seu Espírito, a comprometer-nos com Seu Reino. Na vivência cristã, nosso maior risco é o esquecimento de Jesus e o descuido de seu Espírito. É preciso voltar às fontes, à raiz, recuperar o Evangelho em toda sua pureza e verdade, deixar-nos batizar pelo Espírito de Jesus. Se não nos deixamos reavivar e recriar por esse Espírito, nós cristãos não teremos nada importante a contribuir com a sociedade atual, tão vazia de interioridade, tão incapaz para o amor solidário e tão carente de esperança.
A pergunta para nós, seguidores(as) de Jesus, poderia ser esta: acolhemos o dinamismo despertado pelo batismo e que se expressa como capacidade de encontro com Deus e com Seu amor, para ir criando equilíbrio nos ambientes por onde transitamos ou nos fazemos presentes?
A mesma “voz interior” de Deus, ouvida por Jesus no seu batismo, tem ressonância em nosso interior, marca e define nossa identidade cristã; aqui está, em sua raiz, o que dará equilíbrio à nossa existência, entendida como experiência profunda de sentir-nos amados(as) por Deus Pai/Mãe.
O que o Pai diz a Jesus também nos diz a todos e a cada um em particular: “Tu és o(a) meu(minha) filho(a) amado(a), em ti ponho o meu bem-querer”.
Para isso, é preciso submergir-nos continuamente nas águas do nosso “jordão” interno; a água nos acompanha e nos convida a entrar, a soltar, a escutar. De um lado, o rio, o movimento das águas, que recorda a do Jordão do qual todos procedemos, porque ali surgiu um projeto que evolui em nós.
Do outro, a fila das pessoas, com suas vidas, suas dores e amores, suas paixões e rotinas..., com suas infinitas possibilidades ainda latentes, ou estancadas em seus medos paralisantes.
Nascemos do cosmos, da água... Sem água pura, sem vento, sem terra e sem fogo, sem estrelas do céu, não podemos nascer... Da terra com água brotamos; sem batismo de água (de mundo) não somos humanos.
Não nos batizamos se não deixamos que Deus nos mergulhe nas águas de Sua Vida, de tal maneira que n’Ela vivemos, crescemos, nos movemos e somos, como Jesus.
Não há batismo se esse renascer em e por Deus (como Jesus), pelo Espírito, não nos coloca, como “Ele”, a serviço da Vida, que é a saúde e salvação de todos, a fraternidade na justiça, em gesto de amor ativo, de compromisso pela liberdade, de entrega pela chegada do Reino...
Texto bíblico: Mc 1,7-11
Oração: Ao “descer” junto às margens do nosso Jordão, podemos atingir experiências imprevistas e surpreendentes, ou reconhecer, através do murmúrio das águas, “vozes novas” que nos incitam a peregrinar para as regiões desconhecidas do nosso próprio interior. Só assim, poderemos vislumbrar o outro lado e tocar as raízes mais profundas que dão sentido e consistência ao nosso viver.
- Re-cor-dar (lembrar com o coração) dimensões da vida que precisam ser ampliadas a partir da vivência do batismo. Recordar medos, entraves, obstáculos... que limitam sua vivência batismal.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
07.01.2020
imagem: pexels.com
Neste primeiro domingo de 2021, ouvimos a boa nova da Comunidade de Mateus (2,1-12). É tempo de esperançar: por mais distante que Deus possa nos parecer, sempre haverá um caminho para seguir ao Seu encontro... Estrelas e sonhos, céus abertos, noites claras, dunas infinitas, trilhas e desertos... Deus nos faz ser e respirar! Ele quer ser encontrado na periferia e não no centro, manifesta-se em uma casa e não no templo, se oferece pequeno em Belém e não grande, em Jerusalém!
Muitas são suas manifestações (em grego, epifania), embora no Evangelho se mostre na contramão dos que detém o poder! Está oculto aos que se julgam merecedores e escolhidos. Para reconhecê-lo é preciso abrir os olhos e o coração, mesmo que os Herodes de plantão venham a se opor, retardando o encontro ou desviando o caminho... Jamais poderão impedir sua revelação: Ele resplandecerá de qualquer maneira. Mesmo que se apresente tão pequeno, tão fraco, como uma criança!
Nesta festa em que celebramos a salvação universal, dirigida a toda humanidade, muito temos a aprender com esses sábios do Oriente, peregrinos que representam os buscadores de hoje, gente de coração e olhar puros que sabem ler os sinais de Deus, sejam eles a estrela que desponta ou o sonho que desvela, uma e outro indicadores de caminhos novos, insuspeitos, renovados.
Acompanhemos seus passos! O primeiro é saber sair da caixa, da casa, do conforto... Abrir-se para outro, o novo, olhando além do costumeiro e seguro, correr atrás de um sonho, seguir a intuição do coração! Assumir que somos seres do desejo (desiderato, do latim, vem de sidere, raiz de sideral, caminho das estrelas)! O segundo passo é pôr-se a caminhar. Não basta sonhar e desejar... Para conhecer o Senhor é necessário viajar, com inteligência e coração e não como quem faz turismo. Arriscar-se, tentar, de tradição para tradição, de livro para livro, de pessoa para pessoa. Caminhar, mesmo nas noites escuras e nos desertos da vida... Assim, estaremos vivos.
O terceiro passo: olhar juntos. Os Magos representam um pequeno grupo que olha na mesma direção, olha para o céu e para os olhos das criaturas, estão atentos às estrelas e atentos uns aos outros. Contemplar a amplitude e a profundidade de tudo! O quarto passo: não temer erros. E como erraram estes sábios! Chegam na cidade errada; perguntam sobre o novo para um decadente rei, falam sobre a criança com um tirano disposto a matar recém-nascidos; perdem a estrela e o rumo, procuram um rei e encontram uma criança nos braços de sua mãe, imaginam um trono e contemplam um colo... Erram muito, no entanto, não cedem aos seus erros, eles têm paciência para começar novamente, até que ao reencontrar a estrela que os guiara, podem sentir uma verdadeira e grande alegria.
A razão da alegria vai além da estrela: na casa (não no templo; na periferia e não no centro) eles veem a criança e sua mãe... Da estrela no céu eles contemplam a Luz que ilumina toda vida: não só Deus é como nós, não só ele está conosco, mas ele é pequeno entre nós! Manifesta-se a estrela de Davi: o rebento que germina, um menino que nos foi dado. Os Magos e, com eles, a toda humanidade, orientam para aquele Menino toda a sua vida: este é verdadeiro significado do verbo “adorar”! Esta adoração pessoal é o verdadeiro culto que podemos prestar, o efetivo presente que podemos oferecer.
Eis um autêntico modelo de adoração! Estes sábios sabem olhar o cosmos até o fundo, captar sinais, aproximar-se do Mistério e ofertar sua humilde homenagem a esse Deus encarnado na nossa existência. Como sabemos, desde Irineu de Lion (130-203), o ouro simboliza a realeza, o incenso a divindade, e a mirra a morte e o sepultamento. Presentes que significam não somente a identidade do Menino Deus (Rei, Divino e Humano), mas a própria vida (jornada) dos sábios: ofertando sua realidade, seu culto e sua fragilidade para ser tocadas e transfiguradas por Deus.
Também todos nós podemos oferecer nossa vocação de reis/rainhas (ouro), sacerdotes/sacerdotisas (incenso) e profetas e profetizas (mirra) para participar do Reino do Filho de Maria! Esta adoração a Deus não afasta do compromisso, não aliena da existência. Quem adora Deus, luta contra tudo o que destrói o ser humano, que é a Sua “imagem sagrada”. Quem adora o Criador respeita e defende a sua criação. Na adoração unem-se intimamente a solidariedade e o cuidado com a casa comum. “Quanto mais o ser humano se humaniza, mais experimentará a necessidade de adorar” (Teilhard de Chardin)
Por fim, neste pequeno relato, com traços de síntese de todo Evangelho, já antevemos a rejeição de Jesus pelas autoridades (Mateus27,32-44) na perturbação vivida por Herodes e toda Jerusalém com a visita dos magos (Mateus 2,3) e a alegria das mulheres, antes de verem o Senhor Ressuscitado (Mateus 28,8) antecipada na alegre experiência dos magos ao ver novamente a estrela (Mateus 2,10); como também, o inútil domínio das Escrituras por parte dos “sacerdotes e escribas do povo”, que sabem a verdade acerca do Messias, mas são incapazes de reconhece-Lo em Belém (Mateus 2,4-6).
O último passo é o retorno (conversão) inspirado em sonhos: “por outra estrada regressaram à sua terra” (Mateus 2,12). Quem viu o que os Magos viram, quem encontrou o que eles encontraram, quem experimentou o que eles experimentaram, quem viu e contemplou Jesus, já não pode mais limitar-se a continuar andando por caminhos velhos. Terá mesmo que abrir um caminho novo: voltar para o oriente (onde nasce o sol) sem passar pelo palácio (templo) do rei em Jerusalém... Deixar Belém, casa do Pão, alimentados de luz, caminhar sempre em direção à Luz que nasce, sem se deixar enganar pelas falsas luminárias do poder estabelecido.
Eis o convite que nos é feito hoje, festa das manifestações de Deus a todas as nações: que as comunidades cristãs pratiquem o acolhimento e à abertura; a coragem de ler os sinais de Deus e pôr-se a caminho; não temer a escuridão e pacientemente acolher os erros e aprender com eles; reconhecer Deus que vem ao nosso encontro na fragilidade de nossa história e na pequenez de uma criança. Encher-se da verdadeira alegria que nos faz enxergar além das aparências e transparências. Amém!
Pe. Paulo Roberto Rodrigues
Festa de Basílio Magno e Gregório de Nazianzo, 03 de janeiro de 2021
"Nós vimos a sua estrela no Oriente e viemos adorá-lo” (Mt 2,2)
A festa da Epifania é a mais antiga que se conhece. Era a única festa de Natal celebrada em toda a Igreja, até que no Ocidente passou a ser celebrada no dia 25 de dezembro. A palavra “epifania” significa, em grego, “manifestação”, referindo-se sobretudo à primeira claridade da manhã, antes do nascer do sol. Depois passou a significar a “manifestação” de Deus a todos os povos, pois Ele inunda com sua Luz todos os recantos escuros de nossa existência.
Mais uma vez a Epifania grita para que nos levantemos e, iluminados pela Luz do Nascimento de Jesus, sejamos espelhos que refletem essa mesma Luz, iluminando toda a realidade envolta em trevas.
Tanto no nível pessoal como comunitário, sejamos luz do mundo, e não nos cansemos de proclamar a todos que nosso Deus se manifesta nas coisas simples e palpáveis, próximas: como um menino que nasce, ou como uma expressão infantil de assombro e surpresa frente ao diferente, ou como cada um dos gestos que podemos e devemos fazer para abrir espaço ao Deus da Vida e àqueles que, como novos “magos”, vêm ao nosso encontro...
A celebração da Epifania nos lança para além dos estreitos limites de qualquer instituição religiosa, de todo dogmatismo, fanatismo e intolerância... Deus se manifesta sempre a todos os povos e em todas as épocas. Todos os homens e mulheres estão sob a mesma mão providente de Deus. No momento em que nos sentimos privilegiados por Deus, fazemos a mensagem desta festa virar pó. Todos recebemos tudo de Deus e todos temos a obrigação de aprender e ensinar uns aos outros; todos temos a nobre missão de acender uma luz, em lugar de maldizer as trevas; todos temos uma estrela a nos guiar até à fonte da verdadeira Luz.
Aqui não se trata de buscar, no relato da Epifania, um fundo histórico, no sentido moderno da palavra. O importante não é o que está por “detrás” da narração, mas o que nela se manifesta, a saber: os sábios do oriente representam a humanidade em busca de paz, verdade e justiça; representam a aspiração profunda do espírito humano, a marcha das religiões, da ciência e da razão humana ao encontro de Cristo.
O caminho dos magos que buscam o Menino Jesus é o caminho de todos os homens e mulheres, de todas as raças e religiões... O Jesus de Belém está sempre disposto a receber o ouro da cultura dos povos, o incenso de todas as expressões religiosas, a mirra de todas as dores.
Os Magos do Oriente são o símbolo de tantos homens e mulheres que, em qualquer parte do mundo, a partir de outras sendas e tradições espirituais, se perguntam, buscam e caminham.
Uma lenda os apresenta como um rei jovem, outro ancião e outro negro, querendo significar que a humanidade toda é mobilizada a “fazer-se caminho”.
Nesse percurso, os Magos escutam outras palavras e sinais, aprendem a filtrar aquilo que “ajuda para o fim” e a não seguir qualquer conselho. Herodes e os escribas estarão sempre presentes e ameaçam reaparecer antes, durante e depois do encontro com o Menino.
E toda viagem que culmina na manjedoura, é ponto de partida para novos caminhos.
O ícone bíblico do relato dos Magos ilustra o risco do fechamento em nós mesmos, de enredar-nos nas armadilhas da nossa própria inteligência, ou de petrificar-nos em nossas sacralidades doutrinárias e legais. Isso se manifesta como rigidez para a mudança, a intensa necessidade de manter a própria imagem, a resistência em aceitar coisas novas que rompam nosso frágil equilíbrio ou os limites da nossa vontade...
A experiência da Epifania supõe uma capacidade de encontro e de escuta de Alguém que chama, uma atenção especial para distinguir vozes diferentes da própria voz, uma sensibilidade para escutar os gritos de nosso mundo e para receber a palavra da comunidade cristã.
O Deus, escondido na fragilidade humana, não é encontrado naqueles que vivem encastelados em seu poder ou fechados em sua segurança religiosa. Ele se revela àqueles que, guiados por pequenas luzes, buscam incansavelmente uma esperança para o ser humano, na ternura e na pobreza da vida.
A viagem dos Magos se torna, assim, o símbolo da vida cristã, entendida como seguimento, como discipulado, como busca.
A viagem exige desapego, coragem, movimento, esperança. Quem está prêso à terra pelo peso das coisas, pelos apegos, pelos egoísmos, não é capaz de se tornar peregrino. Não pode peregrinar aquele que não se dispõe sinceramente a ultrapassar as fronteiras e os esquemas pré-concebidos que muitas vezes lhe fecham e lhe dão segurança. Isto não o deixa livre para encontrar o Deus da Vida que se manifesta.
Quem está convencido de possuir tudo, inclusive o monopólio da verdade, não tem a gana da busca
contínua; é semelhante aos sacerdotes de Jerusalém, frios exegetas de uma Palavra que não os atrai nem converte. Quem está bem instalado na cidade não precisa ir a Belém; ao contrário, Belém se reduz a um insignificante vilarejo de província.
Quando aprende a aceitar e amar a sua própria viagem, novamente a estrela surgirá à sua frente, indicando o sentido de sua existência e mantendo acesa a chama da busca inspiradora.
Os “magos” somos todos. Esta é a festa do Deus que atrai a todos em seu amor. Quando parece que tudo está definitivamente fechado vem os Magos para abrir as portas da vida. Quando parece que o céu está escuro, brilha uma estrela para aqueles que querem continuar caminhando.
