Premissa
Não é novidade para nenhum de nós que o cristianismo herdou da tradição religiosa de seus irmãos mais velhos, os judeus, o culto à Palavra. A consequência ritual mais legítima e o efeito espiritual mais forte são, respectivamente, uma tendência à escuta e uma insistência na obediência como forma original da religiosidade cristã. Escutar e obedecer tornaram-se sinônimos em nossos caminhos religiosos – dos judeus e dos cristãos. O credo do povo de Israel se abre com um convite à escuta da Palavra Divina – Shemà Ishrael! A fé cristã, acolhendo este modo de experimentar a relação com Deus que “autocomunicando-se” ou “revelando-se” também é tida como exercício de obediência (cf. CIC 114). Nos evangelhos sinóticos de Mateus e Lucas, o evento que chamamos “encarnação” tem seu início com dois relatos de anunciação nos quais a fé de Maria e de José são experiência de escuta e obediência. De Lucas, colhemos o mais comentado e talvez o mais famoso para pautar a nossa conversa sobre a espiritualidade do Advento.
Evidentemente que a espiritualidade não pode brotar de um texto, mas nasce de uma fonte viva e esta fonte é a Liturgia (SC 2.10). Por mais importante que sejam, as Sagradas Escrituras “não são” em si mesmas Palavra de Deus, mas seu testemunho. Para que as Escrituras nos deem acesso à Revelação e possam ser chamadas de “Palavra de Deus”, é preciso que a história da salvação narrada em suas páginas nos envolva. É preciso que se torne uma espécie de porta para a experiência originária e original da Revelação de Deus a seu povo. A única atividade eclesial capaz de dotar a Escritura desta “qualidade” é a celebração litúrgica devido à sua linguagem simbólica. Na arte de celebrar o ser humano é completa e integralmente envolvido, em todos os níveis que formam sua realidade: psíquico-afetiva, somático-espiritual, cognitivo e interpessoal. Na Liturgia, a Bíblia reencontra o seu berço graças à ritualidade. Pelos ritos os fiéis se apropriam e ingressam no evento que as perícopes bíblicas recordam. Os ritos oferecem à página bíblica um sujeito concreto, uma história real, uma contemporaneidade para encarnar-se. Por isso, não basta partir dos relatos bíblicos para falar de espiritualidade, mas “ a partir” da complexidade do fenômeno da oração litúrgica na qual tais relatos passam a pertencer a um povo com feições definidas e existência palpável.
O quarto domingo do Advento
No quarto domingo do Advento, dia 20 de dezembro deste ano, às portas do dia de Natal, o Anjo Gabriel entrará onde se encontra a Virgem e a saudará com seu “Ave” (cf. Lc 1,26ss). A cena conforme vem narrada no evangelho parece ter sido composta de modo a permitir que as gerações sucessivas à de Maria pudessem testemunhar o mesmo evento. Se observarmos bem, todo o texto gira em torno da saudação do divino mensageiro. Maria reage ao que escuta e não ao que vê. No texto grego se lê “epi toi logoi dietaráchte” isto é, “a respeito da palavra ficou perplexa”. Este detalhe é intrigante: não é a visão de um personagem “sobrenatural” que causa agitação, mas o que é anunciado.
A saudação do anjo não é uma completa novidade. Em Jz 5,11-12 lemos: “Ora, o anjo do Senhor veio sentar-se debaixo de um carvalho em Efra, que pertencia a Joás (…). Gedeão, seu filho, estava debulhando o trigo no lagar (…). Apareceu-lhe, então, o anjo do Senhor e disse: “O Senhor está contigo, valente guerreiro!” Maria se torna herdeira e eleita de Deus. Aquele que no passado elegera homens e mulheres para portar consigo sua Palavra a havia escolhido. O que estava escrito das memórias antigas nos rolos da Escritura que ela, certamente, conhecia de cor, a alcançava. Aquilo parecia não ter qualquer sentido e por isso sua perplexidade. Como uma humilde serva poderia ser envolvida em tão grande evento? Com o desenrolar da narrativa, sabemos que o efeito da Palavra oferecida e acolhida será a concepção virginal do Verbo de Deus.
