"...este teu irmão estava morto e tornou a viver; estava perdido e foi encontrado” (Lc 15,32)
Lucas, o poeta da misericórdia, soube pintar com palavras a parábola de Jesus que tanto nos comove.
Por que a parábola do “Pai Misericordioso” nos comove e provoca tanta ressonância em nosso interior?
Evidentemente, a parábola fala dos nossos anseios mais profundos: de retornar de terras estranhas para nosso lar, de sair da insignificância para encontrar nossa essência, de deixar a morte para trás e voltar à vida. É o desejo que nos diz que, independentemente da situação em que nos encontremos e de quão perdidos estejamos, sempre é possível mudar a direção de nossa vida perdida, retornar e encontrar nosso verdadeiro lar.
Na realidade, a parábola deixa claro o que nos distancia e nos aproxima do nosso ser essencial.
Toda a parábola do “Pai Misericordioso” acontece entre dois polos: distanciamento e proximidade.
Quando Lucas escreve que o filho mais novo “partiu para uma região longínqua”, ele se refere a uma quebra drástica da maneira de viver, pensar e agir que ele recebeu como um legado sagrado através das gerações, e uma traição aos valores cultuados pela família e pela comunidade.
O “país distante” é o mundo no qual não se respeita o que em casa é considerado sagrado.
As consequências da ruptura com o pai serão a miséria extrema e a degradação máxima. Quando atravessou o limiar da casa paterna e deu as costas ao pai, o filho estava partindo para a solidão, para a alienação, para a perdição.
No início, parece que só o filho mais novo estava longe do pai e da sua casa: lá, numa situação de extrema miséria e morte, ele sente saudades da casa do pai e da presença do amor e da vida que ali reinava.
Mas, a volta do filho “distante” ressalta, inesperadamente, a distância do filho mais velho, o “perfeito”, que sempre esteve em casa e que servia ao pai de modo irrepreensível. Na realidade, porém, também ele vivia, sem se dar conta, como estranho e... distante.
O “filho mais velho” apresenta uma aparência de perfeição que camufla um medo de viver, uma falsa submissão, uma rejeição do outro, uma incapacidade para receber os dons do pai. Ele ignora que, para entrar na festa, é insuficiente não transgredir as leis, mas ter uma outra disposição do coração. Não é criativo, não assume nenhum risco. Percebe-se que ele não é feliz naquilo que vive: o peso da lei o torna uma pessoa amarga, cheia de ressentimentos, de julgamentos, de indiferença...
Por outro lado, o “retorno” do filho mais jovem deixa também transparecer a grandeza de um coração transbordante, quase inimaginável, de um pai absolutamente “surpreendente” e, “incompreensível”, no seu modo de lidar com os fracassos e limitações dos seus filhos.
Enquanto os filhos demonstram todo o seu “distanciamento”, o pai se aproxima, sempre mais, fazendo-os descobrir não só o fato de serem filhos, mas também de irmãos.
Para ambos os filhos, torna-se necessário percorrer a estrada do “retorno reconstrutor”, não só para a redescoberta do próprio pai, mas também, da própria dignidade e da verdade sobre si mesmos.
O filho mais novo, decidido a uma realização pessoal e autônoma, distancia-se daquela casa, onde tudo parecia ser muito tranquilo e monótono. No entanto, quando se encontra em estado de completo abandono, com a ameaça da morte diante dele, volta, em seu coração, a lembrança de casa e a saudade da segurança, que lá podia encontrar com abundância. Enquanto estava mergulhado nas trevas da morte, a luz da vida, finalmente encontra espaço nele.
Então a lembrança se torna decisão; a decisão... caminho, retorno... aproximação. No momento de maior distanciamento e solidão, esse filho se dá conta, em seu íntimo, da proximidade da ternura e do amor do pai. A centelha que ilumina o caminho, que conduz à liberdade e à vida, se manifesta precisamente nas trevas da derrota, da morte, da falência, da miséria...
A lembrança e a saudade da casa do pai se tornam caminho no coração do filho distante, exatamente no pior momento da sua existência: ele não tinha mais nada, nem dignidade e nem comida para sobreviver.
O fracasso, a impotência, a limitação... podem se tornar momento regenerador e inédito: o encontro do caminho da liberdade e da vida. À luz da misericórdia, o fracasso, a derrota, a ferida... se revelam como bênção e uma ocasião privilegiada para a quebra do “ego inflado e autosuficiente”.
Na solidão e na indigência, o filho, que estava “perdido”, contemplou o rosto amoroso de seu pai e encontrou a força para levantar-se e ir bater à porta de casa.
Aquele filho que antes era “pedra de tropeço” agora se torna “pedra angular”, sobre a qual se derrama a misericórdia gratuita do pai e sobre a qual se constrói uma história nova, que envolve todos os que vivem naquela casa.
Os dois filhos, apresentados a nós nessa parábola, têm trajetos fundamentalmente distintos; contudo, possuem em comum o fato de não conhecerem de verdade o Pai e o fato de não terem nenhuma consciência das consequências de suas rupturas. Um, está seguro de saber o que quer: partir, estar em outro lugar. O outro, tem a certeza de estar no caminho certo: o dever.
Ambos perderam o caminho do coração. Um, esqueceu-o; o outro, endureceu-o.
Nenhum deles tinha vivido uma relação sadia com o pai: nem aquele que partiu, nem aquele que permaneceu a seu lado. Ambos perderam a sua fonte e não recebiam mais a água do amor. Não eram mais iluminados a partir do coração; tornaram-se cegos. Caminhando dia e noite, vão tropeçar: um, na desordem; o outro, no excesso de ordem.
O fracasso do filho mais novo e sua volta imprevista abalarão a ambos; um será sacudido pela tristeza, pelo fracasso, pela humilhação; o outro, pela revolta, pela explosão de uma raiva reprimida há muito tempo. O retorno foi um acontecimento revelador, para os dois, de um possível ponto de partida para uma nova vida, de uma ocasião oferecida para a recuperação da dignidade de filhos.
“E foi ao encontro de seu pai”. O filho mais novo muda de direção. Vira-se, dá meia-volta, abandona o caminho de morte e decide não cuidar mais dos porcos. A memória da misericórdia do pai o torna capaz de colocar-se a caminho. Não se imobiliza mais na infelicidade, no vitimismo, na culpabilidade estéril: é o tempo da determinação, da opção em favor da vida e da comunhão.
O filho pródigo reencontra o movimento da vida. Sabe tirar proveito de um acontecimento catastrófico. Decide retomar o caminho de casa a partir do estado em que se encontra, mesmo não tendo uma clara compreensão de tudo, mesmo quando sua preocupação primordial é a sobrevivência. Está pronto para assumir esse retorno sem glória, pois agora é livre. É iluminado por um desejo encontrado no fundo de si mesmo: “levantar-me-ei e irei ter com meu pai”. Renuncia às antigas vestes, entra numa vida renovada, pois percebe a possibilidade de dar um passo em direção à vida.
É então que vai viver, nos braços do pai, o encontro que irá fazer dele um filho. Quebra-se o seu coração autosuficiente, e ele está pronto a deixar-se moldar. A misericórdia do pai o reconstruirá como filho.
Segundo o texto evangélico, o pai não diz uma única palavra ao filho no momento em que o acolhe.
Ele deixa transparecer seus sentimentos através dos gestos: corre ao seu encontro, abraça-o e cobre-o de beijos. Não há aqui o menor sinal de rejeição ou repreensão. Antes que o filho diga algo, o pai é acolhida total, compaixão visceral, perdão incondicional.
O relato evangélico acentua, em primeiro lugar, a compaixão e a ternura sentidas pelo pai.
Ele viu o filho no caminho de volta para casa “quando estava ainda longe”. Na verdade, não tinha deixado de esperá-lo, com o coração e com os olhos, desde o dia inesquecível em que o filho saíra de casa. Este tinha, sim, partido; mas nunca tinha se afastado do afeto, do amor sofrido do pai, que contemplava todos os dias, com sua vista cansada e com os olhos do coração, o caminho percorrido pelo filho, na esperança de vê-lo voltar.
Texto bíblico: Lc 15,1-3.11-32
Na oração: Diante do Pai Misericordioso, perguntar a si mesmo:
- o que em mim está “perdido”, “distante”, “isolado”...?
- o que em mim é “dever”, “ressentimento”, “legalista”...?
- o que em mim é acolhida, compaixão, proximidade...?
Pe. Adroaldo Palaoro sj
25.03.22
Imagem: Rembrandt -
“Vou cavar em volta da figueira e colocar adubo” (Lc 13,8)
Temos perdido as raízes? Como conectar-nos com elas? Quê raízes nos alimentam? Onde estamos enraizados? Quais são as raízes que nutrem atualmente nossa vida? São as melhores?
Enraizamento, fincar raízes, viver da profundidade das raízes... O “novo” vem das raízes, vem de baixo, da base, do chão da vida. É preciso relançar uma nova radicalidade. Viver a partir das raízes, projetar a partir das raízes, criar a partir das raízes. Quaresma é tempo para colocar novo adubo e fortalecer as raízes; e viver o tempo das raízes para ser presença “diferenciada”, “enraizados” na realidade cotidiana.
“Descer” às raízes é uma oportunidade privilegiada para nos descobrir e conhecer nosso reino interior, para encontrar nossos recursos mais nobres e assim experimentar a transformação.
O caminho para uma nova qualidade de vida passa pelo encontro com as próprias raízes. Mas essa descida nos possibilita descobrir um mundo diferente que não conhecíamos, ou que havíamos perdido.
Este é o caminho da espiritualidade que brota do húmus; “descer” até o fundo, mergulhar nas dimensões mais profundas onde estão escondidos os “tesouros” que dão significado e sentido às nossas vidas.
Vivemos um contexto social-político-religioso marcado por um profundo desenraizamento, onde somos mobilizados a viver em mundos “sem raízes”, em espaços criados pela tecnologia, comunicando-nos através de relações virtuais com pessoas distantes, desconectando-nos do nosso próprio chão existencial; no emaranhado das imagens e sons perdemos a noção daquilo que é essencial e decisivo para a vida; vivemos na superfície dos acontecimentos e de nós mesmos; esvaziamos a consistência interior e fundamento sobre o qual se apoia a nossa própria vida; congelamos toda proximidade e relação com o outro; petrificamos todo compromisso com as causas mais nobres...
Desenraizar-se é desumanizar-se.
A “nova radicalidade” é a maneira original de seguir a Jesus. É uma radicalidade amável e expansiva, porque quem chega às raízes descobre-se implantado na natureza humana, naquilo que todos compartilham e, por isso mesmo, descobre-se e sente-se enraizado no Outro.
Ninguém pode viver sem raízes, pois não se sustentaria de pé. Quando perde suas raízes, o ser humano se atrofia e fica privado de algo decisivo, essencial: de uma fonte de vitalidade.
Superfície significa aqui o esquecimento da raiz, significa viver na distância da vida, desconectado da fonte interior, desarticulado e ocupado com o que não é essencial. Muitas pessoas passam pela vida assim, distraídas como turistas, como “voyeurs”, que consomem, sem descanso, paisagens e imagens de si mesmas, cujo olhar está sempre ocupado com as vitrines ou o próprio umbigo e assim nunca repousam, nunca chegam à raiz de nada.
Jesus, o “homem enraizado” em seu povo e sua cultura, traçou seu caminho em parábolas.
No evangelho deste domingo Ele usa a imagem da “figueira estéril” que não recebera o nutriente necessário. A figueira é uma das árvores mais comuns na Palestina e seu fruto, muito apreciado, é abundante. As flores da figueira são um sinal da primavera. “Sentar-se debaixo da videira e da figueira” é uma expressão proverbial da paz e serenidade da vida no campo (cf. 1Rs 5,5; Mq, 4,4; Zc 3,10).
A isso, precisamente, aponta a parábola da figueira plantada no meio da vinha. Ela também destaca a paciência do vinhateiro. Apesar de “levar” três anos sem dar frutos, o vinhateiro continua confiando nela, ao mesmo tempo que lhe oferece todos os cuidados com esmero: “vou cavar em volta dela e colocar adubo”.
Jesus quer destacar a paciência divina, porque compreende e respeita o momento e o ritmo de cada pessoa. Conhecedor do coração humano, sabe dos condicionamentos de todo tipo que pesam sobre ele: sofrimentos pendentes ou não elaborados; vivências não integradas; feridas não “processadas”; mecanismos de defesa ativados ao longo da vida para poder sobreviver; ignorância básica de quem é e como quer viver...
Precisamos tempo e paciência para crescer em lucidez e em consciência, assim como em liberdade interior, frente aos próprios medos e necessidades, para podermos ser coerentes e fiéis ao melhor de nós mesmos.
A partir dessa fidelidade, tudo começa a adquirir sentido: abrimo-nos a quem somos e vamos construindo relações harmoniosas. Isso é o que significa, segundo o evangelho, “dar fruto”.
Numa chave de leitura interior, a parábola da figueira ativa a virtude da esperança que alimenta, dá sentido à nossa existência e ilumina as profundezas de nosso ser cristão. Na vivência do evangelho, a terra interior também pode ser cavada e adubada, através de diálogos e do encontro com nossa verdade pessoal.
A parábola da “figueira” toca o nosso “eu” mais profundo; é preciso escutá-la e deixá-la ressoar em nosso coração, a terra do nosso campo interior que é cavada e fertilizada. Mas a parábola não só alimenta a esperança; ela também nos desafia a corresponder ao “divino agricultor”, dando frutos.
Talvez tenhamos que parar de exigir certos frutos da nossa árvore; basta os frutos menores ou a sombra que a árvore providencia.
Escavar a terra é o primeiro requisito a ser cumprido para que a árvore interior dê fruto. O segundo é o adubo, que pode ser símbolo para a atenção e o amor, que nos fazem bem e podem nos conduzir ao florescimento e frutificação da nossa árvore. Normalmente, usamos esterco para fertilizar a terra, o esterco da nossa própria biografia pode ser usado como adubo.
Dia após dia, o agricultor leva o esterco ao campo, e, após um ano, o campo dá seus frutos. É uma imagem consoladora, pois, justamente aquilo que consideramos o esterco da nossa vida – os fracassos, as feridas, as derrotas, as fragilidades – se torna o adubo para a nossa árvore da vida e a faz florescer.
A questão está em como cavar, que adubo depositar e que frutos esperamos alcançar. É importante cavar para sanear as raízes, nossas raízes mais profundas onde está a força de Deus vitalizando nossa existência; o alimento, talvez seja conectar mais com a mensagem de Jesus, com o Evangelho e entrarmos em sintonia com o Deus da Vida. Os frutos, sem dúvida, terão mais a cor e o sabor da visibilidade, da ousadia, da liberdade, da denúncia daquilo que atenta contra a dignidade humana, de atrever-nos a abandonar o rotineiro e gerar novas formas de viver o Evangelho nestes tempos tão conflitivos.
Deus é o “paciente Cuidador” e nos alcança na medida em que nos abrimos à sua ação; Sua presença expande e multiplica o melhor de nossa vida. Ao contrário, quando permanecemos reclusos na identificação com nosso ego, irremediavelmente, dia após dia, nossa existência se atrofiará e se empobrecerá.
É fora de dúvida que, dentro de cada um de nós, continuam existindo “figueiras estéreis”, experiências com pouca profundidade, vivências asfixiantes e atrofiantes... que limitam a liberdade de Deus em atuar em nós. Mas, o ponto de partida é que comecemos por reconhecer nosso terreno interior, reconciliando-nos com ele, abraçando-o com humildade. É no meio da “vinha” que está situada nossa “figueira”.
Desse modo, ao crescer em unificação – integrando também os aspectos mais obscuros e vulneráveis de nossa própria vida -, um bom “húmus” estará se disponibilizando e constituindo a “terra boa” onde a figueira crescerá por si mesma e dará frutos. Devemos descobrir, em cada um de nós, o que atrofia, limita e bloqueia o fluxo da seiva que brota das profundidades de nossa terra interior.
Texto bíblico: Lc 13,1-9
Na oração: Uma vida que se enraíza, é uma vida firme, consistente. Por outra parte, as raízes na planta, são as que se introduzem na terra e crescem em sentido contrário do tronco, servindo-se como sustentação.
Graças a elas, a planta pode absorver o alimento necessário para seu crescimento.
- o que está “estéril” em sua vida?
- quais são e onde estão as raízes onde seu coração se alimenta? Quais raízes precisam ser sanadas, adubadas... para que deem frutos?
Pe. Adroaldo Palaoro sj
18.03.22
Imagem: pexels.com
“Enquanto rezava, seu rosto mudou de aparência...” (Lc 9,29)
Para viver com mais intensidade o caminho quaresmal, a liturgia deste domingo nos apresenta o relato evangélico que nos dá uma luz para continuar avançando bem orientados. Caminhamos para a vida, para a essência de nosso ser, para a comunhão com tudo e com todos. Precisamos, de tempos em tempos, de um “Tabor”, como parada estratégica, para “sentir e saborear” a presença próxima e amorosa de Deus Pai que nos transforma, nos transfigura e deixa ressoar em nós sua instigante voz: “este(a) é o(a) meu(minha) filho(a), o(a) Eleito(a)”.
Voz que nos desperta e nos faz tomar consciência de que há possibilidade de “ir mais além”, ao essencial de nosso ser. A experiência da Tabor nos arranca do caminho rotineiro e nos abre para um horizonte maior. Podemos reconhecer que a nós também nos foi dado o “gene” da transfiguração, que é força que nos move continuamente a não nos deixar determinar pela nossa auto-imagem, pela aparência, e sim, centrar nosso olhar n’Aquele que é pura transparência do Pai.
Trata-se de eleger entre continuar cuidando do exterior (as roupagens, os aplausos momentâneos, a presença nas redes sociais, o número de seguidores que temos...) ou cuidar dessa outra “dimensão” que nos conduz ao mais profundo, que nos tira do caminho estreito e repetitivo para nos fazer descobrir Aquela presença que nos transfigura e transfigura a realidade de nosso entorno.
O relato da “transfiguração” de Jesus se situa expressamente em um contexto de oração. É ali onde, através da luminosidade do seu rosto, Ele deixa transparecer algo da sua verdadeira identidade.
Por isso, na transfiguração, a humanidade de Jesus se revela como pura transparência do Pai. Ou seja, o que há de divino em Jesus está em sua humanidade. Só no humano transparece Deus.
A Transfiguração está nos dizendo quem era realmente Jesus e quem somos nós. Ela nos revela também nossa identidade e nos faz caminhar em direção à nossa própria humanidade. Por isso, uma pessoa transfigurada é uma pessoa profundamente humana. Tudo o que é autenticamente humano é transparência de Deus. Em outras palavras, a vivência do humano nos diviniza.
A transfiguração não é condição de um “iluminado”, mas a realidade de toda pessoa que é capaz de “sair de seu próprio amor, querer e interesse” (S. Inácio). Transfigurar é descentrar-se e expandir-se na direção do outro.
A Transfiguração nos possibilita cultivar um “olhar” que sabe ver em profundidade, descobrindo em cada ser humano, para além de suas aparências, um ser transfigurado, porque somos capazes de vê-lo em sua beleza e bondade originais; um olhar que sabe se deixar impactar por tudo aquilo que nos cerca e é capaz de ficar assombrado diante do Mistério.
O Tabor não só é o lugar do encontro íntimo com o Senhor; implica também o encontro com o melhor de nós mesmos (nossa identidade); a Montanha nos “transfigura”, revelando nosso ser essencial; no silêncio do monte poderemos perceber nosso verdadeiro rosto, iluminado por Aquele que se deixa “trans-parecer” em tudo. “O evangelho é um itinerário para abrir com profundidade a interioridade humana” (Rovira Belloso) e nele vemos como Jesus promove o retorno ao interior; o mistério da transfiguração nos des-vela e nos move a ultrapassar nossas “falsas imagens” e encontrar-nos com a luz que nos habita. Podemos “entrar” em nós mesmos porque em nós está a dimensão de eternidade, de transparência, de divino.
