“...e a semente vai germinando e crescendo, mas ele não sabe como isso acontece” (Mc 4,27)
O mundo no qual vivemos, feito de códigos e números, de tecnologia e de anonimato, de frios cálculos e de robots telecomandados..., conduz a uma vida em contínua aceleração; isso faz com que todos adoeçam de ativismo, de competição, de eficientismo; o excesso informações tira o sabor das coisas, instaura uma cultura que não flexibiliza a vida interior e o recolhimento, não cultiva afetos, emoções e sentimentos.
Tal como Marta, “andamos inquietos e perturbados com muitas coisas; mas uma só é necessária” (Lc. 10.41). Precisamos nos conceder espaços de calma para provar a verdade, contemplar a beleza, saborear os inestimáveis valores presentes na gratuidade e no dom desinteressado, alimentar-nos de valores humanos e cristãos que, impregnados de futuro, tornam bela a vida de hoje.
Os tempos e os ritmos de vida mudaram muito. Nós estamos muito distantes da quietude e da calma do mundo rural; hoje predomina a eficácia, a pressa, a ansiedade. A eficácia sempre tem pressa. Mas as coisas da vida requerem tempo, calma e sabedoria.
Os evangelhos estão cheios de referência à vida. As sementes também nos falam de vida. Um grão de trigo, um grão de mostarda são sementes humildes, pequenas, mas cheias de vida. A vida da semente é calada, silenciosa, paciente: vai crescendo pouco a pouco, desenvolvendo toda sua vitalidade.
A vitalidade da semente não depende do trabalho e dos esforços humanos; ela está cheia de vida em si mesma. As sementes, as plantas, as árvores não crescem de uma vez só, nem com saltos espetaculares, mas pouco a pouco, humildemente.
O agricultor não escava desesperado a terra, forçando o crescimento da semente que ali deixou, mas distancia-se dela sabendo que há um tempo necessário de separação para que a planta, no seu ritmo, possa nascer e crescer. Toda semeadura supõe que é preciso saber esperar (esperança) com calma e paciência.
Não podemos ter urgências morais, nem precipitações nas mudanças pessoais, sociais, pastorais..., porque pode nos invadir a ansiedade e esta pode gerar medo, angústia..., pois pretendemos solucionar as coisas com uma insaciável pressa e avidez.
O ser humano pós-moderno está perdendo o contato com o cosmos, com o chão, com os animais, com a natureza... e isto provoca-lhe todo tipo de mal-estar, de doenças, de insegurança e de ansiedade.
Prestemos atenção aos diferentes ritmos na sinfonia da vida. A natureza tem seus ritmos: o do dia e o da noite, as quatro estações, o crescer das espigas, o canto dos pássaros, o transcurso de um rio... Nossa vida tem os seus ritmos e somos chamados a distingui-los: se uma mulher está grávida, viverá um ritmo; se alguém está enfermo, descobrirá outro ritmo diferente; quem vive um luto por uma separação ou por uma morte, terá outro ritmo...; a amizade, o estudo, o trabalho... marcam ritmos diferenciados. Não se pode comparar o ritmo de uma criança com o do ancião, ou do adolescente com o ritmo do adulto. É diferente o ritmo do Sul e do Norte, o ritmo de cada povo....
Quando forçamos o tempo biológico para apressar demais o passo e antecipar recursos para uso imediato, o gasto de energia envolvido na operação pode arruinar a nossa própria vida.
Há um defeito na atividade que costuma tirar de nós a riqueza espiritual e convertê-la num “ativismo insensato”, sem vida interior e sem criatividade. Trata-se da ansiedade.
O nosso “eu profundo” é ferido por um permanente estado de alerta, exigências de obrigações pendentes e expectativas à espreita. Estamos perdendo aquela paz essencial nas profundezas do nosso ser, aquele repouso sem preço na qual os elementos mais delicados da vida se renovam e se confortam.
As demandas, a tensão, a pressa da existência moderna, perturbam a destroem esse precioso repouso.
Este “nervosismo” chamado ansiedade é uma espécie de pressa interior permanente. Sentimos uma necessidade imperiosa de resolver rapidamente todos os problemas, como se todas as coisas fossem urgentes ou indispensáveis. É um problema relacionado com o tempo.
Tratamos a vida com a mesma ansiedade que se abate sobre nós nos cinzentos corredores de espera, nas filas administrativas, nos engarrafamentos do trânsito. Tornamo-nos viciados em assuntos rapidamente fechados, incapazes de acolher o surpreendente “novo” que o sabor da vida insistentemente propõe.
Sabemos que, quando há ansiedade, há desordem. Como a mente está cheia de projetos e vive antecipando-se às coisas, nessa multidão de pensamentos reina uma grande confusão, e nada é bem-feito.
Além disso, a ansiedade nos torna superficiais, porque nos leva a passar rapidamente de uma atividade a outra, sem nos aprofundarmos em nada. O coração ansioso não é capaz de deter-se em coisa alguma. Não suporta a quietude. E assim não pode apreciar o sabor mais agradável das coisas.
Há no evangelho deste domingo um chamado dirigido a todos e que consiste em plantar pequenas sementes de uma nova humanidade e de uma nova inspiração no cotidiano de nossas vidas. Jesus não fala de coisas grandes. O Reino de Deus é um dinamismo muito humilde e modesto em suas origens. Presença que pode passar tão desapercebido como a menor semente, mas que é chamada a crescer e frutificar de maneira inesperada.
É bom envolver-nos nas atividades cotidianas e tirar maior proveito delas. Mas, às vezes, a ansiedade nos leva a sermos demasiadamente dependentes dos resultados do trabalho. Queremos ver rapidamente os frutos de nosso esforço. E assim escapa-nos o prazer de podermos agir com serenidade e paz.
É necessário saber planejar e prevenir, mas sem pretender prever e controlar tudo. É uma grande sabedoria saber desfrutar das pequenas coisas que temos ou que podemos fazer agora, sem pensar nas que não temos. Na ansiedade por querer conseguir certas coisas e abarcar tudo, acabamos criando dependências egocentradas e a vida vai se acabando sem ser vivida.
Então, nossa ação deixa de ser fonte de satisfação e plenitude. Por isso terminamos nos enfraquecendo, enchendo-nos de angústias inúteis e esquecendo-nos que “com a divina consolação todos os trabalhos são prazer e todas as fadigas são descanso” (Carta de S. Inácio a Teresa Rejadel).
A familiaridade com Deus na relação com todas as coisas do cotidiano, não implica fadiga ou ansiedade, senão que é uma maneira de viver aquela paz e plenitude considerada como verdadeiro descanso.
Toda atividade humana, perpassada por uma “espiritualidade” inspiradora, deve ser motivada, antes de tudo, pela força interior do amor, que lhe dá uma qualidade, um sentido e um valor particulares.
O desafio é buscar maneiras de encontrar a serenidade em meio às nossas frenéticas vidas, de abrir em profundidade nossa cotidianidade para poder nos submergir no ritmo tranquilo de Deus; encontrar-nos com Ele para que seja o centro de nossa vida e caminhar a seu lado. Oxalá sejamos capazes de captar os detalhes da paisagem de nossa vida para descobrir em tudo as pegadas do Senhor! E, embora vivamos neste mundo onde tudo se move tão rápido, podemos fechar os olhos e sentir que Ele nos conduz pela sua mão.
Textos bíblicos: Mc 4,26-34
Na oração: Tente escutar o universo infinito; acima, abaixo, ao seu redor. Entre em profundo silêncio para perceber a vibração de todos os elementos: terra, ar, água, fogo. Tudo vibra, tudo está cheio de ondas luminosas, sonoras. Tudo é silêncio e tudo é escuta. Sinta-se presente no meio deste diálogo entre céu e terra... para escutar, falar e orar.
- Seu ritmo cotidiano é marcado pela ansiedade, pressa, estresse...? Há espaço para o silêncio, a contemplação?
- A partir do silêncio do seu coração, plante no seu cotidiano, sementes de humanidade: proximidade, acolhida, compaixão, paciência, paz...
Pe. Adroaldo Palaoro sj
11.06.2021
Imagem: Albin Egger Lienz
“...porque sou manso e humilde de coração, e encontrareis descanso para vós” (Mt 11,29)
O mês de junho, dentro da Igreja católica, é também conhecido como o “mês do Sagrado Coração”, cuja solenidade é festejada na sexta-feira posterior ao segundo domingo depois de Pentecostes. Desde as origens desta devoção o que se busca comemorar e celebrar é o Amor de Deus, manifestado de um modo original na história concreta de Jesus de Nazaré.
Jesus viveu sempre a partir de seu coração e contagiou a todos com a força poderosa de seu amor e de sua entrega. Ele nasceu com um coração de carne, ou seja, humano, absolutamente divino. Nele se realizou definitivamente a promessa de ser o coração de todos, o centro nevrálgico da humanidade.
Jesus foi o homem para os outros, que teve coração, um coração não de pedra, mas de carne. Sua vida, um sinal do bem amar, do saber amar. Mas, sobretudo, Jesus, em seu Coração, revelou a profundidade mesma do ser humano e de Deus. Nele estava a fonte do Espírito que brotava como água fecunda até a vida eterna.
Graças à Encarnação, o Filho de Deus trabalhou com mãos humanas, pensou com inteligência humana, sentiu com vontade humana, amou com coração humano.
O Coração de Jesus nos fala de iniciativa, de liberdade, de entrega absoluta e amor profundo; recorda-nos como Deus, por sua pura iniciativa, pelo compromisso com os homens e mulheres de ontem, hoje e amanhã, sai de si para encarnar-se em meio ao nosso mundo, acampando em meio à nossa realidade histórica e cotidiana. Seu Coração nos revela que sua Vida implica um movimento de saída, que provoca encontros pessoais, que transforma a vida daqueles(as) que o seguem, abrindo-lhes novos horizontes, ampliando a visão e descentrando-os de sua própria lógica.
Seu coração aberto é o lugar por onde voltamos a Deus com todos, onde aprendemos quem é Ele e quem somos nós. É um caminho que nos faz passar do temor à confiança, da ansiedade ao abandono, do reter a própria existência a entregá-la, do medo à liberdade, da morte a uma vida sem fim.
O evangelho deste dia mostra um dos mais vivos exemplos de coração agradecido que podemos encontrar. Jesus, que acaba de passar por uma profunda experiência de rejeição por parte das cidades da Galiléia, explode no canto que começa: “Eu te louvo, Pai, porque escondeste estas coisas aos sábios e entendidos”.
O coração de Jesus é sustentado, alimentado, irrigado pelo amor cuidadoso e providente do Pai.
É no coração que também nós, seus(suas) seguidores(as), poderemos estar em segurança, profundamente repousados. É no coração, “última solidão do ser”, que decidimos por Deus e a Ele aderimos. Aqui Deus marca “encontro” com cada um de nós. “Deus é mais íntimo a cada um de nós do que nós mesmos” (S.Agostinho).
O Coração de Jesus continua sendo expressão central da fé cristã, expressão do amor de Deus para com o ser humano. O Papa Francisco usa, com frequência, uma expressão carregada de intensidade: “revolução da ternura”. Sem dúvida, a “mansidão” e a “ternura” definem radicalmente o sentir e o atuar de Jesus.
A revolução da ternura nos convida a acompanhar, curar e acolher, a partir de nossa realidade, aqueles que nos rodeiam, a viver investindo nossos melhores recursos em favor dos outros.
Hoje, essa proposta simples, mas de profunda marca evangélica, responde à desumanização que estamos vivendo. Essa revolução da ternura nos convida a sair de nós mesmos, a colocar nossa vida a serviço do irmão, a entrar no fluxo do Amor de Deus, fazendo chegar a tantos que dele necessitam, através de nossa mão, de nossa presença cheia de ternura; assim vivendo, nos convertemos em transparência profunda do próprio Coração de Jesus.
Segundo a tradição bíblica, o que mais nos desumaniza é viver com um “coração fechado” e endurecido, um “coração de pedra”, incapaz de amar e de crer. Quem vive “fechado em si mesmo”, não pode acolher o Espírito de Deus, não pode deixar-se guiar pelo Espírito de Jesus.
Quando nosso coração está “fechado”, nossos olhos não vêem, nossos ouvidos não ouvem, nossos braços e pés se atrofiam e não se movimentam em direção ao outro; vivemos voltados sobre nós mesmos, insensíveis à admiração e à ação de graças. Quando nosso coração está “fechado”, em nossa vida não há mais compaixão e passamos a viver indiferentes à violência e injustiça que destroem a felicidade de tantas pessoas. Vivemos separados da vida, desconectados. Uma fronteira invisível nos separa do Espírito de Deus que tudo dinamiza e inspira; é impossível sentir a vida como Jesus sentia.
Quando vivemos a partir do coração, escutamos com mais paciência, olhamos com cumplicidade, tocamos com ternura, sofremos com fortaleza, assumimos o risco com naturalidade, misturamos nossa vida com a dos outros e avançamos em comunidade realizando projetos solidários.
Assim, confessamos que o Coração de Jesus foi tão humano que o veneramos como “Sagrado”. Contemplando-o na totalidade de seus sentimentos, poderemos modelar o nosso coração, cristificando-o (“aprendei de mim...”). Do mesmo modo, conhecendo as dinâmicas, as paixões, as dimensões sombrias e as luminosas de nosso coração, poderemos nos aproximar, um pouco mais, do mistério da pessoa de Jesus, onde Ele deixou transparecer a alegria e a tristeza de ser homem, através desse coração tão humano e tão sagrado.
Jesus convida a entrar no seu amplo e solidário coração, para que possam “descansar”, todos aqueles(as) a quem a vida insiste em negar-lhes um sentido, aqueles(as) que são vítimas de uma sociedade tão desumana, aqueles(as) que já não sentem mais forças e se sentem sozinhos(as) e rejeitados(as), aqueles(as) que não tem outro motivo para se alegrar a não ser em Deus...
Uma devoção ao Coração de Jesus que não nos conduz a estabelecer novas relações humanas, prolongando o modo humano de ser e de viver de Jesus, torna-se uma devoção vazia, estéril, marcada por uma piedade alienante e alienada.
Texto bíblico: Mt 11,25-30
Na oração: Todos estamos no coração de Cristo. Todos estamos no Amor de Deus. Todos fomos introduzidos na Sagrada Humanidade d’Aquele que, sendo Deus, se fez semelhante a nós para que possamos todos nos sentir n’Ele.
O coração se revela como imagem de amor, de humanidade, de entranhas compassivas. Identificamos as pessoas por seu bom coração, por suas entranhas de misericórdia.
- Você deixa transparecer seu coração na relação com as pessoas? As atividades que você realiza tem coração?
Pe. Adroaldo Palaoro sj
10.06.2021
Imagem: pexels.com
“E olhando para aqueles que estavam sentados ao seu redor...” (Mc 3,34)
Depois do percurso quaresmal e pascal, retomamos o tempo litúrgico conhecido como Tempo Comum, seguindo o evangelista Marcos. Será uma longa caminhada contemplativa, através da qual buscaremos dar uma “nova feição” ao nosso seguimento de Jesus. O Evangelho deste domingo nos mostra como Jesus exerce um grande poder de atração sobre as pessoas; são muitos aqueles que o buscam: a multidão, os membros de sua família, os mestres da lei... São muitos e diferentes, como são diferentes as razões pelas quais se aproximam e se situam em torno a Jesus.
Os primeiros, as multidões, admiradas de seu ensinamento e de sua capacidade de “destravar vidas”, buscam-no com intenso desejo; aglomeram-se nas portas das casas onde Jesus se encontra, acudindo a Ele vindo de todos os lugares. Todos estão maravilhados e são capazes de reconhecer que Deus atua nele. Estes são os simples e frágeis, enfermos e incapazes, limitados e sem forças, que não duvidam que Jesus os atenderá, os escutará e oferecer-lhes-á seu consolo e seu tempo, até o ponto de ser capaz de deixar de comer para estar com eles.
Por outro lado, seus familiares querem “agarrá-lo” e levá-lo para casa; querem preservar a honra da família, pois estão preocupados pelos comentários que se fazem sobre Ele. A atitude desses familiares se restringe a preservar a boa reputação de sua tradição. E, por último, aparecem os mestres da lei, que tinham descido de Jerusalém para acusá-lo de realizar seus exorcismos com a força do chefe dos demônios, e assim esvaziar sua fama.
Esta crítica, sendo muito grave, revela a petrificação daqueles que fazem da lei o centro da vida e não se abrem à novidade que Jesus apresenta. O ministério terapêutico de Jesus em favor da vida colocava em questão a estabilidade da estrutura social e religiosa na qual os mestres da lei empenhavam-se por mantê-la. Jesus confronta-os com inteligência e serenidade, para que compreendam que as acusações não têm fundamento e que reconheçam que quem o move a libertar as pessoas de suas “amarras” é o mesmo Espírito Santo, o Alento de Deus.
Resistir a reconhecer isso é “pecar contra o Espirito Santo”. O pecado contra o Espírito Santo tem raízes profundas no coração e não é simplesmente um ato, mas uma disposição interior permanente, é uma cegueira culpável por si mesma, um resistir-se à ação salvadora de Deus.
Quando o coração está fechado aos sinais de Deus, a pessoa se coloca numa atitude contrária à conversão, petrificando-se de tal modo que Deus não tem como lhe perdoar.
Trata-se da opção fundamental pelo mal: impedir o Espírito Santo de atuar, tanto em Jesus como nas pessoas. O perdão requer mudança de atitude: deixar o Espírito agir livremente. Não adianta pedir perdão sem uma correspondência. O blasfemo se exclui a si mesmo do perdão, se separa de Deus.
Diante das diferentes reações das pessoas, o que nos impressiona é a atitude de Jesus, um homem essencialmente livre e comprometido com a causa da vida. Ele desafia a todos, também os seus familiares e mestres da lei, a não permanecerem “fora”, a tomarem parte de seu círculo íntimo, situando-se ao seu redor e deixando-se impactar pelo seu modo de ser e agir. Aqui está o sentido do verdadeiro discipulado, a constituição de sua nova família.
Jesus aproveita a visita de sua mãe e seus irmãos para falar do nascimento da nova família: aquela que vive em sintonia com a vontade do Pai, reforçando os laços entre as pessoas, constituindo a nova comunidade. Por isso, é preciso sair do que é “meu”: minha família, minha religião, minha Igreja...
Jesus transgride os espaços: família, religião, povo, cultura... Ele alarga os espaços estreitos da família; não permanece dentro das quatro paredes. Há uma tendência em todo ser humano a se fixar numa zona de conforto, nos espaços estreitos, bons, nutrientes... mas que precisam ser ampliados.
Nesta perspectiva, fica em segundo plano a consangüinidade. Doravante, ser mãe ou irmão de sangue não tem importância. O critério de pertença à família do Reino consiste em abrir-se à vontade do Pai.
