“...soprou sobre eles e disse: ‘Recebei o Espírito Santo. A quem perdoardes os pecados...” (Jo 20,22)
Pentecostes é uma festa litúrgica que pretende ativar em nós a plenitude da vida. “Cinquenta” é o número da consumação. Esse dia plenifica em nós tudo o que ainda se revela limitado e frágil. “Cinquenta” é também o número da liberdade. A cada 50 anos o povo hebreu ouvia o alegre som do “jobel” (corneta de chifre de carneiro) que ecoava nas montanhas e nos vales, convocando a todos (“jobil”) para celebrar um ano jubilar. Neste tempo devia-se recuperar a boa relação com Deus, com o próximo e com toda a Criação, fundada na gratuidade. Era um ano do perdão: os pobres ficavam livres de suas dívidas, os escravos recuperavam a liberdade, os camponeses recuperavam suas propriedades perdidas... Podiam respirar, podiam viver, era o jubileu. Deste modo, cada jubileu significava começar um novo ciclo de oportunidades. Pentecostes, portanto, recorda e celebra a promessa de que fomos libertados verdadeiramente pelo Espírito do Ressuscitado.
Neste mundo tão agitado e sem direção, precisamos urgentemente de um novo Pentecostes. Na realidade o que precisamos é abrir-nos a esse Fogo e a esse Vento do Espírito que, às vezes, parece estar soprando em vão. É que estamos trancados em nossos “cenáculos” e não queremos abrir as portas para arejar nossos ambientes, interno e externo. Pentecostes é isto: abrir-se ao que está aí como possibilidade e surpresa, deixando-nos transformar pelo Espírito, sacudindo nossas comodidades e medos.
É altamente significativo e simbólico que a abertura do Jubileu da Misericórdia tenha começado com o destravamento das portas das igrejas em todo o mundo. Mais significativo ainda foi o gesto do papa Francisco em abrir a Porta Santa do Ano da Misericórdia em Bangui (cidade marcada pela miséria e violência), na África, antes mesmo de fazê-lo em Roma, sede central do catolicismo.
O Espírito que sopra desde a África, com a abertura da Porta Santa, nos abre então a porta para palmilhar a estrada da experiência cristã, marcada pela luz da Misericórdia.
O Deus de Misericórdia não é o Deus das portas fechadas; é o Deus das portas sempre abertas a todos, que, a partir de seu coração misericordioso, sempre está disponível a receber-nos; é o Deus que nunca está ocupado para atender-nos, que acolhe a todos, que continuamente nos diz a cada dia: “Passai por aqui, a porta está sempre aberta”.
Só o amor misericordioso de Deus nos reconstrói por dentro, destrava nosso coração e nos move em direção a horizontes maiores de busca, responsabilidade e compromisso. Pentecostes vem nos revelar que a Misericórdia é a primeira, a última, a única verdade da Igreja, de todas as suas doutrinas, cânones e ritos. É o critério de juízo de todas as religiões.
Pentecostes da Misericórdia põe em movimento os grandes dinamismos de nossa vida; debaixo do modo paralisado e petrificado de viver, existe uma possibilidade de vida nova nunca ativada. A misericórdia é a luz e a chave de nossa vida tão preciosa e frágil, de nosso pequeno planeta tão vulnerável, do universo imenso e interrelacionado e do qual fazemos parte.
Tal experiência provoca um movimento que rompe fronteiras e barreiras. Assim, o Espírito faz superar o fundamentalismo, a hipocrisia, a apatia e o medo. Não há nada de mágico. O Espírito age de modo silencioso, mas com extraordinária eficácia: a sua força se mostra irresistível. O seu sopro, penetrando em nossos corpos, nos recoloca de pé e nos faz, finalmente, viver como ressuscitados. Deixar-se conduzir pelo Espírito, que habita o universo e os corações, é deixar-se levar pelo sopro divino.
No Evangelho de hoje(Pentecostes), o Ressuscitado comunica seu próprio Espírito. A imagem de “soprar sobre eles” contém uma riqueza profunda: significa que Jesus compartilhou com os seus discípulos o que é mais “vital”, sua própria “respiração”, seu desejo profundo, sua criatividade..., fazendo-os partícipes de seu próprio Dinamismo e impulso vital, do mesmo Espírito que O conduziu durante toda sua vida.
O sopro do Ressuscitado sobre os seus discípulos nos remete ao sopro de Deus no Gênesis, sopro que dá a vida ao ser humano. Aqui, o sopro de Cristo significa a Vida nova dada aos discípulos, pelo dom do Espírito Santo, indicando um novo Tempo, uma nova Criação e um novo Mundo.
Entretanto, uma coisa é essencial para que nasça esse mundo novo: o perdão. “A quem perdoardes os pecados, eles lhes serão perdoados; a quem os não perdoardes, eles lhes serão retidos” (Jo 20,23). Cabe a nós, portanto, fazer nascer esse mundo novo através de nossa presença misericordiosa, sendo mediação do perdão divino.
O perdão é fundamental para a recriação do mundo, e o Espírito nos dá a possibilidade de dá-lo ao outro e de recebê-lo do outro, a fim de que nasça esse mundo novo desejado pelo Cristo da Páscoa.
O perdão é o primeiro dom do Espírito Santo. Sob o impulso do Espírito de Pentecostes, o perdão prepara o terreno para o novo, para a surpresa, para colocar-nos em movimento.
O Espírito é movimento e entrar no movimento da Misericórdia humaniza e cristifica essencialmente a pessoa, porque a Misericórdia constitui “a estrutura fundamental do humano e do divino”.
“O perdão das ofensas torna-se a expressão mais evidente do amor misericordioso e, para nós cristãos, é um imperativo de que não podemos prescindir. Tantas vezes, como parece difícil perdoar! E, no entanto, o perdão é o instrumento colocado nas nossas frágeis mãos para alcançar a serenidade do coração”. (Papa Francisco – Misericordiae Vultus, n.9)
Como seguidores(as) de Jesus, o rosto visível da Misericórdia, somos chamados a ser presença misericordiosa; é sobretudo através do perdão que ativamos a “faísca de misericórdia” presente em nosso interior. O Espírito Santo, o “Sopro” do Ressuscitado é quem ativa esta “faísca”, revelando que a originalidade do cristianismo está na grandeza e na vivência desta única força capaz de movimentar a história, pessoal e coletiva, impulsionando a todos a romper o círculo vicioso dos sentimentos negativos, escrupulosidades, culpabilidades, julgamentos...
O perdão é o mais divino dos atributos divinos, pois só Deus podia inventá-lo. Perdoar é ser semelhante a Deus, pois este modo divino de proceder está ao nosso alcance. O perdão é divino em seus efeitos e em seu próprio processo de vida que desencadeia.
Os recursos do verdadeiro perdão são infinitos; eles jamais acabam. O perdão é um estilo de vida, é uma disposição permanente. Na verdade, no nível mais profundo, o perdão não é o que a pessoa faz, é algo que a pessoa é. Por isso é a dimensão que mais nos distingue como seguidores(as) de Jesus.
Texto bíblico: Jo 20,19-23
Na oração: A experiência de Pentecostes implica escancarar as portas de nossa interioridade, abrindo passagem para que a Misericórdia divina transite com liberdade pelos recantos escondidos e sombrios, ativando e despertando dinamismos e recursos que ainda não tiveram oportunidade de se expressar. Ao mesmo tempo, tal experiência ilumina, destrava e integra toda a nossa história, todas as dimensões de nossa vida, arrancando-a de um fatal “ponto morto” e colocando-a num movimento em direção a uma vida expansiva, aberta e acolhedora, em comunhão com o Todo e com todos.
- Recordar situações cotidianas que clamam por sua presença misericordiosa.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
“...depois voltaram a Jerusalém com grande alegria...” (Lc 24,52)
Para viver a alegria, exercitar-se na alegria: este deveria ser o slogan do(a) seguidor(a) de Jesus. A alegria brota de um encontro com a Pessoa do Ressuscitado que suscita entusiasmo, nos seduz e nos faz vibrar com a “vida nova” que, nele, o Pai nos manifesta.