Transparente é um modo de ser; a transparência faz referência à luz, à vida interior, ao conhecimento próprio, ao desejo de deixar-se ver, à pureza de intenção, à simplicidade e ao deixar-se conduzir pelo mesmo Espírito de Jesus.
A experiência orante no alto do “Tabor” é o meio privilegiado para voltarmos a mergulhar continuamente nessa Luz de onde procedemos. Entramos na corrente universal, até a Vida de Deus. Orar é deixar-nos conduzir até às profundidades trinitárias onde Deus nos forma e nos configura à sua imagem. Não devemos ficar surpreendidos se, interiormente, sentirmos uma plenitude de alegria e de superabundância.
A oração ajuda a evangelizar até as profundidades do nosso ser. Ela é o caminho interior do Tabor que nos faz chegar até nosso próprio “eu original”, aquele lugar santo, intocável, onde reside não só o lado mais positivo de nós mesmos, mas o próprio Deus. Este é o nível da graça, da gratuidade, da abundância, onde mergulhamos no silêncio, à escuta de todo o nosso ser.
Se a nossa oração for um autêntico face-a-face com Deus, ela deverá fazer emergir à nossa consciência as profundidades desconhecidas do nosso ser. Deus libera em nós as melhores possibilidades, recursos originais, riquezas, capacidades, intuições... e nos faz descobrir em nós, nossa verdade mais verdadeira de pessoas amadas, únicas, sagradas, responsáveis...
Assim, a divina pedagogia evoca a verdade do ser humano, comporta uma pro-vocação, uma proposta que o move a potencializar ao máximo seus recursos internos, revelando aquilo que ele é capaz...
Deixar-se “iluminar” pela Luz do Tabor significa uma autêntica experiência e que tem efeitos explosivos: é novidade que surpreende e às vezes assusta, cria novas expectativas e solicitações, traz clareza e mobilização, pede a mudança dos costumes e dos velhos estilos de vida, leva adiante o equilíbrio da pessoa em direção a horizontes imprevisíveis, abre uma nova fase de vida...
Situados no alto do nosso Tabor atingiremos experiências imprevistas e surpreendentes, ou reconheceremos, através do murmúrio dos ventos, “vozes novas” que nos incitam a peregrinar para as regiões desconhecidas do nosso próprio interior. Só assim, poderemos vislumbrar o outro lado e tocar as raízes mais profundas que darão sentido e consistência ao nosso viver.
A subida ao Tabor nos potencia, libera energias e recursos escondidos, torna-nos criativos, coloca-nos em movimento, tirando-nos de nossa acomodação...
“Subir” o Tabor é deixar-nos conduzir pela presença do Espírito de Jesus, para “descer” com mais vigor e ânimo ao vale do cotidiano e ao compromisso na prática do bem e da justiça.
Tabor significa sair de nosso pequeno e limitado mundo cotidiano, de nossa visão estreita das coisas, da vida corriqueira do vale...; significa alargar nossa visão da realidade, abrir novos horizontes... Por isso, a transfiguração no Tabor implica ter “mais portas e janelas” em nossa vida interior.
O Monte Tabor nos oferece janelas que permitem ampliar nossa visão. Através delas purifica-se o ar denso, pouco respirável que geramos quando fechados em nós mesmos. As janelas nos situam em comunhão com a natureza e com a humanidade. Elas revelam aos outros algo original que é só nosso; elas apontam para a porta que se abre, para que os outros se aproximem e entrem em nossa vida.
O mergulho em nós mesmos, para além de nós mesmos, realiza a metamorfose que nos devolve à vida transfigurados pelo amor que nos habita e plenifica.
Texto bíblico: Lc. 9,28-36
Na oração: Para realizar-se e desenvolver toda a sua potencialidade, busque, na oração, cavar mais profundamente, até atingir as raízes de seu ser, o núcleo original de sua personalidade. É no mais profundo de sua interioridade que você escutará o Senhor. Deixe-se invadir pela luz e pela vida d’Aquele que “armou sua tenda entre nós”.
- Só há um caminho para ter acesso ao Tabor: procure entrar em seu espaço interior; investigue e examine suas raízes nos recantos mais profundos de seu coração; sinta-se convidado(a) a despojar-se de suas medidas de segurança, a desnudar-se de todos os personagens e máscaras.
- Extraia de dentro de si uma resposta profunda, um sentido novo, uma esperança ousada...
- Construa sua vida de acordo com esta descoberta.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
11.03.22
1ª MEDITAÇÃO QUARESMAL: “Se alguém quer vir após mim,
negue-se a si mesmo, tome a sua cruz, e siga-me” (Mc 8,34b)
- Introdução
O Evangelho segundo Marcos é perpassado pelo Segredo Messiânico. Todos querem saber “Quem é Jesus”, enquanto o Mestre “não quer ser descoberto” como Messias. Os discípulos ainda não estão preparados e precisam caminhar um pouco mais e experimentar o Mistério Pascal de Cristo, para que tudo o que aprenderam faça sentido em sua caminhada.
Finalmente a partir de Mc 8,27, o próprio Jesus indaga os discípulos acerca do que dizem sobre Ele. A profissão de Pedro “Tu és o Cristo” (Mc 8,29) atinge o ápice da revelação da identidade de Jesus. Mas, será que Pedro e os discípulos sabem que tipo de Messias é Jesus? Como se desenvolverá seu plano salvífico? O que os espera?
O trecho que meditaremos, aprofunda um caminho que culminará no mistério Pascal de Cristo. Somos chamados nesse início de quaresma a arraigar a identidade do Mestre e a nossa de discípulos para assumirmos decididamente a missão a qual nos foi confiada.
- Comentário bíblico-teológico (Mc 8,31 – 9,1)
No início do texto Jesus já apresenta que tipo de Messias Ele é, para que toda falsa concepção sobre sua pessoa seja banida. O discípulo não pode evitar em sua vida o mesmo destino do Mestre. Assim, no v. 31 são apresentados quatro verbos que definem o que acontecerá com Ele:
1) Sofrer porque assume o sofrimento de Israel e de toda humanidade por amor;
2) Ser rejeitado pelas autoridades judaicas (anciãos, sumos sacerdotes e escribas), aqueles que deveriam compreender as profecias e reconhecer o Messias, mas a dureza de seus corações não o permitiram;
3) Ser morto, aniquilado de forma cruenta e humilhante na cruz;
4) Ressuscitar, depois de três dias, não só vencendo a morte, mas elevando a condição do ser humano de pecador à filho de Deus. Liberta-o de todo o pecado e oferece-o uma vida plena.
O v. 32 apresenta a contraposição entre as ações de Jesus e de Pedro. Enquanto o Mestre fala disso livre e abertamente a todos, Simão o chama à parte para repreendê-lo. A idéia de Messias que Jesus apresenta é dura e fora dos padrões. Perder o Mestre não está nos planos de Pedro.
No v. 33, Jesus repreende-o, não à parte, mas olhando também para os discípulos. É preciso não só exortar o líder, mas todos os que irão dar continuidade à missão. A expressão “vai para trás de mim” é uma chamada a Pedro e aos discípulos para retomarem seu lugar: deixar Deus e seu Filho, o Messias, o Mestre, estar à frente pra conduzir. Aqui há outra contraposição entre “estar na mente”, ou no “íntimo do ser”, as coisas de Deus X as coisas dos homens. Deus conhece profundamente o coração do ser humano e por isso, sua vontade nunca o tornará infeliz, mas pleno e completo. É mais que obedecer a uma “vontade” externa imposta por um ditador, mas assumir aquilo que há de mais profundo e verdadeiro dentro de nós e que é conhecido e revelado por Deus.
O v. 34 abre uma segunda cena. Jesus “chama para si” a multidão com os discípulos. É da multidão que sairá os discípulos. Por isso o discurso é para todos. Mais que um simples chamado, é um convite a todos para ouvir atentamente e guardar profundamente aquilo que está sendo falado. É ouvir com o coração.
A fala é composta de quatro ações e começa com uma proposta: 1ª) “Se alguém deseja acompanhar após mim”: essa é a postura do discípulo, sempre deixando ser guiado pelo Mestre e para isso, deve seguir seus passos, sempre atrás dele; 2ª) “Negue-se a si mesmo”: essa é a condição para estar atrás do Mestre; não é negar sua identidade, mas a superficialidade dela. Por isso o discípulo é chamado a confrontar-se e negar a estar na margem e avançar para o profundo de si com a ajuda do Mestre. 3ª) “Tome a sua cruz”: não assumir o sofrimento por si, como muitos pensam, mas assumir a ação salvífica de Deus que perpassa inclusive o sofrimento. Cruz, mais que sinal de sofrimento, é ato de salvação por um amor-doação até o fim (Rm 4,24-25; 6,4-5; 2Cor 4,10-11). 4ª) “Siga-me”: depois de todo esse processo, o discípulo terá condição de sair da multidão e se efetivar seu chamado como seguidor. Será aquele que acompanha o Mestre.
Jesus amplia seu discurso no v. 35, colocando em contraposição “salvar” X “perder”. Quem desejar salvar a vida por si mesmo, vai perdê-la, porque precisa da intervenção poderosa da mão de Deus. Por mais que se esforce, ficará cansado. Como um barco sendo remado contra o vento, Ou alguém encurralado num buraco querendo sair sozinho... Quem perde sua vida por causa de Jesus e do Evangelho é porque já foi encontrado pela sua ação salvífica. Já experimentou o amor constrangedor de Deus que olha profundamente e o chama para doar-se e realizar-se como ser humano. Confia e por isso se deixar levar pelo vento... já não precisa remar, porque ele o conduzirá... Nem pular em vão na tentativa de sair do buraco, mas apenas estender a mão para ser salvo gratuitamente por aquele que o ama...
O v. 36 prossegue a ideia com outra contradição: ganhar o mundo inteiro X ser danificada/arruinar a vida. A busca de querer preencher um vazio ganhando o mundo inteiro, acumulando bens e outras coisas, acaba arruinando a vida. Ela se desgasta e não encontra seu verdadeiro sentido. O que fazer para recuperar? É o que v. 37 diz: “O que dará o ser humano pelo resgate da vida dele?” O Sl 49,8-10 afirma que ninguém é capaz de pagar a Deus o preço de seu resgate. Logo, resta confiar e aderir à gratuita salvação que vem do próprio Deus.
Diante de uma experiência tão forte, como negar e se envergonhar Daquele que resgatou e ensinou com autoridade com palavras de vida eterna? A geração “adúltera e pecadora” jamais deve fazer o discípulo recuar (v. 38). Os desafios da missão devem ser enfrentados para que os discípulos vejam o “Reino de Deus chegar com poder” (Mc 9,1).
- Pistas para nossa caminhada hoje
Estamos imersos num mundo cheio de mazelas e sofrimentos. Sofremos com e como o Messias. Somos rejeitados por aqueles que fecham o coração para a Palavra de Deus e muitas vezes desanimamos por isso. Chegamos a nos deparar com situações de morte, diante de nossas crises pessoais assim como as crises comunitárias e humanitárias. Mas nossa caminhada aponta para a ressurreição. Não somente após a morte, mas já aqui experimentando a graça de Jesus Crucificado-Ressuscitado.
Diante de tantos absurdos, dúvidas e inquietações, pensamos que há uma luta intermitente entre a vontade de Deus e a nossa. Queremos segurança e Jesus afirma não ter onde reclinar a cabeça (Mt 8,20). Queremos controlar nossa vida, acompanhar o Mestre passando à sua frente nas nossas decisões e nas formas de enfrentar os desafios. Mas nem sempre um “vai para trás de mim” soa tão claro. É preciso experimentar muitas vezes situações de impotência, para permitir que a potência de Deus aja em nossa vida.
Neste início de Quaresma, deixemos ser seduzidos pelo Mestre que conta conosco para acompanhá-lo na desafiante missão. Sigamos seus passos estando sempre atrás Dele que nos guia no caminho que culmina em nosso verdadeiro sentido de vida.
- Questões para refletir, aprofundar e rezar
a- Como você compreende a vontade de Deus e a sua vontade? Consegue apresentar o que você deseja, sonhos, projetos, medos, frustrações, inquietações que perpassam sua caminhada de fé?
b- A renúncia a si mesmo é muito desafiante porque muitas vezes nos desestabiliza. O que você precisa renunciar? Ou melhor o que você precisa entregar para ser uma pessoa livre capaz de seguir o Mestre?
c- O que Jesus precisa tocar em você com o poder salvífico da cruz? O que impede de tomá-la para experimentar isso?
d- Que pequenos gestos concretos podemos praticar para manifestar e também nos ajudar no seguimento de nossa caminhada cristã?
Por Pe. Jackson Câmara Silva,INJ
“Jesus, cheio do Espírito Santo, voltou do Jordão, e, no deserto, ele era guiado pelo Espírito” (Lc 4,1)
O primeiro domingo da Quaresma sempre apresenta o relato das tentações de Jesus no deserto, que ajuda a desvelar o sentido de sua missão, seu caminho, seu destino. É relevante o fato de que se vincule a ida de Jesus ao deserto após o batismo, sendo conduzido pelo Espírito.
O deslocamento de Jesus ao deserto está em profunda sintonia com a experiência vivida pelo povo judeu.
Foi no deserto que Israel aprendeu a descobrir e a confiar em Deus. Longe da segurança do Egito, emergiu o que havia no fundo do seu coração. Os profetas cantaram o tempo do deserto como tempo das obras maravilhosas de Deus. Foi no deserto que o povo de Israel sentiu profundamente sua pequenez e total dependência de Deus.
Não existiam caminhos prontos. Era preciso discutir, planejar, rezar, lutar e sonhar para fortalecer a caminhada. No fundo, o Êxodo foi um profundo tempo de discernimento coletivo, que desembocou numa radical opção pela liberdade, porque um povo só é livre quando pode decidir o rumo de seu caminhar:
Deserto: lugar da Aliança, escola da intimidade com o Senhor; expressão que, mais do que um determinado lugar, indica uma experiência forte de Deus.
Jesus, como todos os profetas, antes de assumir sua missão, foi conduzido pelo Espírito ao deserto. Frequentemente Ele recorria a esta experiência em meio à sua vida ativa: afastava-se para lugares solitários, confrontava a sua missão com a Vontade do Pai.
Todos os personagens bíblicos, todos os(as) santos(as) passaram pela experiência de deserto: peregrinação interior, confronto com a própria vida, comunhão com o Senhor, descoberta da própria missão...
“Eu o(a) levarei ao deserto e falar-lhe-ei ao coração” (Os. 2,16).
Segundo os evangelhos, as tentações experimentadas por Jesus no deserto não são propriamente de ordem moral. Não se trata de uma eleição entre o bem e o mal. São tentações que apresentam maneiras falsas de entender e viver sua missão. O tempo do deserto foi, para Jesus, um tempo de discernimento sobre os melhores “meios” para viver seu messianismo. As tentações não diziam respeito ao “ser Messias” de Jesus; isto estava claro e fora confirmado pela experiência do seu batismo: “Tu és o meu filho amado”.
As tentações de Jesus aconteceram no campo das mediações: entre pensar em seu próprio interesse ou deixar-se conduzir pela vontade do Pai; entre impor seu poder como Messias ou colocar-se a serviço daqueles que mais precisam; entre buscar a própria glória e prestígio ou manifestar a compaixão de Deus para com aqueles que sofrem; entre evitar riscos para fugir da perseguição ou entregar-se fielmente à sua missão, confiando somente no Pai.
De fato, os meios apresentados pelo “tentador”, humanamente falando, são os meios mais eficazes que ninguém poderia imaginar: possibilidade de transformar as pedras em pão, o prestígio indiscutível de quem salta do alto do templo, sustentado pelos anjos e, para culminar, todo o mundo a seus pés.
Quem resiste a um homem com tais meios?
Todos seriam atraídos porque, em definitiva, teria entre suas mãos o poder total e o domínio absoluto.
Eis aqui a intuição e a genial proposta do tentador: salvar e libertar toda a humanidade, mas mediante o poder, o prestígio e a dominação. O tentador não pretende que Jesus se afaste de seu fim, senão que procure atingir esse fim, usando os meios que são exatamente o oposto da solidariedade.
Para a Liturgia, parece ser de uma evidência fundamental que a pedagogia quaresmal devesse começar por des-velar (tirar o véu) a desordem na afetividade. No caminho da vivência cristã, percebemos uma “aderência afetiva” (fixação afetiva) a coisas, posses, pessoas, ideias, cargos, poder, prestígio, status, ídolos, dependências.... que somada a outras, passa a constituir uma estrutura de “maus afetos” (“afetos desordena-dos”), esvaziando ou atrofiando o seguimento de Jesus
A Quaresma, nesse sentido, apresenta-se como uma pedagogia para aprender a ordenar nossos afetos”, libertar-nos dos afetos desordenados e assim percorrer o caminho do desejo mais profundo: estratégia centrada em Deus, leve e cheia de graça, uma aventura...
O desejo de poder, de possuir, de ser o centro (ego inflado) confunde nossa vida. E já não se trata mais de uma lição moral sobre o vício ou a virtude, mas do impacto psicológico e espiritual que se dá em nós pelo fato de nos sentirmos apegados a algo ou a alguém, com a consequente perda de liberdade e o perigo da dependência que esse apego causa. O apego às coisas e às pessoas impede-nos de mover com facilidade. Perdemos o “fluxo” da vida, o impulso do movimento, a suavidade do “deslizar pela existência”.
“Diga-me o tamanho dos seus apegos, e eu lhe direi o tamanho do seu sofrimento”.
É necessário introduzir um princípio “ordenador” em nossa vida, que inspire todo o nosso ser e o nosso agir, até que a “afeição” se converta em identificação existencial com Jesus Cristo.
Esse novo objeto deve ter uma repercussão decisiva na configuração da vida. Isto é, somos chamados a modificar profundamente o mundo de valores, pensamentos, condutas...
É necessário, ao iniciar o percurso quaresmal, detectar os condicionamentos afetivos (amarras) que de fato limitam a nossa liberdade, bloqueando-nos diante da proposta de vida que Jesus nos apresenta.
O que está em jogo no “deserto quaresmal” é chegar a conhecer-se profundamente, encontrando a raiz do próprio ser nos afetos desordenados.
Esse conhecimento interior, profundo, é condição indispensável para poder dispor de si, em maturidade de liberdade. Sem ordenar os afetos o ser humano não é verdadeiramente livre. A “desordem” nos afetos produz em sua liberdade uma essencial falsificação: faz tomar como absolutos o que são coisas relativas.
Só ordenando os afetos a pessoa se situa diante de Deus, reconhecendo-O como Absoluto.
Há afetos organizados negativamente por acúmulo de “experiências negativas”. Para atingi-los, a pedagogia quaresmal coloca “cargas afetivas opostas” (pessoa de Jesus, sua missão, o Reino, ...)
Sabemos que não se pode suprimir (matar) os afetos; o que se pode fazer é mudar a orientação (“ordenar”) dos afetos, ou seja, reorientar as “aderências afetivas” de certos objetos ou pessoas para um horizonte de sentido: amor a Jesus Cristo e a seu Reino.
Nesse sentido, nossa quaresma torna-se um “estar com Jesus” no deserto, para, como Ele, dar a Deus o lugar central de nossa vida.
A quaresma é um tempo em que damos maior liberdade a Deus para agir em nós; é abrir espaço, alargar o coração para a ação de Deus. É tempo de reconstrução de nós mesmos (conversão), de retomada da opção fundamental por Deus e pelo seu Reino (maior serviço, mais compaixão, mais solidariedade...).
Nossos “apegos” se assemelham às construções à beira do rio que nos fixam num determinado lugar que nos parece confortável, desejável e seguro. Mas, se assim agirmos, afastamo-nos da correnteza da vida e não vai fluir em nós nem crescimento e nem progresso rumo à liberdade dos filhos de Deus.
A experiência de deserto passa a ser “tempo e lugar” de decisão, de orientação decisiva da vida, de enraizamento de nossos valores, de consciência maior da nossa identidade pessoal e da nossa missão... O mestre do deserto é o silêncio; o deserto tem valor porque revela o silêncio, e o silêncio tem valor porque nos revela Deus e a nós mesmos.