Aí o agir do(a) seguidor(a) identifica-se com o agir do Mestre, a ponto de Jesus poder considerá-lo como irmão e irmã: a vontade do Pai é o imperativo na vida de ambos. Basta alguém viver um projeto de vida fundado na vontade do Pai, para que Jesus o reconheça como pertencente à sua família.
A identidade dessa nova família se configura por um idêntico modo de proceder, fundado no amor e na prática da justiça. Por esse caminho, os discípulos se reconhecem como irmãos e irmãs, unidos para além de qualquer divergência, cultura ou raça. Essa fraternidade não é mera formalidade. Existe entre eles e elas uma efetiva comunhão de vida.
“E olhando para os que estavam sentados ao seu redor…” Esta imagem circular expressa um tom diferente do seguimento. A imagem habitual que temos é aquela em que alguém vai adiante – Jesus – e nós vamos atrás. Aqui, no entanto, aparece outra forma de proximidade com Jesus: é a circularidade, reunir-nos ao redor do próprio Jesus que nos convoca. Estar em círculo, portanto, também quer dizer que estamos vinculados uns aos outros numa postural corporal que tem Jesus no centro.
Estamos diante de uma imagem de relação com Jesus que tem muito de circularidade, de proximidade espacial, de intimidade na identificação com Ele.
Nossa vida cristã, como expressão do seguimento de Jesus, tem muito disto: estamos e vivemos em círculo. Não somos “anacoretas”, somos pessoas que vivem em circularidade e a coesão do grupo depende, em grande parte, de que o Centro vincule aos que estão ao redor.
A imagem do círculo quebra toda estrutura piramidal, hierárquica, de poder, de prestígio... Todos estão ao redor de Jesus, vivendo ministérios e serviços diferentes.
Jesus inicia um novo movimento humanizador a partir das casas: nova família. Ele amplia o conceito de família: inclui a todos. Já não são os laços de sangue que contam. Família que se abre ao diferente, que valoriza a diferença e todos aprendem com as diferenças.
Situar-nos no círculo do seguimento Jesus implica acolher a diversidade das pessoas que compõem este mesmo círculo; isso permite nos enriquecer, adquirir mais humanismo. Diferença é expressão inerente ao ser humano, é modo de pensar, de dizer, de trabalhar, de existir e de conviver.
Somos diferentes, mas todos pertencemos com igual direito à “cidadania planetária”; todos temos direito a ser singulares, direito a ser diferentes, direito a partilhar e receber as diferentes riquezas.
A ideia de unidade da espécie humana não deve eliminar a ideia de sua diversidade.
Saber conviver com as diferenças é sinal de maturidade.
A diversidade racial, sexual, cultural, religiosa... supera a monotonia e oferece a criatividade de muitas formas. A harmonia fecunda entre as pessoas está na diversidade das diferenças, não na repetição mecânica. O conformismo repete cópias, mas não facilita a união autêntica. Sem as diferenças entre pessoas, a sociedade seria apenas um marasmo. Por isso, as diferenças pluralistas são valores, não anomalias. Além disso, são sedutoras, não amedrontadoras. A diferença pessoal mantém certo fascínio.
Muitas vezes, o zelo religioso, moral ou político degenera em formas de intransigência e intolerância.
Com isso, nos colocamos “fora” do círculo familiar de vida.
Texto bíblico: Mc 3,20-35
Na oração: Os tecelões e as comunidades cristãs têm muito em comum. Quanta necessidade temos, nestes tempos pandêmicos, de forjadores-tecedores de comunidade!
Hoje, mais do que nunca, precisamos de artesãos que sejam construtores de relações, de novos tecidos comunitários. Homens e mulheres que, inspirados em Jesus, teçam com arte e paciência, uma relacionalidade que fortaleça a comunidade. E assim, deixar transparecer a nova família dos(as) seguidores(as) do artesão de Nazaré.
- Onde você se situa: dentro do círculo jesuânico, como participante ativo(a), ou fora, como mero(a) espectador(a).
- Sua presença no interior da “nova família do Reino” faz diferença? Você contribui tecendo novas relações ou é propagador do “fio” do ódio, do preconceito e da intolerância...?
Pe. Adroaldo Palaoro sj
04.06.2021
“Ide à cidade; um homem carregando um jarro de água virá ao vosso encontro” (Mc 14,13)
A Eucaristia, comemorada especialmente na chamada solenidade de “Corpus Christi”, ocupa, sem dúvida, um lugar privilegiado na espiritualidade dos cristãos. Mas, que celebramos quando celebramos “Corpus Christi”?
Muito incenso e muito pálio pode nos impedir ver o que há por detrás da fumaça e entre os adornados tecidos que cobrem o Corpo de Cristo; muitas vezes, oferecemos uma visão um tanto distorcida, difusa, imprecisa, desse “mistério”: “Deus se faz Corpo e assume todos os corpos”.
Somos, então, convidados a voltar com a memória cordial àquela casa onde o ritual pascal judaico dá lugar aos gestos simples que se fazem entre amigos: partilhar o pão, beber da mesma taça, desfrutar da mútua intimidade, entrar no clima das confidências... E assim buscar recuperar o essencial. Fazer memória para comemorar. E podemos fazer este “retorno memorial” em companhia do “homem do cântaro de água”, relatado no evangelho de hoje.
Há personagens do Evangelho cuja notoriedade ultrapassa as margens do texto onde são recolhidas suas atuações. São imagens históricas de alcance universal, tais como Lázaro, a Samaritana, Jairo, Maria Madalena, Zaqueu, Pedro... Junto a estes personagens de primeira fila, encontramos outros, anônimos e sem protagonismo, presentes nas estantes menos visíveis do relato evangélico. Um dos mais desconhecidos é o “homem do cântaro de água”.
Na maioria das vezes ele passa desapercebido. Sua passagem pela cena é vista, mas não lhe é dada atenção. Uma aparição tão efêmera no texto que a maioria dos leitores não se fixa nele, apesar de ser citado nos três primeiros evangelhos. Por isso, ele se revela como inspirador a todos nós nesta festa de “Corpus Christi”.
Chama-nos a atenção, no Evangelho proposto para hoje, a maneira como Jesus indicou aos discípulos o local onde queria que a Ceia fosse celebrada. Jesus mandou-os seguir um homem que encontrariam à entrada da cidade. Junto a personagens conhecidos nos Evangelhos, outros, sem rosto, nem identidade, nem protagonismo, surgem inesperadamente, deixando sua “marca”, como este desconhecido que emprestou sua casa para que Jesus e seus discípulos pudessem celebrar a Páscoa.
Anônimo perante a posteridade, porque era seguido pelos que vinham atrás dele, este homem, de certo modo e do modo certo, serviu a Cristo como a Igreja deve serví-Lo, sem perguntar qual seria seu lugar à mesa.
O que teve lugar dentro de sua casa, transformada no mais importante templo material da história humana, seria mais do que suficiente para arrancar dele alguma expressão de vaidade, capturada pelo evangelista. Mas não; não é isso que acontece com ele.
O saber estar “à sombra” para não fazer sombra a outros, a atitude de acolhida, a preocupação pelo bem-estar dos demais, a prontidão e a disponibilidade em abrir sua casa, o agir com a liberdade de quem sabe o que faz, colocando-se à inteira disposição dos outros, com total generosidade: estas são as qualidades com as quais o “homem do cântaro” entrou em sintonia com o desejo de Jesus em celebrar a Páscoa com seus discípulos. No seu anonimato ele deixa transparecer sua “existência eucarística”: ele nos revela uma presença surpreendente e servidora, presença que aponta para uma outra presença, a de Jesus. Na realidade, ele foi o verdadeiro discípulo servidor, dando sua contribuição decisiva ao mistério da salvação.
Presença anônima, mas comprometida; presença que é “música calada” no seu cotidiano, uma presença que se manifesta na ausência de recompensa ou de interesse próprio. Se existe uma atitude de vida que pede o resgate de sua profundidade e seu poder evocativo original é a da acolhida. Um dos sintomas do processo de desumanização que estamos vivendo é justamente a resistência em acolher quem é diferente, quem pensa diferente, quem age diferente...
A acolhida é um dos termos bíblicos mais ricos, que nos ajuda a aprofundar e aumentar a compreensão sobre a relação com nossos semelhantes. Por isso, buscamos inspiração no modo original e criativo de ser presença acolhedora na pessoa do “homem do cântaro”.
Tudo isto vem dizer a todos nós que não é suficiente encontrar com os outros para um serviço útil e parcial, mas é preciso investir a nossa própria vida na proximidade viva, no compromisso solidário, no colocar-nos à disposição para ajudar os outros a serem o que verdadeiramente são, o único caminho para a humanização.
Trata-se, pois, de nos perguntar o que significa hoje ser “presença eucarística”, partindo do fato de que no coração do seguimento de Jesus não há – e não pode haver – só um serviço, mas um encontro, rico em assombro e fascinação. O contexto social pós-moderno nos coloca numa situação que acaba atrofiando este impulso tão humano da acolhida; aqui podemos indicar algumas características próprias de nosso tempo que complicam de modo peculiar a vivência desta virtude: as dificuldades que o ser humano atual tem para abrir-se e escutar uma voz diferente da própria, bem como uma disfarçada resistência para acolher a grandeza do mistério do outro que vem ao seu encontro; há um medo generalizado dos outros que não fazem parte do próprio “gueto”... e as casas se tornaram verdadeiras fortalezas, cercadas de parafernália eletrônica de segurança.
No entanto, a virtude da acolhida é um modo de proceder característico do(a) seguidor(a) de Jesus; implica a capacidade de abertura e acolhida daquele que vem de “fora”, o estranho, o diferente...
A acolhida é uma das múltiplas manifestações da capacidade de amar. O amor verdadeiro se exprime, sobretudo, através de uma relação em que o outro é acolhido como próximo.
A acolhida se apresenta como um valor humano e espiritualmente vital, conectado, ao mesmo tempo, com a vulnerabilidade de cada um que sempre requer ser acolhido e aceito, que sempre precisa encontrar espaços humanizadores de convivência e comunhão.
Essa relação de acolhida supõe abrir-nos de verdade à realidade do outro, sem reduzi-lo às nossas projeções, nem submetê-lo às nossas categorias mentais, sem anular seu mistério e contando com o imprevisível, com o inesperado, com o radicalmente novo; em definitiva, com o que supera o plano das nossas expectativas. Receber as pessoas com atenção, romper distâncias, escutá-las, pode ser uma ocasião para receber a única coisa verdadeiramente necessária. A acolhida implica uma integração entre escuta e serviço. Por isso os pobres são especialistas em hospitalidade e acolhida.
A presença silenciosa, original e comprometida do “homem do cântaro” des-vela e ativa também em nós uma presença inspiradora, ou seja, uma “existência eucarística”: descentrar-nos para estar sintonizados com a realidade e suas carências. Tal atitude nos mobiliza a encontrar outras vidas, outras histórias, outras situações; escutar relatos que trazem luz para nossa própria vida; ver a partir de um horizonte mais amplo, que ajuda a relativizar nossas pretensões absolutas e a compreender um pouco mais o valor daquilo que acontece ao nosso redor; escutar de tal maneira que aquilo que ouvimos penetre na nossa própria vida; implicar-nos afetivamente, relacionar-nos com pessoas, não com etiquetas e títulos; acolher outras vidas na nossa própria casa; histórias que afetam nossas entranhas e permanecem na memória e no coração.
Só tem sentido celebrar “Corpus Christi” quando abrirmos nossas casas para os “corpos” explorados, manipulados, violentados, escravizados, destruídos... Pode ser que, às vezes, tenhamos um profundo amor e respeito pelo “Corpo de Cristo vivo e presente na Eucaristia”, e não O vejamos nos “corpos” que estão aqui, ali, lá, no nosso lado...
Texto bíblico: Mc 14,12-16.22-26
Na oração: Reze sua humanidade, seu corpo de homem ou mulher. Seja humano diante de Deus, deixe seu corpo expressar-se em louvor e gratidão.
- Entre em sua “casa”; reze no seu corpo. E agradecido(a) bendiga sempre o Senhor.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
02.06.2021
“...batizando-os em nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo” (Mt 28,19)
“Não há dois sem três”, diz a sabedoria popular; toda a realidade humana tem um componente trinitário. Do amor de um homem e uma mulher brota um terceiro ser humano, o filho. Da união de dois ângulos surge o triângulo. Do negócio de dois empreendedores nasce uma expressa. Da relação entre o artista e a matéria (palavra, cor, som, barro ou mármore) aparece a obra de arte. A “trindade visível” e cotidiana é parte da estrutura da vida. Mas, e a “Trindade invisível”? Falamos do “mistério da Santíssima Trindade”. Ninguém viu e ninguém sabe como é Deus. Ele não cabe em nossa cabeça, em nossos conceitos; por isso dizemos que é um “mistério”.
A Trindade é Mistério para nós na medida em que nunca conseguiremos compreendê-lo e apreendê-lo pela razão. É o desconhecido que nos fascina e nos atrai para conhecê-lo mais e mais, e, ao mesmo tempo, desperta o assombro e a reverência. A Trindade é o mistério que liga e religa tudo, que deixa transbordar seu Amor criativo no coração de toda a humanidade e no universo inteiro.
O Mistério da Trindade sempre está aí (vivemos submergidos n’Ele), permanentemente nos esbarramos n’Ele (dentro de nós e na realidade) e buscamos conhecê-lo; mas ao tentar conhecê-lo percebemos que nossa sede e fome de conhecer nunca se sacia. Por isso, diante da presença do Mistério Trinitário, afogam-se as palavras, desfalecem as imagens e morrem as referências. Só nos restam o silêncio, a adoração e a contemplação. “O ser humano que não tem os olhos abertos ao Mistério passará pela vida sem nunca ver nada” (Einsten)
Quê diz o Evangelho a respeito da Trindade? De maneira muito simples nos revela que o Pai amou tanto o mundo que enviou seu Filho para que, através do amor, pelo envio do Espírito, nós alcançássemos a vida em plenitude; esta consiste em deixar transparecer em nossas relações o mesmo Amor trinitário, expansivo, aberto, acolhedor e integrador de tudo e de todos; só esse Amor é força capaz de nos transformar e, desta maneira, transformar o nosso mundo.
Paulo expressa essa realidade na saudação presente no início de toda celebração eucarística: “a graça de nosso Senhor Jesus Cristo, o amor do Pai e a comunhão do Espírito Santo estejam sempre convosco (2Cor. 13,13).
A Trindade é, antes de tudo, amor recíproco entre as três Pessoas. Os antigos padres da Igreja entendiam o mistério da Trindade não de uma forma estática como nós, cristãos ocidentais, mas de uma forma ativa, como uma dança. E eles fizeram uso de um termo inspirador para descrever esta Dança Trinitária: “perichoresis”. A principal característica é a reciprocidade no dançar: um dança ao redor do outro, o outro dança ao redor do primeiro, em um constante e recíproco circundar-se. A imagem da dança expressa bem a contínua interação recíproca que caracteriza o dinamismo intra-trinitário.
O termo “perichoresis” foi fixado pela primeira vez na igreja antiga pelos Padres Capadócios (Basílio, Gregória de Nissa e Gregório Nazianzeno). Trata-se de um termo grego construído com duas palavras: uma é “peri” (ao redor) e outra “chôreô” (dançar) e significa “intercambiar lugares”, “dançar em torno”. Isso significa que Deus não é só “diá-logo” (comunicação verbal, palavra compartilhada), mas comunhão e comunicação total: cada pessoa existe somente na medida em que “dança” (avança) para a outra, ocupando seu lugar e habitando nela.
“Pericorese” descreve as inter-relações das pessoas da Trindade. Em tudo o que a Trindade é e faz, cada uma das Pessoas se relaciona e se envolve com cada uma das outras Pessoas divinas. Como uma dança eterna, a “coreografia” do nosso Deus é singular em sua diversidade e em sua unidade. É a dança do Deus-Amor. Em outras palavras, a Trindade é uma dança divina de três pessoas que se amam umas às outras e se acolhem de maneira tão plena que cada uma delas se torna “uma” com as outras. Portanto, o mais profundo da reflexão teológica sobre o mistério da Trindade é a experiência de uma dança, imagem confirmada pelos grandes teólogos e místicos cristãos, os dançantes de Deus. Para eles, uma bela maneira de entender a salvação é sermos convidados a entrar nessa dança, no belo movimento coreográfico da grande Dança da Vida. A participação na dança divina da Trindade é o coração da vida cristã.
Dançamos juntos enquanto deixamos Deus nos tomar pela mão, nos conduzir pelo seu Espírito para ir ao encontro do seu Filho. A grande dignidade do ser humano está aqui: estamos no centro do “círculo dançante de Deus”. Fazemos parte da “dança” do Deus Trindade.
Deus dança e existe dançando, em movimento de amor que é princípio de todas as coisas.
Imagem provocativa: “pericorese” não revela só uma dança entre as três pessoas divinas. A Trindade “dança” na Criação, gerando um grande movimento de vida; em outras palavras, a Criação é o grande palco da dança das Pessoas divinas. Mais ainda, nosso interior também é cenário onde a Trindade dança, ativando e mobilizando nossas energias e forças mais criativas e que se manifestam como amor e cuidado na relação com os outros e com todas as criaturas. Amar é entrar no ritmo da dança trinitária.
Segundo isso, a “pericorese” é uma forma de entender o convite que Deus oferece à humanidade, para que os homens e mulheres entrem na dança do Amor íntimo da Trindade, dirigindo-se uns aos outros em amor, de maneira que todos se despertem para esta interconexão fundamental de uns com os outros.
Certamente, Deus nos convida continuamente a participar nesta dança divina; mas, muitas vezes, não sabemos se queremos ou não queremos “aceitar a mão” de Deus para dançar com Ele.
A dança é um símbolo instigante para falar de Deus, um símbolo também usado de maneiras diferentes em outras tradições religiosas; nelas existe uma maneira de expressar a fé como convite para “dançar com Deus”.
As comunidades judaicas festejam o Dia do Perdão, o Ano Novo, a Festa das Tendas e a Festa da Alegria da Lei. Nesse dia, em Israel, os rabinos saem pelas ruas, tendo nas mãos os pergaminhos sagrados e dançando com fervor. Toda a comunidade canta, bate palmas e dança em roda, até experimentar a união íntima com Deus.
Também os muçulmanos têm movimentos que buscam a comunhão com Alá através da dança.
As comunidades do candomblé, em cada festa, dançam sem parar.
Uma das imagens que também podem nos ajudar é a visão que teve S. Inácio de Loyola (estamos celebrando o Ano Inaciano) que era muito devoto da Trindade. Ele viu como três teclas de um piano. Três teclas distintas que, tocadas ao mesmo tempo, produzem um só acorde.
Este “som” é o que nos interessa para viver: o Amor. Se Deus é Deus, Ele “abraça e abrasa” tudo, também a dimensão comunitária. Quando somos solidários, compassivos, amorosos... revela-se o rosto da Trindade. “Só corações solidários adoram um Deus Trinitário”.