O Menino Jesus, Messias de Deus, não está fechado no templo e na estrutura religiosa, mas é coração aberto em Belém para todos os que dele se aproximam. Não é rei que impõe seu direito, mas criança necessitada, nos braços de sua mãe. Não é sacerdote que controla a sacralidade divina a partir do tabernáculo do tempo, mas menino ameaçado que se faz imigrante, assumindo assim a história de todos os excluídos.
Nós somos “magos” para anunciar a todos que há estrelas que apontam para a Gruta onde um Menino é acolhido, na rota da vida, que continua sempre aberta. Devemos mobilizar a todos para criar um mundo onde nenhum menino-Deus morra abandonado.
Somos “magos” quando experimentamos e anunciamos que a vida é um dom, que o ouro do mundo é um presente para todos os homens e mulheres, que os bens da terra estão a serviço da vida, que toda riqueza é para ser compartilhada para o bem de todos.
Somos “magos” quando temos de dizer a todos, com nosso exemplo, que a vida é prazer e glória, é incenso de admiração e de ternura, de intimidade orante e de proximidade. É preciso proclamar que não buscamos a glória do poder, a vitória da imposição, o incenso da mentira, mas buscamos e compartilhamos o incenso do amor que pode ser celebrado na intimidade da família, nas relações pessoais e sociais, no compromisso solidário. Diremos que sempre haverá um perfume ao nosso lado, ao lado de todos os homens e mulheres que poderão festejar, sonhar...
Somos “magos” quando revelamos que a vida é feita também de mirra. Somos todos “mirróforos(as)”, portadores do perfume, para levar o agradável odor em meio aos ambientes fétidos de ódio, intolerância e violência. A mirra é o perfume de amor, mas também é o bálsamo da morte. A mirra é como uma flor preciosa que pode nos acompanhar na vida, no crescimento de cada dia, na comunhão com os outros, na tristeza e na esperança de cada despedida.
Que cada morte seja tempo de amor, esperança de amor e não fruto da violência.
Enfim, a Epifania nos destrava e nos coloca a caminho, seguindo as “pegadas” dos Magos, fazendo opções, usando desvios, lançando-nos pessoalmente a ações concretas..., movidos pela experiência de encontro com a Vida, no despojamento de uma Gruta.
Texto bíblico: Mt 2,1-12
Na oração: Às vezes tenho de me deter na vida, como os magos, para pensar e sempre me perguntar: onde estou? Em quê momento da vida me encontro? A quê estrela sigo? Meu caminho tem coração?... É a arte do discernimento.
A Graça também me precede, me acompanha sempre e libera meus melhores recursos e minha inteligência para abrir-me ao novo, a abertura que permite reconhecer o “Mistério” e deixar-me inspirar por Ele.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
02.02.2020
imagem: pexels.com
“Tendo-o visto, contaram o que lhes fora dito sobre o menino” (Lc 2,17)
“Vede que realizo algo novo; já está brotando, e vós não percebeis?” (Is 43,19)
Foi essa a experiência vivida pelos pastores quando se deslocaram até à Gruta de Belém: viram a “eterna Novidade de Deus” revelada no rosto de um recém-nascido; é do interior de uma gruta que surge um novo tempo, um novo modo de viver, uma nova maneira de olhar as pessoas e a realidade, um novo compromisso... enfim, uma nova humanidade.
Podemos imaginar o momento do primeiro olhar dos pastores no encontro com o Menino Jesus... Surpresa, espanto, comoção, gratidão, alegria…!
Naqueles olhos que se entrelaçam e se contemplam mutuamente, descobre-se o novo olhar de Deus sobre o ser humano, e o novo olhar do ser humano sobre Deus e sobre os irmãos. Deveríamos, ao longo deste novo ano que se inicia, situar-nos diante de Deus desse modo, com mais freqüência, deixando os olhos, os d’Ele e os nossos, se falarem silenciosamente.
O cristão é aquele que conserva límpido os seus olhos interiores, prontos para perceber a maravilha que está sendo gestada em sua vida e ao seu redor. Movido por um olhar novo, ele acolhe a surpresa de Deus, passa a ser surpresa para os outros, com seu gesto de amor imprevisto, com sua palavra que reanima, com sua visita que consola, com sua atenção para com todos os que levam uma vida obscura e monótona.
Nesse “estado interior”, tudo é sempre novo. “Eis que faço novas todas as coisas” (Ap 21,5). Não se trata da ação de um Deus que intervém a partir de fora, mas do reconhecimento de que, sempre e em todo momento, tudo é novo, pois “Deus é Presença” em tudo e em todos. Mas só pode saborear isso quem sai do nível da superficialidade, na qual está hipnotizado ou enfeitiçado pelas exigências do próprio ego, e se situa naquela dimensão profunda que é essa mesma Presença.
A capacidade de assombro dos pastores pode ser uma boa disposição para iniciar o Ano Novo. O contrário do assombro é a rotina; o “eu já sei” ou “sempre foi assim” nos faz imunes ao milagre cotidiano da vida e seus sinais. Precisamos continuar aprendendo a olhar com profundidade a realidade em seus gestos peque-nos e dirigir nossa atenção para aquilo que, muitas vezes, nossa lógica racional, invisibiliza ou despreza. Talvez, só assim entraremos em sintonia com o mistério do Amor que tudo habita e faz tudo novo.
A maior “novidade” que ninguém podia esperar é colocada nas mãos dos pobres e simples, aqueles que nunca tiveram uma oportunidade de serem escutados e valorizados. Mas, surpreendentemente, serão eles os mensageiros autorizados da transmissão da Novidade de Deus.
Aqueles pastores, surpreendidos em meio ao trabalho, são convidados a sair, a deixar sua cotidianidade para abrir-se à novidade de um Deus que irrompe em suas vidas para transformá-las. Ao chegar no lugar onde estão Maria, José e o recém-nascido, imediatamente eles os reconhecem e sua alegria se converte em proclamação entusiasta daquilo que viram e ouviram. Seu anúncio é tão convincente que todos aqueles que os ouvem ficam impactados por seu testemunho.
Aquela noite, à margem dos grandes centros e dos interesses humanos de poder e vaidade, revelou-se como uma noite cheia de “encontros e conexões”, onde deu-se início a uma nova rede de comunicação acessível a todo aquele que, de boa vontade, deseja entrar nela. É um sistema protegido pelo Espírito do Senhor, de alta fidelidade, que nunca cai, mas que é preciso entrar nele livre de vírus: do ódio, da intolerância, do preconceito, da busca de poder, vaidade...
A imagem dos pastores pede de todos nós uma atitude de abertura e de deslocamento frente ao outro, o que implica colocar-nos em seu lugar, deixar-nos questionar e desinstalar por ele... Importa, pois, redescobrir com urgência o encontro humanizador como valor ético e como hábito permanente de vida. Somos chamados a viver o encontro como um estilo de vida, fundado no encontro de Deus com a humanidade.
O encontro, que nos faz sair de nós mesmos, nasce da compaixão e nos leva a reconhecer no outro uma dignidade e uma capacidade criativa para superar toda divisão e conflito
A experiência da Gruta, lugar onde se visibiliza o “novo” de Deus, nos mobiliza a levar adiante a missão, a ir aos lugares do mundo onde há mais necessidade e ali realizar obras duradouras de maior proveito e fruto.
Esta é a dura contradição que estamos vivendo neste início de ano: se, estar separados fisicamente de nossos seres queridos e vizinhos é o mais eficaz para combater a pandemia, precisamos, então, buscar outras expressões de proximidade para que essa distância não se converta em ecossistema e modo de vida. A distância sanitária não pode servir de cortina de fumaça para reforçar outras distâncias que se abrem diante de nós, no campo social-político-religioso-cultural...
Não podemos deixar que o mistério natalino se dilua em meio às distâncias artificiais que desumanizam. Hoje, mais do que nunca, devemos celebrar e recordar que juntos, orientados pela Luz que procede de uma Gruta, poderemos enfrentar, com criatividade, toda e qualquer crise que nos venha. Talvez, esta pandemia nos oferece uma ótima oportunidade para crer e viver isso, de verdade: de transformar declarações ocas em atos sólidos, de resumir tudo o que é a humanidade numa só palavra: proximidade.
Proximidade com aqueles que sofrem, com aqueles que buscam um mundo melhor, com aqueles que estão à frente no combate à pandemia, com aqueles que foram excluídos... Em meio a um mundo onde a distância e a suspeita crescem e se enraízam, a solidariedade é a alternativa de proximidade e colaboração que todos precisamos. O mundo precisa de místicos(as) que descubram onde está Deus criando algo novo, para proclamar esta boa notícia.
À luz da Gruta de Belém podemos afirmar: fisicamente distanciados é quando nos sentimos mais próximos.
Para realizar esta nobre missão, não podemos permanecer sentados. Seguir Aquele que nasceu nas periferias da humanidade exige de nós uma dinâmica continuada, um colocar-nos a caminho em direção às margens. Não podemos nos situar diante da Gruta da Vida a partir de uma cômoda instalação pessoal. A disponibilidade, o despojamento e a mobilidade são exigências básicas.
Como seguidores(as) de Jesus, nosso desafio não é fugir da realidade, mas aproximarmos dela com todos os nossos sentidos bem abertos para olhar e contemplar, escutar e acolher, percebendo no mais profundo dela a presença ativa do Deus que nos ama com criatividade infinita.
Neste dia, fazemos memória dos humildes pastores que se deslocam para uma gruta e vivem um encontro surpreendente; eles se fazem próximos d’Aquele que tomou iniciativa para se aproximar de toda a humanidade. Tal mistério deve nos inspira a provocar encontros e diálogos que ajudem a integrar, a reunir, a religar, a articular o tecido comunitário. Há tantas vidas esparramadas, isoladas, rejeitadas... esperando por sinergia. Na verdade, o Nascimento de Jesus provocou as pessoas a saírem de seu isolamento e padrões alienados de relacionamento para se expandir em direção a uma nova forma relacional com tudo o que existe; tal relação é a concretização do sonho do “Reino de Deus”.
Texto bíblico: Lc 2,16-21
Na oração: entrar na Gruta requer uma atitude de reverência para deixar-se impactar pelo Deus “que se faz sempre Novo” e que nos move a sonhar e construir o “novo” na nossa história.
- qual é o “novo” que você está vislumbrando no seu horizonte pessoal, social, familiar, eclesial...?
A partir deste humilde espaço por onde flui minhas reflexões dominicais,
deixo ressoar a expressão: “feliz Tempo Novo de Deus!”.
Se conseguirmos que 2021 seja “novo” com a eterna novidade do amor e da bondade,
então também teremos um ano feliz.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
30.12.2020
Imagem: Gerrit Van Honthorst - The adoration of the shepherds
Chegamos ao Natal! Em muitos persiste um sentimento de estranheza: momentos de isolamento, incerteza de confraternizações, impaciência diante dos decretos de cuidados sanitários, uma epidemia em anunciado crescimento... O que fazer? Como viver este tempo? Para cristãos ou não, o Natal pode ser um momento de intimidade, possibilidade de degustar afetos, celebrar a vida em grupo, ocasião de gratuidade: de se sentir amado, de estar juntos, de receber e dar atenção, olhares e palavras trocados na alegria e de dizer sim à vida.
É o que proclamamos na aventura de ser cristãos e cristãs: Deus está conosco, vem para participar da vida e isto é festa para nós! Não um espetáculo nem entretenimento! É uma boa notícia: uma realidade que transforma a nossa vida! Assim proclama Lucas (2,22-40): um casal muito jovem e um recém-nascido vão à Cidade Santa para oferecer, em agradecimento, a pobre oferta dos pobres (duas pombas) e seu bem mais precioso: uma criança! Eles vão para a casa de Deus, mas é o Senhor que virá ao seu encontro através de duas criaturas mergulhadas na vida e no espírito, dois anciãos, Simeão e Ana, olhos cansados da velhice e jovens corações para desejar: a velhice do mundo acolhe em seus braços a juventude eterna de Deus!
Neste encontro ocorre a verdadeira liturgia: no pátio aberto a todos, Simeão toma Jesus em seus braços e abençoa a Deus, Ana espalha o louvor e espalha entre a multidão presente uma onda de esperança. Um leigo faz o gesto sacerdotal, uma leiga guiada pelo Espírito Santo começa a bendizer a criança e a Deus: uma liturgia autêntica, possível para todos e em todos os tempos. Um ancião e uma ancião, cheios de esperança, revelam espiritualidade: a bênção não é um encargo da elite, mas uma exuberância de alegria que todos podem oferecer a Deus.
Maria e José também são abençoados; toda a família está envolta em um véu de luz para o louvor e a profecia daquele casal de anciãos leigos, formando uma ampla família, profética e sacerdotal ao mesmo tempo: bênção e profecia não são propriedade exclusiva de oficiais religiosos, é dom de Deus e é oferecido no pátio aberto a todos. O Espírito havia revelado a Simeão que não morreria sem antes ver o Messias. Palavras que são para mim e para você: não morreremos sem ter visto a inciativa de Deus, a iniciativa da luz já está presente em todos os lugares, num recém-nascido, numa semente lançada na terra, na levedura do fermento na massa!
Simeão diz três palavras imensas sobre Jesus: ele está aqui como queda, ressurreição, como um sinal de contradição. Jesus provoca a queda de nossos pequenos ou grandes ídolos, ruína do nosso mundo de máscaras e mentiras, de vida insuficiente e doente. Ele veio para arruinar tudo o que arruína o ser humano, para trazer espada e fogo para cortar e queimar o que é contra a vida. Ele está aqui para a ressurreição: é a força que nos faz levantar quando imaginamos que tudo está acabado, que nos faz sair mesmo que sintamo-nos vazios e envoltos pela escuridão. Jesus está aqui e garante que viver é a experimentar a paciência infinita de recomeçar. Cristo contradiz nosso equilíbrio ilusório entre dar e ter; que contradiz toda a nossa mediocridade, todos os nossos equívocos sobre Deus.
A figura de Ana enfatiza o papel feminino na nova aliança, está junto com Maria, irmã de Moisés e Aarão (Êxodo 15,20), Débora (Juízes 4,4), Hulda (2Reis 22,14), a esposa de Isaías (Isaías 8,3). Mulheres que, além de Isabel e Maria, são capazes de encantar-se na frente de um recém-nascido porque sentem Deus como cumpridor das promessas, aliado dos pequenos e marginalizados. Sua presença testemunha a divina misericórdia e alimenta em todos nós a esperança de consolo e libertação.
Neste primeiro domingo após o Natal, portanto, a Igreja nos convida-nos a contemplar a Família de Nazaré, caminhando de Belém a Jerusalém. Mostra-nos o encontro desta pequena família com Simeão e Ana, ajudando-nos a perceber que o sagrado se manifesta na grande família dos que esperam em Deus. O centro deste acontecimento é Jesus. Ele é aquele que aproxima as gerações. Jesus é a fonte daquele amor que une as famílias e as pessoas, vencendo cada divisão, cada isolamento, cada distanciamento.