O deserto é o grande auditório para ouvir Deus; “solidão” cheia de presença. Ainda que sozinhos, sentimo-nos solidários, em comunhão com todos. O decisivo é “deixar-nos conduzir” pelo Espírito. Aqui não há engano.
Texto bíblico: Lc 4,1-13
Na oração: Temos muitas atitudes, posses, ideias, cargos, posições, bens... que consideramos ser Vontade de Deus; na realidade é tudo “projeção” de nossos medos, de nossa insegurança...
O desafio permanente é este: examinar as “coisas” que estão ocupando por completo nossa existência e “tomando conta de nós” a ponto de bloquear o fluxo da graça e da vida.
- Quais “tentações” estão travando sua vida, impedindo-o de seguir a Jesus mais livremente?
- Rezar suas “pulsões desordenadas” que atrofiam sua sintonia com Deus e sua abertura aos outros.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
03.03.22
Imagem: pixels.com
“Fala com sabedoria, ensina com amor” (Prov 31,26)
Mais uma vez somos convidados a viver a Quaresma como uma escola de vida. Nestes dias, ao entrar no deserto da aprendizagem, teremos a oportunidade de experimentar um novo modo de compreender a vida: ativar os recursos, dons, capacidades… e integrar os limites, fragilidades, crises…
Ensinados por Deus, a Quaresma poderá ser uma escola inspiradora para o resto de nossas vidas.
Com a cerimônia da “imposição das Cinzas”, toda a Igreja dá início ao percurso Quaresmal. Neste tempo litúrgico, inspirados pelo tema da CF2022, teremos a oportunidade de experimentar um modo diferente de viver, de nos deixar conduzir pelo Espírito, o Grande Mestre que “nos ensina com amor”. É preciso alargar o espaço no coração e na mente para acolher as “coisas novas” que Deus quer nos ensinar.
Em sintonia com toda as comunidades cristãs, somos chamados a viver o “tempo quaresmal” sempre de maneira nova e inspiradora. O centro de nossa vida é Jesus Cristo, sua pessoa, seu ensinamento, o mistério de sua morte e de sua ressurreição. O caminho do seu seguimento é sempre rico e surpreendente.
Muitas vezes, corremos o risco de viver o tempo litúrgico como uma celebração rotineira, algo já conhecido. Somos todos alunos na escola do seguimento de Jesus, constituindo a grande comunidade de aprendizes. Como alunos da “escola quaresmal” viveremos, em primeiro lugar, um deslocamento interno, mobilizando as nossas riquezas, despertando nossos desejos e reacendendo o impulso para uma identificação maior com o Mestre de Nazaré; em segundo lugar, viveremos uma travessia externa para alimentar um compromisso solidário e sermos presenças que fazem a diferença na grande escola da vida.
Tendo como inspiração o lema da Campanha da Fraternidade deste ano, “fala com sabedoria, ensina com amor”, seremos movidos a desatar todas as ricas possibilidades e recursos que querem se expressar e que se encontram no mais profundo de nossa interioridade.
Nesse sentido, a vivência quaresmal é uma verdadeira “escola de vida”, cujo aprendizado nos leva ao centro do nosso ser, para enraizar nossa vida no coração da Trindade, dele saborear a seiva da “divina sabedoria” e deixar-nos plenificar pela graça transbordante de Deus.
A pedagogia da interioridade apresenta-se como uma proposta sempre atual, que favorece a redescoberta do mundo interior, ou seja, tudo o que se refere à dimensão do coração, das intenções profundas, das decisões que partem das raízes internas. O coração de cada um é habitado de sonhos de vida, de futuro, de projetos; ele é a sede das decisões vitais, o lugar das riquezas pessoais, onde se encontram os dinamismos do crescimento, de onde partem as aspirações e desejos fundamentais.
A pedagogia da interioridade, portanto, possibilita viver a “sabedoria do coração”.
O Evangelho da 4ª. feira de Cinzas fala das “práticas quaresmais” da oração, esmola e jejum, onde nossas relações são iluminadas e questionadas pelo modo de viver e de proceder de Jesus. Tais “práticas” não são uma carga pesada sobre nossas costas, mais uma autêntica experiência de saída de nossa “ignorância existencial” para poder viver com mais sentido e inspiração.
Na escola da oração nos situamos diante do olhar compassivo do Senhor para poder nos conhecer mais em profundidade e colocar nossa vida em sintonia com o que Ele deseja para cada um de nós.
Na escola do jejum temos a oportunidade para aprender a integrá-lo, não como sacrifício vazio, mas por inspiração amorosa, ou seja, deixar o Senhor nos ensinar a jejuar de tudo aquilo que atrofia nossa vida: pré-juizos, intolerância, egoísmo, soberba, mentiras, ignorâncias...
Por fim, a escola da esmola revela-se como chamado a nos descentrar, a fazer da nossa vida uma contínua saída em direção aos outros, sobretudo os mais pobres e excluídos. O exercício da “esmola” libera os braços para acolher, alarga o coração para ser mais compassivo, movimenta os pés para uma maior prontidão no serviço, desperta uma presença inspiradora junto àqueles que estão abatidos e desolados.
Assim, o jejum, a oração e a esmola criam um clima favorável para nos “deixar educar por Deus”, para que nos tornemos mais humanos. “Educação divinizada” que se expande em múltiplas direções: consigo mesmo, com Deus, com os outros e com a natureza.
A vivência quaresmal revela-se, portanto, como um processo educativo, e isso acontece, em primeiro lugar, no mais profundo de cada um de nós, onde o verdadeiro Mestre faz do nosso coração sua “sala de aula”.
Como percurso espiritual, a Quaresma nos proporciona “sentir e a saborear” o modo como Deus se deixa encontrar pelo ser humano, como Ele “conduz” cada pessoa, sua maneira original de entrar em diálogo com cada um... Essa relação “Deus – ser humano” se revela como longo processo de aprendizagem, onde Deus é o verdadeiro “pedagogo”.
“Ser educado por Deus”: o princípio da divina pedagogia perpassa todo o percurso da Quaresma.
Inácio, que se deixou educar por Deus, afirma que Ele o tratava “da mesma maneira que um professor trata um aluno, ensinando-o” (Aut. 27)
A “divina pedagogia” possibilita “e-ducar”, no sentido de “e-ducere”: trazer para fora ou extrair o melhor e mais humano presente nas profundezas de cada um, a verdade e a essência de cada pessoa, para que consiga ter uma visão ampla de si mesma e realizar-se da melhor maneira possível, ativando seus recursos e potencialidades.
Na escola quaresmal, nossa atitude primeira é a de dar o maior e mais amplo espaço possível ao Mestre interior, deixando-nos conduzir por Ele em todas as circunstâncias, em todo tempo e situações da vida.
Tudo isso confirma que Deus é “o” Pedagogo. Ele nos conhece como ninguém e como ninguém sabe fazer emergir tudo aquilo que Ele colocou em nós como criatividade, imaginação, intuição, desejos...
A experiência de Deus como “o” Pedagogo não é uma experiência à margem daquilo que é a experiência da vida cotidiana. Experiência, conhecer por experiência, fazer experiência... A própria vida é uma grande experiência. E cada experiência pode ser uma experiência de Deus, um deixar-se “transbordar” e “surpreender” por Ele, de Quem provém toda iniciativa.
De fato, a experiência é a sabedoria da vida. S. Inácio resume essa intuição numa frase:
“encontrar Deus em todas as coisas e todas as coisas em Deus”.
Texto bíblico: Mt 6,1-6.16-18
Na oração: Deus, divino pedagogo, vem ao nosso encontro e arranca nossa vida dos limites estreitos e atrofiados, expandindo-a em direção a horizontes inspiradores;
- quais as dimensões de sua vida que precisam se expandir, para viver com inspiração seu compromisso cristão?
- Nesse tempo quaresmal, você sente que sua vida necessita um novo salto de qualidade? Em que direção?... Qual é o seu estado de ânimo ao iniciar o percurso da Quaresma?
Pe. Adroaldo Palaoro sj
01.03.22
“Por que vês tu o cisco no olho do teu irmão, e não percebes a trave que há no teu próprio olho?”
O evangelho deste domingo nos situa no mesmo cenário onde Jesus havia proclamado as bem-aventuranças. O Mestre da Galileia está ensinando a um amplo grupo de seguidores(as), buscando despertar neles(as) a radicalidade que o Reino de Deus pede, a partir de uma vida que se sabe sustentada pelas mãos providentes de Deus e aberta à bondade, ao encontro e à solidariedade.
O ensinamento de Jesus tinha começado um pouco antes com uma afirmação taxativa: “Não julgueis e não sereis julgados; não condeneis e não sereis condenados” (Lc 6,37). Depois da proclamação das bem-aventuranças e os “ais” contra aqueles que buscavam honras, riqueza e poder, Jesus vai proferindo uma série de afirmações que orientam o seu discipulado e revelam um “modo de ser e proceder” original e humano. Ele também adverte das armadilhas nas quais se pode cair quando alguém se apresenta como “juiz” que quer ser a referência para corrigir as limitações dos outros, afastando-se do bom caminho.
No discurso, encadeiam-se uma série de sentenças que alertam contra quem vive autorreferenciado e considera que só ele tem a verdade.
* Por quê somos tão rígidos, tão duros, tão insensíveis, tão julgadores...?
* O que nos faz ficar petrificados por dentro? Que forças internas nos mobilizam a ser o centro?
* Por que temos medo do desconhecido, daquele que pensa e sente de maneira diferente?
Em cada um de nós o instinto do julgamento está enraizado profundamente. Podemos dizer que todos nascemos municiados de uma cadeira de juiz. Há muitos que cultivam ardorosamente esta profissão e encontram ocasiões abundantes para praticá-la, submetendo-se, inclusive, a um horário esgotador.
Como proliferam os “tribunais ambulantes e permanentes”!
Tal atitude julgadora nos petrifica em todo o nosso ser, deixando-nos estagnados: emoção congelada, relações congeladas, imagem de Deus congelada, visões congeladas...
Somos submetidos ao grande risco de ficarmos imobilizados, emparedados em nosso corpo, petrificados em nossos pensamentos, em nosso coração e em nosso espírito.
Podemos estar muito retraídos, autocentrados, tensos... e isso nos impede viver com maior fluidez.
* Como passar do coração de pedra para a morada da fonte de água viva?
* Como libertar o nosso coração dos medos que nos levam a excluir e rejeitar os outros e fechar-nos numa fria rigidez?
* Como reencontrar, no nosso cotidiano, a fluidez que habita em nós?
No Evangelho deste domingo encontramos algumas expressões categóricas que nos movem a abandonar este ofício julgador, bastante perigoso e rompedor de relações. Há um apelo forte que nos convida a fazer em pedaços a cadeira de juiz que todos levamos presa às nossas costas.
No entanto, em muitos seguidores e seguidoras de Jesus vai amadurecendo, ao longo da vida, a convicção de que há coisas muito mais importantes a fazer do que se dedicar ao ofício de juízes.
É preciso “cristificar” nossa visão para que ela não se deixe determinar pelas aparências ou pelas limitações do outro, mas, consiga vê-lo em profundidade, percebendo o que há de mais humano e divino em seu interior. A sabedoria de Jesus recorda algo elementar: o outro é nosso espelho, pois o cisco que vemos em seu olho nos está falando de uma “trave” que há no nosso; é preciso estar sempre com os olhos e ouvidos bem abertos para nos deixar impactar pelos dons, recursos e potencialidades humanas presentes em cada um.
“Guia cego” é aquele que, centrado na lei, se situa acima do outro, exigindo dele qualquer tipo de “submissão”. Isso acontece porque tal “guia” carece de compreensão, fala a partir da fria lei e só busca alimentar e fortalecer seu próprio ego.
O guia autêntico, pelo contrário, considera-se a si mesmo como “acompanhante”, fala a partir de sua própria experiência e remete cada pessoa a si mesma, na certeza de que o único “guia” é sempre o “Guia interior”, ou “Mestre interior”, que se expressa em cada ser humano.
Assim, enquanto o “guia cego” acaba caindo no buraco, o acompanhante autêntico oferece luz e espaço amplo para que cada qual vá encontrando seu próprio caminho.
Jesus está sempre nos chamando à autenticidade, ou seja, Ele nos provoca a descer ao mais profundo de nosso próprio ser e descobrir ali o que está de acordo com o que na realidade somos. Por isso, Ele está sempre combatendo uma acomodação externa às normas e preceitos. A única Lei definitiva é a que está escrita em nosso interior e tem a marca do amor. É preciso descer ao coração e descobri-la, para que ela inspire nosso ser e nosso proceder.
Como cristãos temos copiado a atitude dos fariseus, dando mais valor ao cumprimento de normas que à busca interior das exigências de nosso verdadeiro ser. Esta é a causa de nosso fracasso na vida espiritual.
A originalidade do Evangelho está na aventura da descoberta do “mundo interior”, esse mundo desconhecido e surpreendente, que é o coração, onde acontece o mais importante e decisivo em cada pessoa. “O homem bom tira coisas boas do bom tesouro do seu coração” (Lc 6,45).
É preciso ser discípulo(a) da “escola do coração” onde aprendemos a nos acolher como dom totalmente gratuito de Deus e a entregar-nos totalmente ao seu Reino.
No nosso contexto cultural, a imagem do coração perdeu muito de sua expressão, tornando-se muito banalizado: corações nas emoções, nos desenhos, talhados em árvores, nas taças e chaveiros; corações em canções, rompidos, roubados, feridos, apaixonados, pesados, leves; corações que sentem, e outros insensíveis. O coração parece como um depósito de sentimentos.
Por outro lado, vivemos também um contexto de muitos “corações de pedra”, intransigentes, cheios de ressentimentos e juízos implacáveis, corações fechados em jaulas de pré-juízos e de suspeitas, que acabam envenenando as relações e rompendo os laços humanos.
O seguimento de Jesus consiste, sobretudo, em alcançar a experiência interior que Ele viveu, e deixar que nossa interioridade cristificada se manifeste. Fazer caminho com Ele nos ajuda a descobrir as enormes possibilidades em nossos próprios corações. O Coração divino que humaniza nosso coração, tornando-o aberto e sensível a tudo o que é humano; ao mesmo tempo, ativa em nós um coração que se faz solidário e comprometido a afastar de nossas relações tudo o que desumaniza: fechamentos, intolerâncias, julgamentos, preconceitos, ódios...
“Ter o coração nas mãos” nos capacita a olhar a realidade, compreender cada pessoa em sua situação e viver oblativamente, a partir da gratidão e da responsabilidade. Sentir o pulsar de nosso coração em sintonia com o Coração do Pai nos ajuda a recuperar o “humanismo” que estamos perdendo.
Humanizar nosso coração para humanizar as relações.
Por isso Jesus dava tanta importância ao coração: “a boca fala daquilo que está cheio o coração” (Lc. 6,45); “Bem-aventurados os puros de coração, porque verão a Deus” (Mt. 5,8).
Texto bíblico: Lc 6,39-45
Na oração: No silêncio da oração, desça até o mais profundo de seu coração, até chegar à corrente subterrânea de água viva; aqui você experimenta a unidade de seu ser; aqui é o lugar da transcendência, onde a transformação acontece.
A intimidade não é fechar-se em si mesmo, mas abertura máxima. A partir do centro do coração, abra-se ao coração da realidade.
- Você deixa “transparecer” seu coração na vivência cotidiana? Coração oxidado ou ativado pela Misericórdia?
Pe. Adroaldo Palaoro sj
25.02.2022
“Sede misericordiosos, como também o vosso Pai é misericordioso” (Lc 6,36)
O Evangelho deste domingo nos situa diante desta convicção: Deus é Misericórdia e nossa vocação cristã é viver misericordiosamente.
Em sua misericórdia, Deus sempre nos surpreende, sempre excede nossas estreitas expectativas, para abrir caminho a partir de nossas fragilidades. Só o amor misericordioso de Deus nos reconstrói por dentro, destrava nosso coração e nos move em direção a horizontes maiores de busca, responsabilidade e compromisso.
Duas razões que deveriam estar presentes em quem se diz cristão, algo tão natural no seguimento de Jesus Cristo: alegria pela experiência de que Deus nos ama com um coração misericordioso e misericórdia como conduta libertadora que nasce de tal experiência. Aqui nos encontramos envolvidos por uma mensagem que é essencial e decisiva no nosso “ser cristão”.
Ser misericordiosos e compassivos é a vocação à qual todos nós, seres humanos, fomos chamados, inclusive aqueles que ainda não experimentaram o dom da fé ou mesmo a esvaziaram. É o caminho para conseguir uma convivência leve, acolhedora e aberta. As Bem-aventuranças vão nesta direção, abrindo espaço para que o Amor misericordioso de Deus se transforme em motor da história.
Misericórdia. É a primeira, a última, a única verdade na Igreja, em todas as suas doutrinas, cânones e ritos. É o “atributo primeiro” de Deus proclamado por todas as religiões e que deve inspirar o modo de proceder de todo ser humano. E, - por que não dizer? -, também no campo da política ou da gestão da vida pública com todas as suas instituições, partidos, programas e conferências climáticas. Ai das políticas sem entranhas, sem alma, sem misericórdia!
A misericórdia é a luz e a chave de nossa vida, tão preciosa e frágil, de nosso pequeno planeta tão vulnerável, do universo imenso e interrelacionado e do qual fazemos parte.
Misericórdia, segundo sua etimologia, significa “entranha”, coração, ternura diante da fragilidade e miséria do outro. Por isso é um dos nomes mais belos de Deus; é o mesmo que dizer “coração da Vida” e de tudo quanto existe.
A força criativa da misericórdia de Deus põe em movimento os grandes dinamismos de nossa vida; debaixo do modo paralisado e petrificado de viver, existe uma possibilidade de vida nova nunca ativada.
Se recuperarmos as atitudes de misericórdia e compaixão, teremos entrado na vivência essencial do Evangelho. O decisivo é que a Igreja toda se deixe reger pelo “Princípio-Misericórdia”, sem ficar reduzida simplesmente a somar “obras de misericórdia”.
A misericórdia é para os audazes e criativos, capazes de revolucionar a existência com atitudes maduras de amor profético, alargando espaços onde imperam somente a doutrina, os esquemas rígidos e as retóricas de poder e de juízo daqueles que não se deixam conduzir pela força humanizadora da mesma Misericórdia.
À imagem do Deus de Misericórdia fomos criados, e somos seres capazes e necessitados de misericórdia. Uma faísca da misericórdia Deus está presente no interior de cada ser humano, pálido reflexo dessa “forma suprema de ternura” que é o Amor de Deus, que rompe as distâncias e se aproxima da realidade humana como Ternura amorosa. Ou seja, se Deus não se revelasse como “misericórdia”, não poderia ser amado pela pessoa humana como se ama o pai ou a mãe.
Deus misericordioso nos educa e nos impulsiona a viver misericordiosamente. Sua misericórdia penetra até o mais profundo de nosso ser, individual e comunitário, para que pensemos, falemos, escutemos e atuemos misericordiosamente. “Oxalá vos sintais sempre misericordiados, para serdes, por sua vez, miseri-cordiosos” (Papa Francisco).
No princípio era a Misericórdia. Por ela fomos criados. Foi um ato de Misericórdia que nos deu vida. A Misericórdia é sempre geradora de vida. A Misericórdia é o Amor que vai além da justiça, e vir à vida foi fruto de Amor em excesso, não um ato de justiça.
Fomos criados por um coração misericordioso, fomos feitos por mãos misericordiosas, pensados por uma mente misericordiosa. Vivemos imersos na Misericórdia.
Se Deus não fosse misericordioso, não teríamos jamais existido; e se essa Misericórdia existe desde o princípio do nosso viver, ela ainda agora é fonte de vida, graça da qual temos continuamente necessidade e que constantemente está agindo em nós para alimentar o impulso da reconciliação com tudo e todos.
A misericórdia constitui a resposta de Deus à indigência do ser humano: ela destrava a vida, potencializa o dinamismo do “mais” e o coloca em movimento em direção a um amplo horizonte de sentido.