Texto bíblico: Mt 28,16-20
Na oração: No interior de cada um, a Trindade está atuando, está convidando a que ponha em movimento toda a capacidade de admiração e quer ensinar a ler e interpretar Sua presença em todas as coisas.
- Como você deixa transparecer no seu cotidiano o amor fontal da Trindade?
Pe. Adroaldo Palaoro sj
27.05.2021
Ícone da Trindade: Andrei Rublev
“Soprou sobre eles e disse: ‘recebei o Espírito Santo’” (Jo 20,22)
Corre pela rede este relato: uma pessoa idosa e com recursos econômicos contraiu o Covid; os médicos, temendo por sua vida, aconselharam a colocar-lhe um respirador; e ele começou a chorar. A enfermeira que o cuidava lhe perguntou: “O senhor está chorando porque não tem dinheiro para pagar o respirador?”. “Não – respondeu o ancião – choro porque estive respirando gratuitamente toda a minha vida e só agora me dou conta do valor desse grande presente”.
As circunstâncias desse enfermo e a dos apóstolos fechados são semelhantes, pois eles se encontram confinados, um com a Covid e os outros estão fechados no Cenáculo. Em ambos os casos está presente o medo da morte: um, por um vírus maligno e outro, pelas autoridades romanas, que querem acabar com o movimento de vida iniciado por Jesus. Também coincide o método curativo: para o ancião infectado, um respirador que lhe injeta oxigênio nos pulmões; para os discípulos de Jesus, a chegada do sopro divino que fortalece seu espírito. A grande diferença é que o hospital cobra enquanto que o Espírito é gratuito.
O relato nos ajuda a tomar consciência da presença do Espírito em nossas vidas pois Ele, como o oxigênio, sempre esteve ao nosso lado, mas nos acomodamos no habitual e esquecemos desse “ar vital” que nos mantém sempre criativos, inspirados e sonhadores. O Espírito é nosso “respirador” existencial. Por isso, é preciso, de tempos em tempos, uma sacudida – interna e externa – para que nos recordemos dessa presença, muitas vezes silenciosa como uma brisa, outra vezes como um vento impetuoso.
A liturgia cristã é muito sábia dividindo o ano com festas que indicam os marcos mais importantes de nossa fé: a encarnação, ressurreição e agora Pentecostes, que são como “toques” para despertar nossa atenção.
O Espírito Santo é o “oxigênio” que nos faz respirar.
Descobrir, no dia-a-dia, que o Espírito é essa Presença forte e terna ao mesmo tempo, e que, como o oxigênio para respirar, nos envolve, nos habita e nos constitui; despertar-nos para essa realidade é muito libertador. Mesmo estando em confinamento, essa Presença percebida como silêncio, como proximidade, como força, como alegria..., se converte em caminho, em Vida amassada com nossa vida, e nos “levanta-ressuscita” do sonho quase apagado para conectar-nos com o Sonho de Deus, seu Reinado.
A festa de Pentecostes vem acompanhada de muitos símbolos. Um vento que levanta e dispersa o pó que estava sedimentado em nossas vidas, um fogo que aviva as brasas que estavam apagadas em nosso interior; uma luz benfazeja que nos possibilita ver com claridade o caminho que se abre diante de nós: a senda que Jesus indicou para seus seguidores(as); uma força que afasta nossos medos e derruba as paredes que dão a falsa sensação de segurança; o Espírito é a Vida mesma de Deus: na bíblia, é sinônimo de vitalidade, de dinamismo e novidade. Vento, fogo, luz, força, vida... tudo grátis, ao alcance de nossa mão; basta abrir-nos à presença inspiradora e mobilizadora do Espírito.
É o Espírito dos mil nomes..., nas religiões, na arte, nas grandes descobertas, nos momentos de inspiração, nas experiências fundantes de nossa vida. “A minha direção é a pessoa do Vento” (M. Barros).
Foi o Espírito que impulsionou a missão de Jesus e que agora se encontra também na raiz da missão da grande comunidade de seus seguidores e seguidoras.
A imagem do Ressuscitado “soprando” sobre os discípulos contém uma riqueza instigante: significa parti-lhar o que é mais “vital” de uma pessoa, sua própria “respiração”, seu mesmo espírito, todo seu dinamismo...
Na sua conversa noturna com Nicodemos Jesus tinha dito que “o vento sopra onde quer e ouves a sua voz, mas não sabes de onde vem, nem para onde vai. Assim é também todo aquele que nasceu do Espírito” (Jo 3,8). O vento é livre; e tem tanta liberdade que ninguém pode segurá-lo. O que Jesus destaca é a “liberdade” do vento, que não se deixa escravizar, submeter ou dominar. É o símbolo perfeito da liberdade indomável; uma liberdade que está ali onde está o Espírito.
O evento de Pentecostes nos remonta ao coração mesmo da experiência cristã e eclesial: uma experiência de vida nova com dimensões universais.
O dia da festa de Pentecoste é, de verdade, a festa dos homens e mulheres livres como vento, festa do novo nascimento. E, neste mundo, começará a ser possível a harmonia da liberdade com a igualdade, a comunhão com o respeito à diversidade, a verdade com a acolhida do novo...
Viver uma “vida segundo o Espírito” é deixar-nos recriar, deixar-nos mover, transformar, alargar.
Soltar as asas nos momentos mais petrificados e pesados de nossa vida é sinal de sua silenciosa Presença.
De imediato, nos sentiremos livres do peso que fomos arrastando durante tanto tempo e, por uns instantes, nos atreveremos a “viver como filhos e filhas do Vento”.
O Santo Espírito é o sopro que vivifica, anima, restaura e congrega. Pela linguagem do amor, Ele acende a luz da paixão e permite desenvolver os dons da alegria, do entusiasmo, da compaixão, do cuidado, da esperança e da fé inabalável. Tais atitudes construtivas não são obra nossa, mas dom e fruto do Espírito, que se revela como algo agradável, fascinante, belo, alegre, espontâneo, saboroso como um fruto.
Nós as vivemos, sim, mas é a “Ruah” que as desperta em nós, pois elas estão presentes como “reservas de humanidade” em nosso interior.
Somos “filhos e filhas do Vento”, a Ruah de Deus.
Homens e mulheres do vento somos todos nós, quando nos deixamos mover de acordo com os movimentos do coração de Deus e da paixão pela humanidade. Movidos pelo Espírito de Deus, acreditamos e construímos mediações libertadoras que promovem, incentivam e enobrecem o espírito humano. Passamos a preferir a proximidade à distância, o dinamismo à inércia, a criatividade à normose...
Nosso tempo pede que sejamos homens e mulheres do Vento, que ajudam o mundo a respirar e sentir a vida palpitar; que buscam, na terra, viver o sonho do Reino; que alimentam as chamas da esperança nos corações sonhadores; que se reconhecem humildes ante a misericórdia e o infinito de Deus; que acreditam na força dos pequenos e dos gestos simples; que vibram com as conquistas justas e que se compadecem da miséria do humano; que cuidam de tudo e de todos com ternura e carinho.
Como “filhos e filhas do Vento” basta deixar-nos envolver, escutar o Sopro daquela voz que habita a dimensão mais profunda da vida e que se aninha nas cavidades mais secretas de nossa existência.
É o Sopro que nos faz viver, e viver em plenitude.
Texto bíblico: Jo 20,19-23
Na oração: Precisamos do Sopro que verdadeiramente nos agite, nos empurre, nos arranque de nossa vida estreita e estéril.
O Espírito é um dom para os fundamentos, não para a maquiagem.
- Abra seus pulmões e deixe o “oxigênio” da Vida chegar até às dimensões mais profundas de sua vida, talvez ainda não bem integradas; deixe que Vento levante a poeira da acomodação, do medo, da insegurança... para o despertar de um novo impulso vital., criativo e aberto.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
21.05.2021
“...o Senhor foi levado ao céu, e sentou-se à direita de Deus” (Mc 16,19)
O Mistério que estamos festejando neste domingo é o mesmo que celebramos cada dia deste tempo de Páscoa ou que celebraremos em Pentecostes: a certeza de que nosso Deus é um Deus Vivo e um Deus de Vida, que não permite que a morte tenha a última palavra e que se empenha para que nós sejamos, junto a Ele, doadores de vida.
Já se passaram 40 dias desde que celebramos a Páscoa, o acontecimento inspirador e alegre da Ressurreição de Jesus. Talvez seja um bom momento para tomarmos o pulso de como temos vivenciado este tempo pascal. Também a nós, como seguidores(as), a liturgia nos apresentou Jesus Vivo e Ressuscitado durante quarenta dias: Ele nos falou de paz, de esperança, de fortaleza, do imenso amor com que nos ama, do sentido de sua morte e de sua paixão... Conhecendo em profundidade nossos medos e debilidades, nos prometeu com insistência que sempre permanecerá entre nós através do alento e da força do seu Espírito, da “Ruah” criativa e transformadora.
Na Ascensão, Jesus não nos abandona, pois realizou uma comunhão definitiva com a humanidade, garantindo a ela um destino de plenitude. Ele subiu ao céu para abrir-nos o caminho, mas agora é o Espírito aquele que nos move e nos conduz ao Pai. Cabe a nós esforçar-nos em fazer o nosso êxodo, sob a ação do mesmo Espírito e confiantes na fidelidade de Deus.
Depois destes 40 dias de preparação é tempo de nos mover, de sair, de pôr-nos a caminho. É preciso colocar em prática tudo o que foi escutado e experimentado. É tempo de “expulsar demônios, de curar enfermos, de falar linguagens novas...”. Cada um de nós pode dar nome a esses “demônios” que somos chamados a expulsar, às enfermidades que devemos curar ou à linguagem de devemos praticar com insistência.
Agora, através do seu Espírito, o Senhor nos coloca em movimento com um envio apaixonante: que a Boa Notícia, aquela que nós já temos recebido, chegue ao mundo inteiro.
Ao mistério da Ascensão corresponde ao mistério da Kénosis (esvaziamento) do Verbo; Ele que se despojou de sua glória e majestade e se fez homem, agora é elevado aos céus e com Ele toda a humanidade redimida e divinizada. Em Cristo, a humanidade inteira já se encontra envolvida por Deus; em Cristo, céus e terra se encontram.
A Ascensão nos revela que a terra termina no céu, o tempo na eternidade, o ser humano termina em Deus. Mas o céu, a esperança, o horizonte, estão já presentes em nosso hoje, dando sentido. O futuro sonhado e esperado é a alegria do presente. O céu não pode esperar!
Frequentemente, a festa da Ascensão é explicada utilizando a mentalidade grega que distingue e separa “céu” e “terra”, que vê estas duas realidades como espaços contrapostos e, de certa forma, separados por um imenso abismo. Como consequência, neste domingo faríamos memória da grande “desconexão”: Jesus Ressuscitado ascende ao céu, abandona a terra e a nós, seus discípulos, sua comunidade; deixa-nos tristes e órfãos.
No entanto, a chave está aqui: “tudo está entrelaçado, inter-conectado, inter-dependente...”
A cosmologia bíblica não é dualista. Céu e terra não são duas realidades separadas, opostas, desconectadas, senão que existe entre elas uma permanente inter-relação; são realidades inter-conectadas. “Céu” (Deus e seus anjos) e terra estão em permanente relação. E tanto os humanos como os animais, as plantas, os planetas, experimentam sempre o “toque” e a “influência do céu”. Assim se expressam os Salmos, os Profetas, os Sábios... Para o pensamento bíblico há salvação ali onde céus e terra se tocam.
Os primeiros cristãos contemplavam a ressurreição de Jesus como o início da reconciliação entre o céu e a terra. Jesus “sobe ao céu” para que se realize sua “conexão” definitiva com a terra; Jesus sobe ao céu para que o céu venha à terra. Essa foi a oração que Ele ensinou àqueles que o seguiam: “Venha a nós o vosso Reino; seja feita a vossa vontade, assim na terra como no céu”.
O que dizemos da terra, o que a ciência da ecologia nos mostra cada vez com mais evidência é que tudo está inter-conectado, todas as manifestações de vida estão inter-relacionadas. Assim, com muito mais razão, é preciso dizer de uma maneira muito especial nesta celebração da Ascenção: Jesus sobe para “conectar” tudo. Esta é a “ecologia do Espírito do Ressuscitado”: o céu na terra e a terra no céu.
Esta é a ecologia integral: a ressurreição transformou absolutamente tudo, uniu tudo. Uma estupenda beleza nasceu e nós estamos integrados neste cenário.
Na Bíblia, céu e terra querem exprimir, espacialmente, a totalidade da Criação de Deus; por isso Deus é Senhor do céu e da terra.
Tudo, então, chegará à plena reconciliação: o céu terá baixado à terra e a terra terá sido elevada até o céu. E então será a plenitude: “Deus será tudo em todas as coisas” (1Cor. 15,28)
A tradição nos lembra que o Espírito Santo é o mesmo na terra e no céu, que o Amor é o mesmo, na ter-ra e no céu. Todas os atributos divinos que podemos viver no espaço-tempo são nossa realidade celeste.
Ao celebrar a Ascenção, sentimos aqui na terra como o céu se conecta com uma experiência universal, comum a todo ser humano: nosso profundo desejo de comunhão.
E, assim, muitas outras expressões humanas, sobretudo através da arte, nos convidam a olhar o céu não como algo etéreo, separado de nossa realidade, mas como algo que habita em cada um de nós. O “céu” se encontra naquelas situações e relações que fazem o ser humano apaixonar-se pela vida. Onde predominam o ódio e o desprezo pela vida, ali se encontra o “inferno”. Quantas “expressões infernais” destroem o impulso para o encontro neste nosso contexto social, político, econômico...!
Como vemos, o “céu” nos mobiliza e nos interpela, nos conduz àqueles lugares, pessoas e situações nas quais experimentamos o profundo desejo de nos unir com a humanidade; também a humanidade mais frágil e necessitada de comunhão. E aí, nesse desejo de construir o céu na terra e de encontrar-nos uns com outros, encontramos o Ressuscitado, falando-nos com paixão, ternura e amor.
O movimento desencadeado por Aquele que Vive é um movimento que reúne para ativar a vida, para restaurar vínculos rompidos, para libertar das ataduras que escravizam...
Jesus “subiu” ao céu porque “desceu” às profundezas da terra. E assim também nos mostrou o caminho. Não podemos subir ao céu se não estivermos dispostos a descer com Cristo ao nosso “húmus”, às nossas sombras, à condição terrena, ao inconsciente, à nossa fraqueza humana.
Nós “subimos” a Deus quando “descemos” à nossa humanidade. Este é o caminho da liberdade, este é o caminho do amor e da humildade, da mansidão e da misericórdia; é o caminho de Jesus também para nós.
A vida cristã não é “subida” para fora da realidade, mas “descida” para o mais profundo da mesma.
Entramos no movimento da Ascensão quando amamos, servimos, cuidamos...; nós nos elevamos quando lutamos por uma causa, investimos a vida num projeto em favor da vida.
Texto bíblico: Mc 16,15-20
Na oração: A festa da Ascensão nos ensina o caminho através do qual descemos a uma dimensão mais profunda, chegando à corrente subterrânea por onde flui a vida; aqui experimentamos a unidade de nosso ser; o impulso para a comunhão, o lugar da transcendência, onde nossa transformação realmente acontece.
Para nos realizar e desenvolver toda a nossa potencialidade, busquemos, na oração, cavar mais profundamente, até atingir as raízes de nosso ser, o núcleo original de nossa personalidade. É no mais íntimo de nós que rezamos ao Senhor. É no mais profundo de nossa interioridade que escutamos o Senhor.
Deixemo-nos invadir pela luz e pela vida d’Aquele que “armou sua tenda entre nós”.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
13.05.2021
“Ninguém tem amor maior do que aquele que dá sua vida pelos amigos” (Jo 15,13)
O evangelista João recolhe um longo discurso de despedida de Jesus, onde são apresentados, com uma intensidade especial, alguns traços fundamentais que seus seguidores hão de recordar e viver ao longo dos tempos, para serem fiéis à Sua pessoa e a Seu projeto.
Jesus não apresenta aos seus discípulos uma “constituição” com seus capítulos e artigos, nem algumas “regras”, e menos ainda alguns “estatutos”. Só diz assim: “este é o meu mandamento: que vos ameis uns aos outros como eu vos amei”. O mandamento que Ele vive, também deseja que seja vivido por seus seguidores e seguidoras. Nada mais. Aprender do Mestre e praticar, como Ele, a arte de amar!
Em qualquer época e situação, o decisivo para o cristianismo é não se afastar do amor fraterno.
Nesse sentido, o mandamento do amor não é lei que se impõe de fora para dentro; ele “emana” do interior de cada um, pois todo ser humano traz em si a marca do Criador, que é puro Amor. Por isso, manifestar plenamente esse amor que é Deus, nas relações com os outros, é a expressão da verdadeira identidade cristã.
Há uma diferença que é preciso aclarar. Deus não é um ser que ama: Ele é o amor, ou, em melhor tradução, “Deus consiste em estar amando”.
N’Ele, o Amor é sua essência, não uma qualidade como em nós: podemos amar ou deixar de amar. Se Deus deixasse de amar um só instante, deixaria de ser Deus. Ele manifesta seu amor a Jesus como manifesta a cada um de nós. Mas não faz isso como nós. Não podemos esperar de Deus “mostras pontuais de amor”, porque não pode deixar de demonstrar isso um só instante.
O Amor de Deus é o primeiro; Ele não nos ama como resposta ao que somos ou fazemos, mas por aquilo que Ele é. Deus ama a todos da mesma maneira, porque não pode amar mais a um que a outro.
Este é o manifesto supremo do amor cristão. Não somos servos de Deus, pois Ele não se impõe de cima para que lhe obedeçamos, mas nos chama e nos faz seus “amigos”.
Também não somos empregados de Deus, para triunfo e glória de sua empresa, pois não temos na vida outra tarefa nem outra finalidade que ser amigos.
Somos simplesmente amigos de Deus em Jesus, como diz o evangelho de João, o testamento do amado.
Amar é simplesmente “deixar-se amar”, como as mulheres da páscoa, como o discípulo amado, como todos os que amaram a Jesus e se deixaram amar por Ele e com Ele, sem outro exercício que o continuar amando. Por isso, a mensagem mais profunda do evangelho de João vem expressar-se no amor fraterno, vivido na forma de amizade. Não é simplesmente amor ao inimigo, nem é tampouco amor esponsal. É amor de irmãos que se tornam amigos. Neste manifesto de amizade culmina o evangelho, entendido, por fim, como “escola de amor”..., porque só quem ama e é amado pode assumir em presteza a tarefa da vida, cumprindo assim o “mandamento do amor”; “amor ágape”, gratuito, oblativo, impulso que faz “sair de si mesmo”.