Na experiência da Ascensão, somos movidos e recuperar o ardor e a fascinação pela pessoa de Jesus; somos chamados a ser mensageiros da “conversão pastoral” feita de alegria, beleza, proximidade, encontro, ternura, amor e misericórdia. Esse é, pois, a marca que nos identifica como seguidores de Jesus, capaz de ativar e despertar a alegria, pois tudo o que nasce verdadeiramente de um encontro profundo e verdadeiro com Ele, gera uma alegria que ninguém pode tirar.
Precisamos nos converter à alegria de Deus que é autêntica paixão pelo ser humano.
“A alegria do Evangelho enche o coração e a vida inteira daqueles que se encontram com Jesus. Com Jesus Cristo sempre nasce e renasce a alegria” (Papa Francisco - Ev. Gaudium).
A alegria é um estado de ânimo central na experiência cristã. Nisto consiste a verdadeira alegria: em sentir que um grande mistério, o mistério do amor misericordioso de Deus, visita e plenifica nossa existência pessoal e comunitária.
Temos de contagiar a alegria do Evangelho. É preciso remover obstáculos que impedem a alegria; é preciso remover a pedra de nossos sepulcros e viver como ressuscitados.
Um sinal de identidade da alegria é o olhar profundo, amplo e largo da vida. Mesmo em meio à dor e ao sofrimento, não faltam o bom humor e a ternura. Quem é cristãmente alegre mantém-se sereno frente aos conflitos, integra melhor os acontecimentos, é feliz e faz felizes os outros.
Na antropologia, o vocábulo “alegria” faz referência a emoções, sentimentos e aspirações alcançadas. Vincula-se ao estado de plenitude humana, à criatividade, ao entusiasmo, ao prazer, ao contentamento, à satisfação, à sorte, ao regozijo, à felicidade. Fala-se da alegria pela ação, por estar ou viver juntos, a alegria de viver, a alegria da festa, a alegria nos triunfos e nas adversidades.
A alegria sempre indica que a vida expandiu, que ganhou terreno, que conseguiu uma vitória. Onde queira que haja alegria há criatividade; quanto mais rica é a criatividade, mais profunda é a alegria. A alegria é incondicional. Não depende diretamente dos esforços pessoais nem da posse alguma de um bem temporal, mas do sentido global da pessoa. A alegria brota do interior, é coisa do coração; ela mana dentro, calada, com raízes profundas. É um dom do Espírito. “O fruto do Espírito é: amor, alegria” (Gal 5,22). Este dom nos faz filhos(as) de Deus, capazes de viver e vibrar diante de sua bondade e misericórdia. Não é correto que os cristãos associem com tanta frequência a fé à dor, à renúncia, à mortificação, mas à alegria, à vida em plenitude.
Nossa alegria é Cristo ressuscitado. Ele é a causa de nossa alegria. Ele nos dá vida em plenitude. A alegria está ligada à gratuidade; a alegria não é voluntarismo; não é objeto de decisão, como tampouco de decreto. Podemos diferenciar uma alegria ocasional e outra constitutiva ou um estado de ânimo intenso da pessoa; daí a importância de distinguir “estar alegre” de “ser alegre”. A alegria exige um clima favorável: um estado de espírito semelhante a um estado de graça.
Os Evangelhos nos revelam que Jesus vivia sereno, feliz , alegre . As bem-aventuranças são o fiel reflexo de sua vida. Seu íntimo trato com o Pai, sua paixão pelo Reino, suas relações pessoais, suas amizades, seu modo de enfrentar a “hora”, sua aceitação da vontade do Pai, sua paixão e morte são vividas em paz.
Jesus nos revela que Deus é alegria em si mesmo e para nós. Disse-nos que a salvação definitiva é “entrar na alegria do seu Senhor” (Mt 25,21). Diante dos prodígios e milagres que vai realizando em sua vida pública, Jesus exulta de alegria no Espírito Santo.
A alegria cristã aninha-se e cresce na vivência do mistério pascal. A ressurreição de Jesus causou uma imensa alegria na comunidade dos discípulos. A alegria é contagiosa. Tem uma dimensão social e comunitária. Nós não estamos alegres porque Jesus está vivo, mas porque nos fez partícipes de sua ressurreição, de sua nova vida. Assim nossa alegria é a alegria de Jesus.
Os Apóstolos, depois da Ascensão de Jesus, retornaram a Jerusalém; a certeza da promessa do envio do Espírito Santo os enchia de alegria; anunciavam com alegria e entusiasmo a ressurreição do Senhor.
“Sede alegres!”: isto é o que Deus deseja de nós, os cristãos. Uma alegria que é preciso manifestar, hoje, mediante uma sensibilidade e ternura humanas. A Igreja, por vocação e missão, deve ser alegre. Toda ela é profecia de alegria e esperança.
Quem vive a partir da alegria, vive a partir do essencial e sabe discernir o autêntico das aparências e o útil do supérfluo. A alegria mantém alta a utopia e não se cansa em sua irradiação. Seguimos o conselho agostiniano: “A felicidade consiste em tomar com alegria o que a vida nos dá, e deixar com a mesma alegria o que ela nos tira”.
Quem é transparente e coerente transmite alegria em seu falar e em seu agir. Costumamos dizer: “alegrar a casa”, “alegrar a cor”, alegrar o fogo”..., ou seja, dar-lhe vida. Quem vive na alegria se sente sereno, livre, pensa positivamente, está próximo dos pobres, acolhe as adversidades, integra suas contradições, ama sem pôr condições, louva, canta e bendiz sem cessar. De fato, a alegria experimentada não nos põe na retaguarda nem nos acomoda; pelo contrário, ela nos pede que sejamos mais radicais no discernimento e nos compromissos. Está em jogo a glória de Deus e a dignidade de seus filhos e filhas
Os(as) grandes santos e santas, por viverem profundamente no amor de Deus, foram testemunhas da alegria. Este amor é o que os fez sair de si mesmos, reencontrar-se e entregar-se aos demais. E aqui está o peso do amor, o vigor da alegria.
A alegria, como sentimento expansivo, tende a impulsionar nossa pessoa para fora, nos move a fazer a travessia em direção aos outros. Ser alegre não significa ser impassível, insensível diante da injustiça e da violência, diante da pobreza e da exclusão. As virtudes que acompanham a alegria fazem que quem é alegre seja compassivo e misericordioso e trabalhe pela paz e pela justiça.
Sua vida alegre desmonta a hipocrisia, as ambições, os escândalos de corrupção e afãs de aparência... Quando servimos os outros, recebemos acrescentada a alegria. “Dormia e sonhava que a vida era alegria. Despertei-me e vi que a vida era serviço. Pus-me a servir e descobri que o serviço era alegria” (Tagore).
Texto bíblico: Lc 24,46-53
Na oração: A alegria é cultivada na ação e na oração; por sua vez, a oração desperta a alegria, este estado de ânimo intenso e fora do normal, facilmente perceptível e que tem ressonância no modo de viver. S. Inácio chama consolação a esse estado de ânimo, pois se trata de uma experiência nítida da Graça.
- Uma das expressões da alegria evangélica é viver em sintonia com esta Graça abundante e permitir que a vida seja uma contínua ação de graças.
- há tantos motivos pelos quais festejar, pelos quais manifestar a alegria do Evangelho; explicite-os.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
Centro de Espiritualidade Inaciana – Itaci-SP
“Deixo-vos a paz, a minha paz vos dou: mas não a dou como o mundo” (Jo 14,27)
A paz é um dos dons comunicado pelo Ressuscitado, e como “seres ressuscitados”, somos desafiados a uma visão mais aprofundada, pessoal e coletiva, sobre o sentido e a força mobilizadora da paz.