O teólogo Jon Sobrino formulou a expressão “princípio-misericórdia”, porque a misericórdia foi a que moveu toda a ação de Deus no AT e de Jesus no NT.
Jesus realizou muitas coisas e em muitos lugares (ensinou, curou, denunciou, alimentou, dialogou, etc.), mas a misericórdia foi a que inspirou e moveu tudo em sua vida e ação. Sentiu profundamente o sofrimento das pessoas, preocupando-se sempre em aliviar sua dor. Mas é preciso destacar, no entanto, que Jesus não se limitou à esfera do privado, mas estendeu a misericórdia a dimensões coletivas e públicas: repartiu o alimento a uma multidão, interpelou os ricos, pregou às massas e as alentou, denunciou os abusos das autoridades religiosas e políticas, entrou em conflito com os manipuladores da religião do Templo...
De acordo com o Evangelho deste domingo, só quem entra no fluxo do “princípio Misericórdia”, será capaz de amar até os inimigos, de quebrar o círculo de toda violência, de bem-dizer quem amaldiçoa e rezar pelos que caluniam. Assim, a misericórdia, recebida e experimentada, é a base da atitude compassiva, não como ato ocasional mas como estilo de vida evangélico. Torna-se o fundamento e a perene inspiração de uma existência de partilha e solidariedade.
“Ser humano” é, para Jesus, agir com misericórdia; do contrário, fica viciada na raiz a essência do humano, como acontece com aqueles que fazem da lei e da doutrina o centro de suas vidas, “passando do outro lado” da dor e da exclusão do outro.
A misericórdia, como estilo-de-vida cristã, é força oblativa que rompe distâncias e faz “morada no outro”.
Ela se constitui como uma “caridade-em-ação” perante o sofrimento alheio, numa atitude fundamental de solidariedade. É a ternura que se traduz em atos em favor da vida e não da morte.
Ela nos descentraliza e nos coloca no caminho do co-irmão, sobretudo daquele mais fragilizado e excluído.
É a misericórdia que desperta em nós uma nova sensibilidade a partir do outro, almejando com todas as forças aquilo que é o melhor para ele.
Trata-se de uma “escuta existencial” feita de profundo respeito pela alteridade do irmão. Não pretende que o outro se amolde à nossa maneira de ver ou sentir, mas deixa o outro ser profundamente ele mesmo.
Assim lançamos a base para um autêntico encontro fraterno, inspirando-nos na própria atitude de Jesus para com as pessoas. Abrimo-nos por dentro para captar o diferente do outro e acolhê-lo com o coração.
Texto bíblico: Lc 6,27-38
Na oração: A experiência da oração implica escancarar as portas de nossa interioridade, abrindo passagem para que a Misericórdia divina transite com liberdade pelos recantos escondidos e sombrios, ativando e despertando dinamismos e recursos que ainda não tiveram oportunidade de se expressar.
- O atual contexto social-político-cultural-religioso revela sua terrível face desumanizadora, através da cultura do ódio, da intolerância, das mentiras... Como você, seguidor(a) de Jesus, tem reagido diante disso? Sua presença tem a marca da misericórdia ou da indiferença? Está a serviço da vida ou da morte?...
Pe. Adroaldo Palaoro sj
19.02.2022
“Bem-aventurados, sereis, quando os homens vos odiarem, vos expulsarem,
vos insultarem e amaldiçoarem o vosso nome, por causa do Filho do Homem” (Lc 6,22).
Estamos vivendo uma nova e preocupante situação nas relações entre as pessoas, entre as diferentes denominações religiosas, entre as diferentes ideologias políticas. Há uma aliança entre a extrema direita ultra-neoliberal, homófoga, sexista, racista, xenófoba, machista, moralista, anti-ecológica, negacionista da ciência e da mudança climática... e as organizações “cristãs” conservadoras de caráter fundamentalista. Situação que se manifesta como a mais grosseira manipulação do cristianismo e a perversão do sagrado, pois se apoia nos discursos e nas práticas de ódio dos partidos e dos grupos neo-fascistas de todo o mundo.
Tal perversão religiosa se alimenta do ódio, cria divisões, espalha mentiras e difamações, fomenta a violência entre seus seguidores...; tudo isso tem um forte impacto negativo, pois se espalha muito rápido em toda a sociedade, usando, sobretudo as plataformas de mídia e redes de internet. Revela-se aqui a face mais triste do processo de profunda desumanização que vivemos.
Muitos analistas do atual contexto afirmam que está nascendo uma “nova religião”, talvez a mais perversa, a mais destruidora do planeta e da humanidade: “a religião do ódio”. Parafraseando o filósofo Descarte, muitas pessoas afirmam tranquilamente: “Eu odeio, logo eu sou”; ou “eu odeio, logo existo”. O ódio passa a ser a autoafirmação e a auto-constituição por meio da negação e da aniquilação do outro, sobretudo do outro que sente, pensa e ama de maneira diferente.
Em outras palavras, através do ódio aos outros, da eliminação das pessoas e dos coletivos odiados (negros, indígenas, homoafetivos, imigrantes...), aquele que odeia confirma sua própria existência através deste argumento de morte: o outro não existe, logo eu existo como o único que resta. Além disso, a aniquilação do outro através do ódio produz prazer. Por exemplo, o torturador desfruta de prazer na hora de torturar. “Ódio e prazer acabam sendo uma só coisa” (Anders). Quanto mais se espalha e mais vezes se repete o ato da aniquilação, mais tende a se espalhar o prazer do ódio e o prazer de ser a si mesmo.
O ódio não surge do nada: tem um contexto histórico-cultural-religioso-político específico. Existem causas, motivos, razões que se apresentam como oportunidades para ativar a faísca da explosão do ódio e da intolerância. São práticas e convicções friamente calculadas, largamente cultivadas e transmitidas pelas redes sociais, alimentadas por foros de debate, publicações, meios de comunicação, discursos...
Mas, no fundo, tudo tem sua origem no coração do ser humano, pois este é capaz do “pior” e do “melhor”; ele carrega em seu interior tanto as “bem-aventuranças” como as “mal-aventuranças”. Quando o ser humano mata sua sensibilidade e seu espírito de compaixão, quando atrofia sua capacidade de discernimento, quando não reconhece no outro seus valores, suas qualidades, sua cultura..., temos aí o cultivo do “caldo venenoso” do fanatismo que alimenta a cultura da morte.
Tal modo de proceder implica uma nítida contradição com os princípios próprios do cristianismo, centrados no perdão, no amor ao próximo, no espírito das bem-aventuranças. É uma tremenda incoerência afirmar ser seguidor(a) de Jesus e deixar-se dominar pelo instinto da vingança (“olho por olho e dente por dente”), pelo prazer em disseminar mentiras e expressar ódio, por emitir julgamentos preconceituosos e intolerantes, etc.
É em meio a este mundo marcado pela exclusão, violência, fanatismo... que devemos abrir nossos ouvidos para escutar a proclamação das “bem-aventuranças”, feita por Jesus. Elas não são leis que se impõem a partir de fora, mas dinamismos de vida que já estão presentes no mais profundo do ser humano. Elas mani-festam aquilo que é mais divino e humano no interior de cada um. Pulsa em todos nós um desejo latente de felicidade descentrada, de relações sadias, de convivência harmoniosa, de sensibilidade solidária...
É preciso favorecer ambientes humanizadores para que as bem-aventuranças aflorem com toda intensidade.
Qualquer tentativa de aclarar racionalmente o sentido das bem-aventuranças está fadada ao fracasso. Sem uma experiência profunda do humano, as bem-aventuranças são um sarcasmo. Só a partir do mais profundo sentido espiritual elas podem ser compreendidas e assumidas como um modo humano de viver.
É o texto mais comentado de todo o evangelho, mas é também o mais difícil. Inverte radicalmente nossa escala de valores. Pode ser feliz o pobre, o que chora, o que passa fome, o oprimido?
Proclama-se ditoso o pobre, não a pobreza; ditoso, não por ser pobre, mas porque ele não é causa de que outro sofra. Ditoso porque, apesar de tudo, ele pode destravar(expandir) sua humanidade. As bem-aventuranças não são um sim de Deus à pobreza, nem ao sofrimento, mas um rotundo não de Deus às situações de injustiça. Sempre que agimos a partir do egoísmo, há injustiça. Sempre que impedimos que o outro cresça, há injustiça.
O evangelho não incentiva valorizar a pobreza em si mesma, mas instiga-nos a não ser causa do sofrimento do outro. A pobreza evangélica sempre faz referência ao outro.
Assim, ditoso o pobre, não por ser pobre, mas por não causar pobreza; ditoso o que chora, não porque é sensível, mas por não causar dor aos outros, fazendo-os chorar; ditoso o que passa fome, não porque não tenha nada que comer, mas porque vive a espírito de partilha e não suporta vendo os outros com fome; ditoso aquele que é odiado e sofre perseguição, não por ser incompreendido, mas por sua atitude profética em favor dos injustiçados e excluídos. Esta é a profunda mensagem das bem-aventuranças.
Ser ditoso é ser libre de toda atadura que nos impede expandir nossa humanidade.
Ao proclamar as bem-aventuranças, Jesus está revelando que seu Pai e nosso Pai não é o Deus que vem complicar nossa vida com cobranças, ritos, penitências, mortificações, leis que alimentam culpa... O Deus de Jesus é o “Deus da felicidade” e Ele quer que todos os seus filhos e filhas vivam intensamente a felicidade. Felicidade como integração interior, harmonia nas relações com os outros, sintonia com a criação e abertura filial a Deus.
Em grego, felicidade é “eudaimonia”. A ideia de “eudaimonia” é a de alguém que é impulsionado de dentro para fora. No latim, a expressão correspondente é “felicitas,atis”. Fertilidade e felicidade têm raízes comuns. Somos felizes quando somos fecundos. Não devemos nos afastar da noção de felicidade como fertilidade. O fértil é aquele que mantém a vida. É a marca da bio-proteção, da capacidade de gerar e defender a vida. Sem a possibilidade da felicidade, sem a proteção vital, sem o arremessar para adiante, a gente não se move (em hebraico, felicidade é “mahala”: andar para a frente). A felicidade é um sentimento descentrado, pois perfuma e transforma o ambiente, carregado de tristeza e morte.
É preciso recordar que ser feliz não é ter um céu sem tempestades, caminho sem acidentes, trabalhos sem cansaço, relações sem decepções...
Ser feliz é encontrar força no perdão, esperanças nos desafios, segurança no palco do medo, amor nos desencontros. Ser feliz não é apenas comemorar o sucesso, mas aprender lições nos fracassos. Não é apenas ter alegria com os aplausos, mas ter alegria no anonimato.
Ser feliz é reconhecer que vale a pena viver a vida, apesar de todos os desafios, incompreensões e períodos de crise. Ser feliz não é uma conquista, mas uma atitude de quem sabe viajar para dentro de seu próprio ser e mobilizar seus recursos oblativos. Ser feliz é deixar de ser vítima dos problemas e tornar-se ator da própria história.
Texto bíblico: Lc 6,17.20-26
Na oração: Repassar, sentindo e saboreando, o significado de cada uma das bem-aventuranças, deixando-as ressoar no coração e deixando que o próprio coração revele sua fome e sede de ser bem-aventurado.
- Diante da cultura do ódio que impera em nossa sociedade, como você rea-ge? Você é canal de transmissão de mentiras, julgamentos, preconceitos... ou presença humanizadora, expandindo seus recursos bem-aventurados?
Pe. Adroaldo Palaoro sj
10.02.2022
Imagem: Tissot
“Não tenhas medo! De agora em diante serás pescador do humano” (Lc 5,10)
O relato do evangelho deste domingo começa situando Jesus como um grande pregador-mestre, um guia capaz de congregar muitas pessoas para escutar a “palavra de Deus”. Sua liderança, no meio do povo, parece já em processo de consolidação. Até esse momento, Jesus não tinha seguidores, mas somente ouvintes curiosos. Com este relato, Jesus mostra seu desejo de reunir em torno a si um grupo de cooperadores que prolonguem o movimento messiânico iniciado por Ele: movimento de vida, de novas relações, de esperança alvissareira...
Jesus, o homem integrado, sempre teve acesso ao seu oceano interior e deixou emergir ricas possibilidades, criatividades, inspirações... Seu modo de ser e viver revelou o “novo” presente nas profundezas do seu próprio coração: novo ensinamento, novo olhar sobre a vida, nova atitude, novo compromisso...
Ao mesmo tempo, com sua presença instigante, Jesus despertou, ativou e fez vir à tona o que havia de mais humano nas pessoas que ia encontrando, potencializando-o.
Assim aconteceu no encontro e chamado dos pescadores, homens rudes, mas que carregavam uma nobreza interior. Jesus os desafiou a serem mais humanos: “Farei de vós pescadores do humano”.
“Pescar o humano” é desvelar (tirar o véu) o que é mais nobre e divino em cada pessoa; é ajudá-la a viver com sentido, com paixão, tornando-a melhor, mais humana.
Jesus, com sua presença inspiradora, revelou o dom de despertar e extrair o “melhor” no interior das pessoas: seus recursos, seus desejos nobres, seus sonhos ousados... Sua sensibilidade “tocava” e mobilizava o que que havia de mais sagrado no interior do coração humano, alimentando uma nova esperança e abrindo um horizonte de sentido para todos.
Quando nos deixamos “tocar” por Deus naquilo que mais amamos, brotam os sentimentos oceânicos, a criatividade, o impulso para a comunhão, a integração e a abertura para com a realidade que nos cerca.
Também carregamos em nossa “memória agradecida” uma multidão de pessoas especiais às quais poderíamos dizer com ternura: “tu me fizeste melhor do que eu era..., porque acreditaste em mim de uma maneira que ninguém fazia, porque foste capaz de olhar em mim mais além daquilo que eu via, porque me ajudaste a avançar muito mais do que eu jamais poderia imaginar”.
Aqui também podemos contemplar cada uma destas presenças que nos curam, que nos impulsionam para o novo, que nos fazem mais criativos, que nos abrem um horizonte de sentido, enfim, que geram vida ao estilo de Jesus que passou pela vida tornando melhores as pessoas que encontrava.
Também hoje, Ele continua fazendo com que sejamos cada vez melhores, através de infinitas presenças de pessoas especiais. Sintamos e manifestemos gratidão por cada uma destas presenças inspiradoras em nossas vidas que nos fazem ir além de nós mesmos, nos acompanham, nos dão vida!
Assim como inúmeras pessoas nos tornaram melhores, também nós somos chamados a ser “presenças humanizadoras”, mobilizando a criatividade, a inspiração, a compaixão..., faíscas do divino no coração de cada um(a). Crescer em nosso verdadeiro ser é o melhor que podemos fazer pelos outros e pela criação inteira. A primeira e nobre missão de todo ser humano está dentro dele mesmo, nunca fora. Deus só quer que sejamos autênticos, ou seja, que sejamos o que devemos ser.
Há uma “profissão” (modo de viver, ofício) que é irrenunciável para todos que queremos ter uma existência plena. Podemos chamá-la “expert em humanidade”. Uma especialidade que todos deveríamos ir alimentando ao longo da vida. O “expert em humanidade” é aquele que revela uma sensibilidade para saber ler e vislumbrar o mais profundo e original nas pessoas com as quais compartilha a vida, seja no nível que for: família, amigos, companheiros de trabalho, ministérios, contatos ocasionais...; é aquele que sabe empatizar, escutar, compreender, alegrar; é aquele que está mais descentrado, atento ao que acontece com o outro; é aquele que sabe ajudar de mil maneiras, falando, calando ou servindo; é aquele que sabe estar com crianças, jovens ou idosos e ter uma palavra para cada um; é aquele que sabe fazer com que o outro se sinta único e importante; é aquele que ajuda a extrair o melhor do outro.
Esta “profissão” só se alcança com muita atenção, contemplação e encontro com o outro. Nossa inspiração é Jesus de Nazaré, um “expert em humanidade”; nele podemos contemplar como se exerce este ofício que, sem dúvida, é o mais importante de todos aqueles que a vida nos encarrega. Tudo isso tem a ver com a expressão “vinde comigo e farei de vós pescadores do humano”.
Uma chave importante para a compreensão do evangelho deste domingo está na expressão “remar mar adentro”. Jesus convida os discípulos a lançarem as redes de novo, mas não no mesmo lugar onde sempre
faziam, mas nas águas mais profundas. É muito importante esta indicação porque nos revela algo tão sensato e básico: se queremos obter resultados diferentes, não podemos fazer sempre o mesmo. É preciso ousar, criar, fazer diferente... A mudança de posição frente à vida já não é buscar no mesmo lugar, mas mudar de plano e conectar com as correntes mais profundas que nos trazem uma mensagem de “abundância”.
O olhar para a fonte daquilo que somos nos faz viver numa consciência de superabundância e não de carência; uma superabundância de sentido, de inspiração, de criatividade e não de vida “normótica” (normalidade doentia); uma superabundância que nos situa no milagre de uma nova visão da nossa vida e das nossas relações. O seguimento de Jesus é uma experiência vital de abundância que mobiliza a partilhar, não o que nos sobra, mas o que somos em essência.
À luz do “remar mar adentro”, é preciso romper com o tradicional, quebrar estruturas, revolver consciências, mudar vidas... Isso exige decisão corajosa e iniciativa criadora para gerar outra história, outra maneira de viver, outra esperança...
O ser humano sempre é chamado a reinventar-se, a aventurar-se por mares desconhecidos, a navegar para a “outra margem”, para uma terra nova...
Quem se sente fascinado pelo mar acaba por descobrir a maneira de construir barcos e de navegar.
Para isso é indispensável uma forte dose de ousadia... Não pode fugir, nem trair. Há que ousar para não perecer. Há que aventurar-se e arriscar o primeiro passo. Há que peregrinar infatigavelmente e originar nova humanidade. Há que ser nômade seduzido por novos horizontes.
Ousar é mover-se e agir com destemor. Ousar é desprender-se do lugar onde se está.
Ousar é desamarrar-se, é lançar-se, é atirar-se a um projeto. É atitude corajosa, é ímpeto arriscado.
Ousar é buscar o novo.
A novidade do texto de Lucas está no fato de que Jesus pede a Pedro que volte a pescar em um mar mais profundo, mais distante da margem. Pedro e seus parceiros sempre trabalharam perto da costa; e Jesus os desafia a irem mais além, a serem mais ousados.
Este Pedro, o “aventado e ousado”, que vai pescar mais distante da margem com seus companheiros, é a imagem de uma Igreja que deve se aventurar e romper os moldes antigos, a missão já fixada, a repetição estéril... É evidente que há o risco de fracassar e de se afundar, mas se permanece na margem onde não há ondas, nem desafios... o fracasso já é garantido. Este é o Pedro da Igreja (cada um de nós) que deve encontrar, neste mar-mundo do nosso tempo, o impulso para uma nova criatividade.
Há muito trabalho a ser feito fora dos mares tranquilos das sacristias, que cheiram a mofo.
Texto bíblico: Lc 5,1-11
Na oração: O ser humano é contraditório: pode avançar ou recuar, arriscar-se ou amoitar-se, aventurar-se ou acovardar-se, fazer a travessia ou acomodar-se...
- Qual a força predominante em você?
- O movimento humanizador”, iniciado por Jesus, causa impacto em seu interior, provocando a “travessia” do mar estreito do seu cotidiano para o vasto oceano a que Ele chama?
- Sua maneira rotineira de “pescar” (de viver, de sentir, de amar...) sente-se desafiada a uma maior amplitude diante da proposta que Jesus apresenta?
- Sua presença faz a diferença, despertando o “melhor” nas pessoas com quem convive?
- Suas atitudes são capazes de despertar o que é “mais humano” nos outros, tornando-os melhores?
Pe. Adroaldo Palaoro sj
06.02.2022
Jesus, porém, passando pelo meio deles, continuou seu caminho” (Lc 4,30)
Continuamos com o tema do domingo passado. A expressão “hoje se cumpriu esta passagem da Escritura que acabastes de ouvir” faz conexão com o relato anterior. “Hoje” se cumpre essa Escritura em cada um de nós; é preciso abrir espaço para que Deus cumpra sua vontade amorosa em nossas vidas; Ele não força nem impõe nada: “que se cumpra”, depende exclusivamente de nós. Somos nós que temos continuamente de nos perguntar: “cumprimos essa Escritura que acabamos de ouvir?”