Esta revelação do amor fraterno/amistoso é o dom supremo de Jesus à sua nova comunidade; a identidade dela não está na organização burocrática, na doutrina, nos ritos... mas em deixar-se conduzir pelo “movimento de amor”. Toda comunidade que descobre esse amor sabe que não necessita autoridades externas, hierarquias sacrais, obediências cegas...
Aqui não há mais imposição de uns sobre outros, mas comunhão de amigos. Essa mesma comunhão é a autoridade, a presença do Espírito Santo. As mediações ministeriais são, portanto, secundárias. Podem mudar as formas de organização eclesial, as ações concretas da comunidade; mas permanece a verdade como liberdade, e a autoridade como amor mútuo que vincula os(as) seguidores(as) de Jesus.
Sem amor não é possível dar passos para um cristianismo mais aberto, cordial, alegre, simples e amável, onde possamos viver como “amigos” de Jesus. Não saberemos como ativar a alegria de viver; sem a dinâmica do seguimento amoroso, continuaremos cultivando uma religião triste, centrada no legalismo, no ritualismo estéril que alimenta culpas, ressentimentos, medos e um mal-estar constante.
Jesus não veio complicar a vida com uma sobrecarga de normas, leis, ritos, doutrinas...; veio recuperar o essencial: basta amar. Diz S. João da Cruz: “na tarde da vida seremos examinados no amor”.
A vivência radical do amor, que está disposto a perder tudo por aqueles que ama, é o que em definitiva ajuda a ativar a alegria, a fazê-la crescer e compartilhá-la sem recompensa alguma. Jesus fala aos discípulos dessa alegria precisamente quando sua vida se precipita em direção à entrega na paixão, não por um desencanto da vida, mas por amor apaixonado à existência que o Deus da vida nos presenteia. Só a paixão do amor faz coexistir, em um mesmo fogo que os funde em uma união indissolúvel, a dor e a alegria, o amor à vida e o risco de perdê-la, o amor aos amigos e a coragem de deixá-los, as perseguições dos inimigos e a audácia para morrer por eles.
Ser testemunhas e profetas da alegria constitui a essência dos seguidores e seguidoras de Jesus.
E “para viver a alegria, exercitar-se na alegria”. É preciso nos converter à alegria de Deus que é autêntica paixão pelo ser humano; é preciso contagiar a alegria do Evangelho; é preciso afastar obstáculos que travam a alegria de viver; é preciso remover a pedra de nossos sepulcros e viver como ressuscitados.
Como profetas da alegria, longe de fugir dos conflitos da vida, nós os enfrentamos e os integramos com sentido. Não temos mais fronteiras, não excluímos gênero, classe social, cor, língua, religião, não descartamos o aparentemente inútil. Por isso, nossa vida e nossa palavra querem ser anúncio e compromisso de concórdia e comunhão nos conflitos, unindo pontos, integrando diferenças, curando feridas. Devemos reforçar o testemunho de comunhão na diversidade para mostrar que é possível superar o medo às diferenças. Nossa vida alegre desmonta a hipocrisia, as ambições, a vaidade, o escândalo...
A presença do Ressuscitado deu à alegria um caráter existencial e não a faz depender nem do esforço pessoal nem de posse alguma de um bem temporal, mas do sentido global da pessoa.
Quem vive a partir da alegria, vive a partir do essencial e sabe discernir o autêntico das aparências e o útil do supérfluo. A alegria mantém alta a utopia e não se cansa em sua irradiação. Seguimos o conselho agostiniano: “A felicidade consiste em tomar com alegria o que a vida nos dá, e deixar com a mesma alegria o que ela nos tira”.
Quem é transparente e coerente transmite alegria em seu falar e em seu agir. Ser alegre não significa ser impassível, insensível diante da injustiça e da violência, diante da pobreza e da exclusão. As virtudes que acompanham a alegria fazem com que a pessoa alegre seja também compassiva e misericordiosa e trabalhe pela paz e pela justiça.
O profeta da alegria anuncia sempre mensagem de salvação, exercita a compaixão, suscita a esperança, se envolve na promoção da paz, da justiça, da solidariedade, da fraternidade....
Texto bíblico: Jo 15,9-17
Na oração: Entre em sintonia, “ajuste-se” ao modo de amar de Deus: amor descendente, amor sem fronteiras, oblativo, expansivo... e que se “revela mais em obras do que em palavras” (S. Inácio).
- Sinta-se envolvido(a) pelo Amor transbordante de Deus e, ao mesmo tempo, entre no fluxo desse Amor criativo, “descendo” à realidade cotidiana e ali deixando transparecer esse mesmo Amor, através dos encontros e do diálogo com os outros, sobretudo com aqueles que pensam, sentem e amam de maneira diferente.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
08.05.2021
Imagem: pexels.com
“Eu sou a videira e vós os ramos” (Jo 15,5)
O Evangelho deste domingo é o começo do cap. 15 de S. João e que faz parte do longo discurso de despedida, depois da última ceia. Nesta parte do discurso fala-se da comunidade cristã e sua missão no mundo. Insiste que a Vida de Deus, como a seiva, deve atravessar cada membro da comunidade para que seja possível o amor que se deve manifestar em obras.
Como é habitual, o Jesus dos evangelhos não expõe esta realidade com longas explicações ou filosofias, mas utiliza imagens, parábolas ou símbolos certamente conhecidos por todos. Neste texto, nos fala a partir da videira, uma planta rica em significados na tradição judaica. A vinha, nos textos do AT, representava o povo de Israel, que Deus plantou, podou e cuidou de todas as maneiras possíveis. O Deus Pai foi representado, em muitas ocasiões, como um lavrador que cuida de sua vinha Israel.
Na Última Ceia, Jesus convocou todos os seus(suas) seguidores(as) a formar com Ele um organismo vivo. E fez isso através da imagem da vinha: a cepa, os ramos e os cachos de uvas. As uvas não brotam diretamente da cepa, mas dos ramos. Porém, os ramos não dão uvas se não estão ligados à cepa.
Jesus nos fala do bio-sistema da videira: a relação misteriosa da cepa com os ramos e dos ramos com os cachos de uvas, e um misterioso Lavrador que a cuida para que ela dê muito fruto.
Na vivência do seguimento de Jesus, o importante é sentir-nos dentro de uma grande e misteriosa “bio-cenosis”, comunidade de vida. Espaço onde cada um se insere na Videira, onde cada membro se harmoniza e se dinamiza no corpo. O Abbá e a Santa Ruah cuidam deste organismo vivo, conectado em Jesus, como um corpo de dimensões cósmicas.
A “bio-cenosis” é o espaço onde respiramos ar purificado, vivemos da seiva que circula, experimentamos a liberdade do Espírito, produzimos frutos. Sim, trata-se de nos deixar levar pela misteriosa lógica da Vida.
A Vida continua sendo o centro do discurso de Jesus, neste domingo; afinal, estamos no tempo Pascal. Só assim o seguimento de Jesus torna-se fonte de vida e vida em crescente amplitude. Quando nos dispomos a caminhar com Ele, sob a ação do seu Espírito, realiza-se em nós um processo de abertura e de superação, de crescimento e de reconstrução de nós mesmos...; tomamos consciência de uma dimensão profunda de nosso interior, que nos permite experimentar uma outra vida, que supera tudo o que vivíamos até então.
Para isso, é preciso passar por contínuas “podas” de tudo aquilo que está sobrando ou que se tornou “peso morto”. O Abbá de Jesus cuida e poda os ramos para que deem mais frutos.
Conhecemos bem a poda necessária para que a videira não disperse a seiva, produzindo vistosa folhagem e ramos frondosos, mas sem frutos; uma videira deve dar cachos formados e grandes, nutridos até a maturação. Quando o agricultor poda, a videira “chora” onde é cortada, até que a ferida fique curada e cicatrizada. A poda tão necessária é sempre uma operação dolorosa para a videira: muitos ramos são cortados, jogados fora, secam e são destinados ao fogo...
Muitas vezes as podas são vistas como perdas, mas são perdas que abrem espaço à vida nova, ampla...
Nosso processo de crescimento pessoal revela uma constante necessidade de despojar-nos de costumes, lugares familiares, modos de nos relacionar com as pessoas queridas..., que nos acompanharam durante uma etapa, mas que agora se tornaram estreitos e nos impedem expandir a vida.
Quão difícil é deixar-nos podar sobretudo os ramos secos que se agarram a nós: atitudes fechadas, busca de prestígio, ego inflado, instintos de posse, falsas seguranças, visões atrofiadas... Esses ramos que nos sobre-carregam são “pesos mortos” que exigem uma demanda de energia que deixa de ser investida em outras frentes de vida. São ramos que não conduzem mais seiva, mas temos resistências em deixá-los podar. Vemos esses ramos em nós, os identificamos, os localizamos... mas custa cortar. Vemos e sentimos a necessidade de cortar, de separá-los de nós, de podar... mas custa eliminá-los.
O processo da “poda” da vida implica “perdas e ganhos”; as podas implicam uma travessia da “vida menor” à “Vida maior”. Se investimos todas as nossas energias na vida minúscula (apegos, medos, resistências...) nunca descobriremos a Vida maior. Aquele que se empenha a todo custo em salvar sua vida menor, vai acabar perdendo-a. Mas dará pleno sentido a esta vida se descobre e ativa outro nível mais profundo e encontrar a verdadeira Vida. Estamos aqui para pôr Vida onde só há “vida”.
Em tempos de busca de sentido ou de desorientação, reencontrar a vinculação existencial com “todas as coisas” e encontrar a “consistência” em Cristo se torna fundamental. Quando as experiências de isolamento,
abandono ou de individualismo tornam-se generalizadas, a leitura deste texto nos anima a potenciar as relações profundas e a reforçar a corrente de vida que vem desde Jesus e que nos comunica entre nós de maneira criativa.
Como seres humanos vivemos profundamente relacionados. O vínculo é algo que nos caracteriza essenci-almente. Em nosso mundo estamos “muito conectados, mas pouco vinculados”. Vivemos numa sociedade “des-vinculada”, que precisa re-vincular-se, constituindo a verdadeira comunidade humana: vínculos com a Videira vivente e vínculos fraternos.
O evangelho deste domingo nos convida a passar da mera conexão à verdadeira vinculação, aquela que nasce da fraternidade, da mesma seiva de Cristo, aquela que gera a caridade verdadeira, no compromisso pela justiça e pela dignidade de todos os seres humanos. Onde só há “conexão”, ali há atrofia e rigidez nas relações interpessoais, alimentando atitudes preconceituosas, intolerantes e indiferentes.
Só a vinculação quebra distâncias, dá calor aos encontros, abre corações e mentes para acolher o diferente.
A vinculação integra as diferenças; a conexão alimenta suspeita e julgamento diante de quem pensa, sente e ama de maneira diferente. A riqueza das diferenças alimenta e dá novo vigor aos vínculos.
Jesus, como Videira, estabelece um vínculo eterno com a humanidade, alimentando-nos com sua seiva e reforçando os vínculos humanos para além de toda expressão religiosa, social, cultural, política...
É nesse conjunto de recursos e dinamismos vitais que a Graça (seiva) de Deus trabalha; Ela pode ser considerada como uma presença dinâmica, um estimulante das energias latentes do nosso “eu”.
A presença da seiva é um reforço, um suporte, uma ativadora das capacidades do eu; ela não constrange, não violenta, mas ajuda, esclarece, mobiliza as energias presentes, facilita largamente a missão de cada um.
Mais ainda, o Espírito habita nosso ser profundo, sustenta nossas energias sadias, aumenta nossas forças, compromete-nos a crescer de forma autônoma. Ele age como um “princípio dinâmico” e como um “energético ativo”, que reforça as atividades criativas do eu. Temos de viver a partir do Espírito, transformando e vitalizando nossos gestos, pensamentos, compromissos, encontros.
Intuímos uma conexão tão preciosa dentro de nós, uma seiva tão profunda... Muitas vezes, passamos a vida buscando seiva em outros lugares que nos tornam estéreis e vazios, e não descobrimos nosso ser essencial.
Texto bíblico: Jo 15,1-8
Na oração: Carregamos a Videira em nossas entranhas como um canto de libertação. Nosso interior conhece a Videira; conhece a Vida; nosso interior conhece a seiva da Videira. É algo como o espírito que nos anima.
Somos ramos e deixamos a seiva transbordar em nós; ramos sem fronteiras; ramos sem cálculos; ramos transbordantes.
- Onde sua vida está conectada? A seiva que você recebe alimenta sua vida ou a envenena, expande suas potencialidades criativas ou atrofia seus desejos e sonhos?
Pe. Adroaldo Palaoro sj
29.04.2021
Imagem: pexels.com
“Eu sou o bom pastor. Conheço as minhas ovelhas, e elas me conhecem...” (Jo 10,14)
Todo quarto domingo do Tempo Pascal a liturgia busca inspiração na alegoria do Bom Pastor; ela não apresenta outros relatos de “aparições” do Ressuscitado, mas realça o que é central na experiência pascal: “viver como ressuscitados” é deixar-nos inspirar por Aquele que é Vida em plenitude.
Para começar, é compreensível que imagens próprias de uma cultura agrária não sejam significativas para quem vive nos espaços urbanos e numa sociedade tecnologicamente avançada; para muitos, a imagem do Bom Pastor perdeu a referência e deixou de ser significativa; ela acaba provocando indiferença ou rejeição porque, em nosso ambiente sociocultural, a imagem do “pastor e das ovelhas” evoca atitudes de domínio, de controle, de paternalismo e do correspondente súdito “cordeirinho”. O “rebanho” é visto como constituído de ovelhas que não podem dirigir seus atos, não sabem onde encontrar as pastagens e, se não é a presença controladora do pastor, elas acabam se perdendo e morrendo nas garras dos lobos.
No entanto, a resistência à imagem do “pastor e das ovelhas” acaba “trazendo à luz” esta realidade que não mudou: muitos afirmam que não tem “vocação de ovelhas”, mas se comportam como “gado” no curral da alienação; sem uma visão crítica, deixam-se levar e vão aonde todos vão, “pastam” nos campos envenena-dos das “fake-news”, aceitam que “falsos messias” (seja no campo político ou religioso) controlem suas vidas, permitem que os “pastores” da “mídia interessada” propaguem a “sua verdade”... As redes sociais estão aí para demonstrar as atitudes alienadas do “rebanho” que se transforma em “massa de manobra”, onde é proibido “pensar, sentir e amar” de maneira diferente.
Apesar das considerações anteriores, a imagem do “Bom Pastor” pode ser inspiradora se ela nos conduz ao centro da vida que é dom e se faz continuamente dom.
Como toda imagem é ambígua, devemos salvar o sentido nobre que ela desvela quando nos aproximamos da inspiração primeira anunciada por Jesus. Esta alegoria abriu caminho a uma espiritualidade e a uma devoção extensa e profunda ao longo de toda a história cristã. Guia, cuidado e proteção conectam profundamente com as necessidades básicas do ser humano. É inegável, também, que essa devoção produziu frutos abundantes de confiança e compromisso.
Jesus se apresenta como o verdadeiro Pastor porque não nos considera propriedade sua, respeita-nos, ativa nossa autonomia ...; Ele é o verdadeiro pastor porque é pura transparência do Pai, providente e cuidador, que não controla, não manipula, nem tolhe nossa liberdade. Ele se apresenta como verdadeiro pastor porque ativa as nossas potencialidades humanas e nos instiga a viver de modo criativo. Seu “rebanho” é constituído de diversidades que se enriquecem e se comprometem com a causa da vida.
Jesus é Pastor fazendo com que todos sejam pastores. O rebanho de ovelhas se converte em comunidade de pastores, dialogando-se mutuamente, onde cada um é porta de vida para os demais.
O encontro com o Bom Pastor ativa em nós o “pastor escondido” para que possamos ser a presença de vida que faz a diferença e indique a todos a porta de liberdade; todos somos chamados a ser pastores, ajudando-nos mutuamente a encontrar o caminho e o sentido para nossas existências.
Queremos ser “bons pastores” que se ajudem a sair do aprisco onde estamos fechados (moralismo, legalismo, ritualismo, religião sem vida...), para assim buscar a liberdade e celebrar a vida, com o Bom Pastor e com todos os homens e mulheres de boa vontade.
Inspirados no Bom Pastor somos chamados a viver uma Vida maior, que é uma vida de qualidade, de harmonia interior e comunhão com todos; é aquela vida na qual vivemos de acordo com nosso projeto pessoal, na qual reservamos todos os dias um tempo para refletir como queremos viver, quanto tempo investimos com os outros, quanto trabalhamos para levar à sociedade o nosso melhor, quanto praticamos a justiça nos pequenos detalhes cotidianos, familiares, sociais, quanto partilhamos daquilo que somos e temos, quanto amamos gratuitamente, sem esperar que o outro nos corresponda, mas aceitando-o empaticamente, permitindo-o ser diferente e expressar seus afetos, como pode e como sabe.
E, por último, quanto vivemos a vida como uma festa e se a tornamos festiva, agradável e humorada aos demais; se, além disso, tudo isto é vivido e acompanhado na presença e fortaleza de Deus, que nos cumula de energia, nos impulsiona à vivência da misericórdia, da justiça, do cuidado... e nos indica o caminho para viver uma existência apaixonante.
Também na imagem do “Bom Pastor”, Jesus deixa transparecer, na sua relação com os mais frágeis e excluídos, a imagem do Deus ternura e cuidado.
Recuperar o sentido da ternura exige de nós contemplar a vivência da ternura de Jesus de Nazaré, e não só como um mero modelo ético de atuação, senão em sua profunda intimidade e filiação referida a um Pai materno cujas entranhas se estremecem e sente ternura por seus filhos e filhas.
Recuperar a imagem esquecida do “Deus de ternura”, supõe enraizar-se no coração do Bom Pastor, imagem que revela a capacidade do ser humano de abraçar amorosamente a situação de fragilidade e dor do outro, com uma compaixão que se faz vida, nos gestos revitalizadores e humanizadores, cheios de ternura.
Só quem experimentou a ternura de Deus, revelado em Jesus, sabe-se possuidor de uma “segunda pele” que certamente o faz mais vulnerável, mas ao mesmo tempo mais humano ou mais apto para penetrar no secreto de uma humanidade capaz de sentimento e estremecimento até os limites não imaginados. Nele pulsa o coração de Deus que se sintoniza com a pulsação do coração do mundo.
Com razão afirmava Abrahán Heschel, que “o grau de sensibilidade diante do sofrimento humano indica o grau de humanidade que temos atingido”. E é a ternura aquela que desperta em nós essa sensibilidade e mede, por isso, o grau de humanidade alcançado.
A ternura vital é sinônimo de cuidado essencial.
O cuidado nos torna pessoas abertas, sensíveis, solidárias, cordiais e conectadas com tudo e com todos no universo. Sem o cuidado, nos fazemos desumanos; sem o cuidado nos definhamos e morremos.