Possamos todos vivenciar esta experiência sagrada de viver o Natal, se não na companhia de todos aqueles que gostaríamos de ter ao nosso lado, pelo menos com os nossos entes queridos, com aqueles que moram conosco. Numa refeição preparada com amor, compartilhada na alegria, que possa significar: “Eu me sinto bem com vocês”; “Vocês são importantes para mim”. E na partilha de presentes, possamos reconhecer que estamos presentes e desejamos ser presença uns para os outros. Viveremos a antiguidade dos sentidos na juventude eterna de Deus. Amém!
Pe. Paulo Roberto Rodrigues
27.12.2020 - Festa de são João Evangelista
Imagem: Rupinik
“Maria e José levaram Jesus a Jerusalém, a fim de apresentá-lo ao Senhor” (Lc 2,22)
É profundamente inspirador que a liturgia cristã uma intimamente estas duas realidades: família e Natal. Nestes dias, todas as pessoas, mesmo que a situação sanitária não permita, tem a instintiva necessidade de agrupar-se, encontrar-se e celebrar. Brota em todos nós uma compaixão solidária para com aqueles que, no tempo natalino, não tem com quem compartilhar. Natal e solidão são conceitos contraditórios.
Naquela noite de Belém, Deus não só se humanizou, mas entrou em uma família humana; “Deus se fez família”. Com sua presença, diviniza a família. E toda família é divina se é verdadeiramente humana.
A família de Nazaré é a escola do Filho do Homem, rodeado de gente comum, com sua paisagem natal, como um entre tantos; sua linguagem, seu modo pessoal, sua conduta, sua fé...
Para Jesus, Nazaré é um tempo de aprendizagem: observar o que acontece ao seu redor: cala, vê, escuta nesta escola. Exercício de preparação diante das urgências do Reino. “Tempo de guardar no coração”.
Sabemos muito da vida pública de Jesus: nazareno, filho de um carpinteiro, pobre, livre, compassivo, comprometido com a vidar, que fazia milagres e falava com uma autoridade inegável, que anunciava a utopia do Reino, que logo foi crucificado como o pior dos criminosos, e cujos seguidores asseguraram que tinha ressuscitado... Não podemos negar que Ele mudou a história da humanidade.
Mas, antes de tudo isto, houve 30 anos de vida desconhecida, escondida, silenciosa.
Temos poucos dados sobre grande parte de sua vida no seio de uma família humilde em Nazaré, um povoado que não gozava de boa fama. Assim viveu Jesus, aprendendo a ser humano na escola da família e da comunidade. Se não entendemos que Jesus foi plenamente humano é que não aceitamos a encarnação.
Mas, há algo que podemos trazer à luz daqueles 30 anos “ocultos”: que na lentidão do dia-a-dia, da monotonia e do lar, Deus preparava o caminho. Pouco a pouco, a fogo brando. Em meio à rotina de uma vida simples, Jesus foi fazendo-se perguntas, esperando as respostas, ouvindo o que seu coração lhe dizia e discernindo o que o Pai queria dele. Ano após ano, em um pequeno lugar, detrás de uma vida que nada tinha de diferente das outras vidas. Até que chegou o momento de Deus.
Cozinhar a fogo lento é bem difícil neste mundo de pressas e imediatismos. E hoje, mais do que nunca, se fazem necessários os “tempos de Nazaré”, esses tempos de aparente rotina nos quais se alimentam os sonhos, onde se forjam as vontades, se domam as impaciências, se aclaram os caminhos, se discerne a Voz, se dissipam as névoas do caminho... Em definitiva, esse tempo onde nosso canto e o de Deus se afinam juntos para formar uma única melodia e fazê-la soar no mundo.
As grandes histórias são tecidas na trama do cotidiano; os “tempos” de Deus não são os da eficácia, da produção, do ritmo estressante... Também são os tempos do silêncio, da rotina inspirada e da aprendizagem silenciosa. Todo crescimento pessoal demanda previamente tempo, ritmo, reconhecimento e aceitação da própria verdade, sólidos fundamentos sobre os quais podemos construir nossa pessoa.
Jesus desenvolveu sua vida humana como qualquer outro ser humano. Como homem, precisou passar pelo processo do amadurecimento lento, lançando mão de todos os recursos que encontrou em seu próprio interior e ao seu redor. Foi um homem inquieto que passou a vida buscando, procurando descobrir quem ele era em seu ser mais profundo. Sua experiência pessoal o levou a descobrir onde o Espírito do Pai estava fazendo brotar o “novo” da Salvação, e entrou por esse caminho de libertação.
Jesus, no cotidiano familiar, nos revela que Ele é o homem das “grandes sínteses”: entre o particular e o universal, entre o Deus da intimidade e os irmãos da convivialidade, entre os momentos de cuidado de si e as ocasiões de solidariedade, entre sua interioridade e sua abertura a todos sem restrição, entre ação e contemplação...
Jesus mesmo foi este personagem instigante, que fez brilhar a “novidade” de Deus nas vilas e campos da Palestina. Ele nos fala de “sínteses” com o vigor de alguém que é inspirador para todos nós: Ele sintetiza a ternura de um irmão, a lucidez de um profeta e a revolução de um Messias.
Foi no cotidiano familiar que Ele aprendeu, aos poucos, a ampliar seus horizontes, seus interlocutores e o sentido de sua missão. É a vida cotidiana que nos revela que Jesus foi uma pessoa profundamente humana e humanizante, que vivenciou um processo de maturação, de releitura de suas tradições e assimilação do novo, até chegar à proposta original da Boa-Nova.
Ali, no ambiente familiar Jesus se destaca por sua docilidade, discrição, familiaridade, aprendizagem, bondade, sensibilidade, vivência da fé no Deus Providente... que aprendeu de Maria e de José.
Jesus, em Nazaré, continua sendo luminoso e inspirador para todos nós, num momento em que as transformações são rápidas e exigem de nós maturidade, aprendizado, diálogo, novas expressões de fé...
A família de Nazaré evoca o dia-a-dia do nosso seguimento de Jesus, onde os acontecimentos extraordinários são pouquíssimos. Chega um momento em que a vida cristã parece muito rotineira. Nazaré alimenta o seguimento de Jesus no cotidiano e comum da vida. Nazaré é a escola na qual aprendemos a descobrir a presença de Deus na vida “tal como ela é”, no trabalho das pessoas e nos rostos daqueles que estão ao nosso lado. No lugar onde nos cabe viver é onde o Senhor nos ama e nos convida a descobri-Lo.
São muitos os lares que vivem a dor da ruptura e separação. No entanto, a casa familiar continua sendo o lugar entranhável, a referência segura, a possibilidade restauradora.
Lar: lugar da surpresa, do novo, do desafio... onde a interação pais-filhos possibilita o desenvolvimento e amadurecimento natural de todos.
Lar: do “lugar estreito” ao “lugar amplo” onde é possível a expansão de todos.
Regado pelo amor, o lar torna-se espaço aberto ao futuro.
Mas Nazaré é também um alerta contra a rotina. Cada dia é preciso renovar o seguimento. Por isso Nazaré é o lugar da perseverança, da fidelidade, de dizer cada dia um novo “sim” ao Senhor. No cotidiano há momentos favoráveis e momentos de crise. Mas o cotidiano é a oportunidade para ampliar o olhar para a frente. Nazaré pode ser um lugar de esperança, de onde se pode vislumbrar um futuro melhor.
Nazaré evoca também a comunhão dentro da diversidade. Num pequeno povoado as pessoas são tão diferentes como numa cidade grande, mas a vulnerabilidade delas nos faz despertar a consciência da necessidade que temos uns dos outros. Numa comunidade pequena os problemas de um afetam os outros. Suas fragilidades se fazem fortes quando se apoiam mutuamente; suas solidões que se unem criam comunhão. Vivamos em nossas famílias a grandeza de sermos plenamente humanos!
Texto bíblico: Lc 2,22-40
Na oração: - descubra o significado profundo da sua vida cotidiana mais simples: trabalhos, relações, família...
O ambiente familiar, quando espaço humanizador, integra a vida cotidiana de Nazaré com os desafios de Jerusalém (família que se alarga, sai de si, se compromete, abre-se às causas humanas...)
- Como é sua família? Vive comprometida buscando uma sociedade melhor e mais humana, ou fechada exclusivamente em seus próprios interesses? Educa para a solidariedade, a paz, a sensibilidade para com os necessitados... ou só ensina a viver para o consumo insaciável, o máximo lucro e o esquecimento dos outros?
- No seu ambiente familiar cuida-se da fé, dos valores do Evangelho... ou se favorece apenas um estilo de vida superficial, sem metas nem ideais...? É espaço instigante, de crescimento, aberto ao novo e diferente... ou ambiente atrofiante, sufocante...?
Pe. Adroaldo Palaoro sj
26.12.2020
A tua Estrela finalmente brilhará sobre os nossos dias insolúveis, entre penúria e sede.
Brilhará sobre o nosso coração blindado, sobre os invisíveis muros do egoísmo que nos isola, sobre os ávidos motivos que nos prendem ao seu comércio repetido e sonâmbulo.
Brilhará sobre as múltiplas formas de cegueira que defendemos acriticamente; sobre o peso insustentável das nossas omissões, sobre a paz e a justiça que permanecem para nós uma missão sempre adiada.
Brilhará sobre as inúteis razões que acumulamos para mascarar o medo, que nos torna sempre mais indisponíveis à viagem que Tu nos sugeres.
A tua Estrela brilhará sobre a austeridade que impomos à circulação dos afetos; sobre a dança interrompida e as mãos silenciadas, sobre o silêncio mastigado em solidão apesar do previsível incremento de presentes e de desculpas; sobre a incapacidade de transformar os nossos passos erráticos e afadigados numa confiante marcha de peregrinos.
A tua Estrela brilhará sobre os caminhos que tantas vezes percorremos sem conduzir a lado nenhum; sobre esta aliança hesitante, ainda que assídua; sobre a imperfeição das promessas que acendemos; sobre o nosso olhar demasiadas vezes se rompe do lado de cá; sobre a incompletude da oração e sobre a fragilidade do dom.
A tua Estrela brilhará sobre nós.
In Avvenire
Trad.: Rui Jorge Martins
Imagem: pexels.com/ susanne-jutzeler
Publicado em 24.12.2020 no SNPC
“Vamos a Belém ver este acontecimento que o Senhor nos revelou” (Lc 2,15)
Não há dúvida que este Natal vai ser muito diferente dos anos anteriores. Para muitas pessoas pode ser um tempo de dor pelas perdas familiares, amizades, trabalho, saúde... Devido ao confinamento, sentiremos muito não poder nos encontrar com tantas pessoas como gostaríamos, nem nos abraçar, nem prolongar a noite de festa. Este Natal vai ser vivido na vulnerabilidade e na incerteza sobre o futuro de nossas vidas, do trabalho, de nossa humanidade e de nossa mãe Terra.
Quem sabe, o espírito natalino talvez nos ajude a encontrar uma outra maneira de superar o confinamento, menos arriscada e mais enriquecedora. Se estamos confinados por fora, busquemos nos des-confinar por dentro. Se somos vazios por dentro, seremos vulneráveis a tudo; diferentes “vírus” poderão nos contaminar. O consumismo, a competição, a política do “pão e circo”... confinaram o Natal e deixaram nossos interiores muito fechados e vazios. Há muito tempo que celebramos o Natal sem “alma”.
O Natal, já tão desfigurado, poderia ajudar a nos enriquecer e nos comunicar por dentro, porque nossos contatos exteriores estão muito limitados; seria uma ocasião privilegiada para recuperarmos o sentido de um natal autenticamente humano e cristão. É preciso “des-confinar” o Natal!
Nesse sentido, e apesar de tudo, Natal pode ser um momento de aprendizagem vital. Crescemos em consciência que o confinamento imposto pela situação pandêmica é movido pelo amor, respeito, responsabilidade, solidariedade, empatia e cuidado de nós mesmos e dos outros.
Inspirados nos “pastores que vão a Belém”, poderemos sair do confinamento tão plenificados por dentro que seremos capazes de suportar essa dolorosa falta de contatos exteriores, tão encantadores e tão necessários.
“Vamos a Belém”, disseram entre si os pastores, cheios de ânimo e surpresos. É de noite e estão ao relento. De imediato a escuridão se ilumina, irrompe a voz dos anjos, que é o divino no coração da vida. “Não tenhais medo. Hoje, na cidade de Davi nasceu para vós um Salvador”. E para lá se dirigiram.
Os pastores nos indicam em que direção buscar o mistério do Natal: “Vamos a Belém”.
Vamos a Belém com os pastores, e entremos com eles na gruta. Eles nos convidam e nos conduzem. Vamos levando o presente de nossa pobreza e de nossos limites humanos; vamos sem medo de não nos sentirmos dignos, carregando em nossas pobres mãos a situação de dor em que se encontra a humanidade inteira.
Para o cristão, celebrar o Natal é “voltar a Belém”.
Não um Belém com reis magos, camelos e dromedários, carregados de tesouros, com pastores ingênuos e cenas costumeiras, neve de algodão e paisagens de serragem, musgo verde, árvores, fogueiras e luzes intermitentes de cores variadas, músicas natalinas, a estrela cravada no céu, vigiando a gruta, com José, Maria e Jesus, o boi e o burrinho... Uma repetição para todos, sem questionamento, sem mensagem; natal doce, regado a comidas e bebidas. Este tipo de “belém” não inquieta, nem incomoda, nem convida à reflexão e oração: apresenta um Natal “normótico”.
O primeiro Belém não foi assim. Foi um acontecimento que gritava, e continua gritando aos quatro ventos, que a situação não podia continuar como estava e como está hoje. Aquele Belém levantou a esperança dos pobres, pôs as periferias em efervescência, abriu um novo horizonte de sentido para toda a humanidade.
Deus não fixou morada entre as muralhas e palácios de Jerusalém, mas em uma aldeia insignificante, berço do rei Davi. Deus “tem um fraco” por aqueles que não são contados: uma aldeia pequena será o lugar eleito. O que ali aconteceu foi como um relâmpago na obscuridade da noite da história...
Não podemos deixar que “nos roubem o verdadeiro Natal”!
“Vamos a Belém”. Mas, a quê Belém? Ao antigo Belém da Judéia? Ou ao Belém das ficções e das crenças? Vamos, antes, aos “beléns” – são tantos – de terra e de carne que povoam a Terra.
Também o Belém histórico, do qual falam os evangelhos, aquele que deu nome a tantos outros lugares, é uma imagem do verdadeiro Belém que ainda não é realidade. Os Evangelhos falam de Belém em termos proféticos, antes que históricos, e a profecia continua sem se cumprir: Belém continua sendo uma localidade submetida na Cisjordânia palestina, ocupada por Israel. Belém rodeada, isolada por um muro inumano, muro de cimento e de soldados que restringem a liberdade de entrada e de saída de seus habitantes.
Belém é toda a geografia do planeta em sua diversidade e contradições, com seus dramas mais terríveis e com seus sonhos mais belos. É figura de todos os “beléns”: imagem de todas as injustiças e feridas do mundo; ao mesmo tempo, imagem de outro mundo que devemos engendrar, imagem da força do pequeno e do simples, da bondade mais forte, da fé na vida e na humanidade, apesar de tudo.