Até o leitor menos atento ficará surpreso com a dissonância que aparece no relato deste domingo: diante da aprovação e admiração que seus conterrâneos expressam, Jesus responde com repreensões, e a cena se conclui com sentimentos de fúria por parte dos ouvintes na sinagoga, a ponto de terminar em tragédia.
Se estivermos bem atentos ao texto, perceberemos que o motivo do conflito e da fúria dos ouvintes parece claro: embora citando dois grandes profetas de Israel – Elias e Eliseu -, Jesus deu destaque a dois personagens estrangeiros como referência (viúva de Sarepta e Naamã, o sírio), em detrimento dos personagens do próprio povo. Para um judeu piedoso era inadmissível que qualquer pagão recebesse um favor divino, antes de alguém pertencente ao “povo eleito”.
Elias e Eliseu são exemplos como Deus atua com relação aos não-judeus. Elias atendeu a uma viúva de Sarepta e Eliseu a um general sírio, e isso deixa em evidência a pretensão de salvação exclusiva que os judeus pretendiam, como povo eleito.
O evangelista Lucas quer “quebrar” este argumento contundente; Jesus desmascara a cegueira coletiva e isso provocou a ira de seus vizinhos que se sentiram agredidos.
“Não é este o filho de José?”. A única razão que os membros de seu povo dão para rejeitar as pretensões de Jesus, é que Ele é mais um do povo, conhecido de todos.
No entanto, aqui está a grandeza de Jesus: sendo um entre tantos, foi capaz de descobrir o que Deus esperava dele. Jesus não é um extraterrestre que traz poderes especiais de outro mundo, mas um ser humano que tira das profundezas de seu ser aquilo que Deus já colocou em todas as pessoas. Jesus fala do que encontrou dentro de si mesmo e nos convida a descobrir e viver em nós o mesmo que Ele descobriu e viveu.
Jesus poderia ter dito muitas coisas aos seus ouvintes, para tranquilizá-los: explicar que Deus não escolhe os seus enviados entre os grandes deste mundo, mas sim entre os pequeninos, a exemplo de Davi, o filho caçula de Jessé. Poderia ter-lhes dito que se tornariam mais imagem de Deus se dedicassem um cuidado especial aos cegos, aos prisioneiros e aos outros deserdados, vítimas do contexto social, político e religioso da época.
No entanto, em lugar de tranquilizá-los, Jesus vai inquietá-los ainda mais. Recorda-lhes, então, que Deus, em tempos de penúria e sofrimento, foi em socorro de estrangeiros, de pagãos, sem qualquer ligação com o povo eleito. Temos aí, em todo caso, o que provocou a indignação dos ouvintes de Jesus. No fundo, o culto a Deus cedeu lugar ao culto ao povo eleito. Este tipo de idolatria não é raro e pode assumir diversas formas: o culto à classe social, à família, à nação, às relações vantajosas, etc.
Tal idolatria chegou ao extremo a ponto de levarem Jesus para fora da cidade, a fim de matá-lo.
É uma antecipação da Páscoa, claro: Hebreus 13,12 destaca que Jesus foi crucificado «fora do acampamento». Mas é este excluído que vai integrar todo o universo com sua presença salvífica.
Como humanos, todos temos a tendência por estabelecer distância entre o próprio grupo – tribo, parentela, família, povo, religião, nação – e todos os demais grupos. Trata-se, sem dúvida de um movimento de autoafirmação, de busca de segurança e defesa frente o diferente. Se, unido a tudo isso, advertimos que nossas próprias crenças são questionadas, é provável que se despertem sentimentos de agressividade, que não são outra coisa que expressão do próprio medo.
Muitas vezes, o zelo religioso, moral ou político degenera em formas de intolerância e fanatismo.
A intolerância e o fanatismo são uma expressão de atrofia espiritual e que tem graves consequências na vida social e no diálogo inter-religioso. É a incapacidade de aceitar os outros em razão de suas ideias, convicções ou crenças. É uma grave debilidade que torna impossível “viver a cultura do encontro” entre pessoas e grupos humanos que pensam, sentem, creem de maneira diferente.
É profundamente desumanizador quando alguém se fecha na cegueira de suas próprias ideias, crenças, ideologias... Frente a essa tendência ancestral e, com frequência, virulenta, uma atitude madura e compreensiva relativiza muros e fronteiras, reconhece a identidade comum e torna possível a vivência da alteridade, no respeito e na confiança compartilhadas.
É o que apreciamos nas pessoas sábias, como se mostra neste caso em Jesus. Sarepta, Síria, Israel: por que a diferença deveria ser entendida como enfrentamento ou exclusão?
Ao compreender o que somos, se distendem as rigidezes instintivas do ego e a intolerância dos esquemas mentais que se expressam nas relações sociais, no campo da política, da religião... São mecanismos de defesa ativados automaticamente, mas carentes de sentido quando nos situamos na compreensão daquilo que somos, ou seja, humanos.
É evidente que aquela mesma resistência contra Jesus se reproduz hoje: argumentos batidos e arcaicos são tomados como pretexto para que seja recusada a verdade presente no outro.
Se em todos os aspectos da vida se faz presente a inércia do costume, mais ainda no campo religioso: há um tradicionalismo de manter intocável o que foi recebido, como se nisso perigasse nossa fé. Sempre fazemos o mesmo e não nos paramos para analisar, para introduzir mudanças e avaliá-las.
É necessário superar a inércia da rotina, do de sempre, do estabelecido. Para não entrar em processos esquizofrênicos é preciso, muitas vezes, desaprender o aprendido. Pensemos, repensemos, provemos, inovemos... Não é esnobismo, nem desejos superficiais de mudar por mudar, mas necessidade de questionar aquilo que não convence e nem serve mais, e buscar o que é mais coerente e essencial. Desconstruir para reconstruir. É um trabalho que é preciso fazer a partir de baixo. Não esperemos que as mudanças venham de cima.
É essa mesma compreensão que nos permite “abrir passagem” e “afastar-nos” dos preconceitos e intolerâncias que nos isolam, nos empobrecem e, em ocasiões extremamente cruéis, desembocam em tragédias. Somente tomando um mínimo de distância de nossos próprios mapas mentais, legalismos, suspeitas... seríamos capazes de rir de nós mesmos diante de tão cegos padrões de pensamento e comportamento; só assim poderemos suavizar nossa rigidez, ampliar horizontes, celebrar e viver a unidade compartilhada em tanta diversidade de maneiras de ser e de viver.
Texto bíblico: Lc 4,21-30
Na oração: Aliado ao conformismo e à segurança está o medo da Mudança; fechamo-nos no conhecido por medo do desconhecido. Marcados pela “normose” (normalidade doentia), ficamos encapsulados num quadrado “mofado”, trancafiados por normas parentais, sociais, culturais e religiosas.
- Também na nossa sinagoga interior carregamos intolerâncias, preconceitos, fanatismos... que depois se expressam no julgamento e na indiferença frente aos diferentes.
- Quê sinais de intolerância e preconceito percebo em minha vida cotidiana? Quando aparecem?
- Minha relação com Deus é intimista ou me abre a uma presença sadia diante de quem pensa-sente-ama de maneira diferente? Sou presença ecumênica ou carregada de suspeita?
Pe. Adroaldo Palaoro sj
27.01.22
“O Espírito do Senhor está sobre mim, porque ele me consagrou com a unção...” (Lc 4,18)
O relato do evangelho deste domingo faz referência ao início da vida pública de Jesus, quando retorna à Galiléia, depois da confirmação de ser o Messias e da experiência de discernimento no deserto.
Jesus se apresenta em Nazaré, onde seus compatriotas aguardam seu “discurso programático”, e Ele causa espanto ao dizer que veio falar-lhes em nome dos pobres e excluídos; e faz isso tomando como próprias as palavras do profeta Isaías.
Movido pelo Espírito, Jesus começa a falar uma linguagem provocativa, original e inconfundível: Ele revela seu compromisso em favor de uma vida nova e libre entre os últimos, onde a vida encontra-se ferida.
Diferentemente dos mestres da Lei e dos escribas, cujo ensinamento estava centrado em “decorar” e conservar a Lei, o ensinamento de Jesus parte da realidade humana de sofrimento, exclusão, preconceito...
Aqui estamos numa sinagoga em dia de sábado: lugar e dia de comunhão, de encontro, de festa... No entanto, na mesma sinagoga Jesus convida a ter um olhar mais amplo para a realidade da exclusão.
Surpreendentemente, o texto não fala em organizar uma nova religião, de impor a carga de uma nova lei ou de implantar um culto mais digno, mas de comunicar libertação, esperança, luz e graça aos mais pobres e excluídos da terra.
Jesus se apresenta como o “ungido” pelo Espírito (Cristo) porque declara cumpridas, em sua vida e em sua pessoa, as promessas da antiga profecia que se revelavam como libertação dos oprimidos, encarcerados e estrangeiros. Ele aparece como o Ungido por excelência; o Pai lhe comunicou seu Espírito para que manifestasse seu dom e sua presença no mundo, anunciando a “boa notícia” aos pobres e necessitados, aos famintos de pão ou carentes de outros bens importantes.
Jesus não oferece doutrinas estéreis, não vem complicar a vida com novas exigências, nem está preocupado em apresentar uma religião diferente, mas revela uma presença original no mundo, comprometida com a vida. Nesse sentido, para Ele, evangelizar passou a significar oferecer vida, abrir caminhos de esperança, reconstruir as relações rompidas... Esta é a afirmação geral, o ponto de partida da missão pública de Jesus.
O Espírito de Deus está em Jesus enviando-o aos pobres, orientando toda sua vida para os mais necessitados, oprimidos e humilhados. Também nessa direção devem se comprometer seus seguidores(as).
Esta é a orientação que Deus quer deixar transparecer na história humana. Os últimos serão os primeiros em conhecer essa vida mais digna, livre e ditosa, que o mesmo Deus quer já, desde “agora”, para todos os seus filhos e filhas.
Após a leitura do texto do profeta Isaías, na sinagoga em Nazaré, a palavra de Jesus move a todos a se situar no presente: “Hoje se cumpriu esta passagem da Escritura que acabastes de ouvir”. Em Lucas, se trata de um “hoje” continuado, sempre atual, com a única condição de que nos deixemos introduzir nele. É um “hoje” que bem poderia ser traduzido por “aqui e agora”, o tempo presente que vai além do tempo cronológico; é o presente atemporal no qual tudo está bem, onde tudo é benção, graça, liberdade e Vida. Um Presente que não é ambíguo, mas que, abraçando todas as dimensões de nossa existência, rica e pobre, se desvela a nós como Plenitude.
A cena do evangelho de hoje termina com uma promessa de vida que tem lugar “hoje”. Da boca de Jesus brota uma palavra de vida, acompanhada de uma certeza que a faz eterna, ou seja, válida para todo momento, em um presente sempre atual: o “hoje” em Lucas significa “todo momento”, qualquer instante em que, ouvinte ou leitores, se abrem à Palavra inspirada de Jesus.
Cada um desses “hoje” remete o leitor a seu próprio presente. Por isso, não perdem nunca sua atualidade, sempre que o leitor ou ouvinte acolha o dom desse “tempo novo”.
E o mais maravilhoso é quando o “hoje de Deus” coincide com o “hoje nosso”. Deus é nosso “hoje”, nós somos o “hoje” de Deus; é no nosso “hoje” que Deus nos fala e realiza maravilhas.
Desse modo, o evangelista Lucas está nos dizendo: essa Palavra é válida também para nós, hoje, com a con-dição de que nos deixemos conduzir por ela. Para todos nós há também uma promessa de vida, que não pode ser bloqueada por nenhum tipo de escravidão e que não se acaba na fronteira da morte.
Antes de mais nada, a expressão “hoje” nos mostra Jesus como um homem que vive em um presente consciente e descansado, sábio e pleno. Deus não é graça ou castigo, boa notícia ou ameaça. Segundo Jesus, Deus é amor e só amor, compaixão e bondade, gratuita e incondicional. Esses atributos divinos se visibilizam no “hoje” de nossa existência.
Deus não só nos liberta, Deus é a libertação. Somos nós que devemos tomar consciência de que somos livres e podemos viver em liberdade sem que ninguém no-la impeça. Também devemos ajudar os outros a descobrir a possibilidade de serem livres. Como Jesus, não devemos deixar que nada nem ninguém nos oprima. Nem Deus, nem os homens em seu nome, podem nos exigir algum tipo de vassalagem.
A liberdade deve ser o estado natural do ser humano. Por isso, a “boa notícia” de Jesus é dirigida a todos aqueles que padecem qualquer tipo de submissão. A enumeração feita por Isaías não deixa lugar a dúvidas: a libertação chega para todos os oprimidos e de todas as opressões.
É preciso recordar sempre: Jesus está longe de um mero assistencialismo... Ao tornar pública sua missão, Jesus inaugura uma nova ordem integral, a única que permite falar de uma libertação real. É importante cair na conta de que muitas vezes quando se fala de “opção preferencial pelos pobres”, na realidade se trata claramente de uma mentalidade assistencial, muito distante do discurso e prática de Jesus no início de sua vida pública. “Evangelizar é libertar através da palavra” (Nolan). Uma palavra que não entra na história, que não se pronuncia, que se mantém em cima do muro, que não mobiliza, não sacode, não provoca solidariedade, não transforma as estruturas geradoras de escravidões... não é herdeira da “palavra bendita” de Jesus.
Jesus é tão “entranhavelmente” humano que nos desconcerta a ponto de parecer estranho, extravagante e, para muitos, escandaloso. Mas, precisamente dessa maneira Ele nos revela, não só sua profunda humanidade, senão o grau de “desumanização” a que podemos submeter os outros, sem darmos conta disso.
Portanto, o sentido de nossa existência cristã não está em “divinizar-nos”, mas em “humanizar-nos” (descermos até o fundo de nossa condição humana). Porque o “ponto de encontro” entre Deus e os seres humanos não foi só o “divino”, senão o “divino humanizado”.
Texto bíblico: Lc 1,1-4; 4,14-21
Na oração: “Hoje se cumpre” a Escritura em cada um de nós. O mesmo Espírito que atuou em Jesus, está atuando em nós. O ego nos separa; o Espírito nos identifica e nos unifica.
- Na oração, procure conectar com essa “divina energia” que está em você, e a espiritualidade será o mais espontâneo e natural de sua vida.
- As palavras de Isaías abrem um novo “sentido” para a vida de Jesus; também para todos nós, seus seguidores.
Elas se cumprem em você, no “hoje” de sua existência? Você se sente também “enviado” a ser presença da Boa Notícia para os pobres, para as vítimas das estruturas sociais injustas? Sua vida é “boa-notícia” para todos?
“Mas tu guardaste o vinho melhor até agora” (Jo 2,10)
Estamos ainda no espírito da Epifania, da manifestação de Deus em Jesus Cristo. A festa dos “Reis Magos” e do Batismo de Jesus formam, tradicionalmente, com as Bodas de Caná, a tríade da epifania.
O acontecido em Caná da Galileia é o começo de todos os sinais, e que se prolongará ao longo da vida de Jesus. A nova purificação não se fará com água que limpa o exterior, mas com vinho saboroso que transforma o interior do ser humano. O vinho-amor como dom do Espírito, é o que purifica, o único que pode salvar definitivamente.
O relato das Bodas em Caná sugere algo mais. A água só pode ser saboreada como vinho quando, seguindo as palavras de Jesus, é “tirada” de seis grandes talhas de pedra, utilizada pelos judeus para suas purificações. A religião da lei escrita em tábuas de pedra está exausta; não há água capaz de purificar o ser humano. Essa religião deve ser libertada pelo amor e pela vida que Jesus comunica.
As talhas estavam ali “colocadas” sem mobilidade alguma. Com isso denota a importância que elas vão ter no relato e seu caráter simbólico. O número seis (sete menos um) é sinal do incompleto. É o número das festas dos judeus que são relatadas no evangelho de João. A sétima será a Páscoa.
As talhas eram de pedra, como as tábuas da lei, e estão significando a Antiga Aliança. A lei de pedra é sem misericórdia, sem amor (vazias, sem água e nem vinho). A lei é a causadora da falta de amor (vinho). Essa consciência de pecado era consequência da infinidade de preceitos, impossíveis de serem cumpridos. Jesus faz tomar consciência de que estão vazias; ou seja, que o sistema de purificação era ineficaz.
Em quê consistiu o primeiro “sinal” realizado por Jesus, no evangelho de S. João?
Mergulhando mais a fundo na cena damo-nos conta de que a água que Jesus transformou em vinho não era água para os usos domésticos ou, mais precisamente, para usos “profanos”; em outras palavras, não era “água para a vida” (beber, preparar refeições, lavar-se, regar...), mas era “água para a religião”.
O Evangelho diz isso expressamente: “Estavam seis talhas de pedra colocadas aí para a purificação dos judeus; em cada uma delas cabiam mais ou menos cem litros”.
Portanto, seiscentos litros de água, armazenadas em talhas de pedra. Expressa-se, assim, em linguagem metafórica, a enormidade e o peso da religião judaica; representa todo o sistema da observância ritual judaica, que impedia as pessoas viverem mais plenamente.
Jesus, na primeira oportunidade que teve, suprimiu a “água da religião” e transformou-a em vinho, no generoso “vinho da vida”, sinal da abundância de vida e do prazer de viver.
Definitivamente, o que Jesus quis dizer, mediante o primeiro dos “sinais” que realizou em sua vida, foi que a velha ordem religiosa havia terminado. A partir de então, Deus manifesta sua “glória” de outra maneira. Jesus traça e marca uma nova maneira de viver uma relação sadia com Deus, que não impõe, nem exige rituais religiosos e purificações sagradas. Em vez disso, Ele se comunica “na vida”, no prazer de viver, na alegria de saborear a vida e a festa, em tudo o que, de maneira espontânea, evoca o melhor vinho que nós, humanos, podemos beber neste mundo.
Jesus “dessacralizou” o templo, o sábado, o sacerdócio, as instituições religiosas judaicas, e “sacralizou” a festa como tempo e espaço de humanização.
A “glória de Deus”, a partir de Jesus, não se manifesta mais no Templo, nos sacrifícios e nas solenidades litúrgicas, mas no prazer da festa e na alegria dos amantes que compartilham o melhor vinho.
Isso é muito humano! E, exatamente por isso, é tão divino.
Jesus, ao se fazer presente em Caná, deu novo sabor e impulso vital (esperança, alegria) às bodas da história humana, passando da pura lei (cântaros de água de purificações) à vida intensa, ao vinho abundante, bom, saboroso, que ativa a alegria da festa; e tudo isso despertado pela sensibilidade de sua mãe Maria (ela é sinal da passagem, de caminho a ser feito para ir do Antigo ao Novo Testamento).
Muitas vezes manipulamos Jesus para continuar tendo à porta de nossas igrejas as “seis talhas de água das purificações” (proibições, normas, ritualismos, doutrinas...). Temos seis talhas de água parada, água de imposições e medos; falta-nos o vinho generoso da vida, para todos, para que a alegria se expanda e todo o mundo seja lugar de bodas. Muitos só conhecem uma “religião aguada”, não podem saborear algo da alegria festiva que Jesus contagiava; e continuarão se afastando das comunidades cristãs.
No entanto, Jesus revela uma presença original numa festa e sua mãe no-lo apresenta para que Ele seja a fonte de vinho, ou seja, do amor, de bodas para toda a humanidade.
Esta é a mensagem do evangelho deste domingo, um dos textos mais belos da história da humanidade.
O pano de fundo de todo o relato é a alegria de um homem e uma mulher que se vinculam no amor e querem que esse amor se expanda e chegue a todos, como amor feito vinho de festa e plenitude prazerosa.