O cuidado vive do amor primeiro, da ternura, da carícia, da compaixão, da benevolência acolhedora...
A arte do cuidado confere a cada um de nós a capacidade de exercer o “pastoreio espiritual”; cuidar é sentir o outro, é verdadeiramente escutar, é ter um olhar desarmado, eliminando todo preconceito. Cuidar é dar atenção com ternura, isto é, descentrar-nos de nós mesmos e sair em direção do outro, participando de sua existência; é esvaziamento de nós mesmos para deixar o mistério da fragilidade do outro, que também trazemos em nós, encontrar abrigo no coração.
Texto bíblico: Jo 10,11-18
Na oração: quem já foi afetado por um olhar de uma pessoa pobre ou sofredora, e deixou que este olhar penetrasse no fundo do seu coração, sabe que não sai “ileso” desta experiência; algo mudou dentro de si: a ternura é despertada e o cuidado é mobilizado.
O modo-de-ser-ternura e cuidado do Bom Pastor se prolonga em nós, seus seguidores.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
22.04.2021
Imagem: Sieger Koder
“Vede minhas mãos e meus pés: sou eu mesmo!” (Lc 24,35-48)
Há uma arte milenar que consiste em recompor cerâmicas quebradas; quando uma peça se rompe, os mestres desta arte concertam-na com ouro, deixando a cicatriz da reconstrução completamente à vista e sem nenhuma dissimulação, pois para eles uma peça reconstruída é um símbolo perfeito que alia fortaleza, fragilidade e beleza.
Os primeiros cristãos decidiram também conservar e transmitir os relatos das aparições do Ressuscitado sem ocultar as muitas rupturas, feridas e marcas que o acompanharam durante sua vida, sobretudo aquelas que lhe foram infligidas durante sua paixão e morte. Poderiam ter adocicado, suavizado ou omitido diretamente os aspectos mais polêmicos de seus ensinamentos ou os elementos mais humilhantes de seu dramático final. Pelo contrário, deixaram as cicatrizes de suas feridas completamente à vista e sem nenhuma dissimulação. Mas, fizeram isso não só para serem fiéis à história, mas, sobretudo, para mostrar a fortaleza, a fragilidade e a beleza da reconstrução realizada por Deus na ressurreição. Convinha mostrar o ouro que preenche as fendas entre os membros feridos de Jesus, as marcas de sua entrega nas cicatrizes do seu corpo.
O Pai, como experiente artesão, depois de enviar Jesus e de sustentá-lo ao longo de sua missão, o eleva, o reconstrói e o ressuscita.
Essa é a razão pela qual, para os cristãos, o compromisso com a restauração do mundo quebrado é um modo de atualizar a experiência da ressurreição e de viver sua vocação. O(a) seguidor(a) de Jesus escuta o chamado para unir-se ao labor do Deus-criador que, na ressurreição, recria de novo a humanidade ferida.
Somente a ação criativa e contínua de Deus é capaz de costurar novamente os pedaços de nossa história; ao mesmo tempo ela nos faz descobrir a beleza e a harmonia desses mesmos pedaços. Tal qual o oleiro, o Senhor nos cria e nos recria continuamente. Nada é desperdiçado. Suas mãos de artista não jogam fora nenhum pedaço de nossa existência vivida, e sim, compõe e recompõe continuamente, num desenho novo, o que nos foi dado viver. A experiência de nossa própria fragilidade pode converter-se em experiência de Deus, do Deus rico em misericórdia, e até o passado mais fragmentado está aí para dizer que Ele desenhou nosso ser na palma de suas mãos (cf. Is. 49, 14-26).
Assim, o passado em pedaços adquire um significado totalmente diferente, e cada acontecimento se torna fragmento de um plano amoroso, escrito no coração do Criador. O ato divino de costurar os pedaços de nossa história não significa somente juntar os cacos, como se no passado existissem somente derrotas e fracassos a serem anotados e aceitos. Deus acolhe e dá um sentido novo a todas as vivências e experiências; só Ele consegue juntar até as contradições e inconsistências da vida, dando coerência e unidade ao todo existencial e, com isso, fortalecendo a identidade e originalidade de cada um.
É um contínuo renascer; é um prolongamento da Criação: “faça-se a luz”, “façamos o ser humano”.
Repetir o gesto criativo de Deus significa tomar nas mãos os “fragmentos” daquilo que foi vivido, trazê-los das profundezas onde sempre estiveram confinados, colocá-los à nossa frente, tocá-los, revirá-los, contemplá-los, aceitá-los, revivê-los, recriá-los... Com o ouro de nossa existência, aquecida pelo calor do Espírito de Deus, podemos transformar nossas feridas, fracassos, crises, rupturas... em material de uma nova experiência de vida. Não se trata de sufocar a vida, mas de torná-la leve e luminosa, mantendo límpida a sua fonte, livrando-a da camada de sentimentos negativos.
A experiência de encontro com o Ressuscitado nos dá força e tranquilidade para empreender um mergulho dentro de nós mesmos. Ela vai reordenando fatos, completando os vazios, corrigindo distorções, revivendo situações paralisadas, conferindo sentimentos...
Ao nos situar na luz da ressurreição ampliamos o horizonte de leitura de nossa vida; isso possibilita uma recomposição da nossa própria vida e dá um novo significado aos acontecimentos vividos. As experiências do passado não podem ser mudadas, mas a nova “releitura” pode mudar a interpretação dada a elas. Tal experiência reconstrutora é para corajosos, persistentes, vitais, amantes da verdade...
A experiência de encontro com o Ressuscitado é muito positiva para o crescimento interior e nos mobiliza para retomar a “escrita” de nossa história, agora com um olhar compassivo e acolhedor.
Deus colocou sua “assinatura” divina ali, nas dobras do coração, mas só quem lê o interior descobre isso. Nas páginas fragmentadas da nossa existência poderemos ler uma história de amor profundo, uma história imortal O que não foi bem escrito no passado poderá ser escrito de outra maneira no futuro...
Mas tudo é reconstruído e, com toda certeza, será publicado pela “editora da vida”.
No evangelho deste 3o domingo da Páscoa, Jesus aparece repentinamente aos discípulos; a primeira reação é de “medo pela surpresa” e até “acreditavam ver um fantasma”.
Como se credencia Jesus para justificar sua identidade? De uma maneira que deveria ser também a nossa. O que melhor define Jesus diante dos discípulos medrosos é: em primeiro lugar, a “saudação de paz” (“a paz esteja convosco”).
Em segundo lugar: mostra-lhes suas mãos e seus pés; mãos e pés com o sinal dos cravos na Cruz. Recorda a eles que é o mesmo Crucificado, agora Ressuscitado; mostra-lhes as mãos feridas como marcas do amor que se doa, cura, abençoa, eleva... ; mostra-lhes os pés feridos pelos caminhos que andou, pelos deslocamentos em direção aos últimos, e que terminaram cravados na cruz.
A “carteira de identidade” de Jesus não é um cartão nem papéis, mas suas mãos e pés chagados. É curioso que os grandes sinais que tornam possível acreditar que Jesus está vivo sejam suas mãos e seus pés. É curioso que os grandes sinais que nos fazem acreditar na Páscoa sejam as mãos e os pés feridos e chagados.
Se nossas entranhas se compadecem, se nossas mãos se abrem, se em nosso desalento levantamos os pés, se voltamos a confiar no outro, se o nosso olhar se amplia..., então ressuscitamos como Jesus, como a Vida que se expande, como a semente que se rompe...
Queres conhecer alguém? Olhe suas mãos e seus pés. Queres conhecer o(a) verdadeiro seguidor(a? Olhe as chagas das mãos e dos pés; mãos e pés que revelam o amor crucificado; mãos e pés que revelam o amor fiel até o fim; mãos e pés que revelam uma vida doada para que outros possam viver.
“Mais vale uma chaga em nossas mãos e em nossos pés que mil explicações sobre o amor”.
Texto bíblico: Lc 24,35-48
Na oração: O Cristo Ressuscitado nos mostra suas mãos e pés glorificados, com as “marcas” de sua própria história de paixão e de uma vida entregue em favor do Reino do Pai. Ele pede nossas mãos para que sejam prolongamento das suas: mãos que abençoam, partilham, elevam, curam...Ele pede nossos pés para que sejam o prolongamento dos seus: pés peregrinos que quebram distâncias sociais, pés que rompem as fronteiras da indiferença e da intolerância, pés que ativam presença solidária...; Ele pede nosso coração “atravessado” pela lança do amor oblativo para contagiar a grande esperança e combater o vírus da morte.
- Como ser presença “ressuscitada” no contexto atual onde imperam o “genocídio” e a “cultura da morte”?
- Seu modo de ser e proceder é portador da paz pascal neste ambiente social e religioso carregado de tanto ódio?
Pe. Adroaldo Palaoro sj
16.04.2021
Imagem: pexels.com/sharon-mccutcheon-1407278
“Jesus entrou e, pondo-se no meio deles, disse: ‘a paz esteja convosco’” (Jo 20,19)
Os relatos das Aparições unem a experiência do encontro com o Ressuscitado e os dons que são específicos e fundamentais para a vida cristã: a comunidade, a paz, a missão, o perdão, o Espírito Santo e a fé.
“Olhar o ofício de consolar que Cristo nosso Senhor exerce”. S. Inácio utiliza esta expressão quando apresenta, na 4ª Semana dos Exercícios, a contemplação das aparições do Ressuscitado.
No diálogo amoroso com seus amigos e amigas, Jesus Ressuscitado vai exercendo “o ofício do consolar”. Não se trata de um ato pontual senão de um “ofício” que definirá para sempre a atividade de seu Espírito no mundo. O “ofício de consolar” é a marca do Ressuscitado, é força recriadora e reconstrutora de vidas despedaçadas. Jesus ressuscita e se encontra com cada um dos seus amigos e amigas, ativando neles(as) o sentido da vida, reconstruindo os laços comunitários rompidos, e sobretudo, oferecendo solo firme a quem estava sem chão, sem direção... Consolar é o que define a ação do Ressuscitado transformando a situação dos seus amigos e amigas: a tristeza se converte numa alegria contagiosa, o medo em valentia e audácia, o fracasso em impulso para a missão...
O evangelista João descreve de maneira insuperável a transformação que se deu nos discípulos quando Jesus, cheio de vida, se faz presente em meio a eles. O Ressuscitado está de novo no centro de sua comunidade de seguidores; eles sentem Seu alento criador. Tudo começa de novo. Tal presença os liberta do medo e da dúvida, os faz escancarar as portas e dar início ao processo de evangelização.
O Ressuscitado se aproxima como Presença viva que dá Vida: deixa-se ver, fala, interpela, corrige, anima, comunica paz e alegria. Em uma palavra, presenteia seu Espírito.
Outra vez Jesus recria a comunidade que depois da Paixão estava se desintegrando; e seus discípulos experimentam novamente o chamado e o envio, a serem testemunhas e cúmplices do Espírito, porque vivem a certeza existencial de que o Crucificado é o Ressuscitado, que a morte foi vencida, que Deus é o Senhor da Vida. Impulsionados pela força do Espírito, seguirão colaborando, ao longo dos séculos, no mesmo projeto salvador que o Pai confiou a Jesus.
Para o evangelista João, o diálogo do Ressuscitado com seus amigos e amigas tem um tom de profundidade e trato, de familiaridade e intimidade. Diálogo dinâmico e reconstrutor, que destrava as pessoas de seu fracasso e abre para elas um novo futuro de sentido.
Neste diálogo, tanto os conteúdos expressos como os aspectos relacionais ganham uma grande importância: as palavras, os gestos (mostrar as mãos e o lado), o olhar, a maneira de falar, o tom da voz, os silêncios, o contexto onde acontece o diálogo...; tudo isso forma parte da diversidade e riqueza da revelação do Ressuscitado aos seus discípulos. Diálogo personalizado, comunitário, mobilizador de vidas...
O diálogo é uma experiência profundamente humana de proximidade, de conhecimento, de intercâmbio, de ternura... um encontro entre pessoas que vão compartilhando histórias de vida, esperanças e frustrações, vontade de construir e sonhar... O diálogo é o lugar privilegiado de encontro e descoberta misteriosa do Outro (Deus).
Dialogar é um caminho pedagógico, um processo gradual que requer uma capacidade de escuta, de acolhida e de deixar-se tocar pelo que o outro é, não só pelo que diz; uma capacidade de olhar com profundidade para reconhecer uma história santa, um caminho de salvação. É reconhecer no outro o que há de verdadeiro, bom e belo, e descobrir como o dinamismo de Deus atua no seu coração.
O diálogo constitui uma das experiências humanas mais antigas e reveladoras de nosso ser profundo. Ele não se reduz a um mero intercâmbio de palavras; é um processo essencialmente ativo, inerente à nossa natureza relacional, cuja finalidade última é viver a experiência do encontro.
Dialogo é uma das aprendizagens vitais que não tem data de vencimento.
Há diálogo e “diálogo”. Há “diálogo” superficial que gasta palavras à toa e revela o vazio das pessoas. E há diálogo que tem ressonâncias profundas, toca o coração e fica registrada memória.
Todos nós, com certeza, já passamos por experiências de ressurreição, que dilataram o nosso coração e se revelaram como força na hora das dificuldades. Ajudaram a ativar confiança e a vencer o medo.
O diálogo nos ressuscita, nos liberta da solidão e do fechamento, fazendo-nos crescer na transparência. As inúmeras possibilidades de dialogar são encontros que nos reconciliam com a vida, nos movem a crescer e a sair de nosso egocentrismo. Ele nos permite sentir que formamos parte da vida de outros e nos ajuda a levantar-nos quando as perdas, os fracassos, as enfermidades... tornam difícil nosso caminhar.
Dialogar é uma das vias privilegiadas que temos para nos fazer sentir que nossa vida é habitada por outros, que grande parte de nossa felicidade está no fato de sermos capazes de nos fazer presentes na vida dos outros e, ao mesmo tempo, deixar que estes se aninhem em nosso interior.
Reconhecimento, pertença, celebração da vida, sentir-nos capazes de pensar e agir autonomamente, de ativar nossa própria identidade, de mobilizar nossos recursos originais, de reforçar vínculos comunitários, de investirmos os dons num sonho mobilizador...: tudo isso são expressões de uma vida ressuscitada.
Se quisermos que a nossa vida cristã tenha a marca da Ressurreição, o convite é este: “sair do próprio túmulo” para viver “diálogos mobilizadores de vida”. É preciso remover as pedras da indiferença que foram soterrando a vida dentro de nós e romper os muros que cercam nosso coração; é necessário compreender que somos chamados a um compromisso diferente e mais profundo: destravar portas e janelas, sair da reclusão de nossas casas para entrar na grande “casa” de Deus; romper com o tradicional para acolher a surpresa; deixar a “margem conhecida” para vislumbrar o “outro lado”; afastar a “pedra” da entrada do coração para poder viver os diálogos com mais criatividade.
Ressurreição, plenitude do mistério da comunhão através dos gestos, da proximidade, do abraço...
“Estende a tua mão e coloca-a no meu lado” (Jo. 20,27).
A cada abraço sentido, uma ressurreição também vivida!
Deixemo-nos alcançar pela Ressurreição de Cristo permitindo que o nosso corpo seja um corpo de ressuscitado.
Texto bíblico: Jo 20,19-29
Na oração: Páscoa se estende no “tempo” e no “espaço” porque, como a vida, ela está cheia de surpresas e energias vitalizadoras; trata-se de uma experiência que é vivida com calma e bem devagar, enquanto a luz e a força que contém vai transformando e configurando nosso “húmus” interior. À diferença do “corona-vírus”, a experiência pascal não invade, não arrasa, não aniquila... Ela oxigena, ilumina, fortalece, injeta em nós a Vida do Deus-Amor.
Pelo diálogo a pessoa manifesta quem ela é. “Onde está seu diálogo, aí está seu coração”.
- Seus diálogos ressuscitam, animam os outros, eleva-os, “aquecem seus corações?...
- Sinta este tempo de Páscoa como um convite a ser presença consoladora para as pessoas e para o planeta Terra.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
09.04.2021
Imagem: Hendrick Jansz. ter Brugghen
“Maria Madalena e Maria, a mãe de Tiago e Salomé, compraram perfumes para ungir o corpo de Jesus. E bem cedo, no primeiro dia da semana, ao nascer do sol, elas foram ao túmulo” (Mc 16,1-2)
+ Na alegria da ressurreição, prepare a oração, criando um clima de profunda intimidade com o Ressuscitado.
+ Suplique a Deus o dom da alegria com Cristo Ressuscitado; que a experiência da Ressurreição o(a) impulsione a viver com mais intensidade em comunhão com toda a humanidade e toda a Criação.
+ Antes de contemplar o relato das mulheres que foram ao sepulcro de madrugada, repasse os “pontos” seguintes:
- As mulheres revelaram uma presença fundamental nos relatos da Páscoa. Elas seguiram e serviram a Jesus com seus bens pelos caminhos da Galiléia e permaneceram fiéis até o final, até a Cruz. São testemunhas, como tantas mulheres de hoje, da fidelidade nas situações limite, onde o que lhes toca fazer é estar e acompanhar, na sua impotência e luto, até que emerja o inédito. São testemunhas da semente do amor entregue, que, embora invisível no ventre da terra, vai pouco a pouco abrindo caminho para a luz, afastando pedras e abrindo espaços, dando à luz o novo, porque o Deus de Jesus não é um Deus de mortos, mas de vivos.
- Frente à traição e a ausência dos discípulos, as mulheres foram significativas por sua lealdade. Enquanto o grupo de homens se trancou na passividade covarde, elas optaram pelo enfrentamento da realidade, vencendo o medo, colocando-se a caminho.
Das mulheres que foram ao sepulcro na manhã de Páscoa levando perfumes podemos aprender sua capacidade de enfrentar os acontecimentos com sabedoria e audácia.
Elas são as mulheres “mirróforas”, ou seja, portadoras de perfumes, que madrugam para ir ungir o corpo de Jesus. São conscientes do tamanho da pedra e de sua impossibilidade de removê-la, mas isso não é um obstáculo em sua determinação de ir ao túmulo para fazer memória d’Aquele que abriu para elas um horizonte de sentido.
A alusão ao “primeiro dia da semana” e o “nascer do sol” acompanham a entrada delas em cena, na madrugada da Páscoa: estamos no começo da Nova Criação e a luz da Ressurreição as envolve em seu resplendor.
- Quem busca, encontra; as mulheres foram as primeiras que viram este instigante sinal: a grande pedra tinha sido removida e o túmulo estava vazio. E foram as primeiras a “entrar”.
Entraram no túmulo: esta foi a experiência das discípulas de Jesus, ou seja, entraram no mistério que Deus realizou com sua vigília de amor. Não se pode fazer a experiência da Páscoa sem “entrar” no mistério.
As mulheres aprenderam uma lição inesquecível: é inútil busca Jesus no lugar da morte.