Não é à toa que Belém significa “cidade do pão”, do pão que falta para tantos, de tanto pão que é desperdiçado, pão da alegria dos comensais, da felicidade, da bondade e da partilha...
Belém é o nome dessa cidade futura de todos os homens e mulheres, de todos os viventes.
Esse é o Belém da noite de Natal. Os Evangelhos não são crônicas daquilo que alguma vez aconteceu no campo dos pastores, nos aforas de Belém da Judéia. São muito mais profecia daquilo que devemos fazer com que aconteça: que haja “teto, terra e trabalho” para todos. Como os poemas e as profecias, os evangelhos foram escritos para mover o coração a liberar a esperança, a alimentar a liberdade, sempre tão ameaçadas. Não foram escritos para contar o passado, mas para imaginar e suscitar o futuro.
Caminhemos, pois. Diante do Belém de nossa casa, queremos inclinar-nos diante do menino Jesus – profecia da humanidade – como Maria e José. E voltar a sonhar, e que o sonho nos impulsione a construir o Belém de um futuro muito melhor para todos.
Em Belém seremos pacificados de nossas ansiedades de fazer mais e de ter mais, de nossas aspirações de poder e vaidade, de nossas pressas e de nossos estresses; se permanecermos em silêncio ali, diante do menino deitado no presépio, brotará em nós um desejo profundo de sermos mais humanos, de sermos aquilo que já somos e que se faz visível no rosto aberto daquela criança; ao mesmo tempo, brotará um desejo de venerar cada ser humano, de contemplá-lo em seu interior, esse lugar ainda não profanado em cada pessoa, o lugar de sua infância e de sua inocência.
Há muito que ver em Belém, mas nem todos os olhares poderão acolher o que ali acontece. Há olhares opacos que não se alegrarão, olhares desconfiados que não o entenderão, olhares frios que não vibrarão com a novidade da gruta... Somente os olhares dos pobres e pequenos se admirarão, e a paz do coração será sua recompensa.
“Ver de novo”, ver outras coisas diferentes daquilo que estamos acostumados a ver é também “nascer de novo”. É preciso despertar o “pastor interior” que há em nós, nossa capacidade de atenção à vida, de buscar com outros, de deixar-nos surpreender diante da presença despojada de Deus.
Acostumados a nos deixar impressionar pelo extraordinário e pomposo, somos incapazes de perceber como Deus vem diariamente a nós. O teólogo José Antonio Pagola nos diz que Deus não se deixa aprisionar em nossos esquemas e moldes de pensamento: “Imaginamo-Lo forte e poderoso, majestoso e onipotente, mas Ele se oferece a nós na fragilidade de um pobre menino, nascido na mais absoluta simplicidade e pobreza. Colocamo-Lo quase sempre no extraordinário, prodigioso e surpreendente, mas Ele se apresenta a nós no cotidiano, no normal e comum. Imaginamo-Lo grande e distante, e Ele se faz pequeno e próximo a nós”.
Texto bíblico: Lc 2,1-15
Na oração: com certeza, o Natal deste ano nos oferecerá a oportunidade de celebrá-lo de uma maneira mais autêntica e cristã. Isto requer uma preparação e processo interior.
- Como você está se mobilizando para celebrar este Nascimento surpreendente, que mudou a história?
Um inspirado Natal a todos!
Pe. Adroaldo Palaoro sj
23.12.2020
Imagem: Bartolome Murilo
“Alegra-te, cheia de graça, o Senhor está contigo!” (Lc 1,28)
Dois olhares dirigidos a Maria podem nos ajudar hoje a considerar nossa maneira original de estar e viver em Advento: o olhar à mulher que ama e o olhar à mulher que diz “sim”.
Pois o Advento é tempo de Maria, tempo de esperança e acolhida, tempo de espera. Maria foi mãe, testemunha, seguidora..., mas sobretudo foi Mulher do “sim”, do compromisso sincero e real, Mulher de fé capaz de arriscar tudo e deixar-se conduzir por Aquele que a olhou com misericórdia.
Na Anunciação, podemos encontrar Maria numa atitude de escuta, de receptividade, de abertura, de sim. Tal atitude vai colocá-la em contato com o Anjo, com o Mensageiro, com Gabriel.
Entrando em contato com este anjo, ela vai fazer a experiência de uma alegria fontal. A primeira palavra do anjo é, em grego, “kaire te”, que quer dizer: “Alegra-te!”.
A primeira palavra pronunciada pelo anjo não é uma simples saudação convencional.
É um imperativo, um convite à alegria. Na saudação “alegra-te” ecoa o júbilo pela chegada da salvação, nas palavras de Sofonias: “Exulta, filha de Jerusalém e, de todo o coração, dá gritos de alegria!” (3,14). Convidada pessoalmente a alegrar-se, Maria é também a representante e portadora da alegria de todo o Povo de Deus pela vinda do Salvador, anunciada pelos profetas.
Maria fica admirada e surpresa, não pelo que vê, mas pelo que ouve. As palavras da saudação não são só totalmente inesperadas para ela, mas soam aos seus ouvidos como absolutamente novas, literalmente in-auditas. Por isso, “pôs-se a pensar, a refletir, a dialogar consigo mesma, perguntando-se qual seria o sentido da saudação”.
Maria não duvida da ação surpreendente de Deus e nem pede um sinal. Acolhe com fé cada uma das promessas sem pôr obstáculo algum à presença do mesmo Deus nela. Mas, porque não compreende como acontecerá tudo isso nela, pergunta: “Como vai ser isso se eu não conheço homem algum?”
O mesmo Espírito que, no princípio da Criação, pairava sobre as águas, e que havia sido prometido para o futuro como descendo do alto, repousa agora em Maria. E ela se deixa envolver pela “sombra” do Espírito
A expressão “cobrir com sua sombra” significa, originalmente, não uma presença estática, mas a presença ativa e eficaz de Deus no meio do seu povo.
A presença divina, a “glória do Senhor” que repousou sobre a Tenda no deserto e mais tarde sobre o Santo dos Santos no Templo de Jerusalém, vai repousar agora sobre o santuário vivo que é o corpo da virgem de Nazaré, cumprindo as promessas da salvação e inaugurando a Nova Criação.
Os Antigos viam nesta experiência da “sombra” aquilo que dá nascimento à Luz. Neste sentido, Maria é o símbolo de toda a terra, de todo o universo, que acolhe em sua sombra, em seus limites, a semente da Luz.
Maria encerra o diálogo autodenominando-se “a serva do Senhor”. A palavra serva descreve um estado de entrega, um estado de confiança na presença mesma d’Aquele que É.
Sua resposta, embora dinamizada pela graça, é uma resposta livre na fé. O fiat de Maria é o começo da Nova Aliança de Deus com a humanidade.
O seu “sim” revela a grandeza, a beleza e a responsabilidade das decisões da liberdade humana.
A partir disso, podemos interrogar o Evangelho e ver como este estado de sim, como este estado de confiança original, se encarna na vida concreta de Maria.
Antes de mais nada, pensamos em Maria não somente como uma personagem exterior, mas como uma realidade interior, como referência inspiradora, como abertura à presença d’Aquele que vive e é gerado nela, minuto a minuto. E o caminho de Maria na história pode ajudar-nos a compreender nosso próprio caminho; pode ajudar-nos, sobretudo, a compreender a que ponto nós estamos entulhados de memória mórbida, a que ponto é difícil para nós dizer sim e viver uma entrega confiante.
Charles Peguy dizia que “Maria é mais jovem que o pecado”. Isto quer dizer que existe em todos nós uma dimensão mais jovem e mais profunda, não contaminada pelo ego: trata-se da beatitude original.
Falamos demais sobre o pecado original e muito pouco sobre a bem-aventurança original. Assim, os Antigos viam em Maria um arquétipo da bem-aventurança original, ou seja, a relação de intimidade com a Fonte do seu ser original, que é o próprio Deus.
Com Maria é preciso entrar em contato com a nossa confiança original, mais profunda que nossos medos e nossas resistências. É preciso entrar em contato com esta dimensão marcada pelo silêncio, com esta sombra na qual a Luz vai ser gerada. É preciso nos deixar conduzir pelo Sopro da Vida, para viver mais intensamente e gerar vida ao nosso redor.
Existe em nós uma realidade mais profunda, inocente, fonte de toda inspiração, desejo, criatividade... Podemos dizer que em nós habita uma “Maria”, que, em meio ao nosso caos interior (feridas, sentimentos negativos, traumas...) des-vela o que em nós é imaculado, puro, capaz de entrar em sintonia com a presença angelical e dizer “sim”, na confiança radical. Maria é a nossa verdadeira natureza, é a nossa verdadeira inocência, aberta à presença do divino. Infelizmente, a cultura da superficialidade na qual vivemos, nos seduz e nos faz perder o caminho que dá acesso ao que é mais “cheio de Graça” em nosso eu profundo.
Maria é o estado de confiança original. Precisamos, também nós, encontrar esta confiança original.
Certamente cada um de nós já teve a oportunidade de fazer a experiência deste estado: quando brota em nós um sentimento oceânico de alegria, plenitude, consolação..., quando sentimos o impulso para sair de nós mesmos e viver uma presença solidária, quando a gratidão ilumina nossa vida, quando não nos deixa-mos determinar pelo rigorismo, perfeccionismo e moralismo..., quando alimentamos a confiança n’Aquele que É, quando nós dizemos sim aos Mensageiros angelicais que nos envolvem...
À palavra-ação de Deus corresponde a palavra-ação de Maria. O anjo permanece na presença dela até que ela diz a última palavra.
O “sim” de Maria, seu modo livre de consentir, abre as portas à humildade compassiva de Deus. Nela, Deus se humaniza, se faz “carne” e assume toda a condição humana, iluminando-a e divinizando-a.
Deus pede o consentimento a uma jovem aldeã para acontecer em seu seio a humanização do Filho divino.
Dizer “sim” significou, para ela, embarcar-se em uma aventura cujo fim não se adivinhava, significou romper o projeto de sua vida pessoal que tinha, como qualquer jovem de sua idade.
E Maria não pediu tempo para assegurar-se fazendo uma consulta familiar; quando sentiu que era vontade de Deus, pronunciou um “sim” definitivo, através do qual o Filho de Deus se fez “vizinho” da humanidade, em Nazaré. Assim, nas pontas dos pés, através do seio de uma jovem humilde, Deus entrou na história humana.
Para o Antigos padres da Igreja, Maria é o sim original. E este sim é mais profundo que todos os nossos nãos. É preciso também reencontrar em nós mesmos aquilo que diz sim à vida, quaisquer que sejam as formas que esta vida tomar. Não é fácil reencontrar este sim. Na maior parte do tempo estamos na desconfiança, na dúvida, no temor... Isto quer dizer que temos muitas memórias doentias que alimentam medo, que nos fazem resistir àquilo que a Vida nos propõe para viver.
Devemos, então, passar por um estado de silêncio de nossas memórias, de silêncio de nossa mente, para encontrar esta confiança original. Esta atitude é a da “inocência original”.
Texto bíblico: Lc 1,26-38
Na oração: O primeiro “sim” que recebemos e, às vezes, o último que descobrimos, acontece em nosso nascimento. É o “sim” primeiro de Deus à nossa vida, a afirmação profunda que nos faz existir; neste “sim” de puro amor, respiramos e somos.
O segundo “sim” é aquele que nos faz mais parecidos a Deus. É o sim oblativo, aberto, que prolonga o “sim” de Maria e que se revela no deslocamento junto aos outros para afirmar suas vidas, cuidando e ativando suas potencialidades. É o sim que Isabel deu a Maria quando esta foi a visitá-la. Está feito de reconhecimento, respeito e alegria pelo trabalho secreto de Deus em cada um(a): “Bendita(o) és tu”.
- Revisitar os “sins” que fizeram diferença na sua vida, que despertaram a criatividade e a sensibilidade para com os outros, que inspiraram e trouxeram um novo dinamismo à própria existência.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
17.12.2020
Imagem: Henry_Ossawa_Tanner/ Anunciação
Iniciamos a quarta semana do advento, ouvindo os versículos 26 a 38 do primeiro capítulo do Evangelho segundo Lucas, uma preciosa narração escrita por volta dos anos 80 do Primeiro Século da Era Comum; para comentar e rezar o belo poema do profeta Sofonias (3,14-17): “Grita de alegria, filha de Sião! (…) O rei de Israel é o Senhor, que está em teu meio; não precisarás mais ter medo de alguma desgraça. (…) não tenhas medo, Sião! (…) O Senhor teu Deus está a teu lado como valente libertador!” Imagens que se confirmam na profecia de Zacarias (2,14): “Exulta e fica alegre, filha de Sião, pois venho morar no meio de ti – Palavra do Senhor”.
Tudo enriquecido com uma lista de sete nomes: Gabriel, Galiléia, Nazaré, José, Maria, Jesus, Davi. Sete, o número da totalidade, que indica plenitude e finalização, porque o que está para acontecer envolverá toda a história, as profundezas do céu e todo o fervilhar perene da vida na terra: cumprindo o que Deus prometera aos nossos pais (significado do nome Isabel)! Uma palavra na contramão: o mensageiro se dirige a uma jovem mulher (não a um sacerdote ancião); numa casa qualquer e não no santuário; numa cozinha e não entre vasos sagrados do templo. Em um dia comum, porém, marcado no calendário da vida (no sexto mês de gravidez).
Alegria é a primeira palavra: alegre-se! Evangelho no Evangelho! Eis o motivo: Maria, você é cheia de graça. Você está cheia do céu, não porque respondeu "sim" a Deus, mas porque Deus primeiro disse "sim" a você. E Deus diz "sim" a cada um, cada uma, de nós, antes de qualquer resposta nossa! Pois a graça para ser graça não pode se assentar no mérito ou cálculo. A Deus não se merece, apenas podemos acolhê-Lo ou não!
Esta saudação pode parecer estranha porque não se apresenta com a gravidade das Leis ou a precisão dos Dogmas. É conversa de enamorados: o Altíssimo se apaixonou por você e agora seu nome é: amada para sempre; como Ele, também será conhecido como quem ama desde sempre e para sempre! Todos, ternamente e livremente amados, desejados por Deus. Assim é o amor, paixão de união que atrai e une: o Senhor está com você! Expressão que desconcerta a menina... Pois Deus confia-lhe uma tarefa ao mesmo tempo bela e... árdua! Ele chama Maria a uma história de surpresas e de coragem.
Maria, você terá um filho, seu e de Deus, um filho da terra e do céu. Você vai dar-lhe o nome de Jesus. E a jovem, pronta, inteligente e madura, depois da primeira perturbação não tem medo, ela fala, questiona, argumenta. Ela se coloca diante de Deus com toda a dignidade de uma mulher, revelando nossa humana vocação de sermos imagem e semelhança do divino. Enquanto Zacarias, experimentado sacerdote, pedira um sinal ao anjo; Maria pergunta-lhe o significado e como se daria aquele convite. De um lado a busca por garantias, por outro, a ousadia de penetrar o sentido da história! Medo da frustração, coragem para avançar no desconhecido!