Como se pode notar, no relato, não é o “texto” da Escritura que surpreende Maria, mas o anúncio do Anjo, isto é, o ato de Deus dirigir-lhe a palavra. Ela sabia das antigas promessas (cf. Lc 1,55), mas agora era diferente, o Senhor se havia recordado de sua humilhada condição. A operação realizada por Lucas é uma “tipologia” e corresponde a um modo muito antigo de ler e interpretar os relatos bíblicos, melhor ainda, de correlacionar eventos narrados na História da Salvação. É um tipo de inteligência que nossos contemporâneos esqueceram e como consequência não sabem mais avizinhar-se das Escrituras. Mas nós ainda temos a oportunidade de encontrá-lo e reaprende-lo porque o sistema tipológico foi transferido das Escrituras para a Liturgia.
Quando celebrarmos o quarto domingo do Advento e ouvirmos a proclamação do Evangelho, o que sucederá? Exatamente o mesmo que ocorreu com a Virgem Maria. Sim. Você ficou perplexo como ela com a notícia, com esta boa notícia? Mas é isso mesmo, participaremos do mesmo evento no qual ela foi envolvida e tudo isso graças aos ritos que transformarão um registro textual em anúncio vital. E assim se forma em nós o espírito cristão. A catequese, a teologia, a doutrina, a moral, a caridade e todas as outras atividades eclesiais não são capazes de gerar este efeito, isto é, de permitir-nos penetrar no Mistério. A catequese pode nos ajudar a compreender, a teologia pode criticamente esclarecer, a doutrina garantirá a verdade e a retidão do que se crê, a moral resguardará os comportamentos e a caridade permitirá à fé desdobrar-se em obras. No entanto, somente a Liturgia possui a qualidade de reunir todos estes “ingredientes” que compõem a existência cristã, sem contudo reduzir-se a quaisquer deles. Mas não estamos falando da teologia litúrgica e sim da ação litúrgica, da celebração, do exercício da ritualidade.
Concepit ex audito
Toda esta conversa traz, então, à memória, uma caríssima expressão da antiguidade cristã, muito difundida na idade média para tratar da concepção virginal do Verbo: a conceptio per aurem. No IV século Efrem é dos primeiros a falar dela. Ao comentar a cena da anunciação, escreve: “Observa o anjo que vem depor a semente no ouvido de Maria. É com uma palavra bem clara que ele começou a semear”. Também, Agostinho, que afirma mais ou menos a mesma coisa: «concipit prius mente quam ventre».[1]
Se dermos uma olhada em algumas “anunciações” retratadas no período medieval, descobriremos detalhes interessantíssimos sobre esta “teologia” da inseminação do Verbo através do “ouvido”:
Seja na forma de sopro da boca do Pai, incluindo a pomba como imagem do Espírito, ou da palavra do Anjo – com a inscrição da Ave Maria, ou com o simples gesto de erguer o véu, as três representações, respectivamente, concentram-se no gesto da saudação.
Passando das artes plásticas à estética litúrgico-musical recolheremos, sobretudo no Ofício Divino, algumas pérolas que nos fazem ajudam a aprofundar a riqueza espiritual da “concipit per aurem”. A primeira delas, o Hino das Vésperas a partir do dia 17 de dezembro: “Recebe, Virgem Maria / no casto seio materno / dos céus o Verbo Divino / Vindo da boca do eterno”[2]; depois temos de autoria de Santo Ambrósio: “Não germe de homem, / mas sopro divino / no seio a gerou. / O Verbo de Deus / se fez nossa carne,/ o ventre deu flor.”[3] As antífonas previstas para a hora média (doze e quinze horas) e que se repetem todos os dias do advento são uma versão do diálogo entre o anjo e Maria, e parecem firmar nossa atenção no evento da concepção como uma experiência ligada ao ouvido: “Disse o anjo à Virgem: Maria, alegra-te, ó cheia de graça, o Senhor é contigo; és bendita entre todas as mulheres da terra” e “E Maria disse ao anjo: o que vem significar essa tua saudação? A minh’alma perturbou-se: serei mãe do grande Rei, conservando a virgindade.”