Infelizmente, todos os dias aparecem, nos meios de comunicação, mais motivações para a violência do que razões para a paz. Entretanto, precisamos afirmar: “não fomos feitos para a violência”. Nosso coração é habitado por um desejo profundo de paz: “Felizes os que promovem a paz!”
Como seguidores do “Príncipe da Paz”, devemos primar por construir “espaços de paz” e sermos presença pacificadora: paz que vem do alto, que aquece nossos corações, plenifica nossas relações e se expande, tal como perfume, em todas as direções.
Paz, portanto, é aspiração congênita do ser humano. Nosso coração humano foi feito para a paz e anseia a convivência harmoniosa com Deus, com o cosmos, com os nossos semelhantes. É processo interminá-vel. Paz é síntese de bens, é sinfonia inacabada, arte social, estado de espírito que gera a comunhão.
“Paz soa suave ao ouvido, saborosa ao paladar, macia ao tato, perfumada ao olfato, sonhadora aos olhos. “Onde está o olhar, aí está o amor”. Nosso olhar volta-se para o mundo da paz, porque aí está o nosso coração, o nosso amor” (Pe. Libanio).
Na raiz bíblica do termo “shalom”, (em latim “pax”) está a ideia de “algo completo, inteiro”. Paz sig-nifica o que é integral, o que plenifica a vida. A paz pertence à plenitude, à completude, enquanto a vio-lência está do lado da falta, da carência, do incompleto.
Paz reflete harmonia consigo, boas relações com os outros, aliança com Deus, enquanto a violência infecciona os relacionamentos, contamina a convivência, rompe os convênios, exclui os mais fracos.
Há milênios esta palavra ressoa e ecoa na história dos povos. Inúmeros homens e mulheres a cultivam secretamente no coração. Todos a invocam. Muitos dão a vida, defendendo-a...
Não há paz sem liberdade, não há paz sem verdade. A paz autêntica contém densidade humana. É paz de consciência inocente dos justos que fazem o bem, dos profetas que se arriscam em favor dos outros.
Paz é humanidade alegre, espontânea, confiante.
Paz não é sossego, não é concordismo, nem cumplicidade.
Paz requer bravura. Somente o ser humano amante da paz é realmente “perigoso”, não o violento.
Mas, a paz ainda não encontrou espaço para ser a companheira de estrada em nosso cotidiano. Permanece a promessa profética de que ela habitará na nossa terra. Assim, o que parece sonho impossível, reina desde sempre no coração do Senhor, amante da Paz e se realizará, graças àquelas pessoas revolucionárias, que acreditam, desejam e realizam a paz.
Paz “solidária” que abraça os excluídos; paz “resistência” que não se acovarda; paz “audácia” que não se amedronta; paz “limpa” que não corrompe a ética; paz “profética” que encarna a justiça; paz “rebelada” que não se dobra; paz “estética” que revela a face bela da nova humanidade...
Na carta de S. Paulo aos Efésios, Cristo é chamado “a nossa paz” (Ef. 2,14).
A paz é característica do reino messiânico que Jesus inaugurou. Os discípulos, nas suas andanças, saudavam desejando a paz lá onde entravam, na esperança de encontrar filhos da paz. Do contrário, a paz voltava a eles (Mt. 10,13). Jesus solenemente nos deixa a paz, nos dá a paz. Ela é fruto do seu Espírito.
A liturgia, ao traduzir o melhor desejo para os mortos, diz simplesmente: “descansem em paz!” E que nesse mundo da paz brilhe a luz perpétua. Paz e luz comungam entre si.
Quem tem paz irradia luz. Quem vive na luz constrói a paz. Paz expansiva, paz que é respiração da vida, paz marcada pela esperança.
Paz, um bem escasso, mas um bem tão precioso que é sempre desejado, para que a vida se torne um pouco mais plena e com sentido: paz interior, paz na família, paz nas relações de trabalho, paz na ação política e paz entre os povos.
Uma ótima definição de paz a encontramos na Carta da Terra ao afirmar: “a paz é a plenitude criada por relações corretas consigo mesmo, com outras pessoas, outras culturas, outras formas de vida, com a Terra e com o Todo do qual fazemos parte” (n. 16). A paz não é algo que existe por si mesma, não brota de forma espontânea, mas que deve ser preparada e cultivada. Isso é o que Jesus fez, ao proclamar, com sua vida, a chegada da paz messiânica. Ela é o resultado de relações misericordiosas com as diferentes realidades que nos rodeiam. Sem estas relações misericordiosas nunca desfrutaremos a paz.
A paz que Jesus nos comunica não se atemoriza frente à dor, nem se desaba quando aparecem situações adversas. Abraça estados de ânimo contraditórios, não se identifica com os altos e baixos das circunstâncias, transcende o imediato. É a paz que supera toda razão, porque brota das profundezas do ser humano como “beatitude original”, força expansiva de humanização e revelação do Mistério que somos.
“A minha paz vos dou”. Jesus quer que seus discípulos vivam desta mesma paz que puderam ver nele, fruto de sua união íntima com o Pai e da profunda comunhão com os mais excluídos. Jesus é pacificador porque ama sem impor-se, a partir dos mais pobres; é pacificador porque não responde à violência com violência, porque é manso e puro de coração.
É evidente que, no contexto de uma sociedade produtivista, consumista, competitiva, indiferente, preconceituosa e nada cooperativa, não pode haver paz. Quando muito uma pacificação forçada, por imposição. Como cristãos temos que criar politicamente outro tipo de sociedade fundada nas relações justas entre todos, com a natureza, com a Mãe Terra e com o Todo que nos sustenta. Então florescerá a paz que a tradição ética definiu como “a obra de justiça”.
A paz nasce no coração daqueles que se deixam conduzir pelo mesmo Espírito de Jesus. O ponto de partida da paz cristã é a experiência da vida como gratuidade, ou seja, como dom recebido de Deus, presente de Sua vida e Seu amor sobre a humanidade ferida por tantos conflitos. O Deus Criador só atua através da paz e pede que sejamos mananciais de paz.
Na perspectiva do Evangelho, a paz deve ser compreendida e vivida como “bem-aventurança” (paz interior), que se abre e se expressa na busca da pacificação externa.
Inspirados no modo de viver de Jesus, podemos nos revestir das seguintes “bem-aventuranças” como horizonte e caminho de pacificação:
- Bem-aventurados aqueles que vivem a paz como um compromisso com a verdade, e caminham pelas sendas da concórdia, do diálogo, da acolhida do diferente;
- Bem-aventurados aqueles que chegaram a compreender que a paz e a justiça caminham de mãos dadas;
- Bem-aventurados aqueles que, inspirados na arte da pacificação de Jesus e de tantos profetas da paz, descobriram o valor da não-violência e a vivem cada dia;
- Bem-aventurados aqueles cuja presença pacificadora se empenham por superar discórdias, solucionar conflitos, reconstruir relações;
- Bem-aventurados aqueles que afastam de seu coração as sementes do ódio, da ofensa, do preconceito;
- Bem-aventurados aqueles que, em seu compromisso em favor da paz, não abandonam a ternura, a proximidade, a atenção compassiva...
Texto bíblico: Jo 14,23-29
Na oração: Há lugares em nosso interior que não são visitados. Há fronteiras, há arame farpado e é por aí que deve começar a construção da paz.
Jesus revela que a paz é um trabalho muito paciente, de artesanato. Ele era um artesão, um carpinteiro. Ele sabia que para ser mestre na arte de fazer móveis era preciso saber aplainar muito bem. A paz começa nesta arte de aplainar as arestas em cada um de nós; isso significa construir a paz em nossas diferentes dimensões: corporal, mental, afetiva, espiritual... Há divisões e conflitos em nosso interior; é difícil fazer a paz entre nossa razão e nosso coração, entre o nosso instinto e a nossa afetividade... mas nós podemos, pacientemente construir a paz do coração. Paz que é respiração da vida.