As respostas do mensageiro soam estranhas: o celeste se fará terrestre; o eterno se fará mortal; o onipotente, fraco; o três vezes Santo, será o Emanuel, Deus-conosco (conforme Isaías 7,14 ou Mateus 1,23); o divino se tornará humano. O que importa como isso acontece? Então Gabriel para tranquilizá-la fala do Espírito nas águas como na origem (Genesis 1,1), da Presença Divina (Shekinah/sombra) na Tenda como no Sinai, convida-a a pensar e desejar grande, o maior que puder: confie, será Deus quem encontrará o caminho, a forma, o como fará tudo possível! Como fez com Isabel, fará grandes coisas: você sentirá isso em seu corpo, como ela sentiu na velhice.
O Espírito poderia ter escolhido outros caminhos, é claro, mas sem o corpo de Maria o Evangelho perde seu corpo, torna-se ideologia ou simples moral. Eis a boa notícia: Deus está conosco, quer habitar conosco, caminhar nossas trilhas, compartilhar boas palavras, doar-se em vida abundante para todos. Agora Deus está à procura de mães, Marias e Josés. Cada cristão/cristã é chamado a gerar Cristo em si mesmo, acolhendo a Palavra com fé e obediência, deixando-a fecundar em nós, pelo Espírito Santo, a crescer dia e noite, mesmo que não saibamos como.
Eis a boa e desafiante notícia de hoje: o Senhor vem e está em nós e no meio de nós; é fonte de libertação e de vida nova para nós e para a humanidade. O aspecto desafiador desta vinda é que Ele não vem como todo-poderoso a resolver tudo com milagre e através da força. Deus vem como pequenino e impotente. Cabe a nós, feito mães amorosas, ajuda-Lo a se encarnar neste mundo, nestas casas e ruas, cuidando da sua palavra, dos seus sonhos, do seu evangelho. Assim Deus viverá por nosso amor. Eis o nosso Deus, Deus-em-nós! Amém!
Pe. Paulo Roberto Rodrigues
(seis dias antes do Natal do Senhor, em 2020)
Imagem: pexels.com
Avançamos na terceira semana do Advento! Somos convidados a alegria, depois da vigilância e do despertar... Alegria que não se confunde com a euforia, o prazer imediato ou a tênue satisfação do consumo! Uma alegria que experimentamos apesar de nossos limites, descortinando as infinitas possiblidades que carregamos em nosso ser. Atitude que não se fia na riqueza, fama, honra, beleza, força; posses exteriores que também são efêmeras, que mais cedo mais tarde acabaremos por perdê-las!
Cabe-nos, como seres humanos, descobrir a alegria de nosso verdadeiro existir e viver na perspectiva de que ser feliz (ou miserável) não depende das circunstâncias ao nosso redor, mas de como cada um de nós responde aos desafios que se nos apresentam. Viver - alegrar-se - “é afinar o instrumento, de dentro p’ra fora, de fora p’ra dentro, a toda hora, a todo momento” (Walter Franco).
E mais uma vez nos inspira João, o Batista, enviado por Deus para dar testemunho da luz. Ora, a luz não podemos percebê-la diretamente: nosso olho vê objetos porque refletem a luz que os atinge! Tudo o que vemos são reflexos da Luz, espelhos da Luz. Não vemos a luz, como não vemos nossos olhos... Vemos através da Luz, contemplamos seu refletir. Pois, não conhecemos aquela luz infinita e distante que habita as alturas, mas aquela luz terrestre e comum, que ilumina cada ser humano e cada história, luz que acaricia cada criatura sem jamais se cansar.
João é o “mártir” da luz, é um punhado de luz atirado na face do mundo, não para deslumbrar, mas para despertar as formas, as cores e a beleza das coisas, para ampliar o horizonte. Testemunha de que a pedra angular sobre a qual a história repousa não é o pecado, mas a graça, não é a lama, mas um raio de sol, que nunca desiste de transfigurar a face da terra. “Luz do sol que a folha traga e traduz...” (Caetano Veloso)
Questionado sobre sua missão e atuação, João nega privilégios, prestígios e expectativas. Diz com firmeza: “não sou a Luz, o Messias, o Profeta ou Elias”! Não se identifica com os preceitos e normas de seus contemporâneos. Sabe dizer “não” aos poderes instituídos para revelar o sim de Deus! É a voz que anuncia a Palavra. A voz que agora escutamos e se perderá no vento, traduz a Palavra, expressão verdadeira do divino amor, que é desde sempre e para sempre. A voz serve à Palavra. A Palavra procura uma voz para se manifestar! “Tua palavra na vida é suave melodia, revela toda verdade e converte a rebeldia!” Eis aqui também sua alegria: preparar o caminho do Senhor!
Aquele homem que habita o deserto, de poucas (e densas) palavras, julgado como sem mérito, é exatamente o oposto de um balão inflado, de uma peça publicitária, tão comum em nossos dias. Ele fala simplesmente sem adicionar títulos ou habilidades; desapegando-se de tudo mostra-nos, assim, o caminho para o essencial, o verdadeiro, o real. Não se é profeta por acúmulo, mas por despojamento: falo palavras que não são minhas, que vêm de antes de mim, que irão para além de mim. Eu não sou o que os outros dizem sobre mim. O que me torna humano é o divino em mim; a luz que faz refletir minha humanidade... A vida vem do Outro (de Deus), flui na minha pessoa, como a água no leito de um riacho. Não sou essa água, mas sem ela nada sou mais. Eis a nossa alegria!
A cada crente é confiada a mesma missão do Batista: anunciar não a degradação, o colapso, a podridão que nos ameaçam, mas os olhos que veem Deus caminhando entre nós, sandálias de peregrino e um coração de luz! Entre nós Ele está: não o conhecemos ou reconhecemos! Sua luz e sua presença nos tocam e atravessam. Por isso, acolhamos os conselhos do apóstolo Paulo aos Tessalonicenses: “Estejam sempre alegres! Rezem sem cessar. Em todas as ocasiões, agradeçam e expressem gratidão. Não apaguem nem esgotem o Espírito! Nem desprezem as profecias, mas a tudo examinem, guardando o que for bom, belo, justo e agradável. Afastem-se de toda espécie de maldade!” (conforme Primeira Carta de São Paulo aos Tessalonicenses 5,16-22)
Se o mundo atual mais nos parece um «deserto», a serviço da verdadeira alegria queremos estar: apontando os belos reflexos da Luz, anunciando a Palavra com esperança, convidando as pessoas para mergulhar na fonte da misericórdia e do perdão, revelando algo que experimentamos de Deus e Seu amor, algo sabe sobre a «fonte» e de como se acalma a sede de felicidade que há no ser humano. A vida está cheia destas testemunhas, talvez pequenas a nossos olhos, mas certamente enviadas por Deus. São crentes simples e humildes, pessoas muito boas, vivem da verdade, do amor e da alegria. Eles “nos abrem o caminho para Deus”, apontam-nos a Luz que já está entre nós. Que, em breve, possamos ouvir de Jesus: “vocês são a luz do mundo.” Amém
Pe. Paulo Roberto Rodrigues
Festa de Nossa Senhora de Guadalupe, padroeira da América
12.12.2020
Quem és, afinal? Temos que levar uma resposta para aqueles que nos enviaram. O que dizes de ti mesmo? (Jo 1,22)
Vivemos um tempo de múltiplas imagens e estímulos, de novas versões e mudanças radicais, de diversidade de comunidades, religiões e línguas, de quebras de paradigmas em todos os campos da humanidade, de profundas transformações sociais, de rompimento de fronteiras... Este contexto de pluralidade faz com que todos se perguntem sobre sua identidade: “quem sou eu? quem somos nós?”
O ser humano está sempre em busca de sua identidade; não lhe basta existir, ele quer saber quem é, para se compreender e encontrar o sentido de sua própria existência.
Como cristãos que somos, não estamos protegidos dos ventos do momento em que vivemos; quem não se define, morre. Por isso, somos desafiados a falar de nossa identidade e adentrar-nos nas profundezas da nossa vida, para apresentar, num contexto global e totalmente mudado, qual é o nosso “rosto” hoje.
Frente às nossas falsas imagens e mentiras, frente às mascaras que nos escondem, frente às convenções sem alma, frente aos silêncios cúmplices, frente à impossível busca da perfeição, frente à negação das nossas próprias capacidades..., o tempo do Advento nos inspira a despojar-nos de capas ridículas que nos cobrem, para deixar aflorar nossa verdade desnuda, nosso “eu original”. É preciso atrever-nos a ser nós mesmos, a partir do mais interior e nobre. Há um grito que se eleva das profundezas existenciais: Viva!
O evangelho deste domingo (3o Dom Advento) quer ser um convite a “desvelar nossa identidade”, descobrindo o que é mais original em nós, lançando-nos a superar aquilo que talvez nos impeça manifestar o que somos e expressar aos outros a riqueza que trazemos dentro de nós...
Sabemos que o ser humano age de acordo com a visão que tem de si mesmo. A percepção íntima da própria identidade é o supremo motivo e explicação das opções e mudanças importantes na vida pessoal.
João Batista tem consciência de sua identidade profunda e por isso proclama: “eu sou a voz que grita no deserto”. Ao mesmo tempo, deixa transparecer uma íntima sintonia entre sua identidade e sua missão; ou melhor, sua identidade se visibiliza na missão de “aplainar o caminho do Senhor”.
Minha identidade determina o meu comportamento. “O que eu sou determina o que eu faço”. O “quem sou eu?” é a base do “que faço eu?” Todo ser age de acordo com sua própria auto-imagem.
O agir se segue ao ser. Assim, conhecendo a mim mesmo acabo conhecendo o segredo de minhas ações e, fazendo emergir o que é mais nobre em mim, posso dirigir o curso dos meus atos, tornando-os mais oblativos e descentrados.
“Eu sou as minhas ações”, porque o que “eu sou” é o que positiva e visivelmente aparece em minhas ações. Quanto mais sou eu mesmo mais amplo é o alcance de minhas atitudes e mais transcendente o sentido de minhas opções.
Portanto, da identidade, assumida e vivida, é que brota a missão.
A identidade faz parte da missão, está em função dela, a inspira, a anima e é por ela configurada.
Com isso fica claro que a Identidade e Missão são inseparáveis, assim como a unidade insuperável entre ser e agir. Não é suficiente continuar adiante com a missão se não o fazemos como João Batista: abrasado com o amor de Deus, deixa transparecer sua verdadeira identidade na missão de ser o “precursor” do Messias.
Ter uma missão sem uma identidade que a inspire é cair no ativismo, na tarefismo, na ação insensata, ou seja, sem sentido, sem motivação e sem horizonte (para quê? para quem?).
Por outro lado, uma identidade que não se expressa na missão é vazia, é carente de humanidade e se fecha num intimismo alienante. Portanto, a identidade já é missão e a missão é revelação da identidade.
A identidade nos dá um rosto, centra-se tanto no ser como no fazer.
Toda pessoa é um mistério para si mesma e para os outros. E quanto mais rica for sua vida, mais profundo o mistério. Mas é no coração que está a fonte, a origem e o mistério do ser humano.
O coração é a expressão da pessoa em sua interioridade e totalidade.
É no coração que se origina a necessidade de comunicação, de relacionamento e de comunhão.
É preciso ter a coragem de mergulhar até o mais profundo de si mesmo, em busca dessa luz infinita que emerge de dentro, quando se tira tudo o que é máscara e revestimento. O “eu original” é livre, criativo, transparente, iluminado... Ele escolhe os melhores caminhos que levam à plena realização de si e à transcendência.
Se a maneira pela qual nos conhecemos determina a maneira pela qual nos comportamos, quanto mais nós nos conhecemos e a tudo o que existe dentro de nós, melhor poderemos orientar nossa vida e dirigir conscientemente nossas opções.
Somos ainda, em grande parte, uma “terra desconhecida” para nós mesmos, e a viagem de descoberta é como a viagem imaginária a uma nova terra, estranha e bela, que desperta assombro frente aos seus encantos e à novidade de suas mil maravilhas. Perceberemos, depois, com surpresa e alegria, que a bela terra nova a que chegamos sem saber é nosso próprio país natal esquecido, subestimado e abandonado. A redescoberta de nós mesmos é a maior e sem dúvida a mais gratificante aventura de nossa vida.
Redescobrindo a nós mesmos, vamos encontrar o nosso lugar na história. Quanto melhor conhecemos o nosso verdadeiro ser, melhor será o valor de nossa vida para os outros.
De onde minha identidade ganha seus contornos originais? No mistério da alteridade, no encontro com o outro que me provoca a ser. A alteridade está no centro da construção da identidade, porque esta não se acha totalmente dada (como a existência), mas está para ser construída.
A identidade de João Batista é realçada pela alteridade do Messias que “está no meio de vós...; e eu não mereço desamarrar a correia de suas sandálias”.
A alteridade é fator constitutivo da identidade. O outro não é o inimigo, o intruso, mas facilitador de minha identidade. O outro é exatamente aquele que, justo por sua alteridade, chama-me, convoca-me e assim me faz sair do enclausuramento em mim mesmo. Aqui se revela o dinamismo mobilizador presente no próprio nome
Cada um de nós tem um nome, que é próprio, não comum. É de uma pessoa. Ele expressa o nosso ser, indica uma missão a realizar, uma vocação, um apelo a responder.. Somos chamados. É isso que significa ter um nome. É preciso crescer na consciência de que o próprio nome tem uma história e manifesta uma identidade única, irrepetível, original. O nome próprio está relacionado com nossa realidade pessoal, responsável, criativa e livre.
Na Bíblia, o nome é algo dinâmico, é um programa. A troca de nome implica uma missão que deve ser realizada pela pessoa (Gen, 17,5; Jo. 1,42).
Um nome novo: uma aventura que começa; uma história a ser construída. Nosso nome secreto Deus o conhece. Ter recebido um nome de Deus significa tomar um lugar na história, uma missão a cumprir.
Texto bíblico: Jo 1,6-8.19.28
Na oração: Diante da presença de Deus, procure estar aberto ao contato com a própria realidade interior, para que venha à superfície aquilo que o sustenta e dignifica o seu viver.
- Dirija seu olhar para o que é mais íntimo em você, onde nascem sentimentos e valores, desejos e atitudes... onde você é convidado a se alegrar com os rastros da Graça.
- Qual é a verdade original presente no seu nome?
- Quê você acredita ser o mais autêntico em sua maneira de ser e viver?
Pe. Adroaldo Palaoro sj
10.12.2020
imagem: pexels.com
“Começo da boa notícia de Jesus Cristo, Filho de Deus” (Mc 1,1)
Ao longo deste novo ano litúrgico, nós cristãos seremos inspirados pelo evangelista Marcos a viver, de modo sempre criativo e novo, o seguimento de Jesus. Seu Evangelho dá a arrancada inicial com este título: “Começo da boa notícia de Jesus...” Estas palavras nos permitem vislumbrar o que encontraremos em todo o relato de Marcos. O “começo” é um título que abrange e orienta tudo: o livro inteiro de Marcos deve ser ouvido como “boa notícia” sobre Jesus Cristo; boa notícia que desconcerta, que alimenta esperança e que abre um novo sentido para a nossa existência.