Penetrar a mente, habitar no ventre e nascer no mundo
A eucologia do Missal Romano também nos apresenta elementos interessantes. Nos concentraremos em uma breve análise da Coleta do quarto domingo, muito popular porque costumamos com ela concluir a oração do Angelus: “Derramai, ó Deus, a vossa graça em nossos corações para que, conhecendo pela mensagem do Anjo a encarnação do vosso Filho, cheguemos por sua paixão e cruz, à glória da ressurreição.”[4]
Primeiramente, é preciso situar esta prece estruturalmente no programa ritual. Infelizmente os nossos fiéis não foram iniciados na catequese à prática da oração litúrgica. Dos muitos “conteúdos” aprendidos, a Liturgia quase nunca é tratada como forma fundamental de rezar. Aprendemos algumas fórmulas, nos são explicados alguns sinais e símbolos, somos “adestrados” sobre alguns comportamentos. No entanto, a arte de entrar no diálogo com o Senhor através da ritualidade ainda parece ser um sonho distante. Mas, imaginemos que todos nós fomos apresentados ao universo da prece litúrgica (que no fundo é eminentemente bíblica). Antes de escutar a proclamação dos textos bíblico-litúrgicos (Leitura I, Salmo, Leitura II e Evangelho), somos predispostos a experiência do diálogo da aliança, que é a Liturgia da Palavra.
Dentre os diversos elementos que constam nos ritos iniciais, um dos essenciais é a oração coleta. Ali encontramos a “intencionalidade” da Igreja ao celebrar naquela ocasião. Atenção: usamos aqui o termo intencionalidade e não meramente “intenção”. A intencionalidade é um conceito da teoria do conhecimento que significa simplesmente que nossa mente está sempre orientada, dirigida a qualquer coisa. É um estado da nossa consciência, muito embora seja tantas vezes inconsciente. Pois bem, a “intencionalidade” de quem celebra – no caso a assembleia – poderá ser reconhecida naquela prece que conclui os ritos iniciais. Ou seja, se deverei perceber a Palavra de Deus ser-me dirigida durante a proclamação dos textos escriturísticos e da tradição, ela deverá ser guiada. Isto é a intencionalidade. E para onde é guiada no quarto domingo? Como vimos, a prece é clara: “conhecendo pela mensagem do Anjo a encarnação do vosso Filho, cheguemos por sua paixão e cruz, à glória da ressurreição”. Para participar da vida de Jesus, para viver segundo o seu Espírito, no quarto domingo do Advento durante a proclamação do Evangelho os fiéis deverão orientar-se à saudação do Anjo. Como sugere a terceira imagem da anunciação, deveremos “erguer o véu” dos nossos ouvidos. Isso significa que a saudação narrada será dirigida não mais ao personagem histórico ou literário, no caso Maria, mas àquela que ela representa, isto é, a Igreja. Naquele domingo, não ouviremos o Evangelho sobre a anunciação, mas o Anjo nos anunciará o Evangelho da concepção do Verbo. A assembleia, imagem perfeita da Igreja, receberá a saudação que outrora foi dirigida a Gildeão e na plenitude dos tempos a Maria. Fomos acolhidos, portanto dentro da História da Salvação.
Na primeira súplica da coleta, conforme o texto original, os fiéis em oração imploram ao Pai assim: “A tua graça, Senhor, infunde em nossas mentes”. Embora bem traduzidas, algumas nuances se perdem como ocorre em qualquer versão ao vernáculo. No caso, escolheu-se traduzir infundere por derramar e mens por coração. A noção de verter dentro (in + fundere, no original) não é imediatamente captada na expressão “derrama em nossos corações”. O original latino, no entanto, transmite uma idéia clara com a frase mentibus nostri infunde (“derrama dentro das nossas mentes”). Uma vez que esta prece é proferida em um contexto no qual o “tema” é concepção de uma pessoa, de um filho, “derramar dentro” pode indicar o ato de inseminar, isto é verter o sêmen dentro do útero. É com esta imagem que Efrem joga quando descreve a concepção pelo ouvido, conforme citamos anteriormente. “Derrama em nosso coração a vossa graça” deve significar “Penetra e derrama em nossas mentes a vossa graça”. A expressão latina penetralia nostri cordis não é estranha à eucologia litúrgica, conforme se pode conferir na oração pós-comunhão do sábado na segunda semana da Quaresma de um antigo sacramentário.[5]
Já o termo mens possui, no latim eclesiástico e litúrgico, uma acepção bem técnica e comumente vem traduzido por coração. Mens não é redutível ao significado de pensamento, muito embora o inclua e indique a pessoa (a alma) no ato de conhecer, operando um matrimônio perfeito entre inteligência e sentidos. A mente em si mesma, enquanto realidade autônoma é uma ilusão. A mente é o corpo que conhece e interage com o mundo. Não há mente sem corpo, de modo que a mente é o corpo em estado de interação perceptiva. Neste sentido, o “primeiro a mente e depois o ventre” de Agostinho não pode ser interpretado dualisticamente porque o acesso da mente ao Verbo se dá pela mediação sensorial, no caso, do ouvido, quando Maria escuta o “Ave, Dominus tecum” que a perturba. O que Agostinho deseja é evidenciar a dinâmica eclesial da concepção que pode ser alcançada e participada pelos fiéis, já que a frase pinçada por nós se dá no contexto da explicação do símbolo. Neste texto, Agostinho visa expor que Maria concebe o Cristo através da fé: aquele que é parido pela fé é também concebido na fé. E se pudermos falar de “escopo” ou “finalidade” da eucaristia no quarto domingo do Advento, seria exatamente este: que os fiéis se permitam, mediante os ritos que cumprem, conceberem Cristo que entra em suas vidas através de seus ouvidos.