Da nossa interioridade brota a paz que se projeta na relação com os outros, construindo oásis de acolhida.
- O que prevalece na sua presença junto aos outros: pacífica, harmoniosa, inspiradora... ou conflituosa, violenta, excludente, preconceituosa...?
- O contexto social e político que estamos vivendo tem gerado muitas divisões, ódios, preconceitos... O que você tem feito para contribuir com um ambiente mais pacificado, onde as visões diferentes sejam respeitadas?
Pe. Adroaldo Palaoro sj
“Eu vos dou um novo mandamento: amai-vos uns aos outros. Como eu vos amei, assim também vós deveis amar-vos uns aos outros” (Jo 13,34).
Jesus transitou o caminho do amor.
Poucas experiências na vida proporcionam tanta felicidade como o amar e sentir-se amado. E é isso que os Evangelhos mais ressaltam na pessoa de Jesus: sua extraordinária capacidade para amar, para dar e receber amor. Jesus experimentou o amor em todas as dimensões: o amor que se faz serviço, o amor de amizade, o amor oblativo, o amor operativo que oferece saúde, perdão, liberdade, reconhecimento... Em definitiva, o prazer profundo de “passar pela vida fazendo o bem”.
Todas as pessoas cabiam em seu coração, mas de um modo especial os últimos, os pequenos, os pobres, os excluídos, os simples a quem o Pai lhes revela os segredos do Reino; tudo isso fazia Jesus vibrar intensamente. Ele fez do amor o único necessário, a razão de sua vida e entrega e, por isso, pode pregar com autoridade revelando que ganhamos ou a perdemos a vida em função de que tenhamos ou não amado.
Frente às inumeráveis leis e normas da religião judaica as palavras de Jesus soam taxativas: “Eu vos dou um nome mandamento”. Não há outro. A admirável simplicidade e a insistência na prática, que caracterizam a mensagem de Jesus, se revelam também nesta síntese daquilo que deve ser o modo de proceder dos seus discípulos. O Amor gratuito é a verdadeira identidade do(a) seguidor(a) de Jesus.
Antes de revelar o novo mandamento, antes mesmo de pedir aos discípulos que vivessem desse amor, Jesus foi pura vivência e transparência do Amor descendente de Deus: “como eu vos tenho amado”.
O texto fala de “mandamento novo”, provavelmente um diferencial que os próprios discípulos perceberam como “novidade” no modo de viver do Mestre, na gratuidade e incondicionalidade de seu amor: “amor ágape”, oblativo, radical, despojado de interesses...
Amar é a única maneira de ser plenamente humano. Jesus viveu até o limite a capacidade de amar, até amar como Deus ama. E é essa qualidade de amor o sinal decisivo pela qual os discípulos de Jesus deveriam ser reconhecidos.
Desse modo, o mandamento do Amor remete à Fonte que o possibilita, ao Amor originante que nos faz transcender as rígidas fronteiras do ego e acessarmos a um nível transpessoal de comunhão, onde o Amor poderá fluir com mais liberdade.
Tudo se enraíza no Amor do Pai que se manifestou em Jesus e que agora circulará através dos discípulos. Trata-se do mesmo e único Amor; o que é pedido aos discípulos é que permitam que esse Amor primeiro e originante se expresse e seja vivido através deles e entre eles. O sentido de nossa existência, portanto, está na experiência de entrada no fluxo do Amor fontal do Pai.
Por isso, não é um mandato vindo de fora, como uma imposição arbitrária. Os mandamentos não são, na sua origem, um conjunto de normas “externas” que Deus impõe ao ser humano para complicar-lhe a vida. Neles, Deus está expressando sua forma de entender a existência, seus sonhos sobre o mundo e sua sensibilidade diante de seus filhos e filhas. Em outras palavras, os mandamentos “emanam” do coração misericordioso do Pai para o bem viver da humanidade.
Nesse sentido, o “novo mandamento”, vivido e proclamado por Jesus, é um convite a viver o que somos, conectados com o Mistério amoroso que tudo anima e sustenta. O amor que Jesus nos pede deve surgir de dentro, não impor-se de fora como se fosse uma obrigação. Todos nós, criados à imagem e semelhança do Deus Amor, carregamos a “faísca do amor”, que deve ser ativada na relação com os outros e com o próprio Deus. Na medida em que vamos conhecendo e vivendo o que somos (nossa essência), o amor vai abrindo caminho e nós vamos nos parecendo mais com o Deus que é Amor.
Quando escutamos o verdadeiro Deus desperta-se em nós uma atração para o amor. Não é propriamente uma ordem. É o que brota em nós ao abrir-nos ao Mistério último da vida: “Amarás”.
Nesta experiência não há intermediários religiosos, não há teólogos nem moralistas. Não necessitamos que ninguém no-lo diga a partir de fora. Sabemos e sentimos que a essência da vida é amar.
A originalidade da afirmação central do evangelho de hoje é a de instituir um amor horizontal em que o movimento do eu em direção ao outro é prolongamento e imitação do movimento do amor de Jesus em direção ao ser humano.
O mandamento bíblico do amor é, portanto, a “inversão da direção natural de vida do ser humano”, ou seja, “do eu em direção ao eu”; falamos, aqui, do amor como “êxodo” do eu em direção ao outro. Trata-se do amor de alteridade que nos descentra, nos faz sair do “nosso próprio amor, querer e interesse” (S. Inácio).
É na presença do outro que o eu é libertado e gerado para a nova identidade de ser responsável, ou seja, aquele que responde e não pode deixar de responder diante de quem lhe passa ao lado. Por isso, a nova comunidade dos seguidores de Jesus não se caracterizará por doutrinas, nem ritos, nem normas morais. O único distintivo deve ser o amor manifestado em todas e cada uma de nossas ações.
Jesus não quer templos para manifestar esplendorosas adorações, nem estruturas ou ritos que chamem a atenção, nem poder ostentoso, nem doutrinas distantes da vida, mas a simplicidade do Amor despojado que a todos humaniza.
O Amor é o que há de mais divino em nós; não teria sentido se o que há de mais divino no ser humano desaparecesse. Por isso afirmava Dostoievski: “A imortalidade me é necessária, porque Deus não cometerá a injustiça de apagar por completo a chama de amor por Ele que prendeu em meu coração. E o que é mais precioso que o amor? O amor é mais excelso que a existência, o amor é a coroa da existência”.
O ser humano não tem capacidade de dar conteúdo ao amor, de dar-lhe significado. Não pode ser inventado por ele. Recebe-o inteiramente de Deus. O mandamento do amor não é lei que se impõe a partir de fora; ele “emana” do nosso próprio interior, pois o Amor “emana” do coração de Deus. O único que dá qualidade à vida é o amor.
É o amor que está no início da vida, o que a origina, a sustenta, a faz crescer, a faz perdurar, lhe dá asas... Só o amor desnudo tem o dom da eternidade. No céu, o ser humano não necessitará da fé nem da esperança, mas sim do amor, que será seu conteúdo, sua razão de ser. Só terá lugar o amor que habita em nós; o resto sobrará ou desaparecerá.
“Há uma força extremamente poderosa para a qual, até agora, a ciência não encontrou uma explicação formal. É uma força que inclui e governa todas as outras, e que inclusive está por detrás de qualquer fenômeno que atua no universo e ainda não fora identificado por nós. Esta força é o Amor” (A. Einstein, físico)
Texto bíblico: Jo 13,33-35
Na oração: O Amor originante e fontal de Deus lhe envolve permanentemente; marcado pela gratidão, queira entrar em sintonia, “ajustar-se” ao modo de amar de Deus: amor descendente, amor sem fronteiras, oblativo, expansivo... e que se “revela mais em obras do que em palavras”.
Movido pelo Amor transbordante de Deus, entre no fluxo desse Amor criativo, “descendo” à realidade cotidiana e ali deixando transparecer esse mesmo Amor através de suas obras.