Com Jesus “começa algo novo”. É a primeira coisa que Marcos quer deixar clara. Todo o anterior pertence ao passado. Jesus é o começo de um caminho novo e de um tempo inconfundível. No relato, Jesus dirá que “o tempo se cumpriu”. Com Ele chega a boa notícia de Deus.
Isto é o que experimentaram os primeiros cristãos. Quem se encontra vitalmente com Jesus e mergulha um pouco em Seu mistério sabe que começa uma vida nova, algo que nunca havia experimentado anteriormente. Uma sensação de libertação, alegria, segurança e desaparecimento dos medos. Em Jesus, ele se encontra com “a salvação de Deus”.
Causa-nos assombro este início tão solene do evangelho de Marcos, que formula um apelo concreto, como se fosse a condição única para continuar com a leitura: “preparai o caminho do Senhor, aplainai suas veredas”. Esta Palavra, sempre oportuna, nos é presenteada neste tempo de Advento e nos recorda que, para acolher o Senhor, é preciso sair dos lugares estreitos, das posições fechadas, das ideias fixas..., e “fazer estrada” com o Deus Peregrino. Aqui está a verdadeira identidade dos seguidores de Jesus: os “adeptos do caminho” At 9,2 – assim eram conhecidos os primeiros cristãos.
O(a) seguidor(a) de Jesus é aquele(a) que descobre que não pode deixar de caminhar. Seguro(a) daquilo que lhe falta, percebe que cada lugar por onde passa é ainda provisório e que a demanda continua. E esse impulso interior, que é o seu desejo, o(a) faz ir além, atravessar fronteiras e “perder” seus lugares que davam a sensação de segurança. “O místico não habita em parte alguma, ele é habitado” (Michel de Certeau).
“Fazer caminho” não significa apenas deslocamento geográfico. As travessias nunca são apenas exteriores. Não é simplesmente na cartografia do mundo que o ser humano anda. Isso significa não perceber a profundeza do seu ser; “deslocar-se”, querendo ou não, implica uma mudança de posição, uma expansão do próprio olhar, uma abertura ao novo, uma alteração do ângulo habitual, uma adaptação a realidades, tempos e linguagens, um encontro com o diferente, um diálogo tenso ou deslumbrado, que deixa necessariamente impressões muito profundas.
A experiência do caminho é a experiência de fronteira e do espaço aberto que o ser humano precisa para ser ele próprio. Nesse sentido, a viagem é uma etapa fundamental da descoberta e da construção de si mesmo e do mundo. É a sua “alma” que perambula, descobre cada detalhe do mundo e olha tudo de novo como da primeira vez. A travessia é uma espécie de propulsor desse olhar novo e contemplativo. Por isso, é capaz de introduzir na sua vida e nos seus planos, na sua organização, elementos sempre inéditos que podem facilitar aquela transformação radical que, em vocabulário cristão, chamamos “conversão”.
A conversão supõe movimento e implica itinerância, capacidade para sair do espaço conhecido e atrever-se a pisar onde ainda não há confirmação de solo seguro. Conversão e movimento, porque o imperativo está no plural - “preparai!” -, convidando-nos a encontrar com outros para realizar a missão à qual somos enviados; assim, nos convertemos em rastreadores da melhor senda, aquela que possibilita o cruzamento com outros caminhos, o encontro e o diálogo.
Estamos decididos a percorrer os caminhos novos que a novidade de Deus nos apresenta?
Ou nos entrincheiramos em estruturas caducas que perderam a capacidade de resposta?
Caminhar é sair do centro, das seguranças, da acomodação... e ir em busca das surpresas, das novas descobertas; implica arriscar, ter ousadia, não ter medo de fazer a travessia para o outro lado. Somos passageiros, um Caminho aberto à vida de Deus que permanece, caminho que anuncia e prepara a Vida. Por isso precisamos, mais do que nunca, da figura do profeta; autênticos profetas que, sem medo e partindo de sua experiência de Deus, nos ajudem a encontrar o verdadeiro caminho; pessoas que por sua dedicação e experiência pessoal possam lançar alguma luz nesse emaranhado de caminhos que se entrecruzam e que a imensa maioria são sendas perdidas que não levam a lugar nenhum.
A humanidade deveria ser caminho de vida, jamais caminho de morte. Caminhantes somos, todos no mesmo percurso, no mesmo vôo, no mesmo barco.
Mas temos esquecido nossa condição de nômades do tempo e da vida, peregrinos de Deus, pensando que podemos construir, com a ajuda do mesmo Deus, uma casa permanente sobre o mundo, um “tabernáculo” perpétuo onde repousar, seja na forma “sacral” (nossas seguranças religiosas), seja na forma secular (nossos sistemas econômicos-sociais). Mas, as condições dos tempos e, de um modo especial, a experiência mesma do evangelho, nos fizeram descobrir que somos nômades do tempo e peregrinos de Deus, para além de todas as formas e estruturas que fomos criando ao longo da história.
Ser nômade do tempo significa caminhar (voar, navegar), leves de equipagem e por itinerários que ainda não foram percorridos por ninguém, não como aves migratórias que vão e voltam por rotas pré-fixadas na mesma evolução do tempo, pelas estações e pelos ventos da terra. Somente nós, seres humanos, somos verdadeiros nômades da criação, pois para continuar existindo precisamos abrir, por terra, mar e ar (ou seja, por nós mesmos, no interior de nossa humanidade), os caminhos que ainda não existem, pois nós mesmos os traçamos.
Caminhantes somos, e assim o tempo do Advento nos leva para fora dos pequenos lugares de refúgio que fomos edificando (nossas torres de Babel) para amar, viver e morrer no descampado, como Jesus, enquanto buscamos e esperamos a cidade futura. Assim, caminhamos com Ele, sabendo que nem o olho viu e nem o ouvido ouviu o que poderemos olhar e escutar se continuamos caminhando com Jesus.
Neste Advento, não somos simples espectadores, mas, sim, criadores de futuro, ou seja, de nós mesmos, em Deus. Unidos por uma esperança compartilhada, queremos ser pessoas de Advento, sabendo que nossa história não está escrita nem fixada ainda, mas que nós mesmos vamos traçando-a, enquanto Deus percorre seu caminho em nós e por nós. Como cristãos cremos que nossa vida não está escrita, mas que precisamos escrevê-la, nós em Deus e com Deus. Por isso “somos advento”; vivemos em “estado de advento”.
Texto bíblico: Mc 1,1-8
Na oração: - Orar é entrar na Tenda do Senhor, que é o próprio coração: peregrinação interior, mobilidade...
- Deus “passa” e nos coloca em movimento; a oração é “fazer estrada com Deus”, caminhar na mesma direção, entrar no ritmo d’Ele, deixando-nos “ser conduzidos”.
- Para onde você sente que Deus vai lhe conduzindo? Há alguma coisa que o aprisiona?
- Recordar medos, entraves, obstáculos... que limitam sua vida interior, impedindo-o(a) fazer-se peregrino(a)
- Quê eventos inesperados no caminho transformaram sua vida? O quê realmente causou impacto? Era algo planejado? Em quê aspectos da vida você pode “sair” dos terrenos conhecidos? Você já se arriscou alguma vez?
Pe. Adroaldo Palaoro sj
03.12.2020
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Advento: céus que abrem, olhos procuram a luz!
O advento, início do novo ano litúrgico, é como uma porta que se abre, um horizonte que se amplia, uma brecha nas paredes, um buraco na rede, uma rachadura no teto, um punhado de luz que a liturgia joga em nossos rostos. Não para nos deslumbrar, mas para nos acordar. Para nos ajudar a romper, com toda nossa força, cada céu escuro que encontramos. Assim nos sentimos nestes dias, neste ano de 2020: pandemia, violência, isolamento, medo...
No Evangelho, Jesus fala da noite, com riqueza de detalhes: "você não sabe quando Ele virá, seja à noite, à meia-noite, no cantar do galo, ou pela manhã" (Marcos 13,35). Uma coisa é certa: Ele virá! Mas enquanto isso, com Isaías gritamos a Deus: “Que o Senhor derrube o céu! (Isaías 63) No mesmo tom maior, Deus é invocado pelo Salmista: “Iluminai a vossa face sobre nós, restaura-nos, para que sejamos salvos (Salmo 80[79]).
Não é o ser humano, com boas intenções, quem sobe ao céu; é o Senhor das Alianças que desce, em seu caminho em todas as estradas, um peregrino sem-teto, que procura casa, e que necessita a minha e a tua acolhida (como na parábola de domingo passado)! Isaías vira nossa ideia de conversão: voltar, rasgar os céus em pedaços, descer: para converter-se a suas criaturas. Embora o profeta pense na vinda de Deus, a liturgia nos faz pensar na vinda de Jesus. Mas essa memória deve ser acompanhada pelo reconhecimento de nossa fraqueza...
Talvez sem nos darmos conta, a nossa vida vai perdendo cor e intensidade. Pouco a pouco parece que tudo começa a ficar pesado e aborrecido. Vamos fazendo mais ou menos o que temos de fazer, mas a vida não nos preenche. Um dia comprovamos que a verdadeira alegria foi desaparecendo do nosso coração. Já não somos capazes de saborear o bom, o belo e grande que há na existência. Pouco a pouco, tudo se foi complicando. Talvez já não esperemos grande coisa da vida ou de ninguém. Já nem acreditamos em nós mesmos. Tudo nos parece inútil e com pouco sentido. Pouco a pouco, fomos caindo no ceticismo, na indiferença ou na “preguiça total”. Preocupados com muitas coisas que nos pareciam importantes, a vida foi-se nos escapando. Envelhecemos interiormente e algo está prestes a morrer dentro de nós. Que podemos fazer?
A primeira coisa é acordar e abrir os olhos. Vigiar. Para ver não só se precisa ter olhos abertos, mas também é necessário ter luz. Para nós, a luz é Jesus, sua vida e sua palavra. As primeiras comunidades rezaram: "Maranatha" (Vem, Senhor!). Elas viviam a contradição de uma promessa realizada e uma vinda futura: "já, mas ainda não." "Já" por parte de Deus, que já nos deu salvação. "Ainda não" porque ainda estamos esperando uma salvação à nossa medida e não descobrimos a verdadeira salvação, que já possuímos.
A resposta de Deus excede em muito o que pedimos, embora de forma diferente de nossa expectativa. Deus, o Pai, não rasga o céu, ele não vem nos encontrar espetacularmente. Manda Jesus, e a partir do momento em que o aceitamos, nossas vidas mudam completamente. No passado, Deus nos enriqueceu em tudo; Ele nos chamou para participar da vida de seu Filho, Jesus Cristo: imagem poderosa, lembra a experiência de um filho com sua mãe, da qual ele recebe sua vida. Mas essa relação vital não termina quando o cordão umbilical é cortado, ela cresce a cada dia na convivência e construção dos vínculos afetivos.
Aqui reside o significado do Advento. Como "ainda não" chegou a verdadeira salvação, temos que tentar avançar o "já". Não vamos conseguir isso se continuarmos dormindo. O ser humano ainda está esperando a salvação que vem de fora, seja material, seja espiritual. Mas acontece que a verdadeira salvação está dentro de cada um. Na verdade, Jesus nos disse que não tínhamos nada a esperar, que o Reino de Deus já estava dentro de nós. Agora ele está vindo.
Se estivermos dormindo, continuaremos esperando. Só depende de nós, despertar. Podemos passar a vida inteira dormindo, por essa situação a ninguém podemos culpar. Isso é o que devia nos aterrorizar: que nossa existência possa se passar sem desvendar as possibilidades de plenitude que ela contém. A alternativa não é salvação ou condenação. Ninguém vai condenar-nos. A alternativa é a plenitude humana ou a simples superficial banalidade.
O verdadeiro problema está na divisão que encontramos em nosso ser. Em cada um de nós há duas bestas lutando até a morte: uma é o meu verdadeiro ser que é o amor, a harmonia e a paz; outra é o meu falso eu que é o egoísmo, orgulho, ódio e vingança. Qual de nós vai ganhar? Muito simples e lógico. Ele vai bater no que você se alimenta.
"As coisas mais importantes não devem ser procuradas, elas devem ser aguardadas" (Simone Weil). Mesmo um ser humano deve ser sempre esperado. Parece-nos pouco, porque queremos ser ativos, fazer, construir, determinar coisas e eventos. Em vez disso, Deus não se merece, a Ele se acolhe; não se conquista, se espera. Jesus no Evangelho deste domingo nunca se cansa de repetir o refrão de duas atitudes, nosso equipamento espiritual para o caminho da expectativa: estar atento e cuidado (Marcos 13,33.35.37). A atenção tem a mesma raiz de expectativa: é um tender a... Amor é atenção. A atenção já é uma forma de oração, e é a gramática elementar que salva minha vida interior.
A segunda atitude: cuidado. Que Pablo Neruda assim o celebrou: "Eu tenho deveres amanhã./ Trabalhos do meio-dia./ Eu tenho que abrir janelas, derrubar portas,/ quebrar paredes, iluminar cantos./ Eu tenho que me separar até que seja o dia todo,/ até que tudo seja clareza/ e alegria na terra.”
Observemos os primeiros passos de paz, da luz do amanhecer deitado na parede da noite, ou no fim do túnel desta pandemia. Observemos e guardemos todas as filmagens, tudo o que nasce e desponta traz uma carícia e uma sílaba de Deus. Ele vem, já está no meio de nós. Amém.
Pe. Paulo Roberto Rodrigues, Arquidiocese de Campinas, no primeiro domingo do advento, 2020
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“Ficai atentos, porque não sabeis quando chegará o momento” (Mc 13,33)
Com o Advento, iniciamos mais um novo “tempo litúrgico”. Qual o sentido dos tempos litúrgicos?
Podemos representá-los graficamente, visualizando um círculo onde começamos com o Advento, percorremos os “tempos” da vida de Jesus, com suas celebrações mais importantes, e o “tempo comum”, que culmina com a festa de Cristo Rei.
Acaso não é assim o grande círculo da vida? Tempos para gestar a vida, para trazê-la à luz, para alimentá-la e cuidá-la, “tempos comuns” para descobrir a inspiração do viver cotidiano, buscando o sentido de tudo o que fazemos e o que acontece ao nosso redor; às vezes, estes tempos são áridos e cinzentos, outras vezes, iluminantes e coloridos; tempos com a marca da solidão e da perda e tempos de primavera em que a vida brota de novo... Podemos dizer que nós, como num espelho, nos vemos no tempo litúrgico, para compreender e inspirar nossa vida a partir de “Jesus” e da “comunidade cristã”.
Vivemos hoje tempos conturbados, tensos...; partilhamos um momento de grande inquietação social, de aridez espiritual, de drama sanitário, de distúrbios existenciais, de profundos dilemas morais...
No entanto, resistimos! Em meio às sombras, perplexidades, contradições, provocações e promessas, que constituem o atual momento histórico, queremos expressar a fé no futuro da nossa vida. Ainda que soframos ventos contrários e as nuvens se adensem no horizonte, sabemos e confessamos com o profeta Jeremias, e pela graça do Espírito, que “há esperança de um futuro” (31,17).
Para cada momento histórico sempre foi válido o alerta de Guimarães Rosa: “Viver é muito perigoso”. A liturgia deste primeiro domingo de Advento se atreve a proclamar de novo sua esperança, como uma grande trombeta, que não chama para a morte, mas para a vida.