O cenário da morte carece de respostas. A busca deverá ser feita no espaço onde se desenvolve a vida. As mulheres entendem que corresponde a elas tomar a iniciativa e tirar da covardia o grupo de discípulos, transmitindo um encargo a todos os que abandonaram Jesus e, em especial, a quem chegou a renegá-Lo: “...dizei a seus discípulos e a Pedro...” (v.7).
- Agora, finalmente, Marcos cita os discípulos. Através das mulheres, eles receberão o encargo de Jesus. Elas se converteram em mensageiras da boa notícia; elas assumiram o protagonismo e relançaram o projeto do Reino a partir da grande intuição de Jesus: na Galiléia começou a história e ali deverá ser reiniciada. Seguir as pegadas do Galileu confirma que Ele vai adiante guiando os seus seguidores e seguidoras. Percorrer seus passos garante ao grupo a experiência de contar com Ele: “Ele irá à vossa frente, na Galiléia; lá vós o vereis, como ele mesmo tinha dito” (v.7).
- Voltar à Galiléia significa retomar e prolongar a mensagem e a proposta do Reino de Jesus. Foi ali na Galiléia que Jesus começou sua vida pública e atuou como aquele que veio aliviar o sofrimento humano, com a certeza de que o Reino tinha chegado e que Deus faria mudar a maneira de vida dos homens, partindo precisamente dos mais pobres e excluídos. Dessa forma, inicia-se um grande “movimento humanizador”, a partir de baixo, ou seja, dos últimos e pobres, anunciando e preparando a chegada do Reino na Galiléia.
- Esta volta à Galiléia marca o começo da nova comunidade dos seguidores e seguidoras de Jesus. A partir desse lugar deve iniciar-se o novo caminho do seguimento.
Por isso, os(as) discípulos(as) devem entrar em sintonia com o modo original de ser e de viver de Jesus na Galiléia. É ali que se devem encontrar todos os que são de Jesus (Pedro, as mulheres, os discípulos de Jerusalém), para também ali retomar e prolongar o movimento iniciado pelo Mestre de Nazaré.
Mas é sobretudo através do “modo cristificado de ser e viver” que os(as) seguidores(as) de Jesus exalam um bom odor, criam uma atmosfera perfumada ao seu redor.
- Assim, às vezes nos encontramos com ambientes que nos cativam e atraem, que desprendem um aroma agradável e prazeroso. São ambientes nos quais reina a acolhida, o diálogo amoroso, o compromisso, a simplicidade. Sempre agrada ficar por mais tempo. Nossa memória parte dali amavelmente carregada com energia salutar e nossos pulmões saem repletos de ar purificado, limpo...
Também existem outros ambientes cujo ar é irrespirável, fétido, com mau odor. São lugares onde há competições, agressividade e violência, onde as pessoas são manipuladas; são atmosferas arrogantes, infectadas, intolerantes, vazias. Saímos dalí meio asfixiados, desejando não querer voltar mais.
+ Como as mulheres “mirróforas”, tome consciência dos aromas que deve levar para perfumar os ambientes com odor de morte, de rigidez, de indiferença, de medo... para que se transformem em espaços com cheiro de vida, de liberdade, de ternura e acolhida.
+ Quê aromas prepara e espalha em sua casa, em sua comunidade, em seu ambiente?
+ Diante do Ressuscitado faça um profundo colóquio, expressando toda sua alegria e seu desejo de viver intensamente em favor da vida de todos.
+ Registre e dê nome aos sentimentos de consolação.
Mensagem final
Todos nós cristãos, fomos ungidos com o óleo santo no batismo, fomos besuntados e massageados com um bálsamo cristificante. Por isso trazemos a força sanadora do perfume de Cristo, para sermos presenças diferenciadas em lugares que cheiram à morte e poder manifestar a beleza da vida cristã com a qualidade do nosso aroma.
Somos uma fragrância que é o símbolo da vida, e que, derramada em favor das pessoas, inunda o mundo, comunicando a salvação.
Páscoa é expandir o perfume da vida que nos envolve.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
03.04.2021
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SÁBADO DA SEMANA SANTA
“... depois, rolou uma pedra na entrada do túmulo” (Mc 15,46)
+ Podemos começar este dia recordando uma experiência muito humana: imaginemos o regresso do enterro de uma pessoa querida, depois de uma longa temporada de lutas e temores, com um tratamento pesado, com momentos de otimismo, momentos de frustração, etc..., até o instante último em que dizemos em nosso interior: “descansou”.
Quem não regressou alguma vez do cemitério com esta sensação?
Partindo desta experiência, contemplemos um momento como descem do Gólgota, Maria, o discípulo amado e algumas mulheres que estavam junto à Cruz, com a horrível sensação de que tudo acabou.
+ Hoje é Dia de silêncio: recordar os grandes silêncios da vida (perdas, fracassos, crises...) onde não há razões, mas no silêncio profundo, algo novo começa a germinar...
- Normalmente o Sábado Santo não merece maior atenção de nossa parte; acabada a Sexta-feira Santa já pensamos no Domingo da Ressurreição. No entanto, o Sábado Santo reivindica uma reflexão e um lugar na nossa vida espiritual.
O Sábado Santo é um dia de penumbra: entre a sombra da Sexta-feira e a luz do Domingo. É o dia do luto e da possível boa notícia, da espera e da esperança. É o dia dedicado à solidão de Maria, o “dia não-litúrgico”. É o dia em que Jesus “desce” à morada dos mortos, na obscuridade mais absoluta. Ali não há visão de Deus; por isso, a Escritura a chama “inferno”.
É o dia do ocultamento de Deus, do silêncio de Deus Pai, da grande solidão de Jesus, do Filho perdido na obscuridade, na “terra de ninguém”. Jesus no túmulo simboliza o silêncio, a volta ao mais íntimo de si mesmo, abraçando a solidão sem se sentir solitário.
- Se não oramos a partir desse silêncio, é porque ainda não mergulhamos no mistério do Amor compassivo. Muitas vezes negamos a Deus o que de mais humano há em nós: o poder fazer comunidade compassiva e solidária, compartilhando a dor e o luto.
O Pai está de luto; a humanidade inteira está enlutada devido à pandemia; toda a natureza, em silêncio, acolhe a semente do Corpo do Verbo, na esperança de germinar Vida plena.
Contemplemos a espera angustiada do mundo, dos povos, das pessoas. Contemplemos o mundo e a humanidade em seu sábado santo, em seu dia de silêncio, em seu isolamento social.
Esse parece ser o estado da humanidade neste momento; um estado de paralização e de espera que parece não ter saída. Envolve-nos a obscuridade; estamos no túnel e não vemos a saída. O corpo da humanidade encontra-se ferido, desvitalizado. Não é a morte, mas tampouco é a vida.
- Nosso mundo carrega a cultura da morte, do ócio, da violência, da intolerância... Toda a criação geme em dores de parto, esperando vida plena.
Em meio a tantas trevas, só há uma pequena luz que permanece acesa da casa do discípulo amado, na casa daquele a quem Jesus confiou sua Mãe, no momento de sua morte. A Mãe é o símbolo da esperança no Sábado Santo. É o dia “mariano” por excelência. Nunca, como neste dia, ela se sentiu tão só, tão sem corpo. Mas, com certeza, o Abbá de Jesus tinha para ela um segredo, um advento inesperado: o momento de exclamar: “tu és o meu Filho, eu hoje te gerei” (Heb. 1,5).
As mães geram a vida; por isso, custa-lhes crer na morte. Maria continua crendo na vida; ela é mãe demais para esquecer. Seu filho é muito Filho para morrer.
- Sábado Santo é tempo não só de espera, mas de esperança, é deixar que o grão de trigo morto comece a dar fruto, é tempo de um inverno que tornará possível as flores da primavera, é tempo de imaginar, de criar, de abrir-se a algo novo e inesperado, de sonhar um mundo melhor e uma Igreja mais nazarena.
Este espaço de silêncio não é de morte senão de vida germinal, é noite que aponta à aurora, são as noites escuras da vida que desembocam na alegria da alvorada; é tempo de fé e de esperança, é momento de semear, mesmo que não vejamos os resultados, é tempo de crer que o Espírito do Senhor, criador e doador de vida, está fecundando a história e a terra para seu amadurecimento pascal e escatológico, para a terra nova e o céu novo.
- A Luz está para chegar. O Espírito ficou sem palavra, mas já sussurra. A voz do silêncio já geme; nele vislumbra-se a chegada da Vida. Algo grandioso se prepara.
Da escuridão da morte do Filho de Deus brota a Luz de uma esperança nova: a luz da Ressurreição reflete-se no rosto de Maria. Nossa amizade e devoção a Maria da esperança, a transparência feminina do Espírito, nos mantém no ritmo da espera.
Aproximam-se os rumores de ressurreição. É Páscoa.
Não basta re-nascer; é preciso assumir nossa condição de responsáveis de uma Nova Vida.
Texto bíblico: Mc 15,42-47
+ É preciso, com Jesus, descer ao túmulo de nossa interioridade, transitar por espaços e dimensões não integradas e nem pacificadas. Só quem mergulha nas profundezas de sua existência é capaz de morrer às exigências do “ego” e vislumbrar as potencialidades de vida que ainda não foram ativadas. “Se o grão de trigo que cai na terra, não morre, fica só” (Jo 12,24).
+ É preciso envolver este “sábado santo da vida” com os perfumes da compaixão, solidariedade, comunhão...
Pe. Adroaldo Palaoro sj
03.04.2021
Imagem: bigstock.com
SEXTA-FEIRA DA SEMANA SANTA
Na Cruz, um diálogo feito de silêncio...
+ A oração de hoje é profundamente silenciosa: trata-se de acompanhar Jesus no seu caminho em direção ao Gólgota e sua morte na Cruz.
+ Silenciar o corpo, a mente, o coração... através dos “preâmbulos”: oração preparatória, composição vendo o lugar, petição da graça...
+ Antes de “fazer o caminho” com Jesus até à Cruz, leia as indicações abaixo, como motivação para a experiência:
- O “Deus Crucificado” é, junto à Ressurreição, a realidade mais radical de nossa fé. Ela nos fala da fragilidade humana, assumida pelo mesmo Deus; fala-nos da paz como único caminho, frente às outras sendas construídas sobre o ódio, a violência ou a lei implacável; fala-nos do amor como a maior transgressão num mundo onde muitas pessoas são etiquetadas como indignas de serem amadas; fala-nos da dor de Deus, um Deus que não é distante, alheio ou indiferente à criação que saiu de seu coração; um Deus próximo até o ponto de esvaziar-se em nós, conosco, por nós; fala-nos de compromisso, de uma aliança inquebrantável e de risco; fala-nos de vítimas inocentes e de verdugos inconscientes que não sabem o que fazem; fala-nos da fidelidade de Deus no seu diálogo com a humanidade, mesmo diante da rejeição do ser humano a entrar em sintonia com esse diálogo amoroso....
Portanto, a Cruz se revela como a expressão mais radical do diálogo amoroso de Deus: um diálogo sem palavras, mas ela é a mais eloquente, pois fala de entrega, de solidariedade, de fidelidade total...
- Falar do silêncio de Deus e de “como a Divindade se esconde” (EE. 196) é adentrar-nos no Mistério que está presente em toda existência: ausência, dor, fracasso, morte... Sem Cruz não há passagem para a Vida, não há Ressurreição.
Na Paixão e morte de Jesus, o Silêncio de Deus não é um silêncio vazio. É um silêncio eloqüente, que nos fala: revela, desvela sem dizer, mostrando uma vida que não necessita palavras, a vida de Jesus que é puro amor até o fim e que, por sua vez, desvela o puro Amor de Deus.
A Cruz, por um lado, é símbolo da indiferença que mata toda possibilidade de diálogo, gerando sofrimento, exclusão e violência. Por outro lado, a Cruz de Jesus Cristo é sinal fecundo de que o ser humano não se rende à indiferença, que é capaz de se compadecer, amar e entregar a própria vida pelos outros.
- Jesus foi Aquele que não ficou indiferente diante da fome, da doença, da violência e da morte... Seu modo de ser, suas opções, sua liberdade diante da lei, da religião, do templo, seus encontros escandalosos com os pobres e excluídos..., desestabilizou tudo, pôs em crise as instituições e as pessoas encarregadas da religião. Jesus foi condenado como herege e subversivo, por elevar a voz contra os abusos do templo e do palácio, por colocar-se do lado dos perdedores, por ser amigo dos últimos, de todos os caídos. Tornou-se um perigo a ser eliminado.
A primeira coisa que descobrimos ao contemplar o Crucificado do Gólgota, torturado injustamente até à morte pelo poder político-religioso, é a força destruidora do mal, a crueldade do ódio e o fanatismo da mentira. Precisamente aí, nessa vítima inocente, nós seguidores de Jesus, vemos o Deus identificado com todas as vítimas de todos os tempos. Está na Cruz do Calvário e está em todas as cruzes onde sofrem e morrem os mais inocentes.
-“Jesus morreu de vida”: de bondade e de esperança lúcida, de solidariedade alegre, de compaixão ousada, de liberdade arriscada, de proximidade curadora...
Nesse sentido, a cruz de Jesus não é um “peso morto”; ela tem sentido porque é consequência de uma opção radical em favor do Reino. A Cruz não significa passividade e resignação; ela nasce de sua vida plena e transbordante; ela resume, concentra, radicaliza, condensa o significado de uma vida vivida por Jesus na fidelidade ao Pai que quer que todos vivam intensamente.
- Nos evangelhos, a Paixão de Jesus não é uma simples sequência de fatos, mas um confronto entre pessoas. Os diversos personagens entram em contato direto com Jesus, reagindo cada um a seu modo, vivendo cada qual o mistério do próprio chamado e da própria tomada de posição frente a proposta de Jesus.
Contemplar toda a galeria de pessoas que se encontra com Jesus. Cada qual com uma resposta diferente, diante de Jesus sempre igual em sua atitude de disponibilidade e de entrega.
- Os evangelistas dão um destaque especial à presença das mulheres no caminho da Cruz, solidárias com Aquele que era vítima da indiferença cruel.
Estão ali, precedendo-nos no caminho, e não dizem nada. É seu corpo, são seus gestos, suas mãos, seus olhos, seu silêncio... que falam por elas. A linguagem delas é a linguagem do encontro solidário. Se elas podem permanecer nessas circunstâncias, é porque amaram muito. Elas nos falam de resistência e de fidelidade, de uma presença comovedora. Estão juntas, expostas a outros olhares, como comunidade de discípulas em torno a seu Mestre, que lhes ensina, agora sem palavras, uma sabedoria muito maior.
- Em meio à impotência, elas não se afastam da dor experimentada ao ver sofrer a quem mais se ama, senão que se expõem ao olhar d’Aquele cujo rosto foi desfigurado.
Sobem com Ele ao lugar do abandono e da ingratidão, levantando uma ponte de proximidade e de solidariedade que cruza a totalidade da vida de Jesus.
Elas acompanharam a vida de Jesus muito de perto, “à sombra”, e agora, a morte d’Ele lança uma forte luz sobre elas, tornando-as visíveis para que todos saibam quem são elas.
Elas têm a coragem de permanecer ali, acolhendo o acontecimento em toda sua crueldade e profundidade; elas estão de pé, enquanto outros desistiram ou se afastaram assustados.
Daqui para a frente elas se tornarão pedagogas de um encontro que gera humanidade; elas estenderão suas mãos sobre os necessitados, com o mesmo desejo com que Jesus as estendeu, para tocar voluntariamente as pessoas enfermas, selando uma aliança, um “pacto de ternura”, com todos os desprezados e excluídos.
- Através da contemplação, entre no caminho com Jesus, até o Calvário (cap 19 de João). Olhe as pessoas, escute o que elas dizem; observe as diferentes reações das pessoas: os soldados, as mulheres, Pilatos, a multidão... Basta estar presente, silenciosamente, deixando-se afetar pelas cenas e pelas atitudes das pessoas diante de Jesus, com a Cruz às costas.
- Faça seu colóquio a Jesus, o homem da fidelidade ao Projeto do Reino em favor da vida. Ele doa vida para que todos tenham mais vida.
- Finalize sua oração, rezando “Alma de Cristo”.
- Registre no caderno os apelos, moções... que brotaram da oração
Pe. Adroaldo Palaoro sj
02.04.2021
QUINTA-FEIRA DA SEMANA SANTA
Lava-pés: para uma “Igreja da toalha”
+ Prepare sua oração, ativando uma disposição interna para viver o Mistério do Lava-pés.
- Dê especial atenção às “adições”: lugar, posição corporal, pacificação interior, consciência de estar diante de Deus...
+ Faça sua costumeira oração preparatória, bem como a composição vendo o lugar, a petição da graça...
+ Mobilize seus sentidos para que eles o ajudem a fazer uma contemplação; os “pontos para a oração”, indicados abaixo, podem preparar o terreno interior para acolher o gesto ousado de Jesus no Lava-pés:
- O gesto do “lava-pés” é exemplar para todo(a) seguidor(a) de Jesus Cristo; constitui um dos gestos mais expressivos da missão e da identidade para aqueles que exercem algum serviço em sua comunidade. É revelação e ensinamento. É amor e mandamento. É gesto-vida, gesto-horizonte, gesto-luz...
A cena do lava-pés revela profundidade e delicadeza, mútuo dom e acolhimento, comunhão e pressentimento. É um gesto profético, repleto de generosidade e de humildade.
Jesus deixa transbordar os segredos de seu coração. Ele revela o rosto de Deus, que é Amor.
Não se pode amar alguém e olhá-lo de cima. Não se trata também de se “humilhar”, de se colocar “abaixo” de seus pés, mas de cuidar de seus pés para que esse alguém possa se manter de pé, para que ambos possam estar face a face e caminhar juntos.
- Jesus sabia que seus discípulos tinham pés frágeis, pés de argila. Amar alguém não é querer que ele fique deitado a seus pés, mas é querer que ele se mantenha de pé, na plenitude de sua grandeza. Amar alguém é querê-lo com os pés “livres, leves e soltos”. Lavar os pés é gesto de humanização e gesto humanizante. É devolver ao outro a dignidade e capacidade de dar destino à sua vida.
Jesus está no meio das pessoas como Aquele que serve; por isso “despoja-se do manto” (sinal de dignidade do “senhor”) e pega o avental (toalha, “ferramenta” do servo). É o Senhor que se torna “servo”. O amor-serviço tem como primeiro símbolo o avental.
“Despojar-se do manto” significa “dar a vida” sob a forma de serviço.
Jesus coloca toda a sua pessoa aos pés dos seus discípulos. O Criador põe-se aos pés da criatura para revelar como ela é amada e como deve amar.
A cena é fortemente simbólica: Jesus continua sendo sempre aquele que serve.
A partir de então, o lava-pés passa a ser o “modo de proceder” ou o “estilo de vida” da comunidade dos seus seguidores.