- Faça “memória agradecida” de sua presença amorosa na realidade cotidiana. Viva em contínua ação de graças.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
“As minhas ovelhas escutam a minha voz, eu as conheço e elas me seguem” (Jo 10,27)
O específico do Tempo Pascal é deixar que os efeitos da Ressurreição se façam palpáveis; em outras palavras, é permitir que, em nossa vida cotidiana, a ressurreição de Cristo refulja, afaste toda escuridão e des-perte a vida que estava atrofiada nos túmulos do fracasso, da impotência e do desânimo.
E essa experiência tem a ver mais com os sentidos que com a razão. Os olhos, agora cristificados, ficam assombrados diante da explosão de possibilidades, matizes e cores depois do rigor da quaresma.
O Evangelho deste domingo(4º dom quaresma) nos motiva ressuscitar também nossa capacidade de escuta para estar atentos à voz d’Aquele que vive. Precisamos afastar a pedra da entrada dos ouvidos para escutar a sinfonia de vida que, continuamente, faz seu recital ao nosso redor.
O convite à escuta nos interpela com força desde os primeiros tempos bíblicos; escuta como atitude de abertura à profundidade da vida, de uma vida que tem sentido e que se abre a uma dimensão transcendente, que entra em sintonia com Aquele que escuta e se faz escutar. Escutar como atitude de fé e não como simples exercício da capacidade de ouvir. Escutar é mais que ouvir.
O ser humano é o único capaz de escutar e de falar, porque é o único criado à imagem e semelhança d’Aque-le que é a Palavra cheia de verdade e a escuta cheia de amor. “Escuta, Israel… amarás”. Escutar, abrir os ouvidos… diz-se que Israel é o povo da escuta, em vez de ser o povo da visão (gregos). É verdade que no deserto não há nada para ver. Os olhos mal se ajustam à luz… mas há cantos de areia, vozes no vento, gemidos de animais, palavras por dentro, no interior…
O povo que traz a Palavra de Deus é o povo da escuta. Portanto, o primeiro mandamento é “escutar”. “Escuta”, ou seja, atende à Voz, acolhe a Palavra. No fundo, isto quer dizer: não te feches, não faças de tua vida um espaço isolado onde só são escutadas tuas vozes e as vozes do mundo. Para além de tudo o que fazes e pensas, daquilo que desejas e podes, estende-se o vasto campo da manifestação de Deus; abrir-se à Sua voz, manter a atenção acesa, ser receptivo diante de sua Palavra: esse é o princípio que plenifica e dá sentido à existência.
É Deus que nos ensina a calar e a fazer silêncio para não mais escutar a palavra que apequena e mata. Existe uma palavra que informa, educa, ensina, apazigua, alegra, reconforta e edifica, mas também há outra que confunde, obscurece, empobrece, entristece, quebra, divide... Existe uma palavra que vivifica e outra que mata.
É importante progredir pelo caminho do silêncio, no qual nos educamos na escuta autêntica, que é a única capaz de nos conduzir ao puro amor. Porque o grau supremo da escuta é o silêncio cheio de amor.
Diante da voz do Bom Pastor não se trata de sermos receptivos a algumas ideias, ouvir determinados con-ceitos, mas de escutar com o ouvido do coração, procurando captar a vida que pulsa no coração d’Ele. Saber escutar, saborear o que Ele diz, entrar em comunhão de sentimentos, deixar-se impactar pelo seu modo de ser e de viver, suas opções, suas relações com o Pai e com os outros...
E isto exige uma capacidade de escuta de nós mesmos e uma profundidade que possivelmente está nos fal-tando, sobretudo se estivermos nos movendo na superficialidade da vida. A vida é a verdadeira escola para a aprendizagem da escuta. Por isso, escutar a voz do Pastor implica nos colocar no caminho da verdadeira e autêntica humanização. Daí a insistência em ter uma atitude aberta e acolhedora de escuta.
O ser humano pós-moderno não poderá deixar ressoar em seu interior a voz do Pastor enquanto sua mente e seu coração estiverem petrificados no automatismo da vida. A convivência se revela tensa, ansiosa, diante da ausência de saber escutar. Ser seguidor do Ressuscitado pede de nós um novo ouvido para facilitar novas relações, a transformação social e aceitar a nova visão da existência humana.
Escutar o “mistério” entranhável e sempre livre do Pastor é o caminho para encontrar nossa originalidade, nosso nome, para nos encontrarmos n’Ele, deixando-nos impregnar pelo seu “modo de proceder”; só assim poderemos viver como “ressuscitados”.
Sem escuta profunda a vida se desumaniza e o ser humano se automatiza egoísticamente.
A escuta é o caminho da originalidade, é a condição para não se viver na inércia.
Custa-nos muito ter sempre uma atitude de escuta receptiva, sobretudo em nossa sociedade secularizada, globalizada, individualizada, informatizada ou tecnologizada. Tudo são aparelhos. Tudo são ruídos. Todo o mundo quer falar, expressar-se. Mas falta o interlocutor que escuta sabiamente.
Rubem Alves, com seu fino humor, afirmou: “Sempre vejo anunciados cursos de oratória. Nunca vi anunciado curso de escutatória. Todo mundo quer aprender a falar. Ninguém quer aprender a ouvir. Pensei em oferecer um curso de escutatória. Mas acho que ninguém vai se matricular. Escutar é complicado e sutil”.
Escutar é uma arte difícil; aprender a escutar exige paciência e prática; escutar requer liberar tempos e criar hábitos: tempos para escavar significados e desmontar pré-juízos; hábitos para fazer silêncio e refletir sobre o escutado. O mais difícil não é aprender algo novo, mas desaprender algo antigo. Acontece o mesmo com a atitude de escutar: o difícil não é ouvir, mas esvaziar-se o suficiente para que a palavra escutada entre, ressoe e permaneça. Escutar é uma arte que implica todos os sentidos, não só os ouvidos: pede atenção às palavras, gestos, reações, silêncios...; pede saber interpretar e ler entre-linhas; pede meditar e digerir o visto e ouvido.
Se muitas de nossas conversações soam vazias e, com frequências, não conduzem a nenhum lugar, é porque não nos exercitamos para ser ouvintes. Devemos escutar com ouvidos de Deus a fim de que nos seja dado falar com a Palavra de Deus.
Só quando prestamos atenção a essa voz interior é que assumimos o sentido de nossa existência. A busca do sentido da vida é um exercício de escuta. Só quando escutamos atentamente esse chamado do Pastor Ressuscitado que emerge de nosso interior é possível perceber qual é a missão que devemos assumir ao longo da existência: ser presença de vida em meio a uma realidade marcada por tantas mortes.
Texto bíblico: Jo 10,27-30
Na oração: Orar, na verdade, não é, em primeiro lugar, falar com Deus; antes, é calar-se para escu-tar. Deus é uma presença que “ressoa” em nosso interior e às vezes faz brotar o canto, outras vezes o louvor, outras vezes a palavra profética… Escutar faz-nos calar em todos os sentidos e, neste silêncio, aprofundamos em nós um desejo mais elevado.
Invoque a luz sobre o sentido da audição que a natureza o quis vigilante; perceba toda a exultação em escutar as vozes da natureza e acolha as ressonâncias das palavras, dos hinos e das melodias com as quais é tecida a oração.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
“Saíram e entraram no barco, mas não pescaram nada naquela noite” (Jo 21,3)
“Simão Pedro, ouvindo dizer que era o Senhor, vestiu sua roupa e atirou-se ao mar” (Jo 21,7)
Os discípulos, depois da morte de Jesus, voltaram de Jerusalém à Galiléia, onde tentaram retornar à normalidade da vida. Para eles, a história de Jesus tinha acabado. O seguimento desembocara no fracasso. Estava na hora de retomar a vida que levavam antes de conhecer Jesus.