A esperança é um princípio vital, expresso na sábia constatação de que “enquanto há vida, há esperança”. Mesmo diante de desafios quase intransponíveis, consideramos possível ser de outro modo, inventamos e reinventamos opções, criamos novas saídas... e, sem cessar, sonhamos com o “mais” e o “melhor”. A esperança cristã destrói os “germes de resignação” da sociedade moderna e combate a “atrofia espiritual” dos satisfeitos. Por isso, a esperança cristã tem os pés plantados no “hoje” da nossa história, inspirando o esforço de transformação deste mundo marcado por muitos sinais de morte.
É ela que introduz na sociedade a sede de justiça e o compromisso de humanização. Aquele que vive com esperança se sente impulsionado a fazer o que espera. Nesse sentido, o futuro esperado se converte em projeto de ação e compromisso.
Ao adentrarmos, mais uma vez, no tempo do Advento, sentimos ressoar, no mais íntimo, a voz do Mestre da Galiléia, que nos convida a estar vigilantes e atentos, a viver despertos...
E temos muitas frentes abertas: superar o medo que nos paralisa, renovar a esperança no sentido da vida, avançar com a comunidade para uma nova Igreja em saída, ser as mãos de Jesus no mundo para curar, consolar, repartir o pão... Tempo para despertar e cuidar da “casa” que foi confiada à nossa responsabilidade.
A “vigilância”, de que fala o evangelho, é o outro nome para a atitude de “atenção”.
Para Simone Weil “a atenção é uma prece”, pois ela nos mobiliza para uma aliança com o “hoje” da vida; se não formos prudentes e generosos para manter os olhos bem abertos sobre o presente, perderemos a possibilidade do encontro com o surpreendente. Viver tem a marca da simplicidade, que precisamos redescobrir, despojando-nos de todas as cataratas existenciais que bloqueiam a visão, para deixar-nos conduzir pelo fluir contemplativo. Estamos muitas vezes alienados da vida, separados dela por uma muralha de discursos, de ideias vazias, de esperanças confusas... Com o olhar contemplativo, podemos perfurar esse muro e deixar-nos impactar pelo novo que se revela do outro lado.
Somos seres “desejantes”. O instigante tempo do Advento ativa em nós os desejos mais nobres e oblativos, nos fazem ultrapassar a barreira do imediato e entrar no movimento que nos impulsiona a ir além, a entrar em sintonia com Aquele que vem e, ao mesmo tempo, já está presente. Desejar o encontro com “Aquele que vem” nos sensibiliza a perceber presente “Aquele que é”.
Por isso, o evangelho de hoje nos apresenta uma imagem sugestiva, que reúne no desejo duas atitudes importantes: o tempo da espera e o permanecer em vigília, ambas vivido no “estar despertos”.
A espera e a vigília da vinda plena do Senhor não nos afastam da realidade presente. Pelo contrário, faz-nos encarnar mais lucidamente nela. Nesse novo tempo litúrgico, a comunidade cristã permanece à escuta dos passos de Deus, em nosso mundo, em nossa vida. Porque o novo, não vem de fora, mas o sentimos e o tocamos por dentro.
Aquele que espera o encontro com o Senhor começa a ler a história como história redentora; descobre os momentos de inovação; é capaz de ver as libertações sendo gestadas no silêncio; conecta com as promessas ainda abertas e pendentes: a nova aliança, o novo povo, o novo êxodo, o Messias...
A atitude de vigília nos faz descobrir os sinais da chegada do Reino no tempo: não nos contentamos com o tempo vazio, “normótico” e sempre igual a si mesmo; descobrimos o tempo de salvação no qual há revelação e realização do novo, da justiça e da graça.
Os “esperantes” cristãos precisam aprender a “ressignificar” o tempo, pois o tempo de Deus e do Reino é o tempo da decisão em favor da vida (kairós). O reino tem seu tempo e seu ritmo. Não é questão de pressas, não é questão de datas e lugares, não é questão de cálculos. Tentar acelerar sua vinda seria como esticar o talo da planta para que cresça mais rápido. O importante é ter a paciência de quem sabe que a semente do Reino está semeada em nossa história e ninguém poderá deter seu desenvolvimento.
Nesta tremenda e instigante história, da qual fazemos parte, precisamos nos situar bem. Não só com a cabeça, pois aí já temos as coisas mais ou menos claras, mas com nossa sensibilidade, com compaixão, com nossos modos de falar e de olhar, com aquilo que deixamos que toque e afete às nossas vidas. Trata-se da sabedoria de “sentir o tempo”.
Diante do tempo dramático que vivemos, nossa tentação é querer saltá-lo, fugindo de suas exigências.
Advento vem ser, então, um tempo para voltarmos para o interior em meio à agitação, olhar para dentro e deixar-nos perguntar: presto atenção à história que todos vivemos, às suas dores e à sua beleza? Reconheço seus poderes (augustos, herodes, quirinos) e a vida vulnerável de Deus iluminando-se nela, apesar de tudo?
Somos iniciados a “sentir o tempo” de um modo novo, a fazer-nos amigos dele, a nomear e acompanhar o tempo que nos toca viver, a habitar com intensidade todas as etapas de nossa existência. Cada momento esconde sua pérola, e é muito emocionante poder chegar a descobri-la. Precisamos recuperar a força do “hoje” de Deus fazendo “memória” dos grandes personagens do passado: Isaías, Jeremias, Elias, João Batista, Isabel, Maria de Nazaré, José... Eles continuam falando, continuam desvelando sinais de vida plena na história presente. Só uma sensibilidade marcada pelo tempo do Advento é capaz de entrar em sintonia com as surpresas de Deus; e a história é o rumor dos Seus passos.
Texto bíblico: Mc 13,33-37
Na oração: Caminhamos para Deus quanto mais nos adentramos no profundo de nós mesmos e da realidade. O maior enraizamento no tempo que nos toca viver desperta maior sensibilidade para sermos surpreendidos pelo novo que brota nos lugares menos esperados; é precisamente ali onde a vida renasce e amadurece.
- Como você se situa diante deste “tempo pandêmico”? Desespero? Medo? Desejo de saltá-lo?...
- Qual é o “novo” que você vislumbra no meio deste tempo? Você percebe algum sentido nele? Para onde ele aponta? É revelador de algo diferente?...
Pe. Adroaldo Palaoro sj
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24.11.2020
“Todas as vezes que fizestes isso a um dos menores de meus irmãos, foi a mim que o fizestes”- Mt 25,40
A festa de Cristo Rei culmina o ano litúrgico, e é hora de nos sentar para “julgar” (melhor, para “discernir”), o sentido e a marcha da nossa vida, a partir da consciência de humanidade que carregamos dentro de nós.
O evangelho deste domingo, de discernimento e salvação, é a parábola do “juízo final”, onde Jesus se revela plenamente identificado com todo ser humano, sobretudo com aqueles que são vítimas de estruturas de morte, violência e exclusão.
A parábola do “juízo universal” não pretende nos oferecer uma visão antecipada de um imaginado “final do mundo”, como alguns fundamentalistas nos querem fazer crer. Trata-se de uma parábola e, portanto, não cabe aqui uma leitura literalista; ela nos fala do nosso “modo de proceder”, aqui e agora, inspirado no modo de ser e de agir de Jesus. Em outros termos, os textos sobre o juízo final não pretendem transladar o leitor ao espetáculo do futuro. Foram escritos para despertar nossa responsabilidade no presente, para promover o melhor que há em nós e afastar tudo o que nos desumaniza.
Na parábola, fala-se de seis situações de necessidades básicas. Não são casos irreais. São situações que acontecem em todos os povos e em todos os tempos. Em toda parte, há famintos e sedentos, há imigrantes e desnudos, enfermos e encarcerados.
Em cada pessoa que sofre, Jesus vem ao nosso encontro, nos olha, nos interroga e nos inspira a prolongar a Sua atuação em favor dos excluídos. Nada nos aproxima mais d’Ele que aprender a olhar detidamente com compaixão o rosto dos que sofrem e ativar nossa sensibilidade solidária, que se visibiliza em ações concretas. Em nenhum outro lugar poderemos reconhecer com mais verdade o rosto de Jesus.
Portanto, o relato deste domingo fala muito mais do presente que do futuro; ele ajuda a nos examinar, ou seja, a situar-nos no horizonte da identificação com Jesus e sua relação com os mais pobres e excluídos. Trata-se de um exercício de discernimento, para verificar qual “espírito” está nos movendo e para onde nos impulsiona: “espírito” de compaixão, solidariedade, compromisso...? ou “espírito” de autocentramento, de preconceito, de indiferença...? O exame aqui não é para alimentar um autocontrole obsessivo, ou autovigilância medrosa, nem autopoliciamento que atrofia. É preciso nos situar diante d’Aquele que é nossa referência última (Jesus Cristo) para ativar em nós uma sensibilidade que quebra toda distância e nos impulsiona a deslocar junto àqueles que são os “deslocados” do mundo, vítimas de estruturas sociais de morte.
Toda a cena do juízo final se concentra em um diálogo longo entre o juiz, o “Filho do Homem”, e dois grupos de pessoas: aqueles que aliviaram o sofrimento dos mais necessitados e aquele que, insensíveis, negaram-lhes ajuda.
Ao longo dos séculos, os cristãos viram neste diálogo fascinante “a melhor recapitulação do Evangelho”, “o elogio absoluto do amor solidário” ou “a advertência mais grave contra aqueles que vivem refugiados falsamente na religião”. O decisivo diante de Deus não são as “práticas religiosas” que alienam, mas os gestos humanos de ajuda aos necessitados. Tais ações podem brotar do coração de uma pessoa que crê em Deus ou do coração de um ateu que atua em favor daqueles que sofrem.
Aqueles que ajudaram os necessitados que foram encontrando em seu caminho não o fizeram por motivos religiosos. Não pensaram em Deus nem em Jesus Cristo. Simplesmente buscaram aliviar um pouco o sofrimento que há no mundo. Agora, convidados por Jesus, entram no Reino de Deus como “benditos do Pai”.
O critério decisivo, segundo Jesus, não passa pela religião, como talvez o leitor do evangelho esperaria encontrar, ou como o fizeram crer, muitas vezes, quando se dizia que a “pessoa religiosa se salvará”. Deste modo, a religião se convertia em salvo-conduto para a “vida eterna” e a pessoa “religiosa” costumava adotar uma postura autosatisfeita e não isenta de um certo sentimento de superioridade.
No entanto, a mensagem de Jesus é completamente clara neste ponto: o critério de salvação não é religioso, mas ético; não tem a ver com crenças mentais, mas com entranhas compassivas. A religião verdadeira é aquela que é mediação para ajudar a viver hoje o que Jesus viveu no seu tempo. Afinal, somos seguidores(as) de uma Pessoa e não de uma religião, doutrina, rito...
Só quem tem um coração compassivo é capaz de viver a ajuda e o serviço a partir da gratuidade. Não faz isso para conseguir algo em troca, nem sequer apresenta uma motivação religiosa: “Senhor, quando foi que te vimos...?” De igual modo, aqueles que, a partir de uma opção religiosa esvaziada de compromisso, procuram querer agradar o Senhor, são repreendidos com dureza por não tê-Lo reconhecido na pessoa dos mais necessitados.
Para Jesus, uma humanidade constituída por nações, instituições ou pessoas comprometidas em alimentar aos famintos, vestir aos desnudos, acolher aos imigrantes, atender aos enfermos e visitar aos presos, é o melhor reflexo do coração de Deus e a melhor concretização de seu Reino. Cada grupo se dirige para o lugar que eles mesmos escolheram. Uns reagiram com compaixão diante dos necessitados; outros viveram indiferentes diante de seus sofrimentos. O que vai decidir sua sorte não é sua religião nem sua piedade. Simplesmente, uns viveram movidos pela compaixão, outros não.
A parábola deste domingo, portanto, em um primeiro nível de leitura, contém uma mensagem revolucionária e subversiva para o mundo religioso: ela vem nos dizer que existe um caminho para nos encontrar com Deus que não passa pelo Templo. O verdadeiro “templo” é o outro, sobretudo os carentes e marginalizados. Esta é, sem dúvida, uma das maiores novidades de Jesus.
O “castigo” ou a “vida eterna” (plena) não é obra de um “deus exterior”, mas o resultado de uma determinada maneira de viver, fechada na ignorância de quem somos ou, pelo contrário, lúcida e desperta.
O “inferno” não é um lugar ao qual Deus nos condena, mas uma situação onde nós mesmos nos “fechamos”. É o que na Bíblia se chama “o endurecimento do coração”, que se opõe à bondade e se petrifica na maldade. Não é Deus que nos envia ao inferno, mas o endurecimento do coração que nos fecha e nos isola.
Precisamente por isto, para ler corretamente o texto do juízo final, é preciso começar por destruir a imagem de um Deus vingador que castiga com as penas do inferno. É fundamental salientar que, em Jesus Cristo, Deus se revela com um amor extremo, incondicional e sem medida.
Muitos textos dos evangelhos contradizem a representação de um Deus que sanciona com pensas eternas.
A justiça vingativa ou vindicativa, que se poderia qualificar também como punitiva ou repressiva, responde o mal com o mal; sanciona o mal com um mal equivalente; tal justiça acrescenta o mal ao mal. Mas, esta justiça não é a de Deus; esta justiça aparece transformada pela justiça restauradora, pela graça de um amor incondicional, sempre oferecido, que abre um futuro sempre novo.
Esta é a lógica da justiça divina restauradora e recriadora. Visto assim, o último juízo é, verdadeiramente, uma Boa Notícia para todos “os benditos do Pai” e “os herdeiros do Reino”.
Texto bíblico: Mt 25, 31-46
Na oração: A experiência cristã entende a compaixão como hábito do coração; por isso, ela deixa de ser “ocasional” e passa a ser um “estilo de vida”, fundado no modo de viver de Jesus Cristo; significa deixar-se afetar pelo “mundo do sofrimento e da injustiça e não ficar indiferente”.
- Seu modo de viver o Seguimento de Jesus tem a marca da compaixão ou se restringe a “praticas religiosas tóxicas”, autocentradas na mera observância de leis, ritos, doutrinas...?
- Rezar as “obras de misericórdia”, presentes no evangelho deste domingo.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
19.11.2020
imagem: Cristo Rei imagem pixabay
“A um deu cinco talentos, a outro dois, a outro um; a cada um de acordo com a sua capacidade”
Neste 33º. Dom. do Tempo Comum, a liturgia nos propõe uma parábola não só complexa, mas difícil de incorporar à nossa habitual interpretação das parábolas dos evangelhos. A história relata um episódio que um homem rico, ao sair em viagem, reparte seus bens entre seus servos com a intenção de que os façam render para que, no seu retorno, possa ver incrementado seu patrimônio. No seu regresso, premia àqueles que tiveram êxito no negócio e castiga duramente aquele que, por medo, enterrou o dinheiro recebido e não gerou lucros para o seu patrão.