“Tal Cristo, tal cristão”: na vivência do serviço evangélico, somos chamados a vestir o “avental de Jesus”. “Vestir o coração” com o avental da simplicidade, da ternura acolhedora, da escuta comprometida, da presença atenciosa, do serviço desinteressado...
“Tirar o manto” é a atitude firme de quem se dispõe a “arrancar” tudo aquilo que impede a agilidade e a prontidão no serviço (nossa redoma, nossa máscara, nossa capa de proteção); é mover-nos, despojado, em direção ao outro; é optar pela solidariedade e a partilha; é renovar a vontade de “incluir” o outro no nosso próprio projeto de vida.
- Precisamos “levantar-nos da mesa” cotidianamente. Há sempre um lar que nos espera, um ambiente carente, um serviço urgente. Há pessoas que aguardam nossa presença compassiva e servidora, nosso coração aberto, nossa acolhida e cuidado...
Sempre teremos “pés” para lavar, mãos estendidas para acolher, irmãos que nos esperam, situações delicadas a serem enfrentadas com coragem...
Sempre teremos, também, a necessidade de nos “sentar à mesa” para renovarmos as forças e redo-brarmos a coragem de nos levantar e, na humildade, sem manto, servir com amor, do jeito de Jesus.
“Levantar-nos da mesa” – “sentar-nos à mesa”: movimento de partida e de chegada; prolongamento do gesto provocativo e escandaloso de Jesus.
+ Na contemplação do Lava-pés (Jo 13,1-17), observe silenciosamente os gestos de Jesus, pois todos eles possuem uma sacralidade própria, uma reverência, uma paz e calma especial. Não há pressa, não há agressividade, não há nada que possa dar a mínima aparência de algo que fosse obrigado.
+ “Levantou-se da mesa”: gesto que nos revela que não se pode servir permanecendo no comodismo. O gesto de levantar denota que há algo por ser feito.
+ “Ficar de pé” é posição que expressa prontidão para servir; para isso é preciso deslocar-se do próprio “lugar” e descer até o “lugar” do outro. É desinstalar-se do próprio bem-estar, é dinamismo. “Estar à mesa” é sempre sinal de fraternidade, de comunhão, mas é necessário saber levantar-se na hora certa para poder servir com amor.
+“Tirou o manto”: Ele mesmo se despoja. Abrir mão do manto é uma iniciativa livre e soberana, que nasce de seu próprio interior. O manto impede a liberdade de movimentos, não permite fazer o serviço com facilidade. Há “mantos” que são sinais de poder.
O Senhor assume, em tudo, a condição de servo, para servir. Troca o manto pela toalha-avental: este parece ser o distintivo fundamental, divisor de águas entre a religião antes e depois de Jesus Cristo. Não há serviço sem se despir de todas as aparências de poder, de força, de prestígio.
+“Colocou água numa bacia...” Jesus assume os preparativos, não faz trabalho pela metade. A água derramada não é feita com violência, nem com força, mas com extrema delicadeza, com atenção e amor.
+ “...e começa a lavar os pés dos discípulos e a enxugá-los com a toalha”.
Jesus inclina-se aos pés dos seus discípulos, até o chão, com reverência, cuidado, acolhida, sem fazer distinção de ninguém. Lava os pés de todos igualmente.
+ “Depois... voltou à mesa...” Jesus volta ao lugar em que estava antes, mas volta diferente. Ele repõe o manto, mas não depõe a toalha-avental. Ele assume e visibiliza uma nova realidade que caracteriza o novo modo de ser, que é próprio dos cristãos.
- Depois de contemplar com “todo acatamento” os gestos de Jesus, converse com Ele sobre a sua admiração e sobre o seu desejo de prolongar estes mesmos gestos no seu cotidiano.
Traga à memória as pessoas que você precisa lavar os pés...
- Revele sua gratidão para esta experiência tão íntima e tão intensa.
- Registre no seu caderno as “moções” mais fortes experimentadas na oração.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
31.03.2021
QUARTA-FEIRA DA SEMANA SANTA
“Em tua casa vou celebrar a Páscoa...”
+ Prepare-se para viver este momento denso da Última Ceia; por isso, disponibilize todo seu ser (sentidos, razão, afetividade, coração) para “sentir e saborear” este Mistério.
+ Um cuidado especial com os preâmbulos: oração preparatória, composição vendo o lugar, petição da graça...
+ Leia os “pontos para a oração”: isso pode ajudar a aquecer o coração para viver mais intimamente o encontro com o Senhor que está às portas de sua Paixão.
- Mais uma vez a liturgia nos convida a “fazer memória” desta Ceia tão especial. Jesus havia transitado por muitas refeições, participado de muitas mesas (especialmente com os pobres e pecadores) e agora Ele nos deixa uma “mesa” como marca dos seus seguidores. Mesa da partilha e da inclusão, mesa da festa e da comunhão.
É em torno a esta mesa que os seguidores de Jesus se constituem como verdadeira comunidade. Ao recordar a vida, paixão, morte e ressurreição de Jesus, os cristãos se comprometem a prolongar os Seus gestos, atitudes, valores, compromissos... “Fazer memória” de Jesus junto à mesa é comprometer-se com a vida; é colocar a própria vida a serviço da vida.
- Jesus quer cear com os seus amigos e por isso precisam encontrar uma sala na qual haja espaço para estar juntos. O ritual pascal dá lugar aos gestos simples que se fazem entre amigos: partilhar o pão, beber da mesma taça, desfrutar da mútua intimidade, entrar no clima das confidências...
Sua relação com eles vinha de longe: levavam longo tempo caminhando, descansando e tomando refeições juntos, partilhando alegrias e rejeições, falando das coisas do Reino.
Jesus sempre buscou companhia; havia nele uma necessidade irresistível de contar com os seus como amigos e confidentes.
E continuará considerando-os como amigos, mesmo quando um deles irá traí-lo e os outros fugirão.
- Chama-nos a atenção, no Evangelho proposto para hoje, a maneira como Jesus indicou aos discípulos o local onde queria que a Ceia fosse celebrada. Jesus mandou-os seguir um homem que encontrariam à entrada da cidade. Junto a personagens conhecidos nos Evangelhos, outros, sem rosto, nem identidade, nem protagonismo, surgem inesperadamente, deixando sua “marca”, como o desconhecido homem que emprestou sua casa para que Jesus e seus discípulos pudessem celebrar a Páscoa.
Anônimo perante a posteridade, sem nome, porque era seguido pelos que vinham atrás dele, este homem, de certo modo e do modo certo, serviu a Cristo como a Igreja deve serví-Lo, sem perguntar qual seria seu lugar à mesa.
O que teve lugar dentro de sua casa, transformada no mais importante templo material da história humana, seria mais do que suficiente para arrancar dele alguma expressão de vaidade capturada pelo evangelista. Mas não. Não é isso que acontece na História da Salvação.
- Aquele homem desconhecido, representa a todos nós; cabe-nos mostrar o caminho do local da Ceia, cabe-nos palmilhar, sobre as pedras do cotidiano, o rumo que leva à casa do Pai.
E devemos fazer com que outros nos sigam, para que se cumpra tudo que foi instituído.
Orientadores do povo de Deus, abrimos as portas da grande sala e a confiamos ao Mestre para que realize ali o imenso dom da Eucaristia, “como aquele que serve”.
- Ontem o evangelho falou da traição de Judas e da negação de Pedro. Hoje, fala novamente da traição de Judas. Na descrição da paixão de Jesus do evangelho de Mateus acentua-se fortemente o fracasso dos discípulos. Apesar da convivência de três anos, nenhum deles ficou para tomar a defesa de Jesus. Judas traiu, Pedro negou, todos fugiram. Mateus conta isto, não para criticar ou condenar, nem para provocar desânimo nos leitores, mas para ressaltar que o acolhimento e o amor de Jesus superam a derrota e o fracasso dos discípulos!
- Podemos destacar duas dimensões na Paixão: uma acontece no grupo interno (traição, negação, busca de poder, incompreensão da missão...); isso provoca profundo sofrimento em Jesus. A outra paixão é provocada pela oposição, perseguição externa... Geralmente ficamos impactados com os sofrimentos físicos cometidos pelos opositores. O sofrimento interno não é visível, mas é maior.
- Jesus faz questão de se confraternizar com o círculo dos amigos, do qual Judas faz parte. Estando todos reunidos pela última vez, Jesus anuncia quem é o traidor. É "aquele que comigo põe a mão no prato". Esta maneira de anunciar a traição acentua o contraste. Para os judeus a comunhão de mesa, colocar juntos a mão no mesmo prato, era a expressão máxima da amizade, da intimidade e da confiança. Mateus sugere assim que, apesar da traição ser feita por alguém muito amigo, o amor de Jesus é maior que a traição!
- Quê aconteceu no coração de Judas nessa noite da Última Ceia? Rodeado de um mundo de mistério, de um clima de bondade, de amor e salvação, e, no entanto, o coração de Judas está em outro lugar. Está impermeável à verdade que se celebra; está seco em seu interior, fechado ao mistério da graça.
Mateus deixa entender que nós podemos romper com Jesus, mas Jesus nunca rompe conosco. O seu amor é maior do que a nossa infidelidade. Esta é uma mensagem muito importante que colhemos do evangelho durante a Semana Santa.
+ Leia atentamente o relato do Evangelho indicado para hoje: Mt 26,14-25
+ Prepare-se para uma contemplação. Com a imaginação, faça-se presente à cena, indo com os discípulos para preparar o ambiente da Última Ceia.
- Procure ativar todos os sentidos: olhe as pessoas da cena, escute o que elas dizem, observe o que elas fazem, saboreie o pão e o vinho dados a você por Jesus...
- Participe, com alegria, deste evento único; deixe-se afetar por tudo o que acontece durante a refeição. Reserve um momento de colóquio com Jesus, expressando a Ele seus sentimentos.
- Finalize sua oração, manifestando profunda gratidão. Depois, registre no caderno de vida as experiências e sentimentos vividos neste momento.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
31.03.2021
TERÇA-FEIRA DA SEMANA SANTA
A despedida com rosto de ternura
+ Busque criar um ambiente propício para a oração deste dia: espaço externo, atitude interna, silêncio... para viver mais intensamente os “momentos finais” da vida de Jesus.
+ Faça a oração preparatória (de entrega), a composição vendo o lugar (a última Ceia), e peça a Deus a graça de participar dos sentimentos de Jesus, às vésperas de sua morte.
+ Leia as “indicações” abaixo como ajuda para “entrar em contemplação”:
- Estamos na terça-feira da Semana Santa, às vésperas da execução de Jesus. Como ontem, somos convidados a participar de outra ceia de despedida. A ceia de Betânia foi rica em símbolos de amor, de amizade, de festa..., um esbanjamento de humanidade. A ceia de hoje (em Jerusalém) é marcada por uma comoção profunda, onde Jesus se vê traído, vendido, enganado e abandonado por aqueles que juravam fidelidade e amizade profunda. Esta noite, Jesus começou a sentir que estava sozinho. É o sentimento mais duro e doído que alguém pode passar.
Jesus está celebrando a última ceia com os seus discípulos; tinha acabado de lavar os pés deles e de ter falado do dever que temos de lavar os pés uns dos outros. Judas já tomou a trágica decisão, e depois de tomar o último pedaço de pão das mãos de Jesus, saiu para cumprir sua traição.
- Na contemplação da Última Ceia, um personagem vem sempre à nossa lembrança: Judas Iscariotes. Reagimos negativamente frente sua traição a Jesus, mas no fundo ele nos causa repulsa porque é projeção das nossas infidelidades e traições. Ele é o espelho no qual nos vemos.
Mas... o que vem a ser a traição? Como ela se manifesta na nossa vida? Por que traímos a confiança do outro?
O ato de trair implica romper uma aliança que uma pessoa fez com outra. Trair é uma ação que implica consequências, e, quando se fala de relacionamento humano, envolve sofrimento e sensação de abandono, gerando um estado de desconfiança generalizada naquele que foi traído.
Traição dói na proporção inversa da distância. Quanto mais próxima se sente a pessoa traidora, tanto maior a dor do traído. A traição se situa no mundo das amizades, das vinculações afetivas intensas, das ligações íntimas, das proximidades de vida.
- Judas se tornou o símbolo da traição porque fazia parte do grupo íntimo dos apóstolos. Foram anos de convivência nas mesmas caminhadas, nas noites ao relento, nas pregações, nas refeições simples do dia-a-dia e nas festas. Jesus e Judas viviam elos de amizade, de confiança, de esperança entre si.
De repente, rompe-se tal aliança e Judas entrega Jesus aos adversários.
Com a traição, Judas passou da amizade para a decepção, para a desilusão, para a perda de vinculação até a entrega. Processo lento que foi minando o seu coração, até que ele se corrompeu, a ponto de renegar a amizade e trair.
- Quando Jesus, na Última Ceia anuncia que um deles vai lhe entregar, todos ficam “assustados”, “olham-se mutuamente”, mas não conseguem identificar o traidor.
Os traidores não têm um rosto especial; qualquer rosto vale para dissimular a traição do coração; qualquer rosto vale para esconder um coração traidor.
Judas, em nada dava sinais de ser diferente do restante dos discípulos. Por isso ninguém se atreveu a acusá-lo de traidor. Parecia tão normal como qualquer outro do grupo.
É que as traições são alimentadas e escondidas no coração; as traições não têm rosto, não são visíveis. Por isso mesmo, os traidores, são tão difíceis de serem reconhecidos. Caminham como todos. Comem como todos. Sorriem como todos. Têm cara de amigo mas, por dentro, carregam um coração vende-dor de vidas, de dignidades.
- Poucas experiências destroem tanto alguém por dentro como a traição.
Quem traiu e quem foi traído assume reações semelhantes, como esvaziamento da afetividade, sensação de inutilidade vital, desorientação, perda do sentido da própria existência, angústia, pânico, fobias e medos generalizados diante das pessoas e do mundo. A traição desmonta a esperança no outro ser humano e leva à descrença na existência do amor. A traição tira do ser humano sua capacidade de dar respostas à vida, de envolver-se num projeto e num ideal maior, que ultrapasse o valor de sua própria vida.
- Pensemos em tantos “Judas institucionalizados” que exploram as pessoas, alimentando uma “cultura
de morte”; pensemos nos “pequenos judas” que carregamos dentro de nós, na hora de eleger entre
lealdade e interesse, entre gratuidade e dureza de coração. “Cada um de nós tem a capacidade de trair, de vender, de só optar em favor do próprio interesse. Cada um de nós tem a possibilidade de deixar-se seduzir pelo amor ao dinheiro, pela busca de poder. Judas, onde estás? É a pergunta que faço a cada um de nós” (Papa Francisco).
+ Leia atentamente o Evangelho da liturgia de hoje. Jo 13,21-33.36-38
+ Comece a contemplação ativando todos os seus sentidos, para poder participar intensamente da cena.
+ Faça-se e sinta-se presente na sala da Última Ceia, como um “humilde servidor”: observe o ambiente preparado, a disposição da mesa, o jarro e a bacia para o lava-pés, os pães ázimos, ervas amargas, vinho...
+ Centre sua atenção na chegada de Jesus e seus discípulos; observe as feições de cada um deles, tomando lugar à mesa... Procure escutar o que estão dizendo...
+ À meia-distância, observe a seriedade do momento, escute as palavras de Jesus ao tomar o pão e o vinho... Sinta-se desconcertado quando Jesus anuncia que um do grupo vai ser o traidor. Veja as reações dos discípulos, a tristeza de Jesus...
+ Diante de “Jesus traído”, recorde experiências pessoais de traição: quando foi traído? Quando traiu? Como se sentiu?
+ Passe um bom tempo nesta sala, onde está acontecendo um evento histórico e essencial para os seguidores de Jesus: a instituição da Eucaristia. Participe também você da refeição.
+ No final da oração dê graças por poder participar deste momento.
- Faça exame da sua oração e registre no “caderno de vida” os movimentos (moções) do coração.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
30.03.2021
imagem: The_Treachery_Of_Judas
“Quando se aproximaram de Jerusalém na altura de Betfagé e de Betânia, junto ao monte das Oliveiras... (Mc 11,1)
Galiléia foi a primeira decisão importante que Jesus tomou no início de sua vida pública.
Ele viu claramente que o melhor lugar onde Ele poderia e deveria comunicar sua mensagem era, precisamente fazer-se presente nos povoados, nas pequenas vilas, nos campos e à beira-mar, lugares habitados por humildes camponeses e pescadores, pessoas pobres e marginalizadas, doentes e excluídas.
O fato é que Jesus, para realizar sua missão como Messias, não se dirigiu à capital, Jerusalém, nem à importante província da Judéia. Para comunicar uma “boa notícia” à sociedade de seu tempo, não buscou conquistar para si os notáveis e as classes abastadas, nem procurou os postos de privilégios, nem o favor dos mais influentes e, muito menos, os que detinham o poder e o dinheiro nos grandes centros urbanos.
No entanto, Jesus, presença de vida nos povoados, vilas e campos, quis também levar vida a uma cidade que carregava forças de morte em seu interior. Ele quis pôr o coração de Deus no coração da grande cidade; desejava recriar, no coração da capital, o ícone da nova Jerusalém, a cidade cheia de humanidade e comunhão, o lugar da justiça e fraternidade...
A situação pandêmica do Covid 19 que estamos vivendo fez emergir a situação camuflada de um distanciamento humano. O isolamento sanitário e a decretação de “lockdown” em muitas cidades pôs às claras esta dura realidade: já levamos anos praticando o distanciamento político, a polarização religiosa, o enfrentamento de extremos, a separação ideológica, a distância como meio para nos fechar em nossas posições fanáticas, preconceituosas e intolerantes, o esvaziamento do diálogo... Uma voz surda sempre esteve presente: devemos nos separar dos outros, daqueles que pensam diferente, sentem diferente, vivem diferente, assumem posições e opções diferentes...
Não podemos deixar que a atual crise sanitária acentue mais ainda os diferentes distanciamentos que estavam escondidos, mas que agora vieram à tona com mais força. As nossas cidades estão se revelando, cada vez com mais intensidade, como espaço de grandes rupturas e violências, lugar de exclusão e isolamento, visibilização de uma desumanização trágica.
Também os muros estão voltando à moda. Há em todo ser humano uma tendência a cercar-se de muros, a encastelar-se, a criar uma rede de proteção. Os muros, no interior das cidades, são muito concretos: muros sociais, religiosos, políticos, culturais... Com tantos muros é impossível construir pontes de diálogo e reconciliação.
A vivência do seguimento de Jesus Cristo implica romper a bolha que asfixia a vida e derrubar os muros que cercam o coração, atrofiando a própria existência.
Somos chamados a uma pertença pessoal cada vez mais ampla, até sentir-nos parte da “Jerusalém” que sonhamos. Precisamos de fronteiras, sim, mas que sejam fronteiras abertas ao diálogo, flexíveis, fluidas, acolhedoras do diferente...