Simão Pedro anuncia que vai voltar a fazer o que sempre fazia: pescar. Os discípulos que o acompanham estavam ansiosos para participar da pesca. Voltar a pescar vai fazê-los esquecer o que lhes aconteceu.Mas não funciona. Por mais que tentem voltar a uma vida normal, as coisas não dão certo. Sentem-se frustrados diante do esforço e das diversas tentativas, mas não pescam nada.
As pessoas que passaram por um grande trauma entendem o que Simão Pedro e os discípulos sentem.
Querem afastar-se o mais depressa possível da dor que suportaram e dos horrores que presenciaram. Tentam juntar os cacos de suas vidas e se entregar ao jeito comum de fazer as coisas. Querem esquecer o que lhes aconteceu e se deixar conduzir pelas rotinas bem conhecidas da vida cotidiana.
Mas as repercussões da dor e do trauma continuam a martelar em suas vidas, atormentando-os durante o dia e perseguindo-os à noite. Coisas comuns provocam lembranças de um passado ainda doloroso. Passam a noite inteira se esforçando cada vez mais, porém sem sucesso. As redes estão vazias. O barco no mar de Tiberíades pode não estar carregado de peixes, mas os discípulos levam consigo os pesados fardos de seu passado. Livrar-se desses fardos é uma experiência longa e difícil.
Nasce o dia. Um “estranho” aparece na praia e pergunta-lhes a respeito da pesca. Diante da resposta negativa Jesus pede para lançar a rede do “outro lado” do barco. Em seus esforços estéreis para escapar do passado e reiniciar uma vida comum, os discípulos tinham pescado, quase obsessivamente, no mesmo lugar e do mesmo modo. Repetição compulsiva do passado. Buscam, através da pesca repetitiva, a libertação do trauma, mas não a encontram ali. A indicação do estranho para que procurem pescar em outro lugar ajuda-os a romper o ciclo da obsessão.
De repente, os olhos do “discípulo amado” se abrem e ele reconhece quem é o estranho. Esse olhar contemplativo contagia e todos se libertam da obsessão cega de encontrar, no retorno ao passado, o alívio para suas angústias: conseguem reconhecer quem estava na praia. No meio do fracasso revela-se a presença do Ressuscitado. E é Ele que, num gesto de hospitalidade, prepara a refeição, na praia, para os seus discípulos.
Os êxitos e os fracassos tecem a trama da nossa existência. Ambos são inerentes à natureza humana; eles se sucedem em muitos momentos ao longo do ciclo da vida; outras vezes se combinam e aparecem juntos.
Êxitos e fracassos expressam nossa potencialidade e nossa limitação, nossa grandeza e nossa fragilidade; formam parte da engrenagem do viver. Decidimos que uma ação é um êxito ou um fracasso em função de nosso sistema de crenças, valores e exigências. Falamos de fracasso quando nossas expectativas, projetos ou aspirações não chegam a realizar-se ou a cumprir-se como esperávamos; falamos de êxito quando chegamos a cumprir nossos projetos segundo nossas expectativas.
Êxitos e fracassos são como que balizas em um caminho que podem contribuir para que a vida seja vivida em plenitude; os êxitos enquanto que motivam, inspiram, alentam e reafirmam o sentido que uma pessoa atribui à sua existência, às suas opções e aos seus atos; os fracassos, quando se convertem em ocasião para retificar, refletir ou mergulhar mais profundamente na busca desse mesmo sentido. O êxito e o fracasso possuem essa qualidade de crisol no qual se forjam as vidas e as pessoas.
A vida é constituída de momentos de luta e de coragem, de sonhos e de esperança, de vitória e de derrota. Este é o material com o qual são construídas as histórias e as vidas.
Nossas experiências de êxito e de fracasso são indispensáveis para viver. As primeiras trazem valor, alimentam a confiança em nós mesmos, recompensam nosso esforço. As segundas nos revelam aspectos novos de nossa pessoa, nos ajudam a recapacitar, a mudar, a redirecionar o sentido de nossa existência. Tão importante é dialogar e conviver com nossos êxitos como com nossos fracassos.
Êxito e fracasso constituem uma dessas realidades humanas que parecem estar abertas e revelar o melhor e o pior do ser humano. Há aqueles a quem o êxito os transforma em pessoas prepotente, soberbas, insuportáveis; há outros, no entanto, a quem o êxito os transforma em pessoas encantadoras, seguras de si, simpáticas, empreendedoras... Existem também pessoas a quem o fracasso as afunda num abismo de impotência e agressividade, e outras a quem as converte em seres incrivelmente sensíveis, compassivos, humildes, resistentes...
Em um horizonte de sentido, o fracasso tem seu lugar. Ele tende a nos deprimir, mas também pode ser uma ocasião para nos fazer mais humanos e humildes. Ele pode ser percebido como chance para crescimento ou amadurecimento, pode ser integrado à luz de outras experiências positivas. O fracasso pode ser ocasião para ativar outras potencialidades internas. Aprendemos mais pelos nossos fracassos do que pelos nossos êxitos.
Segundo C. Jung, o maior inimigo da transformação é uma vida bem sucedida. O fracasso, que em muitas ocasiões nos provoca medo, insegurança, mal-estar... é um espaço perfeitamente adequado para iniciar o movimento para uma maior maturação. Mais ainda, muitas vezes são os fracassos que nos levam a iniciar uma mudança em nossas vidas, eles se revelam como uma ocasião privilegiada para um “salto vital” em direção a um horizonte maior de sentido para a própria existência.
Os fracassos nos revelam aspectos novos de nós mesmos e ajudam a nos conhecer mais. “Há coisas que não se compreendem enquanto não se esteja definitivamente derrotado” (Péguy)
A experiência dos fracassos nos une a todos, nos iguala, é fonte de comunhão... Graças a eles vamos quebrando, pouco a pouco, nosso instinto de posse, nosso autocentramento, nossa soberba...
O fracasso não é a última palavra; a última palavra é a Ressurreição. O Ressuscitado que se revela presente nas “praias de nossa vida”, também nos espera nos fracassos, assim como esperou seus discípulos na pesca fracassada, com uma presença acolhedora, compassiva, facilitadora de uma refeição simples, carregada de amizade e humanidade.
Tais fracassos, revividos à luz da Ressurreição misericordiosa, nos fazem mais humanos, mais agradecidos, mais confiados... e despertam um novo dinamismo e uma nova criatividade diante dos desafios da vida; é aqui que somos chamados a comprovar a nossa fidelidade, a ver o que trazemos nas entranhas e no coração.
Através dos fracassos reconhecemos que só o Ressuscitado é capaz de reconstruir relações quebradas e nos lançar a uma nova missão: “Apascenta minhas ovelhas”.
Texto bíblico: Jo 21,1-19
Na oração: A experiência da Ressurreição não é algo reduzido a momentos particulares da vida. A Ressurreição e o Ressuscitado são realidades chamadas a iluminar e dar sentido à nossa vida inteira. Aqueles momentos agradáveis e aqueles momentos de desilusão; aqueles momentos plenificantes e aqueles nos quais tudo parece carecer de sentido; aqueles momentos de lucidez e aqueles momentos onde a obscuridade prevalece.
- Como você reage diante dos seus fracassos? Percebe neles uma ocasião privilegiada para um salto vital?
Pe. Adroaldo Palaoro sj
“...mostrou-lhes as mãos e o lado” (Jo 20,20)
O relato do Evangelho deste 2º. domingo da Páscoa é sugestivo e interpelador. Quando Jesus ressuscitado se faz presente, acontece uma profunda transformação no grupo dos seus discípulos: eles recuperam a paz, desaparecem os medos, enchem-se de uma alegria contagiante, sentem o “sopro” do Espírito em seus corações infundindo-lhes ânimo e coragem, abrem as portas porque se sentem enviados à mesma missão que Jesus tinha recebido do Pai.
A presença misericordiosa é a marca do Ressuscitado: ela é força criadora e reconstrutora de vidas despedaçadas. Jesus ressuscita cada um dos seus amigos e amigas, ativando neles o sentido da vida, reconstruindo laços comunitários rompidos e oferecendo solo firme a quem estava sem chão, sem direção.