O Reino de Deus se vincula, deste o Antigo Testamento, com banquete e bodas, como destacou uma tradição profética desenvolvida por Oséias e culminada no Cântico dos Cânticos. A vida é, antes de tudo, refeição festiva e amor. Não basta o pão, é preciso o vinho. Uma vida sem amor e sem prazer (vinho e bodas) seca, torna-se estéril, em meio ao círculo da violência, do ódio, da fome e da luta de todos contra todos. É necessário atualizar, com fidelidade criativa, o “sinal” que Jesus realizou para introduzir, em nossas vidas, a alegria do Deus-Pai festeiro; só assim, nossa vida se tornará mais ditosa e com mais sentido.
“Também Jesus e seus discípulos tinham sido convidados para o casamento”. Eles não se encontravam ali desde o início, mas chegaram de fora, para alterar e dar novo curso à festa, que estava correndo risco de se acabar, com a falta do vinho.
Só a chegada de Jesus e seus discípulos desvela uma grande carência. Só quando chega o Amor Maior, descobre-se a falta de amor. Chega Jesus e vemos que há pouco amor no mundo, que as pessoas vivem a pão e água, na dura batalha pela vida, sem poder saborear o bom vinho da alegria e da festa. Certamente, o texto alude a uma falta material de “vinho”, mas é claro que o relato alude a outra carência mais profunda. Não é que só tenha acabado o pouco de vinho; não é que seja questão de ter mais ou menos vinho. Acabou o amor e a solidariedade; acabou o vinho porque alguns beberam demais, acumularam e desperdiçaram tudo. Acabou o vinho (o pão, o vinho, o prazer da vida) porque alguns fizeram a opção pela morte, pelo ódio, pela destruição e divisão; dessa forma, o mundo se transformou em lugar de opressão, de mentira, de festas mortíferas. Esta simples expressão – “eles não tem mais vinho” – é a crônica de um fracasso.
A presença de Jesus e seus discípulos na festa de casamento evoca a chegada de um novo tempo para a nova comunidade dos seus seguidores(as). Jesus, em sintonia com o Pai festeiro, se revela, antes de tudo, como um “animador de bodas”. Não vem cobrar ou impor, mandar ou proibir. Vem com os seus para oferecer bodas ao mundo, bodas festivas, carregadas de amor. Jesus e sua nova comunidade são presenças de bodas: querem que os homens e mulheres possam celebrar suas bodas com bom vinho em todos os tempos.
Texto bíblico: Jo 2,1-11
Na oração: As “talhas das purificações” não são algo do passado. Elas ainda continuam fazendo parte de nossa vivência cristã, marcada pela superficialidade e exterioridade, feita de ritos, moralismos, cansaços, normativas... e que não deixam que o bom vinho Reino se expanda e tenha acesso às dimensões mais profundas do nosso ser. Pois bem, segundo seu evangelho, Jesus nos quer portadores do vinho da festa, animadores da celebração, prontos para o baile, o encontro, o abraço, a vivência do amor, a comunhão. Esta é a imagem que deveríamos revelar ao mundo de hoje.
- Sua vida cotidiana tem a marca do “vale de lágrimas” ou do “vinho saboroso da alegria”?
- Sua presença na comunidade cristã deixa transparecer o “melhor vinho” que brota do seu interior?
Pe. Adroaldo Palaoro sj
13.01.22
“Tu és o meu Filho amado, em ti ponho o meu bem-querer” (Lc 3,22)
Começamos o tempo litúrgico conhecido como “Tempo Comum”. O batismo é o primeiro acontecimento público da vida de Jesus que os evangelhos nos narram. Sem contar os evangelhos da infância de Mateus e Lucas, carregados de significado teológico posterior, todos os evangelistas começam suas narrativas com o batismo de Jesus por João Batista. Os quatro evangelistas ressaltam a importância que teve para Jesus o encontro com João Batista e a descoberta de sua missão.
Além disso, o batismo é o evento mais significativo desde seu nascimento até sua morte. O importante não é o fato em si, mas a carga simbólica que o relato deixa transparecer.
João Batista se encontra no deserto, junto ao rio Jordão; ele leva o templo e o culto ao deserto, que evoca o Êxodo e a liberdade. Descobre-se e vive-se a relação com Deus não tanto nos ritos do templo, mas no caminho do deserto da vida, no caminho para a terra prometida, na liberdade.
Quando ouviu falar de João Batista, que batizava no rio Jordão, Jesus se uniu à multidão e foi também ver João e conhecer o que estava acontecendo ali. Com a multidão, Jesus entrou no Jordão; Aquele que não tinha pecado se faz solidário, compartilha as limitações e sofrimentos da humanidade.
Jesus desce ao profundo das águas de nossas fragilidades humanas; Ele compartilha conosco a densidade de nossa história e de nossas histórias pessoais.
Contrariamente ao que sempre nos foi dito, o batismo não é a prova da divindade de Jesus, mas a prova de uma verdadeira humanidade; Ele é o ser humano que assume sua condição e ora.
Como todas as coisas, tudo tem um processo. Com Jesus não foi diferente; lentamente, Ele foi tomando consciência da proximidade de Deus, de acordo com sua idade, até irromper em plena consciência ao ser batizado no rio Jordão, na idade de 30 anos. Chegou o momento em que, junto com a multidão, e não Ele sozinho como mostram as pinturas, Jesus entrou na água. A um sinal do Batista, Ele se submergiu na água e assim se deixou batizar, como faziam todos. Foi então, testemunham os relatos, quando ocorreu uma grande transformação na vida do desconhecido Nazareno.
Depois de ser batizado, enquanto rezava, diz o texto de Lucas, Jesus sentiu uma tremenda comoção interior: “Tu és o meu Filho amado, em ti ponho o meu bem-querer”.
Ao “descer às águas do Jordão”, junto com a multidão, Jesus sente que em suas entranhas estava o manancial do Amor, que recebia a água viva do Abbá. No batismo se entrelaçaram e confluíram mais ainda suas torrentes.
Lucas não dá nenhum destaque ao fato do batismo em si; ele destaca os símbolos: céu aberto, descida do Espírito e voz do Pai. Imagens que no AT estão relacionadas com o Messias. Trata-se de uma teofania. Segundo aquela mentalidade, Deus está nos céus e tem que vir dali. Quando os céus se abrem é sinal de que Deus se aproxima dos homens. Esta vinda deve ser descrita de uma maneira sensível, para poder ser compreendida. O importante não é o que aconteceu fora, mas o que Jesus viveu dentro de si mesmo.
A linguagem bíblica expressa a experiência interior usando expressões pictóricas e simbólicas: o céu se abriu e viu-se o Espírito descer sobre Ele em forma de pomba. Trata-se de uma representação plástica para expressar uma radical e originalíssima experiência espiritual vivida por Jesus, impossível de ser expressa com palavras. A partir daí ocorreu uma verdadeira revolução em sua vida: sente-se Filho amado de Deus-Abba. É invadido por uma paixão de amor divino que revirou sua vida. Experimentou uma absoluta e direta proximidade de Deus. Já não é Ele quem busca a Deus, mas foi Deus que o buscou e o assumiu como seu Filho querido. Essa é a incrível revolução: a proximidade amorosa de Deus-Abbá.
Aqui se encontra a grande singularidade relatada pelos evangelistas: dar testemunho da proximidade radical de Deus, do Deus que busca intimidade não só com Jesus de Nazaré, mas com todos os seres humanos, independentemente de sua condição moral, social, religiosa e de sua situação de vida. Trata-se do transbordamento do amor gratuito de Deus para seus filhos e filhas.
Com isto se inaugura um novo caminho, diferente daquele da observância da Lei e das distinções que se fazem entre bons e maus, justos e injustos. Não é esse o “modo de ser e agir” do Abbá de Jesus: Seu olhar e sua lógica é totalmente diferente, como se revelou e se visibilizou no batismo de Jesus, membro do grupo dos pobres de Javé. Neste, irrompe um amor divino ilimitado, oblativo, gratuito, começando por aquele de quem nunca falam, que nunca foi a uma escola de teologia, quando muito à escolinha bíblica da sinagoga. O Nazareno veio deste meio. Não pertence ao mundo dos letrados, dos juristas, da casta sacerdotal ou de algum status social. É um anônimo, mais acostumado ao trabalho manual que ao uso da palavra, um a mais que entra na fila dos pecadores para ser batizado, “descendo” às águas da humanidade.
A experiência de Deus que Jesus teve no batismo não foi uma faísca que aconteceu num instante. Antes, temos de pensar numa tomada de consciência progressiva que lhe fez experimentar essa proximidade do Abbá e que depois buscou transmitir aos seus discípulos. Para nós, isto é muito importante. Uma toma de consciência de nosso verdadeiro ser não pode acontecer da noite para o dia.
Os evangelistas nos repetem continuamente que Jesus, em diferentes momentos de sua vida, teve a experiência de ser Filho Amado. E ponto. O resto são envoltórios.
De repente tudo mudou: inundado da proximidade amorosa de Deus Jesus se pôs a pregar com tanto entusiasmo e sabedoria que os ouvintes comentavam: “De onde lhe vem essa sabedoria? Não é ele o filho do carpinteiro?” (Mt 13,54-55).
Andando com pessoas de má fama, Jesus ia lhes mostrando a proximidade amorosa de Deus.
Por que fazia isso? Porque quis levar a todos, especialmente aos socialmente desqualificados - os leprosos, os paralíticos, os cegos -, mas também aos pecadores públicos, aos desesperados, a novidade de que Deus está próximo de todos eles. Jesus, transbordando do amor de Deus-Abbá, sai do seu batismo com a nobre missão de anunciar essa novidade da proximidade incondicional de Deus que se faz para todos o “Abbá generoso”.
A partir de então, o decisivo não é a prática minuciosa da Lei e das tradições cuidadosamente observadas, mas deixar ressoar no coração aquela voz que Deus-Abbá disse a Jesus e que agora repete para todos: “vós sois minhas filhas e filhos amados, em vós encontro meu regozijo”. Isto soa primeiramente como surpresa e depois como uma inaudita alegria e libertação. Esta é a boa notícia, este é o Evangelho.
Esta surpreendente proposta requeria e requer uma resposta. Exige mudança de mente e de coração.
Assim entendemos o que é ser comunidade cristã: antes de tudo, ela é um batistério, um lugar onde homens e mulheres podem nascer para uma vida mais alta e expansiva, de vinculação com Deus, de comunhão humana, ou seja, de batismo, de novo nascimento.
A Igreja existe na medida em que é capaz de oferecer um espaço de nascimento (de batismo) a todos. Neste contexto se situa a experiência cristã do batismo, como sacramento que expressa o nascimento em Deus, uma experiência de filiação celebrada e partilhada em comunhão com todos.
Texto bíblico: Lc 3,15-16.21-22
Na oração: O sacramento do batismo é um dos muitos caminhos que podem nos ajudar a descobrir que somos filh@s amad@s. Mas, em nossa vida cotidiana, que conexão há entre ser batizado e sentir-nos amad@s, como Jesus?
- A experiência pessoal de ser e sentir-nos filh@s amad@s marca um antes e um depois em nossa vida? Até que ponto é a experiência fundante, a raiz de nossa vida cristã?
- Sentir-nos amad@s fundamenta nosso comportamento moral, social... S. Inácio entendeu isso muito bem: “O amor é a partilha do ser e do ter”. Descobrimos que a “proximidade amorosa” de Deus nos compromete a ser presença amorosa na relação com os outros?
- Rezar seu compromisso batismal: que implicações isso tem em sua vida? Faz diferença?...
Pe. Adroaldo Palaoro sj
06.01.22
“E a estrela, que tinham visto no Oriente, ia adiante deles, até que parou sobre o lugar onde estava o menino” (Mt 9,2)
A chave da celebração da Epifania é a universalidade da mensagem. No Natal nos encontramos com o “Deus encarnado”; hoje celebramos o “Deus manifestado”. E a manifestação de Deus é universal, enquanto ao tempo e enquanto ao espaço, ou seja, Ele está continuamente se manifestando e se manifesta em toda a Criação e em toda a humanidade. Tudo é transparência de Deus, ou melhor, Deus se deixa “trans-parecer” em tudo e em todos; Ele sempre se manifesta a todos, embora só consegue descobri-Lo aquele que O busca, todo aquele que tem um olhar contemplativo e atento.
O relato dos Magos vai nesta direção. Eles descobriram a estrela porque se dedicavam a investigar o firmamento; foram capazes de levantar os olhos da terra. Eles, apesar de estarem distantes, viram a estrela; a imensa maioria daqueles que estavam ao redor do recém-nascido nem se deram conta, pois estavam preocupados em encontrar Deus nos “lugares” manipulados pelas autoridades religiosas. Outros estavam empenhados em descobri-lo no extraordinário, mas a verdade é que Deus se manifesta exatamente nos acontecimentos mais simples e cotidianos. É preciso ter uma fina sensibilidade para descobrir essa presença.
A Epifania, como manifestação da presença de Deus no mundo, ultrapassa toda fronteira geográfica, religiosa, racial..., preenchendo de luz, de verdade e de vida tudo quanto existe em todo tempo e espaço.
Os Magos não eram judeus, mas estrangeiros; viram brilhar a luz na noite da vida. São eles que buscam e encontram a Luz, pois Deus não é patrimônio exclusivo de um lugar ou de uma nação. Deus se dá a conhecer a todos, seja de que nação for.
Mas, Herodes e a instituição do Templo não sabiam onde tinha de nascer a luz, o Messias. “Os sábios e entendidos” conhecem tudo, mas não creem em nada; conhecem a verdade, mas estão longe dela, pois permanecem fechados em suas doutrinas e ritos; não dão um passo sequer para “seguir a estrela” em busca da verdade e da esperança. Eles já sabem tudo sobre o Messias, mas, instalados em seus privilégios religiosos e sociais, não movem um dedo sequer para comprovar. Estão muito satisfeitos com o que tem. Permanecem com seu conhecimento e seus livros.
A mensagem do relato da Epifania nos faz compreender que o amor à Verdade e a busca da Luz nos fazem nômades, ao contrário dos instalados e satisfeitos. Quantas vezes, nós cristãos, temos conformado em indicar a direção aos outros sem sair de nossos lugares atrofiados para acompanhá-los.
Esta diferente atitude dos “magos” nos faz pensar.
O fato de que em um determinado momento, os magos perguntem a Herodes e este, por sua vez, pergunte aos que conhecem as Escrituras é muito interessante. As Escrituras podem servir de pauta, podem nos indicar o caminho a seguir quando atravessamos lugares ou tempos sem estrela. Mas o valor da Escritura depende da atitude daquele que a lê. É preciso aproximar-se da Bíblia sem pré-juizos; não para buscar argumentos a favor daquilo que já acreditamos, mas abertos ao que ela vai nos dizer e indicar, embora seja diferente daquilo que esperamos.
Diante de milhões de estrelas que brilham no firmamento, os magos descobrem a de Jesus; diante de milhares de estrelas que chamam a atenção em nosso mundo, precisamos descobrir a nossa.
A luz da estrela põe os Magos em marcha. Preciosa mediação que mobiliza sua busca e direciona suas vidas para o encontro. Os sinais são mínimos, cotidianos, demasiado simples.
Mateus descreve a reação deles afirmando que “ao ver a estrela, encheram-se de imensa alegria”.
Buscavam o Rei dos judeus e se encontraram com um Menino em um presépio. Buscavam a Deus e viram um Menino. Buscavam um Palácio real e encontraram com uma gruta de pastores. Ficaram assustados e assombrados com a descoberta. Conta o relato de Mateus que aqueles sábios do Oriente chegaram até onde estava o Menino, e caíram de joelhos (prostraram-se) diante dele. Não diz que se ajoelharam, mas que caíram, literalmente. É algo que na vida dos seres humanos acontece poucas vezes.
Diante do Mistério não se discute; diante do mistério prostra-se. O Mistério não é para ser compreendido, mas adorado. Diante do mistério de Deus é preciso que a razão se ponha de joelhos; frente ao mistério de Deus só resta a admiração, o espanto. Quando queremos conhecer “algo” de Deus, são melhores os joelhos que a razão. Quando queremos “entrar” no mistério de Deus, melhor é nos determos à porta para adorá-Lo. Quando queremos encontrar a Deus, é melhor caminharmos de joelhos.
Os representantes religiosos e sociais de Israel não foram a Belém para adorar o Menino Deus. Eles “conheciam”, de algum modo, o mistério, sabiam que o Messias devia nascer em Belém, mas não quiseram ir ao seu encontro para lhe oferecerem o tesouro de suas vidas, pois estavam petrificados em suas sacralidades doutrinárias e legais. A subida messiânica a Jerusalém ficou truncada desde o nascimento de Jesus, pois esta cidade nunca o acolheu.
Os representantes religiosos da época (os sacerdotes) e a cultura do momento (os letrados) se limitaram a cumprir seu papel. Deram toda informação necessária a Herodes para chegar a Jesus, mas, acomodados e instalados em seu saber e posição social, não sentiram o mínimo interesse em se deslocar até Ele; talvez não sentissem necessidade de libertador algum.
Nossa história de salvação está repleta de pessoas que, à luz da normalidade da vida, são diferentes. São homens e mulheres que acolhem, em sonhos ou despertos, as delicadas luzes que só o Deus de amor pode presentear com sua delicadeza. Com sua luz tênue e constante em seu interior, apontam sempre para Aquele que é Fonte de toda luz.
Na experiência da vida cristã buscamos ser como os magos: desejosos de encontrar a Vontade de Deus, atentos para reconhecer “estrelas” na noite e ágeis para segui-las, capazes de pedir ajuda quando nos perdemos e apaixonados por descobrir um caminho que, no fundo, é o caminho do mesmo Deus.
Como os Magos, também nós nos dirigimos primeiramente aos palácios de nossa sociedade do bem-estar e aos “Herodes” contemporâneos, até que nos damos conta de que ali não encontramos o que estamos buscando, que ali se anula e se anestesia a vida, essa vida de Deus que quer crescer em nós.
É preciso, de tempos em tempos, viver a atitude da “prostração” como gesto de humildade, descendo do pódio existencial quando acreditamos ser os melhores, os mais sábios, os mais perfeitos...
Epifania é esvaziamento de nosso “ego” para que a Luz de Belém seja a nossa referência constante.
Texto bíblico: Mt 2,1-12
Na oração: É próprio, neste momento festivo, fazer esta pergunta: quem ou o que foi estrela, revelação em minha vida, neste ano que findou? A quê estrela sigo? Para onde ela me conduz?
- Ou, pelo contrário, perdi a estrela de minha vida e são sei para onde vou?
- Sou estrela-guia para os outros?
Pe. Adroaldo Palaoro sj
01.01.21
“Os pastores voltaram, glorificando e louvando a Deus por tudo o que tinham visto e ouvido” (lc 2,20)
Nem todos os tempos são iguais. Uma coisa é o tempo do calendário, o contínuo movimento dos momentos, todos idênticos; e outra coisa é a vivência humana do tempo: há momentos em que o tempo se faz longo e outros em que se faz curto. Mais ainda, o tempo pode ser vivido como uma experiência opressiva e limitadora ou como uma experiência de plenitude. Quando vivemos o tempo como uma oportunidade para acolher o novo, para abrir-nos às surpresas da vida e para fazer-nos presentes gratuitamente, realizamos uma experiência positiva do tempo.
O tempo se torna “kairós”, ou seja, o momento oportuno para construir algo vital que possa transformar nossas vidas, o tempo propício onde todas as possibilidades estão à nossa disposição.
Integrar-nos mais pacificamente no fluir do tempo, vivê-lo amavelmente sem stress, reconciliar-nos com o tempo, desfrutá-lo com prazer e alegria de modo distendido e com paixão, ter a tranquilidade suficiente para realizar com gosto, criatividade, paz e concentração as atividades que nos cabem assumir... eis a questão! Buscar uma nova maneira de viver o tempo, de senti-lo, de captar sua força e beleza, seu sentido e sua plenitude...de perceber o pulsar profundo de nosso modo de estar na vida... eis o desafio!
Nos momentos de alegria, de prazer, de descanso, de festa... o tempo torna-se um aliado que constrói nosso ser, uma energia que nos alimenta, que nos capacita para o melhor e o mais alto.