Geralmente, ao interpretar ingenuamente a parábola, consideramos que este homem rico está representando a Deus e que os servos representam as diferentes respostas diante dos “talentos” recebidos do mesmo Deus. No entanto, a partir desta compreensão, torna-se difícil entender como Jesus pode apresentar o Deus do Reino atuando de forma tão dura e sem misericórdia com quem não fez crescer o “talento”. O modo com que frequentemente resolvemos a dificuldade é responsabilizar o servo que enterrou seu “talento”. Consideramos que este servo agiu com negligência e covardia e, portanto, mereceu ser castigado.
Sempre corremos o risco de uma interpretação literal e moralista da parábola. Isso dá margem a alimentar uma falsa imagem de Deus. Mas, o Deus de Jesus não atua a partir do critério de prêmio e castigo. A atitude do senhor da parábola não pode ser exemplo do modo de agir de Deus. Jesus nunca acreditou nem nos apresentou a Deus como o senhor desta parábola, que funciona por interesses e rentabilidade. O Deus de Jesus, nosso Deus, é bondade, acolhida, compaixão e misericórdia. Tampouco o Deus de Jesus é um senhor duro e rancoroso, que recolhe onde não semeia, que arranca até o último centavo e que ameaça jogar o ser humano na “geena”, onde haverá choro e ranger de dentes.
Não, Jesus não quer que rendamos lucros para o patrão egoísta e austero, que causa pavor no terceiro servo da parábola. Deus não é austero nem egoísta. Deus é “dom” que se oferece, se compartilha... A presença de Deus nos inspira para que sejamos e ativemos a vida, pelo prazer de ser e de partilhar... E pelo prazer de partilhar com os outros o que temos recebido.
Por isso, a parábola dos talentos é muito mais um protesto contra uma estrutura social e religiosa centrada na cultura do prêmio/castigo, inclusão/exclusão, competente/incompetente...
Pensemos na parábola do filho pródigo, que é tratado pelo Pai de uma maneira completamente diferente. Tirar o pouco que tem daquele que tem menos para dá-lo ao que tem mais, tomado ao “pé da letra”, seria impróprio do Deus de Jesus. Através da parábola, Jesus denuncia o “deus da religião”, manipulado pelos encarregados do Templo (sacerdotes, escribas, fariseus...) para exercer o poder religioso sobre as consciências das pessoas e, assim, mantê-las sob seu controle.
Em “chave de interioridade”, alimentamos em nós a imagem de um “deus” que é fruto de nossas projeções, muitas vezes carregadas de feridas, traumas, medos, autoexigências, busca da perfeição... Uns projetam a imagem do “deus do mérito”, que recompensa aqueles que se esforçam em “multiplicar talentos”; é a imagem do “deus” dos dois primeiros servos. Numa cultura na qual tudo se valoriza pelos resultados, é muito difícil compreender isto. Em um ambiente social onde ninguém se move a não ser por um pagamento, onde tudo o que é feito deve trazer algum benefício, é quase impossível compreender a gratuidade que o evangelho nos pede. Se buscamos prêmios é que não entendemos nada do evangelho.
Outros projetam a imagem do “deus do medo”, duro, intransigente, que cobra até o último centavo, que castiga... É o “deus” do terceiro servo.
Estas falsas imagens de Deus, no entanto, causam danos e afetam a vida em todas as suas dimensões (pessoal, familiar, social, espiritual). Por detrás destas imagens se encontram crenças religiosas às quais chamamos crenças tóxicas.
Estas crenças tóxicas podem gerar personalidades dependentes e submissas, neuróticas e ansiosas, medrosas e passivas, moralistas e perfeccionistas; ou talvez personalidades agressivas, dominantes, vingativas, controladoras. São o reflexo de uma imagem distorcida de Deus e “chegamos a nos parecer com o Deus que projetamos”. Esta distorção é o resultado, muitas vezes, de uma educação rigorosa e moralista, produto de uma espiritualidade dualista que coloca a perfeição como o ideal de todo cristão e o menosprezo de tudo o que não é “espiritual”. Estas crenças religiosas geram uma fé tóxica ou insana porque nos afastam do Deus de Jesus e podem favorecer a dependência religiosa e o abuso espiritual.
Também é insuficiente interpretar “talentos” como qualidades da pessoa. Esta interpretação é a mais comum e está sancionada em nossa linguagem. Quê significa “ter talento”? Também não é esta a verdadeira questão da parábola. Em relação às qualidades pessoais, somos instigados a ativar todas as possibilidades, mas sempre pensando no bem de todos e não para acumular mais e “depenar” os menos capacitados, dando graças a Deus por sermos mais espertos que os outros.
Se permanecermos na ordem das qualidades pessoais, poderíamos concluir que Deus é injusto. A parábola não julga as qualidades, mas o uso que fazemos delas. Quer tenhamos mais ou quer tenhamos menos, o que nos é pedido é que coloquemos a serviço de nosso autêntico ser, a serviço de todos.
Na dimensão da essência, todos somos iguais. Se percebemos diferenças é que estamos valorizando o acidental. No essencial, todos temos o mesmo talento. As bem-aventuranças deixam isso muito claro: por mais carências que tenhamos, podemos alcançar a plenitude humana.
Como seres humanos temos algo essencial, e muita coisa que é acidental. O importante é a essência que nos constitui como seres humanos. Esse é o verdadeiro talento: o que há de mais humano em nós. Ter ou não ter (o acidental) não constitui a principal preocupação. Os talentos, de que fala a parábola, não podem fazer referência a realidades secundárias, mas às realidades que fazem cada pessoa ser mais humana. E já sabemos que ser mais humano significa ser capaz de amar mais. E amar quer dizer servir aos outros.
Os talentos são os bens essenciais que devemos descobrir, pois estão presentes em nosso interior. A parábola do tesouro escondido é a melhor pista. Somos um tesouro de valor incalculável. A primeira obrigação de um ser humano é descobrir essa realidade; devemos estar voltados para o nosso interior e poder ativar todas as nossas possibilidades. A “boa nova” é que todos coloquemos esse tesouro a serviço de todos. Nisso consiste o Reino anunciado por Jesus.
O grande “pecado” dos(as) seguidores(as) de Jesus é a de não arriscarem a segui-Lo de maneira criativa. O tesouro (os talentos verdadeiros da vida) não é algo que se mede em termos pecuniários. O valor do ser humano, seu talento, é a vida como tal, a capacidade de receber e partilhar amor. Neste sentido, “lucrar” é simplesmente ser, deixar-se amar, “lucrar” é simplesmente viver no amor. Não se trata de “lucrar” talentos em dinheiro, mas o talento mais profundo da vida, o “tesouro” que está presente nas profundezas de nossa existência, esperando a oportunidade para “render” mais compaixão, bondade, sensibilidade solidária...
Temos o grande talento, a Vida de Deus, que nos atravessa e se visibiliza no coração compassivo, nos olhos contemplativos, nos pés que quebram distâncias, nas mãos servidoras... Que vivamos sem medo: é isso que a parábola revela. Passar dos “talentos” ao Talento, e em especial ao Talento do Coração (talento do Reino), a serviço da humanidade.
Texto Bíblico: Mt 25,14-30
Na oração: dar nomes aos medos que estão paralisando sua vida, impedindo-o de viver com mais ousadia e criatividade.
- Quem é o “Deus” em quem você crê? É o “deus da lei”, o “deus do mérito”, o “deus” que cobra até o último centavo... ou o “Deus de Jesus”: Pai e Mãe, fonte de misericórdia e compaixão?
- A fé e a confiança em Deus possibilitam ter acesso às suas riquezas interiores e expandi-las?
Pe. Adroaldo Palaoro sj
12.11.2020
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“Dai-nos um pouco de óleo, porque nossas lâmpadas estão se apagando” (Mt 25,8)
As parábolas são relatos provocadores, que revelam o sentido da vida a partir de uma perspectiva diferente. Não são histórias edificantes, nem meditações piedosas, mas enigmas para pensar, decifrar e decidir o horizonte da vida. As parábolas não fecham a mensagem (não são dogmas, nem demonstrações), pois são sinais que cada um deve interpretar e resolver a partir de sua própria vida.
Frente às parábolas, uma pessoa pode rebelar-se, outra pode descobrir o lado oculto de sua vida... Por isso, são imagens interativas que não tem a solução dada de antemão. É surpreendente a insistência com que Jesus fala da vigilância; são numerosas as parábolas que nos convidam a adotar uma atitude desperta e atenta frente à existência, para que esta tenha um sentido.
Interpretar a parábola deste domingo no sentido de que devemos estar preparados para o dia da morte, é falsificar o evangelho. A parábola não está centrada no fim, mas na inutilidade de uma espera que não é acompanhada de uma atitude de amor e de serviço. As lâmpadas devem estar sempre acesas, para ajudar a acolher as gratas surpresas da vida e poder participar da festa d’Aquele que continuamente vem ao nosso encontro. Se não queremos ser insensatos (sem sentido, sem direção), precisamos estar alertas, para entrar em sintonia com a realidade e viver a vida como deve ser vivida.
Nossa maior insensatez seria viver “sem horizonte”, sem desejos e sonhos, sem uma causa mobilizadora... Submergimos no presente sem outra perspectiva mais ampla; e assim afogamos nossa vocação de infinitos na vulgaridade de uma vida superficial e satisfeita. Se estamos adormecidos, é preciso despertar, porque, do contrário, perderemos a oportunidade de entrar na festa das núpcias. Portanto, ser “imprudentes” significa viver “dispersos”, “distraídos”... deixando apagar a lâmpada de nossa fé e de nossa esperança, e sem o azeite de reposição.
A lamparina que arde é a prática da mensagem de Jesus; o azeite que alimenta a chama, é o amor manifestado. Assim entendemos porque as jovens prudentes não podem compartilhar o azeite com as imprudentes. Não se trata de egoísmo; é impossível amar em nome de outra pessoa ou considerar como própria a entrega que o outro realizou. A lamparina não pode queimar com o azeite de outro; a chama não pode ser acesa com azeite comprado ou emprestado.
A parábola do Evangelho nos fala daqueles que não cultivam sua esperança hoje e pretendem viver do azeite das lâmpadas dos outros. E ninguém pode viver da fé do outro, nem da esperança do outro. O sentido de toda uma vida não pode ser improvisado em um instante. Somente a partir da luz de Deus em nós, descoberta, reconhecida e ativada, poderemos viver antenados com o melhor que há em nosso interior (azeite) e com a realidade que nos envolve, cheia de surpresas.
Todos nós somos portadores de uma lâmpada e todos somos convidados à festa. Podemos inspirar-nos mutuamente a viver a partir de nossa verdade mais profunda, a partir da luz que nos habita; mas, no final, a falta ou não de azeite para a nossa lâmpada depende de cada um(a), de nossa responsabilidade, de nossa previsão, do cuidado delicado e agradecido diante de tudo o que foi recebido, da capacidade para sustentar a esperança nas noites escuras e, sobretudo, do amor e da alegria que alimentamos no desejo de nos encontrar, dia a dia, com o Noivo, seguros de que Ele sempre vem.
Só assim seremos luz verdadeira para os outros, iluminaremos – humildemente – as obscuridades que nos envolvem, e contagiaremos a alegria de sabermos que fomos convidados à festa. O que permanece em nosso interior é o fulgor (luz) que vivemos (que brilha) por dentro, ao fazer memória da nossa vida, esse “eu profundo” que é mais “eu” que eu mesmo: “eu” original, iluminado, santo, intocável, faísca de luz que se volta para Aquele que é Fonte de toda luz.
O “ego” é como um planeta do sistema solar; não tem luz própria. Adquire sua luz emprestada e, portanto, vive no engano de que pode continuar sempre assim, no tempo e no espaço. Por isso, o ego inflado com a luz que não é própria, busca, de maneira desenfreada, apoderar-se de tudo aquilo que lhe dá a ilusão de brilhar: poder, riqueza, vaidade... Falsas luzes que um dia se apagarão.
O “eu original”, no entanto, vai ao encontro da luz verdadeira, presente no próprio interior, e deixa-se iluminar por ela; é esta pequena chama que o conduz em direção Àquele que é a Luz, para entrar e participar do seu festim iluminado. Por isso, nós somos, ao mesmo tempo, a lâmpada, o azeite e a luz. Ninguém pode nos emprestá-los, porque é nossa própria vida. Toda vida se move a partir de dentro.
Dentro de nós devemos descobrir a luz que iluminará nossos passos; essa chama, se é autêntica, não pode se ocultar, pois iluminará também a todos os outros. Uma luz que acende outras luzes. Contemplai admirados essa luz que somos! E, mesmo nosso pequeno “ego” brilhará, atravessado por essa luz como o sereno pelo sol do amanhecer.
A parábola deste domingo, portanto, nos provoca a uma tomada de posição: “em qual dos dois grupos eu me encontro? Em qual deles desejo estar?” A narração usa as imagens das lâmpadas e do azeite como símbolos que marcam a diferença entre um grupo e outro.
Nossa vida, enraizada na Vida d’Aquele que é a Luz do mundo, é chamada a irradiar luz, a iluminar a realidade na qual habitamos, embora, muitas vezes, a noite escura nos envolve.
“Vós sois a luz do mundo” (Mt 5,14).
“Em que situação se encontra minha lâmpada? E minha reserva de azeite? De que modo colaboro para que o Noivo possa celebrar a festa? Como sou luz em meio a tantas noites de ódio e violência pelas quais nosso mundo atravessa?” Na realidade, de acordo com a parábola, todas as jovens carregavam suas lâmpadas; todas elas tinham sido convidadas à festa; todas alimentavam o mesmo desejo: aguardar a chegada do noivo. O fato de pertencer a um grupo ou a outro não se impõe a partir de fora. Cada uma das personagens da parábola, no fundo, foi livre e decidiu com sua atitude (previdente e sábia, ou imprudente e descuidada), em quê grupo situar-se.
Hoje em dia existem, nas igrejas e capelas, as velas para todos os gostos; existem aquelas eletrônicas, que são ativadas com uma moeda; e existem até aquelas que podem ser acesas a longa distância, pela internet. Mas, velas originais são aquelas que se consomem na nobre missão de iluminar. Simbolizam a travessia da própria existência: queima-se a cera como nós vamos nos queimando, diminuindo-nos com a passagem do tempo, as dificuldades e as alegrias de nossa travessia humana.
Quando acendemos a chama, é como se tomássemos consciência de que somos luz na medida em que vamos nos gastando em iluminar nosso entorno e chegar a ser cera derretida um dia, tarde ou cedo; passar de luz natural a reencontrar-nos com a Luz total da qual procedemos.
Texto bíblico: Mt 25,1-13
Na oração: A esperança mantém sempre acesa a faísca de luz que todos carregamos dentro. É ela que nos faz cair na conta que somos “luz do mundo”, uma chama que nunca se apaga; somos “sarça ardente” para os outros, consumindo-nos constantemente, através da vida doada; somos uma lamparina humilde, brilhando na janela da nossa pobre casa, indicando aos outros o caminho da segurança e do aconchego.
- Como você deixa transparecer a luz no seu agir cotidiano? Qual é o azeite que brota do seu coração e que alimenta a luz de sua humilde lamparina?
Pe. Adroaldo Palaoro sj
05.11.2020
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