Jesus reconstrói pessoas feridas mostrando Suas chagas e desvelando as feridas de seus seguidores (fracasso, traição, dor, tristeza, medos...). Suas feridas revelam que, por debaixo das feridas dos seus amigos e amigas, há vida escondida querendo se expandir; debaixo da pedra da dor e do fracasso há um dinamismo vital querendo buscar um lugar ao sol.
João, no relato de hoje, quis reforçar a corporalidade da Ressurreição e o fez desta forma, destacando o valor das chagas de Jesus. O Senhor Ressuscitado continua sendo Aquele que leva em suas mãos e lado as feridas de sua entrega, os sinais de seu amor crucificado em favor da humanidade.
Este Jesus pascal continua estando presente nas chagas dos homens e mulheres das mãos esmagadas, na ferida do peito de homens e mulheres que sofrem rejeição e preconceito, nas feridas dos pés de homens e mulheres impedidos de dar direção às suas vidas.
Não há experiência pascal sem um retorno à corporalidade de Cristo, que continua sendo o mesmo Jesus histórico que morreu por fidelidade ao projeto do Reino. Podemos dizer que Jesus apresenta a seus discípulos sua Carteira de Identidade: suas mãos chagadas e seu lado aberto. O Ressuscitado é o Crucificado e o Crucificado é o Ressuscitado.
Há uma continuidade entre a Cruz e a Páscoa; não há rupturas, é a mesma identidade pessoal. Por que as chagas? São as credenciais que melhor revelam quem é Jesus. Elas são o sinal e a expressão do seu amor, o amor até o extremo, o amor até dar a vida.Essas mesmas chagas são as melhores credenciais de todo seguidor de Jesus. Credenciais que definem o cristão como aquele que ama à maneira de Jesus; este não ama de verdade enquanto não possa mostrar suas chagas no serviço aos outros.
A cena do encontro do Jesus Ressuscitado com Tomé nos revela a exigência de conversão de um tipo de cristianismo puramente “espiritual”. Tomé se move fora do espaço da dor de pessoas concretas, sem cruz real, sem comunidade aberta às chagas da humanidade. Por isso, ele não está presente no 1º. grupo que “viu” Jesus e acreditou n’Ele.
Tomé continua sendo o apóstolo de uma espiritualidade desencarnada, sem compromisso social, sem denúncia profética, sem solidariedade com os pobres e excluídos. Ele é um seguidor especial de Jesus, mas sem “carne e sangue”, ou seja, sem ressurreição histórica, sem transformação da “carne”.
Tomé é expressão do ser humano a quem lhe custa crer na ressurreição do Jesus histórico, do Jesus das chagas nas mãos, pés e lado, do Jesus da carne, do Jesus do povo crucificado. Provavelmente Tomé crê no Cristo glorioso, desligado da história de Jesus, sem chagas nas mãos, no peito e nos pés: das mãos que tocaram os pobres e doentes, do coração que amou os excluídos da sociedade, dos pés que romperam distâncias na direção dos chagados do mundo.
Há sempre o perigo de crer no Ressuscitado “asséptico”, sem chagas em seus pés, mãos e lado. Crer em Jesus sem as chagas é esquecer-se das feridas dos pobres, a morte dos oprimidos; é não tocar as chagas da humanidade ferida, quebrada...
Esta cena vem colocar em questão muitos movimentos “aleluiados”, mas desencarnados e longe do compromisso com os sofredores da história. Crer no Ressuscitado é comprometer-se a tirar da Cruz todos aqueles que nela estão dependurados.
Mas, Tomé vem no “domingo” seguinte, algo lhe atrai; não só “vê” a Jesus senão que é convidado a tocá-Lo. Esta experiência de “conversão” de Tomé, que volta à comunidade e que toca as chagas de Jesus, faz parte essencial do mistério da páscoa cristã.
Segundo o Evangelho de hoje, Tomé precisa converter-se, descobrindo e confessando em sua vida a chaga de Cristo que continua sofrendo nos pobres e sofredores. O cristianismo não é uma espiritualidade desencarnada, mas uma religião da “carne comprometida” e solidária.
Por isso Jesus diz a Tomé e a cada um de nós: “Põe tua mão na chaga dos cravos, no meu peito atravessado pela lança, descobre minha presença pascal na ferida dos crucificados da história”.
A Páscoa, portanto, implica aprender a tocar com mais força e de um modo mais profundo as nossas próprias feridas e as feridas da humanidade. Tocar em Jesus, colocar o dedo em sua chaga, é descobrir a ferida sangrenta da história humana, vinculando assim a ressurreição com a dor dos homens e mulheres oprimidos, excluídos, enfermos...
Nas chagas de Jesus, nossas chagas são iluminadas e integradas. A descoberta da vida dos sofredores e a implicação compassiva para com eles desperta em nós um sentimento de compaixão para conosco mesmo: ela nos faz tocar nossas próprias feridas, herdadas ou surgidas na busca do crescimento enquanto pessoas.
Mostrar aos outros as próprias feridas é um desafio, supõe abertura e humildade. Tocar, com profunda sensibilidade, as feridas dos outros é um ato de comunhão que nos ressuscita e nos inclui, como Tomé, na Ressurreição de Jesus.
Texto bíblico: Jo 20,11-19
Na oração: Tocar o Ressuscitado, tocando as chagas dos crucificados: isso é o que devemos fazer todos, de maneira que o contato com o sofrimento do mundo nos transforme e nos faça capazes de expandir a Vida de Deus.
- Crer no Ressuscitado é viver de Sua presença misericordiosa: recordar experiências pessoais de presença junto aos sofredores;
- “Nas Suas chagas nossas feridas são curadas”: quais são suas feridas que travam o fluir da vida?
Pe. Adroaldo Palaoro sj
“…e viu que a pedra tinha sido tirada do túmulo” (Jo 20,1)
O sentido do Evangelho do domingo de Páscoa é de uma riqueza extraordinária; ele começa realçando um amanhecer cheio de contrastes: escuridão, ida ao sepulcro, a pedra rolada, pôr-se a correr. Desconcerto. Ele não está. Quem O levou? Onde o colocaram?
Quando começa o amanhecer, a escuridão vai se dissipando. Mas ainda não se veem as coisas claramente. O coração anseia ver e encontrar. As sombras impedem ver; o sepulcro impede ver; as faixas impedem ver; as pressas impedem ver. Correm as mulheres; corre Simão Pedro; corre João.
No final, encontrar-se-ão com Ele quando estiverem quietos, a sós consigo mesmos. Não é correndo que se experimenta a Páscoa; é na espera silenciosa que se encontra com o Ressuscitado. Pois é Ele quem toma a iniciativa, se apresenta e se dá a conhecer. Luminosa, amorosa, pacificadora, vibrante, feliz, generosa, reconciliadora..., assim é a presença do Ressuscitado entre seus amigos e amigas.
Não encontraremos o Ressuscitado no sepulcro, mas na vida. Não encontraremos o Ressuscitado enfaixado e paralisado pela morte. Só poderemos encontrar o Ressuscitado livre como a brisa da vida.
Não “vemos” a Ressurreição contemplando os restos da morte; só podemos contemplar o Ressuscitado no mistério da vida. Pois só existe a Vida. E “Jesus ressuscitou de tanto viver”. Aquele que viveu tão intensamente não podia permanecer na morte. Por isso, só no compromisso com a vida é que podemos encontrá-Lo. A Ressurreição nos revela: só existe a Vida; só nos resta viver intensamente.
O relato do Evangelho do domingo de Páscoa é uma verdadeira catequese: para quem viveu a experiência, trata-se do “primeiro dia da semana”; para Maria Madalena, no entanto, ainda é de noite: “está escuro”. Sabemos que para o autor do 4º. Evangelho, a noite é sinônimo de obscuridade, confusão, ignorância; o “primeiro dia”, pelo contrário, faz alusão à “nova criação”.