A espiritualidade bíblica, marcada pelo “tempo” de Deus, pode nos ajudar a fazer essa “passagem” do “tempo insensato” (sem sentido) ao “tempo sensato” (com sentido). Tal espiritualidade é uma boa notícia com respeito ao modo de “estar no tempo” e nos introduz na dinâmica da vida que se abre às surpresas do “Senhor dos tempos”. Nessa perspectiva, não vivemos o tempo como se este fosse algo meramente plano e indistinto. Cada ano, cada dia e cada momento tem seu matiz, sua cor e sua novidade.
Somos seres de “travessia”, no tempo e no espaço. Cada ano de vida que passa, outro surge à nossa frente, ativando em nós dinamismos mais nobres, desejos mais oblativos, energias mobilizadoras…
Às vezes fica a sensação de que não conseguimos agradecer o suficiente diante de tudo o que foi vivido. Reconhecemos que uma lista interminável de situações e vivências não foram bem integradas e que é preciso reservar algum momento para trazê-las à memória, relê-las, re-significá-las, saboreá-las e dar graças.
Assim entendida, poderíamos dizer que a existência inteira de uma pessoa sábia é vivida entre duas palavras: “obrigado” e “sim”. Diante de tudo o que foi, “obrigado”; diante de tudo o que virá, “sim”.
Entre o “obrigado” e o “sim” transcorre a vida sábia. Isso traz uma profunda gratidão, pois só ela integra os tempos – passado-presente-futuro – no “Hoje” eterno de Deus. Só a gratidão é capaz de despertar os dinamismos e recursos internos para viver o “novo tempo” com mais inspiração e criatividade.
Nesse sentido, a memória agradecida é o húmus natural de onde brota a gratidão.
Ao fazer memória dos dons e bens recebidos do ano que passou, brota naturalmente do nosso interior, o desejo de dar uma resposta generosa e radical ao Deus que é Fonte de tudo. É a gratidão que ativa em nós o ânimo e a generosidade diante do futuro de nossa vida.
“A gratidão é a memória do coração” (Paul H. Dunn))
Aquele que é marcado pela experiência de que é tudo é dom e dado pelo Deus providente, adquire a fina percepção de que tudo é graça, tudo é “de graça”, somos “agraciados”, “cheios de graça”...
É Ele mesmo que, ao criar-nos gratuitamente no amor, nos ensina a “sermos gratuitos e gratos”.
Só Ele é capaz de dar o verdadeiro sentido e força à expressão “de graça”; só a generosidade gratuita do coração de Deus é capaz de reconfigurar mentes e encorajar atitudes oblativas em nós.
Se a memória da mente é a lembrança, a do coração encontra expressão na gratidão. Afinal, ser grato é uma forma de memória: memória agradecida, redentora. Normalmente, vivemos inúmeras bênçãos diárias que esquecemos. Quanto maior a memória do coração mais ele poderá nos mostrar o quanto somos gratos.
Na espiritualidade cristã, a gratidão nasce com naturalidade e espontaneidade nos corações humildes, nas pessoas conscientes de que aquilo que recebem não é por mérito ou retribuição. Tudo é gratuidade.
O agradecimento é a experiência humana que mais mobiliza a generosidade da pessoa; a gratidão é a mais agradável das virtudes: quê virtude mais leve, alegre, mais luminosa, mais humilde, mais feliz!!! É por isso que ela se aproxima da caridade, que seria como a gratidão sem causa, uma gratidão incondicional.
A experiência nos diz que a gratidão, juntamente com o amor, é um dos sentimentos mais terapêuticos, capaz de sustentar nosso “elán vital”. Por um lado, nos afasta do funcionamento da queixa, da lamentação e do pessimismo diante de tudo o que aconteceu; por outro, ela constitui o melhor antídoto frente ao desalento ou o desânimo.
A gratidão nos centra, nos resitua, nos faz porosos, nos abre a dimensões infinitas, arrancando-nos de mecanismos egocentrados, que nos fazem girar sobre nós mesmos de um modo doentio.
Através de uma simples observação poderemos tomar consciência que a gratidão verdadeira não depende tanto daquilo que nos acontece, quanto do modo como recebemos tudo o que nos acontece. Se agradecemos só quando ocorre algo que consideramos “agradável”, é sinal que ainda não saímos de nosso egocentrismo.
Como o amor, como a alegria...., como tantos outros sentimentos nobres, a gratidão é uma arte. E, enquanto tal, precisa ser exercitada no ritmo cotidiano, onde, conscientemente, damos graças por tudo.
Na medida em que exercitamos a gratidão, ela vai nos transformando interiormente e enriquecendo nosso modo de viver a relação com os outros, com as criaturas e com o Criador Em certo sentido, poderíamos dizer que ela expande o nosso coração, favorece a alegria de viver, reforça os laços e facilita poderosamente a convivência. Por isso, quando sabemos olhar em profundidade as pessoas e a realidade, a gratidão aflora sem obstáculos. Pelo contrário, quando permanecemos presos às nossas expectativas, a frustração inevitável trará consigo a resistência, o sofrimento, a queixa, o vitimismo...
Sem a gratidão corremos o risco de nos “secar por dentro” , perdendo a simplicidade, a espontaneidade, a criatividade, a ternura... Só a gratidão alimenta a consciência de que vivemos um tempo único, um tempo decisivo para um contínuo renascimento em direção a um horizonte de sentido.
Com isso, reconhecemos e crescemos na compreensão de que, a partir da partir da dimensão espiritual, a gratidão não é simplesmente uma atitude ou qualidade, algo que podemos viver com maior ou menor intensidade; mais do que isso, a gratidão é outro nome de nossa identidade profunda: somos Gratidão.
Ao vivê-la conscientemente, experimentamos unificação e plenitude: estamos vivendo o que somos.
Texto bíblico: Lc 2,16-21
Na oração: É importante alimentar a gratidão, mantê-la viva e ativa. Não é natural que percamos a consciência do muito que temos recebido e continuamos recebendo, como possibilidades de vida e de sentido, como dons e capacidades, como criatividade e sonhos...
Tudo se pacifica quando a gratuidade marca seu ser por inteiro. A vida nova vem da Vida recebida e partilhada.
- Neste início do novo ano, assuma a atitude de pensar e falar agradecidamente, com gestos gratuitos.
- Diante d’Aquele de quem tudo procede, faça memória de todos os dons recebidos, deixando brotar do seu coração uma atitude de contínua ação de graças.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
29.12.21
Há uma síndrome do Natal, como o há da primavera. Às vezes chega a primavera e não nos conseguimos adaptar facilmente a tamanha vitalidade, ao apelo ao renascimento que se pressente em nosso redor. Sentimo-nos embaraçados com essa espécie de recomeço do mundo, estranhamente vulneráveis e vazios, num frustrante desacerto com o surto primaveril. E a mesma coisa pode acontecer em relação ao Natal. De repente, no turbilhão dos dias, vemos avizinhar-se o Natal com todos os compromissos, com o que é necessário preparar, com o que tem de ser — e olhamos para ele esmagados. Há anos em que nos descobrimos entusiasmados por viver este tempo, e há outros em que parece uma violência tudo isto, porque nos percebemos em contraciclo, numa desamparada desolação. É para quem se sente assim que escrevo este texto de Natal.
Sim, o Natal não é apenas a festa do brilho e da abundância. Não é apenas a ronda das vozes felizes. É a festa dos esfomeados, dos sedentos, dos inquietos, daqueles que querem mais, dos que não se conformam com o apaziguamento de rotina, dos que sentem que tem de haver alguma coisa que vá além, dos que obstinadamente tateiam uma verdade, uma razão ou uma brecha algures no cerco da muralha. O Natal é a festa daqueles esfarrapados que não deixam de farejar longe até às estrelas, disponíveis para segui-las para lá das marcas das fronteiras, mesmo se por um incompreensível caminho colado ao chão, como o fizeram os Magos. Ou daqueles que, vivendo expostos ao relento, escutam a boa-nova de uma alegria e acreditam nela. Acreditam que possa ser possível o que habitualmente se declara impossível. E, mesmo na noite, trémulos, precários e puros, partem ao seu encontro, como aconteceu com os pastores de que o Evangelho fala. O Natal não se espelha apenas na fartura de sinais. Toca-se também na escassez e no desabrigo. Na solidão e na margem. Na força nua das direções e das perguntas sem resposta. Sendo assim, que tem o Natal eterno a dizer-nos? Que, no Mistério da Encarnação, a nossa humanidade passa a valer mais. Mesmo na sua indefinição, turbulência ou ruptura: passa a valer mais. Porque, aquele que nasce na manjedoura inaugura um novo ponto de vista, uma compreensão mais ampla, uma hermenêutica dissidente, faz uma leitura mais a fundo daquilo que somos.
Nós olhamos para um homem e dizemos logo: “Um homem é pouco para mudar a história.” Na verdade, que pode um homem perante a complexidade das coisas! Apressamo-nos, por isso, a descrer das suas possibilidades. Seria necessário não um homem, mas um super-homem que efetivamente superasse a endémica vulnerabilidade que trazemos. Seria necessário um ser apetrechado de tudo o que nos falta ou não somos. Uma versão melhorada daquilo que conhecemos. Porém, a história que o Natal desdobra aparece tatuada não no poder, mas na fragilidade; não na diferenciação, mas no desejo de aceitar tudo e se tornar semelhante. Afinal basta um homem. Deus manda à terra o seu Filho e ele vem sem nada, pobre, investido da fragilidade que contemplamos em nós próprios. Mas o Filho, “o Menino que nos foi dado”, vem audaciosamente revelar isto: que a nossa humanidade é o lugar da habitação de Deus. A impreparada humanidade, que tantas vezes nos desilude, a nossa vida inconcludente é a manjedoura de Deus. Por isso, o presépio não exclui ninguém. Ele integra a humanidade na sua inteireza, e ainda mais quando se trata de humanidades feridas. Da humanidade dos últimos, da humanidade subtraída, da vida dos excluídos, dos que se sentem sozinhos ou desadaptados, dos que atravessam o presente desejando outra coisa.
Cardeal Dom José Tolentino Mendonça
24.12.21
Imagem: pexels.com
“Encontrareis um recém-nascido envolvido em faixas e deitado numa manjedoura” (Lc 2,12)
Jesus “desce” aos rincões da humanidade; sua Luz brilha no interior da gruta e a partir daí ilumina todo o universo. As grutas sempre despertaram fascínio nos seres humanos; possuem uma força atrativa e guardam segredos em seu interior. Ao mesmo tempo simbolizam o desejo permanente de retornar ao ventre materno, lugar de segurança, de aquecimento...
A contemplação do Nascimento de Jesus nos impulsiona a fazer a travessia para o interior de uma Gruta: ali o Grande Mistério se faz visível e revelador do sentido da existência humana.
Trata-se de “entrar” nela com suavidade, de percebê-la e fazê-la descer até o coração, de convertê-la em matéria de consideração, de oração silenciosa e surpreendida.
A contemplação do Menino Jesus na Gruta revela que Deus assumiu a aventura humana desde seus começos até seu limite (vida, amor e morte). Deus se fez “tecido humano”, revestiu o ser humano de sua própria glória, plenificou-o de sentido e de finalidade. No nascimento de Jesus é revelada a grandeza, a dignidade, o mistério inesgotável do ser humano. Nossa humanidade foi divinizada pela “descida” de Deus.
Acolhido pela natureza, presente na Gruta, Deus se deixou impactar por tudo aquilo que o rodeava. Tudo isso é Deus na nossa carne quente e mortal. Um Deus que “adentrou” na humanidade e de onde nunca mais saiu; um Deus que agora pode ser buscado em nossa interioridade e em tudo o que é humano.
Na pobreza, na humildade da nossa própria história pessoal, inserida na grande história da humanidade, torna-se possível acolher o dom do amor de Deus visível na Criança de Belém.
A linguagem da Gruta de Belém é poderosa; é intensa; é urgente; é um reflexo de presenças e encontros, de assombro e de silêncio. No seu interior ressoam as palavras mais humanizadoras e mais vivas: justiça, bondade, liberdade, igualdade, paz, compaixão, alegria, acolhida... Palavras que não podem ser esqueci-das, sepultadas ou banalizadas por modismos ou novidades. Palavras que só podem ser pronunciadas diante do “Deus que se faz Criança” para que fiquem gravadas a fogo em nosso coração e se visibilizem na nossa maneira de ser e viver.
A Gruta também nos recorda que “Deus é Palavra”; uma Palavra que se fez Vida e acampou entre nós. Uma Palavra inspiradora, chocante, coerente, feita “carne e sangue”, feita “lágrima e riso”. Palavra que se faz proximidade, encontro, abraço...; Palavra que é de sempre e é eterna.
O fato de que Deus tenha decidido salvar-nos a partir de uma gruta que recolhia animais é, sem dúvida alguma, a revelação mais desconcertante d’Ele. Nosso Deus é certamente contracultural, inesperado, surpreendente, pois não corresponde às ideias que forjamos d’Ele, é diferente, não é óbvio que Ele seja assim.
É preciso estarmos abertos para as surpresas de Deus!
Entremos, pois, na gruta, mas não de qualquer maneira. Estamos frente a um mistério santo: Deus se fez um de nós, compartilha nossa pobreza e precariedade. Aqui só tem lugar as atitudes interiores e corporais de agradecimento, humildade, reverência e serviço.
Se contemplarmos Jesus na manjedoura, longa e amorosamente, experimentaremos que algo nos move a mudar dentro de nós: uma mudança de sonhos e esperanças, uma mudança no modo de nos situar no mundo, de nos relacionar com os outros, conosco mesmos e com Deus.
Aqui está enraizada a convicção de que Belém pode mudar nossa vida. O “mistério” contemplado atinge as camadas mais profundas do afeto e do coração, gerando novidade em nossa vida cotidiana.
A contemplação do mistério do Nascimento de Jesus ativa em nós uma maneira cristificada de ser e de estar no mundo; nossa presença e nossa missão fazem do mundo em que vivemos um lugar transparente, santo e luminoso em Deus. “Entrar na Gruta” do Nascimento nos expande e nos lança em direção ao mundo, à humanidade, nos faz mais universais e nos capacita para sermos contemplativos nas relações.
Na espiritualidade cristã, quem experimenta o encontro com o Deus vivo e amoroso, começa a “ver” os homens e as mulheres no mundo como Deus mesmo os vê. Precisamente por ter-se encontrado com o Deus-Amor, a pessoa torna-se mais “encarnada” na realidade e mais comprometida com os outros, sobretudo com os mais pobres, os mais sofridos e excluídos; é aquela que mais se compromete com a justiça e é a que mais desenvolve uma criatividade eficaz na história, com obras que nos surpreendem.
O mistério do Nascimento nos sensibiliza e nos capacita para nos aproximar desse nosso mundo com uma visão mais contemplativa. O “subir” até Deus passa pelo “descer” até às profundezas da humanidade.
Como “contemplativos nos encontros”, movidos por um olhar novo, entramos em comunhão com a realidade tal como ela é. É olhar o mundo como “sacramento de Deus”; um olhar capaz de descobrir os sinais de esperança que ali existem; um olhar afetivo, marcado pela ternura, pela compaixão e gerador de misericórdia; um olhar gratuito e desinteressado, “janela da alma”, que nos expande numa atitude acolhedora de tudo que nos rodeia; um olhar que rompe distancias e alimenta encontros instigantes.
É preciso sair dos limites conhecidos; sair de nossas seguranças para adentrar-nos no terreno do incerto; sair dos espaços onde nos sentimos fortes para arriscar-nos a transitar por lugares onde somos frágeis; sair do inquestionável para enfrentarmos o novo...
É decisivo estar dispostos a abrir espaços em nossa história a novas pessoas e situações, novos encontros, novas experiências... Porque sempre há algo diferente e inesperado que pode nos enriquecer...
A vida está cheia de possibilidades e surpresas; inumeráveis caminhos que podemos percorrer; pessoas instigantes que aparecem em nossas vidas; desafios, encontros, aprendizagens, motivos para celebrar, lições que aprendemos e nos fazem um pouco mais lúcidos, mais humanos e mais simples...
Queremos, neste Natal, manter abertas as portas da esperança para todos os seres humanos, em um caminho que vai nos conduzindo à Vida. É preciso fazer a “travessia” do “natal” do nosso ego, autocentrado e consumista, ao Natal que desperta em nós as melhores energias de vida, sempre em favor da vida.
E poderemos sentir a alegria de Maria, de José e dos anônimos pastores; a indizível alegria, aquela que só pode ser recebida como presente e da qual nasce o compromisso mais radical e esperançoso pela transformação social que nosso mundo tanto necessita.
O nascimento de Jesus em uma Gruta desmascara esta dura realidade: portas fechadas, uma cidade cheia, a falta de hospitalidade ou de atenção de um povo... Natal continua sendo um tempo de contrastes, uma história de luz e sombra, de possibilidades e de oportunidades; enquanto uns se deixam afetar pela surpresa de Deus que entra na história pelo lado dos mais fracos, outros nem se dão conta daquilo que está acontecendo. Enquanto alguns estavam despertos e bem atentos, outros estavam bem protegidos, perdidos em suas histórias, em suas preocupações e compromissos, em suas urgências e interesses, dormindo tranquilamente, sem se inteiraram de que ali, a poucos metros, um menino nascia. Não foram capazes de descobrir algo admirável naquele Menino deitado numa manjedoura, porque nem sequer o viram; perderam a capacidade de estar atentos, de manter os olhos abertos e o coração sedento.
Texto bíblico: Lc 2,1-14
Na oração: Faça um “deslocamento” em direção à sua “gruta interior”; com os olhos bem abertos e curiosos dos “humildes pastores” descubra as surpresas que ali Deus continua realizando.
- Abra-se, com profunda gratidão, ao dom da Vida que se faz vida nas profundezas de seu ser.
Um abençoado Natal a todos!
Pe. Adroaldo Palaoro sj
22.12.21
Quando Isabel ouviu de Maria, a criança pulou no seu ventre e Isabel ficou cheia do Espírito Santo”
A grande e boa notícia da Anunciação não levou Maria a ensimesmar-se e a submergir-se numa reflexão estática do Mistério que se desenvolvia em seu ventre. Pelo contrário, moveu-a a colocar-se prontamente e com pressa em caminho: “levantou-se, dirigindo-se apressadamente à região montanhosa”.
De onde brota tanta prontidão?
O caminho interior, que começou com um chamado de Deus, não é um caminho reto e plano, mas serpenteante e tortuoso, interpelador e cheio de novidade.
O anjo deixou Maria motivada para empreender uma nova etapa em sua vida através do encontro com sua prima Isabel. Está claro que a Anunciação estava pedindo Visitação desde o primeiro momento.
Maria, a quem foi anunciada, corre a visitar para anunciar. O ícone da Visitação, com o forte abraço de Isabel e Maria, nos ajuda a entrar e interiorizar o tempo do Advento, com sua mensagem esperançosa, aberta ao novo. Lucas nos diz que o AT chegou a seu fim, já não pode gerar mais vida. Isabel representa a “travessia” porque está aberta às surpresas de Deus. Zacarias, no entanto, representa o antigo, é o incrédulo diante da grande novidade que Deus lhe abre. Por isso, ele é representado como mudo; sua fé está adormecida, ancorada em um passado. O primeiro testamento já não tem mais nada novo a comunicar. Isabel, embora sendo estéril biologicamente, permanece aberta a deixar que Deus presenteie o novo em seu ventre.
Na Visitação, Lucas revela a centralidade do feminino para emudecer Zacarias da lógica e das garantias. Ao recuperar o feminino realça-se a perspectiva do Amor acima da razão; Isabel, apesar de sua esterilidade e velhice, abre-se a um projeto que vai além do natural.
O sacerdote Zacarias, no entanto, está mudo e ausente do relato da Visitação; ele não tem nada que dizer, enquanto sua mulher, idosa, estéril e não considerada, crê, e seu ser se enche de vida. É o início do Novo Testamento. Isabel faz de mediação entre a instituição e a profecia que anuncia a vinda do Messias.