Se pensarmos a fé a partir da coleta que estamos analisando, reconheceremos nela uma forma de a mente conhecer a Deus enquanto Ele se mostra na carne, acessível ao horizonte humano (ut qui, Angelo nuntiánte, Christi Fílii tui incarnatiónem cognóvimus), no caso da celebração em questão, numa saudação. É uma maneira do discípulo e da discípula de Cristo perceber, experienciar e compreender a visita de Deus. Como sabemos que uma visita é tal e não uma intrusão? Quando somos saudados. Um ladrão não dá bom dia. A saudação do Anjo (o rito) “produz” a fé e esta fé implica orientar-se, tender e aprender sem apreender. A fé é concebida na mente ou no coração e depois no ventre, no útero, isto é toma conta da nossa inteira corporeidade. Mas isso não significa que vem primeiro como pensamento, como uma abstração, mas como um movimento no qual a pessoa inteira se abre para Deus ativando toda a sua sensibilidade, toda a sua habilidade perceptiva até o ponto em que se percebe “gestante” do Mistério, porque deixou-se penetrar por ele.
Padre Márcio Pimentel, presbítero da Arquidiocese de Belo Horizonte, membro do Secretariado Arquidiocesano de Liturgia, doutorando em Liturgia Pastoral pelo Instituto de Liturgia Pastoral da Abadia de Santa Justina em Pádova-Itália
Artigo publicano no site da arquidiocese de BH em 27.11.2020
REFERÊNCIAS:
[1] Efrem, Diatessaron 4,15: SC 121,102; Agostinho, Sermo 215,1: PL 38,1074. Cf. tb. «Maria, sitiens ager, in Nazareth Dominum nostrum concepit ex auditu. Tu quoque, mulier, aquam sitiens concepisti filium ex auditu. Beatae aures tuae, quae fontem suum biberunt, qui mundum potavit. Maria eum seminavit in praesepi; tu in auribus auditorum tuorum.» Efrén, De Virginitate 23. Um estudo iconográfico sobre o tema: SALVADOR GONZÁLEZ, José Maria. “Per aurem intrat Christus in Mariam. Aproximación iconográfica a la conceptio per aurem en la pintura italiana del Trecento desde fuentes patrísticas y teológicas” in ’Ilu. Revista de Ciencias de las Religiones 20 (2015), 193-230.
[2] O texto original latino: “Verbum salutis omnium / Patris ab ore prodiens / Virgo beata, suscipe / casto, Maria, viscere.
[3] O texto original latino: “Non ex virili semine / sed mystico spiramine / Verbum Dei factum est caro / frusctusque ventris floruit.
[4] Grátiam tuam, quǽsumus, Dómine, méntibus nostris infúnde, ut qui, Angelo nuntiánte, Christi Fílii tui incarnatiónem cognóvimus, per passiónem eius et crucem ad resurrectiónis glóriam perducámur.
[5] Liber Sacramentorum Engolismensis. Manuscrit B.N. Lat. 816. Le Sacramentaire Gélasien d’Angoulême. Edited by Saint-Roch Patrick. (Corpus Christianorum, ser. Latina, CLIXC.) Turnhout: Brepols, 1987.