Esta capacidade humana de dialogar com o outro diferente, quebrar distâncias e deixar que a própria vida seja questionada pelo outro é a qualidade maior daqueles que alargam suas fronteiras e não se deixam dominar pelo medo e pelo preconceito.
O diálogo com todos é verdadeiramente o único modo para superar os desafios que temos diante da diversidade de ideias, visões, modos de ser e viver.... Quando nos encontramos, nos revelamos como pessoas vivas que tem imaginação, criatividade, sonhos..., e isso nos faz crescer e viver um humanismo mais aberto.
As pessoas e os povos de todos os tempos e lugares trazem, como que enraizados nas fendas mais profundas de sua alma, sonhos de rara beleza. São desejos de construção de uma nova Jerusalém, a cidade humanizada, ou seja, espaço da acolhida, da convivência, do diálogo aberto, da fraternidade e dos encontros... Era certamente nessa direção que Jesus apontava, ao se dirigir a Jerusalém como a cidade das esperanças e possibilidades.
Não nos sobram muitas outras oportunidades de transformar este sonho em realidade. Vivemos na distância, necessária no momento, mas não façamos dela nosso estilo de vida; não devemos convertê-la em meio que determine o que somos. Somos chamados a ser algo mais que compartimentos estanques e seguros, isolados. Podemos ser “praça comum” de encontro e diálogo, de mãos estendidas e ouvidos atentos para dar forma a isso que tanto precisamos: sentir-nos próximos uns dos outros.
Podemos recordar o constante convite de Jesus a provocar encontros e diálogos que ajudem a integrar, a re-unir, a re-ligar, a articular o tecido comunitário. Há tantas vidas esparramadas, isoladas, rejeitadas..., esperando por sinergia. Na verdade, Ele provocou as pessoas a saírem de seu isolamento e padrões alienados de relacionamento para expandir-se em direção a uma nova forma relacional com tudo o que existe; tal relação é a concretização do sonho do “Reino de Deus”.
Nossa vocação é a de construir pontes e ser presença reconciliadora em situações de fronteira, colocando nossas energias, nossa formação, nossa vida a serviço... para criar, alimentar e sustentar os laços humanos, relações sociais, estruturas sociais, políticas e econômicas que tornem possível o diálogo, a solidariedade e o encontro entre todos os seres humanos e aponte para uma nova cidade, fraterna e justa.
Esta é a dura contradição que estamos vivendo: se estar separados fisicamente de nossos seres queridos e vizinhos é o mais eficaz para combater a pandemia, precisamos, então, buscar outras expressões de proximidade para que essa distância não se converta em ecossistema e modo de vida. A distância sanitária não pode servir de cortina de fumaça para reforçar as distâncias sociais e religiosas, no interior dos grandes centros urbanos.
Isso pede de todos nós uma atitude de abertura e de deslocamento frente ao outro, o que implica colocar-nos em seu lugar, deixar-nos questionar e desinstalar por ele... Importa, pois, redescobrir com urgência o encontro dialogal como valor ético e como hábito permanente de vida.
Somos chamados a viver o diálogo como um estilo de vida, fundado no modo de viver de Jesus.
O diálogo, que nos faz sair de nós mesmos, nasce da compaixão e nos leva a reconhecer no outro uma dignidade e uma capacidade criativa para superar toda divisão e conflito
A paixão pelo Reino nos mobiliza a levar adiante a missão, a ir aos lugares onde há mais necessidade e ali realizar obras duradouras de maior proveito e fruto.
O(a) discípulo(a) missionário(a) não é aquele(a) que, por medo, se distancia de sua cidade, mas é aquele(a) que, movido(a) por uma radical paixão, desce ao coração da realidade em que se encontra, aí se encarna e aí revela os traços da velada presença do Inefável; a cidade já não é percebida como ameaça ou como objeto de domínio, mas como dom pelo qual Deus mesmo se faz encontrar. A cidade não é lugar da exploração e da depredação, mas é o lugar da receptividade, da oferenda e do diálogo inspirador.
Texto bíblico: Mc 11,1-10
Na oração: O gesto profético de Jesus de “entrar em Jerusalém” nos convida a contemplar nossas cidades e nos desafia ser presença evangélica, transformadora, portadora de vida nos nossos grandes centros urbanos.
A cidade é o lugar por excelência do discernimento, porque é o espaço de decisão onde se constrói o futuro comum. Lugar da política, da cultura, da educação, da saúde... onde se forjam as mudanças, a capacidade de criar novos modos de existir, de romper com as estruturas que desumanizam e buscar o diferente, o novo, o desconhecido...
* Como ser portador de Boa Notícia nas grandes cidades?
* Como ser sinal de comunhão e do Amor misericordioso do Deus da Vida?
* Como transformar a vida das grandes cidades?
Pe. Adroaldo Palaoro sj
25.03.2021
imagem: pexels.com
“Quem se apega à sua vida, perde-a” (Jo 12,25)
Estamos chegando ao final do tempo quaresmal; abre-se a porta para a intensa vivência Pascal. Percorremos este caminho vivo de jejum, esmola e oração, centrados na pessoa de Jesus, para aprender d’Ele como viver de maneira mais oblativa, aberta, solidária... Tem sido um caminho de intensidade humana? Temos colocado o tom de nossa fé na direção da Páscoa?
O final da quaresma é tempo de olhar para trás com muita gratidão; tal atitude nos capacita para continuar olhando para frente, subindo com Jesus e seus discípulos a Jerusalém. Sempre há oportunidade para consoli-dar nossa vida e enraizar nossa fé. Não permitamos que continuemos passando o tempo como se nada surpreendente pudesse acontecer!
À luz da Páscoa somos movidos a re-inventar continuamente a nossa vida. Há uma outra forma de vida que subjaz debaixo daquela que levamos cada dia: uma vida mais calma, mais consciente, mais autêntica; uma vida de pequenas coisas, de gestos carregados de ternura, de rotinas habitadas que são vividas como novidade, de silêncios que dançam com as palavras...
“Inventar”, vem da expressão latina “inventio-onis” que significa “encontrar algo” que até agora não se havia descoberto; inventores são aqueles que descobrem algo até então oculto.
Por detrás da pandemia, está sendo oferecida a todos nós uma “mudança de rumo na humanidade”. Estamos sendo forçados a quebrar o ritmo estressante e apressado que levávamos; nosso planeta respira, nossas cidades estão se purificando de tanta contaminação acumulada; estamos encontrando formas novas de trabalho e de educação escolar; estamos ficando mais sóbrios, contentando-nos com o necessário; temos descoberto outra forma de inter-relação e de mais intensidade no amor...
O apelo de Jesus, no evangelho deste domingo, é para “perder” nossa vida, no sentido de não nos apegar de maneira egóica a ela e abrir-nos para recebe uma Vida maior, nossa verdadeira vida, a Vida de Deus em nós. Precisamos nos destravar, abandonar nossas medidas de segurança, libertar-nos do domínio cego do ego, para que possa transparecer o que realmente somos, nossa dignidade mais profunda. Não é o autocentrar-nos que confere dignidade à existência, mas o descentrar-nos e deslocar-nos em favor dos outros.
Aquele que “se apega à sua vida”, ou seja, aquele que quer estar bem, não quer ter compromissos, não quer se envolver com as situações exigentes, quer estar à margem da realidade que pede uma presença diferente..., esse “perderá sua vida”. Quê vida mais atrofiada quando se vive bem comodamente, bem tranquilo, bem instalado, bem relacionado politicamente, economicamente, socialmente...!
Mas aquele que, por amor ao Reino, se desinstala, acompanha o povo, se solidariza com o sofrimento do pobre, encarna-se e faz sua a dor do outro... esse “ganhará” a vida. Sua vida transformar-se-á em Vida. Libertam o mundo todos aqueles e aquelas que fazem de suas vidas uma doação, um oferecimento. Assim, se deixam atravessar por Deus, puro Dom de Si, Amor que não se reserva a Si mesmo.
É gratificante fazer memória de tantos homens e mulheres que foram presenças de misericórdia e, à maneira de Jesus, consumiram suas vidas em favor da vida; histórias silenciosas de tantas pessoas que com seu compromisso ajudaram os outros a viver; pessoas que revelaram a paixão por viver em pequenas paciências cotidianas, que entregaram suas vidas sem aparecer nas “redes sociais”, sem vozes que as proclamassem; foram como o fermento silencioso que se dissolve na massa para fazê-la crescer.
“Se o grão de trigo não morre”, ou seja, se o ser humano não faz de sua vida um dom para os outros, se ele não investe a sua vida em favor da vida, acaba perdendo-se a si mesmo. Esta é a mensagem radical deste quinto domingo da quaresma: “morrer de vida”, não de morte, morrer fazendo que outros vivam, numa efusão de amor. Trata-se de “morrer de tanto viver”, nas diferentes dimensões da vida: individual, familiar, comunitário, social... Esse é o sentido da Cruz cristã: não é cruz vazia, nem um “peso morto”. É perda que se converte em ganho.
Sabemos que, à medida que nosso ego aumenta, ele se distancia da vida dos outros e só se ocupa em conservar a sua, buscando saciar sua fome devoradora para conquistar, acumular, ser o centro...
Isso lhe faz perder a capacidade de assombrar-se e de deixar-se afetar pela alegria e pela dor dos outros; tudo se converte em meio e instrumento para sua própria gratificação. O auge da afirmação de si mesmo se contrasta com a afirmação de Jesus, vista como aberração humana: “aquele que se apega à sua vida, perde-a”. Qual é a pérola de grande valor que se oculta nesta afirmação? Onde nos quer conduzir Jesus?
É um fato central de nossa existência que a própria vida, por mais valiosa que seja, não se encontra sob nosso controle. Então precisamos nos soltar, deixar de apegar-nos a nós mesmos, abrir as mãos, abandonar nossa autoafirmação, para que Deus possa entrar e atuar livremente em nosso interior.
Jesus recorre a uma brevíssima parábola, para fundamentar isso. Só o grão de trigo que morre dá muito fruto. Esta parábola apresenta mais uma vez, e de outro modo, a lição fundamental do Evangelho inteiro, o ponto máximo da mensagem de Jesus: o amor oblativo, o amor que se entrega a si mesmo, e que nesse perder-se a si mesmo, nesse morrer a si mesmo, gera a vida.
O ser humano se caracteriza por ser capaz de amar, por ser capaz de sair de si mesmo e entregar sua vida ou entregar-se a si mesmo por amor. A humanização ou hominização seria esse “descentramento” de si mesmo, que é centramento nos demais e no amor. A parábola do grão de trigo que morre expressa o ponto máximo dessa maturação da Humanidade; tanto é verdade que pode ser considerada como uma expressão do cume do amor. No fundo, esta parábola equivale ao mandamento novo: “Este é o meu mandamento, que vos ameis uns aos outros como eu vos amei; não há maior prova de amor que dar a vida” .
As palavras de Jesus têm também aqui a pretensão de síntese: aí se encerra toda a mensagem do Evangelho. E, na realidade, aí se encerra também toda mensagem religiosa, pois também as outras religiões chegaram a descobrir o amor, a compaixão, a solidariedade, o “des-centramento” de si como a essência da religião.
Jesus é a expressão máxima da humanidade que busca e deixa emergir o melhor que há em seu interior.
A vida é constantemente chamada a ser Páscoa. Porque na vitória da Vida entregue, a vida ganha sentido, avança, como uma torrente que rega terras secas, ávidas de água, como um fogo que, na noite mais escura, traz uma luz que permite vislumbrar a vida oculta.
A vida não se conta pelas respirações, mas pelos momentos de assombro, de alegria e encantamento. Ela tem a dimensão do milagre e carrega no seu interior o destino da ressurreição.
A vida, desde o mais íntimo da pessoa humana, deseja ser despertada e vivenciada em plenitude. A certeza de nossa fé em Cristo morto e ressuscitado nos ajuda a ir tirando do coração os medos, os impulsos egoístas de busca de segurança e imortalidade, e ir encontrando uma paz profunda que nos permita fazer de nossa vida uma oferenda gratuita para a vida de outros.
Texto bíblico: Jo 12,20-33
Na oração: Se o grão de trigo não cai na terra e não morre, fica estéril. O grão de trigo precisa entregar-se, enterrar-se, perder-se... para ser fecundo. Desate a Vida de Deus que já está em você!
- Você sente resistência em fazer de sua vida uma contínua oferta em favor da vida, nos pequenos gestos de cada dia ou nos grandes momentos decisivos?
- Você captou que o centro da mensagem do evangelho é fazer da vida uma contínua doação por amor? Está disposto(a) a aceitar essa “morte” para viver mais plenamente?
- Sua prática cristã se reduz a cumprir ritos, devoções, práticas piedosas... ou se expressa na vivência do encontro e do diálogo amoroso, como pede a Campanha da Fraternidade deste ano?
Pe. Adroaldo Palaoro sj
18.03.2021
Enchemo-nos de alegria, é a quarta parada em nossa caminhada quaresmal! Mais uma vez somos convocados à liberdade, refazendo a memória de nosso batismo. Começamos acompanhando Jesus no deserto, enfrentando tentações. Subimos com ele ao monte para contemplar a luz da humildade e do serviço. Com ele, fomos ao templo e descobrimos que a Casa do Pai não é um empório, mas diálogo e fraternidade. Hoje, aqui estamos, para pedir em meio à escuridão (divisão e confusão), que ele nos ensine a não lamentar débitos nem exigir créditos; a reconhecendo, com São Paulo, a divina misericórdia, graça que nos faz viver (conforme Efésios 2,4-10)!
Esta é a boa notícia que nos apresenta a comunidade em João (3,14-21): nosso Deus é um Deus apaixonado, que se manifesta perdoando em diferentes circunstâncias e por diferentes motivos: aos judeus, exilados, proporcionando-lhes retorno para a terra da promessa (conforme o Segundo Livro das Crônicas 36,14ss); aos efésios, por compaixão universal, incorporando-os ao Cristo Ressuscitado nas boas obras e fé (segundo a Carta aos Efésios, 2,4-10); ao mundo e à humanidade toda, não condena mas oferece vida plena (que pode ser aceita ou rejeitada) ao aderirmos à vida de Jesus (Evangelho)!
Não mais aquela imagem de um juiz implacável, impassível, sem coração, pronto a defender a lei e a dizer sentenças irreversíveis... Outro é o rosto divino que Jesus nos revela: compassivo, Deus-conosco, entrega-nos seu Filho jamais para condenar o mundo, afirmando claramente que deseja conduzi-lo à vida verdadeira. É a gratuidade do amor de Deus que nos liberta. Eis o que precisamos experimentar e testemunhar: o Evangelho do diálogo e da solidariedade, sobretudo no contexto de indiferença letal, temperada de intolerância, ignorância e violência, que vivemos hoje no Brasil. Em meio à escuridão procuramos a luz, como Nicodemos buscou a Jesus!
Depois da cena impetuosa em que Jesus expulsa os mercadores do templo; o quarto evangelho, no terceiro capítulo, nos conta o encontro íntimo e reservado que acontece entre os dois: o Mestre e o Fariseu, um Profeta e um Legalista, um galileu e um judeu, um corajoso e um receoso... Numa conversa tecida de contrastes: alto e baixo, reino e império, céu e terra, novo e velho, nascer e morrer, vento e carne, descer e levantar, salvar e condenar, luz e trevas, vida e morte... Temos em poucas palavras, o essencial da fé: Deus é o amante que salva dando sua vida.
Palavra decisiva, que deveríamos saborear a cada dia, para desta maneira, nascer de novo, nascer do alto. Olhar para aquele que aceita a vontade do Pai e é elevado entre a terra e o céu para a tudo e todos atrair... Como Moisés que, cumprindo a vontade de Deus, da realidade da morte fez um sinal de cura e vida! A fonte da cura e da vida é o amor manifesto de Deus por nós em seu Filho. Hoje somos convocados a reconhecer nossa fonte: o céu, o Espírito, o ser divino... Viver uma vida com maior intensidade e qualidade, ver nossa existência de uma perspectiva nova, de uma fenda aberta no Céu, para discernir o que é passageiro e o que, pelo contrário, é eterno, definitivo.
Nicodemos, como nós, tem grande estima por Jesus e quer saber mais, mas não ousa comprometer-se, indo ao seu encontro à noite. Para nossa surpresa, Jesus não fica nos limites da pouca coerência de Nicodemos (e da nossa!), mas, mostrando compreensão pela sua/nossa fraqueza, transforma-o no ser humano corajoso que fará oposição a seu próprio grupo (João 7,50) e irá, ao pôr do sol da sexta-feira maior, exatamente no momento em que todos fogem, ao encontro da cruz, cuidar do corpo do Crucificado (João 19,39), levando trinta quilos de aloé e mirra, uma quantidade em excesso, expressão de seu afeto e gratidão!
Eis o caminho que nos transforma: o caminho da cruz, um trajeto totalmente novo, do respeito que abraça a imperfeição, da confiança que acolhe a fragilidade e da solidariedade que transforma morte em vida. A via de Jesus é crer no caminhar do ser humano mais do que na linha de chegada, apontar para a verdade humilde do primeiro passo mais do que para o alcançar da meta longínqua. Assim é aquele que nasce do Espírito. Quem nasceu do Espírito não só tem o Espírito, mas é Espírito. Não só é templo do Espírito, mas é da mesma substância do Espírito... Somos obras de Deus! Nisto “fazemos a verdade”!
Aproximamo-nos da Luz, quando aceitamos que Jesus é o “presente” dado por Deus ao mundo e não só para os cristãos! Quando percebemos que a razão de ser da Comunidade Cristã – Igreja, o que justifica sua presença no mundo, é sua capacidade de fazer recordar o amor de Deus e comunicá-lo a todos os seres humanos! Pois só com o coração cheio de amor a todos, poderemos chamar-nos uns aos outros à conversão, pois somos salvos na graça e nossas obras só tem sentido para salvar e libertar o mundo, jamais para condená-lo!
Que nesta quarta semana da quaresma, possamos meditar e rezar:
Deus pai e mãe, lento para a cólera e rico em misericórdia, como é imenso o amor com que amais a nós e ao mundo!
Enviastes vosso Filho amado para que, sendo por ele servidos/as, aprendêssemos a servir com a mesma generosidade.
Dai-nos um amor intenso, lúcido e forte, a fim de que sejamos capazes de dar continuidade a este dinamismo que salva e renova mundo, empenhando-nos na difícil e complexa tarefa de recriar a fraternidade sem fronteira através do diálogo.
Não permitais que sentemos e choremos passivamente nossos desterros, e colocai-nos a caminhar para reconstruirmos o mundo na força do vosso amor.
Assim seja! Amém!
Pe. Paulo Roberto Rodrigues, quarto domingo da quaresma, 14 de março de 2021, oitavo ano do papado de Francisco de Roma.
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