Os varões (sacerdotes, escribas, fariseus...) também permanecem silenciosos, ficaram mudos como Zacarias. No fundo, todos eles têm medo do Messias.
Maria, com sua inocente e profunda sabedoria, enquanto descobre seu ser habitado, recebe a notícia de que também sua prima anciã está gestante; com a força e a prontidão próprias de pessoas guiadas pelo Espírito, “ela se pôs a caminho, dirigindo-se com toda pressa às montanhas”. Deixa seu lar, sua segurança, se desinstala... Não perde tempo considerando o esforço que este deslocamento para as montanhas implica. O serviço é urgente. O caminho que ela deve percorrer é símbolo de outra forma de viver.
Maria poderia recorrer ao Templo e relatar aos sacerdotes a passagem de Deus por ela; mas, atenta a seu interior habitado, descobre que é guiada a “outros lugares sagrados” onde a presença de Deus se revela surpreendente através de uma mulher considerada estéril, fora dos rituais vazios do passado.
Entra em casa de Isabel, dá-se o encontro e o reconhecimento. Visita que faz explodir a alegria entre ambas.
Elas se acolhem, se abraçam... “e eles se movem em seus ventres”. Há esbanjamento de vida.
Nessa casa, pratica-se a hospitalidade, a acolhida entranhável, o cuidado, a palavra justa e a escuta infinita... Maria é hóspede, ao mesmo tempo que hospeda o Mistério em seu ventre.
Na cena da Visitação, Maria não só reconhece a Isabel, mas também é reconhecida por ela. Encontram-se frente a frente as duas mulheres, levando em suas entranhas o segredo de Deus, o presente e o futuro da vida.
Um duplo reconhecimento, que os pintores souberam expressar maravilhosamente apresentando as duas mulheres colocando mão sobre o ventre, uma da outra. Gesto de profundo reconhecimento: o que está acontecendo em seus ventres só pode ser surpresa de Deus. Com certeza, este reconhecimento é o segredo de toda a alegria e de toda a luz que dimana desta Visitação; reconhecimento que consiste no ato de abraçar, beijar, tocar, constatar, acolher...; mas, reconhecimento que é também gratidão, ação de graças, agradecimento que as invade diante do Dom de Deus.
O “futuro precursor” cresce nas entranhas de Isabel e recebe ali, em clima de exultação, a certeza de que se cumprem as antigas esperanças; por isso salta, bailando de alegria, no ventre mesmo de sua mãe.
Agora Isabel “bendiz”: como mulher emocionada, satisfeita, contempla Maria e não tem inveja dela; recebe o dom ou graça que provém do Senhor (do Filho de Maria) e o agradece; por isso, com palavra clara, culminando o Antigo Testamento e tomando a palavra dos sacerdotes de seu povo (já mudos como o mostra Zacarias), ela bendiz a Mãe messiânica e o fruto de seu ventre que é Jesus.
Maria se deixou encher pela benção e bem-aventurança de sua prima. Não tem nada que acrescentar, não deve explicar ou comentar coisa alguma, pois tudo é claro. Simplesmente, consente.
Concluímos afirmando que o ícone por excelência de Advento é o da uma mulher gestante. A vida que está pulsando nela é imagem para que compreendamos e tomemos consciência de que todos estamos implicados nessa gestação. Somos convidados a entrar nesse silêncio habitado, para experimentar, em uníssono, o pulsar do divino em nós, dentro de nós. Deus “pula de alegria” em nosso interior quando abrimos espaço para sua presença e sua ação em nossa vida.
Podemos considerar o encontro das duas mulheres, grávidas da Vida, como um “abraçar o passado” para despedi-lo, deixá-lo ir porque já está estéril, e acolher o futuro, a comunidade de Jesus que Maria está gestando. Se, com profunda gratidão, nos despedimos do passado, evoluímos, para um presente-futuro em contínua mudança, em contínuo processo para a Vida.
O autêntico Advento vai além da espera, é gestação; não é só a arte de viver despertos e mobilizados, é gerar em nosso interior “algo novo” para entregar ao mundo que, gritando, pede de nós uma presença compassiva e servidora.
O que gestamos em nós deve ter a feição do amor invencível, do amor valente, do amor capaz de romper fronteiras, de superar os ódios, de quebrar as distâncias, de aplainar os “egos inflados”. Gestação de vida, de esperança, de paixão por um mundo diferente.
A Igreja precisa de seguidores(as) “gestantes”, não só de fiéis “expectantes”.
Deus dança em nosso interior quando sentimos o impulso para o outro, o despertar de nossos desejos mais nobres, o emergir de sonhos adormecidos, nosso espírito criativo, nossos sentimentos oblativos... Muitas vezes, é preciso uma presença inspiradora de alguém, também “carregada de Deus e de espírito serviçal” que nos visite e faça saltar tudo o que é mais “humano” em nós, o “joão” que todos carregamos.
Tudo isso nos enche de alegria serena, de esperança benfazeja, de generosidade aberta...
Texto bíblico: Lc 1,39-45
Na oração: Maria recebe a visita de Deus em sua casa e desloca-se para a casa de Isabel para lhe dar o abraço mais longo e apertado da história. Abraço que se prolonga em nós quando estamos habitados de Vida e a presença da Vida nos outros faz com que todo nosso ser dance de alegria e de esperança.
Nosso interior é um “ventre fecundo”, espaço onde são gestados desejos nobres, sonhos inspiradores, sentimentos mobilizados, impulsos criativos...
- Qual é o “novo e surpreendente” que está sendo fecundado e que fará toda diferença no amanhã de sua vida?
Pe. Adroaldo Palaoro sj
16.12.21
Imagem: Jacopo Pontormo
Quem tiver duas túnicas, dê uma a quem não tem; e quem tiver comida, faça o mesmo” (Lc 3,11)
Advento e Natal nos situam no clima das grandes esperanças da humanidade; neste dezembro mágico nosso coração caminha mais rápido, rompe o tempo, já está lá na frente, pronto para acolher a surpresa.
Tudo aponta para o Eterno que nos escapa e nos encontra. Aqui a imaginação trabalha e cria momentos felizes. Com essa esperança, podemos dar sabor à nossa vida, muitas vezes modesta e simples.
A esperança não é só uma virtude teologal, mas uma habilidade que temos de exercitar; podemos aprender a ter esperança, e esta destreza nos faz mais humanos e mais fortes diante das adversidades da vida.
Quem vive o clima do Advento não é prisioneiro da “cotidianidade”; toda a nossa vida se transforma na história de uma espera e de um encontro surpreendente. Nessa espera vislumbramos detalhes decisivos: a vivência da ternura, a reinvenção da vida em cada amanhecer, a gratuidade amorosa, a alegria descontrolada, o despertar de sonhos... Espera-se Jesus vivendo os valores que Ele encarnou: a sintonia com os pobres, o coração dilatado no serviço, o cuidado terapêutico, a ajuda gratuita...
Nessa atitude de espera o cristão pode dar sabor à sua vida: nos pequenos gestos ela floresce e aponta para um sentido novo.
“O povo estava na expectativa...”: uma bonita maneira de indicar uma atitude positiva de espera diante de João Batista que, sob o impulso da Palavra brotada no deserto, tocou o coração de muitos.
De fato, João Batista é um personagem instigante e provocativo; muitas pessoas, impactadas pelo seu modo de falar, vão até ele para escutá-lo. João não fala do cumprimento minucioso das normas legais ou dos ritos religiosos. Em nenhum caso faz alusão a uma nova religião, que exigisse um culto diferente, e sim a uma nova forma de viver que dá sentido à própria existência e desperta um modo de proceder para que a relação com os demais seja realmente fraterna, carregada de respeito, de cuidado, de partilha.
O chamado de João à conversão e seu apelo a uma vida mais fiel a Deus despertou em muitas pessoas uma pergunta concreta: “Que devemos fazer?”. Com algumas pinceladas João reforça a necessidade de mudar a maneira de pensar e de agir; isto é, ativar o que já está presente em nosso coração: o desejo de uma vida mais justa, digna e fraterna.
Todas as propostas que João Batista faz estão direcionadas a melhorar a convivência humana. Percebe-se uma maior preocupação por tornar mais humanas as mútuas relações, superando toda atitude egocentrada.
De fato, uma religiosidade que não se alarga em direção aos outros não é a religiosidade que Deus deseja. Aqui não se trata propriamente de fazer coisas nem de assumir deveres, mas ser de outra maneira, viver de forma mais humana; em outras palavras, a partir do centro de cada um, despertar aquilo que é o mais verdadeiramente humano, para que flua humanidade em todas as direções. Que todo o nosso ser se mova na perspectiva do amor oblativo, que se expressa em “entranhas solidárias”.
João Batista é mais um personagem de Advento; tudo estava tranquilo até que ele apareceu no deserto. Sua pregação sacudiu as consciências, fazendo reacender o espírito solidário que estava atrofiado no coração de todos: a multidão, os publicanos, os soldados... Segundo a definição do Papa Francisco “a solidariedade deve ser vivida como a decisão de devolver ao pobre o que lhe corresponde” (EG 189). A solidariedade é uma decisão, carregada de afeto. A razão, por si mesma não nos leva a ela. É uma decisão pessoal, cordial, livre, voluntária...
A solidariedade é espontânea, não se impõe a partir de cima, senão que supõe uma predisposição favorável ao encontro com o outro, deixando-nos afetar cordialmente pela realidade de quem sofre. A solidariedade nasce da gratuidade e nos faz mover em direção dos outros, sobretudo dos excluídos, daqueles privados de sua dignidade humana.
O encontro com o “outro” marginalizado dá um “toque” especial à nossa espiritualidade e nossa espiritualidade faz nossa ação mais radical – mais enraizada em si mesma e vai mais fundo nas raízes da injustiça. Aproximar-nos do “pobre” e deixar-nos “afetar” pelo seu sofrimento torna-se a maior fonte de nossa espiritualidade. Suas “fraquezas” suscitam em nós o melhor de nós mesmos e, ao nos envolver afetivamente em sua vida, faz com que vivamos um misto de ternura e indignação a que chamamos compaixão.
A solidariedade nos leva a reconhecer no outro (sobretudo o outro que é excluído, marginalizado...) uma dignidade e uma capacidade criativa de superar sua situação; ela gera protagonismo e nunca dependência; compartilha sem humilhar; cria humanidade em seu entorno, com generosidade, humildade e silêncio; supera todo exibicionismo, sentimentalismo ou instrumentalização do outro.
Sabemos que há uma profunda afinidade entre “sólido” e “solidário”; ambas as palavras, etimológicamente, procedem da expressão latina “solidus”. Diz-se “sólido” em virtude de sua firmeza, densidade, fortaleza ou por ser aquilo que se estabelece com razões fundamentais e verdadeiras; a pessoa “solidária” é aquela que encarna tais virtudes. Há um “plus” maior quando essa pessoa vive a fé cristã. Porque, uma fé ausente de solidariedade carece de coerência e sentido; não é firme e não tem a suficiente densidade para suportar as incompreensões daqueles que não estão em sintonia com suas atitudes solidárias.
Portanto, solidariedade é uma “questão de entranhas”, ou seja, encontrar, experiencial e vitalmente, os “outros” excluídos e despojados de tudo, e sentir-se tocado, afetado pela imensa dor que marca a vida de tantos. A partir daqui o rosto da pessoa solidária é modelado pela compaixão e gratuidade.
A “solidariedade compassiva”, que brota do “patire cum” ou compadecer-nos diante da dor e da miséria do outro, devolve a todos nós a imagem de seres humanos. A solidariedade nos humaniza.
Trata-se aqui de viver a cultura da solidariedade, entendida evangelicamente, que forja nosso ser e nosso fazer no manancial que brota da compaixão e se desenvolve realizando a justiça.
A solidariedade que nasce da compaixão não acaba nela mesma, mas leva a reconhecer no outro uma dignidade e uma capacidade criativa de superar sua situação.
Isto pede de nós uma atitude de abertura ao outro, o que implica colocar-nos em seu lugar, deixar-nos questionar e desinstalar por ele... Importa, pois, redescobrir com urgência a solidariedade como valor ético e como atitude permanente de vida...; não uma solidariedade ocasional, mas uma solidariedade cotidiana que se encarna nos pequenos gestos de serviço no dia-a-dia.
Só assim o tempo Advento deixará transparecer seu sentido mais profundo. Deus, ao entrar na história, se faz solidário com a humanidade, salvando-a. O rosto solidário de Deus se visibilizará em cada um de nós quando entramos no fluxo do Seu amor descendente e comprometido.
Texto bíblico: Lc. 3,10-18
Na oração: A originalidade do Advento está em “alargar” o espaço interior para que os outros encontrem lugar. A atitude da partilha, da solidariedade e do compromisso com os últimos são expressões deste Tempo tão nobre e inspirador.
* Na sua vivência cristã, como responder frente ao chamado tão simples e tão humano de João Batista?
Pe. Adroaldo Palaoro sj
08.12.21
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“Esta é a voz daquele que grita no deserto: ‘preparai o caminho do Senhor’” (Lc. 3,4)
Estamos no tempo do Advento, alimentando uma esperança ousada; para isso, é preciso fazer descer ao nível do chão o orgulho de nossos montes elevados, a presunção de nosso ego inflado, a altura de nossa vaidade...
O pano de fundo deste tempo litúrgico é a experiência bíblica do deserto, lugar onde podemos nos sintonizar com Deus, escutar melhor o seu chamado para sermos presenças inspiradoras neste velho mundo.
Deserto passa a ser tempo de purificação e de vida em marcha: somos povo peregrino deixando-nos conduzir somente por Deus. O deserto é território da verdade, o lugar onde vivemos do essencial. Ali não há lugar para o supérfluo; ali não podemos viver acumulando coisas sem necessidade; ali não é possível o luxo nem a ostentação.
O decisivo é discernir e buscar o melhor caminho para orientar nossa vida em direção à “Terra Prometida”.
De maneira solene, o evangelho deste domingo apresenta o início da atividade de João Batista, situando nas coordenadas concretas de tempo e lugar, os acontecimentos que marcarão a história da humanidade. O evangelista Lucas tem interesse em destacar os nomes dos personagens que controlavam, naquele momento, as diferentes esferas do poder político e religioso; são aqueles que planejam e dirigem tudo.
No entanto, o acontecimento decisivo de Jesus Cristo foi preparado e aconteceu fora dos espaços de influência política e religiosa, sem que os poderosos percebessem o que estava acontecendo nas periferias da história.
Assim, a Graça e a Salvação de Deus banham a história a partir de baixo, dos últimos. O essencial não está nas mãos dos poderosos; eles que controlam as diferentes esferas do poder político e religioso, aqui não decidem nada.
É nesse contexto que Lucas afirma com toda firmeza que “a Palavra de Deus foi dirigida a João, filho de Zacarias, no deserto”. Não em Roma, nem no recinto sagrado do Templo de Jerusalém, mas no deserto. João Batista não é um funcionário do Templo, é um profeta. As instituições e o poder não querem profetas em suas fileiras: homens que pensem, que anunciem, deem ânimo ao povo, ou que denunciem as mazelas do poder desumanizador.
Por isso, muitos profetas aspiravam tanto o deserto, símbolo de uma vida mais despojada e melhor enraizada no essencial, uma vida ainda sem estar “distorcida” por tantas infidelidades a Deus e tantas injustiças com o povo. Neste marco do deserto, o Batista anuncia o símbolo grandioso do “batismo”, ponto de partida de conversão, purificação, perdão e início de vida nova.
Voltar ao deserto: esta é a mensagem chave deste segundo domingo do Advento. Trata-se de aprender a simplificar, centrando-nos no essencial, pois só com o essencial podemos viver no deserto, sem adornos falsos, sem complexos de superioridade. Esta é a maior graça que Deus pode nos comunicar: conduzir-nos de novo ao deserto, para simplificar, para dialogar, para partilhar... Voltar ao deserto para renunciar as comodidades falsas, para sermos nós mesmos, esvaziar-nos e assim poder viver simplesmente como humanos.
É do deserto que surge uma nova “voz”: desafiante, mobilizadora, que nos traz para o essencial; voz que tem forte ressonância em nosso coração.
Estamos imersos numa confusão de vozes que nos distraem, nos saturam e nos fazem viver na superficialidade. As vozes barulhentas que procedem dos grandes centros de poder e dos meios de comunicação são vozes ocas, estéreis, sem consistência, e que se dispersam no ar. Com isso vamos perdendo a sensibilidade para captar as vozes delicadas que procedem do mais profundo de nós mesmos.
A realidade na qual vivemos clama por vozes corajosas, que despertem a vida, as consciências e apontem para um horizonte de sentido. Estamos saturados de vozes carregadas de morte, de ódio, de intolerância...
O Tempo do Advento é um forte apelo de retorno ao coração. Só a voz que vem “lá das quebradas do deserto” é capaz de sintonizar-se com as tênues vozes que brotam do nosso ser profundo; “Voz divina” que desperta nossas vozes. Só ela é capaz de ativar nosso ser original, mobilizar nossos recursos, desbloquear nossa vida, desencadeando um movimento inovador que nos faz entrar em comunhão com todos e com o Todo.
Para ouvir a desafiante voz do Batista é preciso deslocar-nos para o deserto, sair dos espaços fechados e atrofiados. O lugar determina nossa maneira de pensar, de sentir, de amar. A voz que vem dos amplos espaços do deserto tem um impacto rompedor nos nossos espaços rotineiros (físicos, afetivos, psicológicos, sociais, religiosos...); assim, somos impulsionados a sair daquilo que nos dá a sensação de segurança e conforto. Advento não é para acomodados! É para os(as) inquietos(as).
Só o encontro com a “voz” do Precursor pode quebrar o modo arcaico e petrificado de pensar, viver e amar. Só o encontro das duas vozes reacende em nós o desejo de uma transformação contínua.
Sabemos que a “voz” não é só expressão de uma interioridade, articulando sentimentos, pensamentos, sonhos...; toda voz particular também carrega em si a dimensão comunitária; a voz de cada um é caixa de ressonância da voz da humanidade.
Nesse sentido, o Advento é um tempo privilegiado para unir nossas vozes, para fazer emergir uma voz solidária, que assume a voz sufocada de tantos sofredores e excluídos. São tantas as vozes travadas nas gargantas de muitos e que não encontram meios para se expressar. Com isso, a “voz” que nos chama à Vida acaba caindo “no deserto”, ou seja, não encontra destinatários, porque nos encontramos dispersos, distraídos em mil ocupações, vivendo na superficialidade.
Sejamos “voz” dos “sem voz”!
Somos chamados ao deserto onde a voz da Vida ressoa com mais intensidade, sem ser sufocada pelo “vozerio crônico”. Com sua austeridade e simplicidade, o deserto não é lugar de experiências superficiais. A profundidade da identidade de uma pessoa é testada e experimentada no deserto.
O deserto é o grande auditório para ouvir Deus; “solidão” cheia de presença. Ainda que sozinhos, sentimo-nos solidários, em comunhão com todos. A proximidade de Deus vai ser sentida e percebida.
Ao tomar distância do estressante ritmo cotidiano, teremos a possibilidade de reconhecer a voz de Deus em nós com outra intensidade e com outra força. Assim, a experiência de deserto passa a ser “tempo e lugar” de decisão, de orientação da vida, de enraizamento de nossos valores, de consciência maior da nossa identidade pessoal e da nossa missão... O mestre do deserto é o silêncio; o deserto tem valor porque revela o silêncio, e o silêncio tem valor porque nos revela Deus e a nós mesmos.
Texto bíblico: Lc 3,1-6
Na oração: “Preparem o caminho do Senhor,
endireitem suas estradas...”
- O que está “torto” em minha vida pessoal, relacional, espiritual... que precisa ser endireitado?
- Quais são os grandes caminhos tortos, presentes na sociedade de hoje, que clamam por minha presença e meu compromisso, para endireitá-los?
- Que caminhos posso ajudar a construir para despertar uma nova esperança nestes tempos tão sombrios? Como endireitar os caminhos para que chegue mais rápido o Reinado de Deus?
Pe. Adroaldo Palaoro SJ
02.12.2021
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