Madalena levanta-se de madrugada, quando ainda está escuro; a dor por aquele que ama faz vencer o medo, coloca-a em movimento e põe-se a buscar . Não se resigna diante da ausência do seu amado, nem diante da ideia do fracasso e da morte.
Marida Madalena é boa companheira quando atravessamos circunstâncias de “vida sepultada”, quando não sabemos o que fazer diante da dor dos outros, quando estamos próximos de pessoas que vivem realidades de desesperança, de não ver saída, de “pedras” que vão sendo colocadas encima e deixam a vida paralisada; quando já estamos tentados a dizer: "não há nada que fazer”, “as coisas não vão mudar”.
Ao caminhar em direção ao sepulcro, lugar da morte e da desesperança, Maria Madalena é surpreendida ao observar que “a pedra tinha sido removida”, ou seja, que a morte tinha sido vencida. Ela busca desesperadamente um corpo sem vida; enquanto assim busca não poderá reconhecer Jesus. Ele já não está onde não há vida, porque onde Ele aparece toda vida se levanta. Se Ele está no centro, há vida até no fundo dos sepulcros.
“A pedra tinha sido removida”: imagem instigante e que nos sugere algo profundamente sábio: debaixo de cada “pedra” que parece amassar-nos, há vida que quer ressuscitar. Mais profundamente ainda, não há nenhuma “pedra”, nada que seja capaz de sufocar a vida. Qualquer “pedra” que nossa mente possa imaginar já foi “afastada”: o que somos, encontra-se sempre a salvo; a vida não pode ser derrotada.
Depois de ficar impactada diante do túmulo aberto, ela volta correndo à cidade para contar isso aos outros; é a primeira corrida de Maria Madalena. Dois homens correm também para o sepulcro: um vê mas não entra, o outro entra e a princípio ainda não vê. Estão embaçados os seus olhos, é lenta a visão que busca um corpo conhecido, que pensa encontrar o já sabido, o já visto, o já esperado.
No final da corrida, uma tumba vazia, algumas faixas, um sudário e um vazio no coração. Pedro e João regressam pensativos ao refúgio, onde se encontram os outros discípulos. O sepulcro vazio é um convite a saber olhar com o coração para poder descobrir, nas “faixas” e no “sudário” de nossa vida, o Ressuscitado, a Presença d’Aquele que é.
Ao chegarem ao sepulcro, Pedro e João não viram o Ressuscitado, mas “faixas” e “sudário”. Mas, tanto as faixas como o sudário não são elementos que por si mesmos fundamentam a fé na ressurreição. Requer-se uma maneira de “olhar” que vai mais além da materialidade, ou melhor, que saiba descobrir nos sinais a Presença d´Aquele que está presente em tudo e tudo anima. Quem sabe “olhar” desse modo é “o outro discípulo, a quem Jesus amava”, a imagem do verdadeiro discípulo.
Sem dúvida só o amor nos capacita para um olhar contemplativo; por isso, o amor “corre” mais depressa que a autoridade. Vem à memória palavras como as de Pascal: “O coração tem razões que a razão desconhece”; ou as do Pequeno Príncipe: “O essencial é invisível aos olhos; só se vê bem com o coração”.
É que o amor, por seu próprio dinamismo integrador e unificador, nos faz descobrir a dimensão mais profunda da realidade que, de outro modo, nos escapa. Para quem tem olhar contemplativo, as “faixas” já representam um grande sinal: apontam para uma Vida destravada e plena.
“Faixas” são todo desejo de superação, a vontade que sentimos de ser melhores, a aspiração por viver, o amor aos outros e a capacidade de perdão; o desejo de plenitude; a beleza daquilo que nos cerca; a vivência prazerosa, a esperança sustentada em meio ao sofrimento; o silêncio; a vivência do Presente; a oração; o encontro pessoal; a experiência de ser transformados; a mesa compartilhada...
À luz da Ressurreição, tudo isso ganha dinamismo e um novo impulso para viver em plenitude.
Diante da obscuridade daqueles que ainda não experimentaram o encontro com o Ressuscitado, as testemunhas proclamam: “Jesus ressuscitou” e “viver como ressuscitados” é a marca que identifica os(as) seguidores(as) d’Aquele que “ressuscitou de tanto viver”.
E essa é a Boa notícia que nada nem ninguém poderá arrebatar-nos. A Ressurreição não é simplesmente para ser contada, é para ser vivida; ou dito de outra maneira, não podemos contá-la sem ter ficado transformados, sem ter sido transpassados por essa experiência que rompe as fronteiras de nossa vida.
Texto bíblico: Jo 20,1-9
Na oração: São nossas pequenas ressurreições cotidianas que falam da Ressurreição de Jesus; nas nossas ressurreições descobrimos a presença do Ressuscitado. É em nossa vida onde O reconhecemos vivo. Somos testemunhas de sua ressurreição; somos testemunhas da nova vida; somos testemunhas do novo que está começando. Páscoa, luz expansiva que nos faz perceber em profundidade os sinais de Vida.
- Rezar as “faixas” e o “sudário” do seu cotidiano que apontam para a Vida plena.
A todos aqueles(as) que hoje amanhecem “novos”, “criaturas novas”, uma Santa Páscoa.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
“No mesmo horizonte da misericórdia, viveu Jesus a sua paixão e morte,
ciente do grande mistério de amor que se realizaria na cruz”
(Papa Francisco – Misericordiae Vultus)
A CRUZ é o lugar por excelência da revelação visível da Misericórdia de Deus.
No mistério da Paixão do Filho se manifestou radicalmente a Misericórdia do Pai. Na Paixão encontra-mos a Misericórdia de um Deus que desceu e chegou até o extremo da fragilidade para manifestar a força reconstrutora de seu Amor.
A Cruz de Jesus expressa de maneira penetrante o Amor Misericordioso do Pai. Ela é revelação do Amor levado até às últimas consequências. Ela nos fala daquilo que Deus sente por nós.“Deus é capaz de sofrer porque é capaz de amar. Sua essência é a MISERICÓRDIA” (Moltmann).
O Amor torna o próprio Deus vulnerável e passível de um sofrimento livre, ativo, fecundo. Se Deus fosse impassível (incapaz de sofrer) seria também incapaz de amar.
De fato, o mistério do “amor em excesso” de Deus, revelado no silêncio junto ao sofrimento inocente, chama-se misericórdia compassiva. Só o amor é capaz desse sofrimento compassivo. Porque é Amor puro, Deus usa de paciência, de presença silenciosa, de misericórdia ativa e, assim, salva de forma compassiva toda criatura em seu seio regenerador. Só Ele é capaz de assumir para si o sofrimento e a fragilidade humana, abrindo um novo horizonte de vida.
No N.T., o mistério da Misericórdia do Pai atravessa toda a experiência de Jesus, de sua missão, mas também de sua própria paixão e de sua Páscoa. No sofrimento e morte do Filho há a dor de dilaceração, fragilidade e silêncio do Pai, como em dores de parto por uma criação que ainda precisa da compaixão e da misericórdia maternal do Criador. Se o Criador sofre em dores de parto por sua criação, nosso sofrimento está em suas mãos, em seu seio. É a maternidade divina regeneradora de sofrimentos.
Sem a Cruz seria muito difícil convencer o ser humano do amor misericordioso de Deus, e mais ainda de seu apaixonado interesse por nos salvar. Mas, a partir dela, será sempre possível dizer ao ser humano que a Cruz de Jesus tem um sentido, e que a última palavra é “salvação”.
No Jesus crucificado se encontram e se reconhecem todos os sofredores inocentes e crucificados da história; n’Ele se condensam todos os gritos da humanidade sofredora. A “kénosis” de Jesus nos ensina, portanto, a encontrar Deus nos lugares onde a vida se acha bloqueada.
Deus “desceu” às zonas mais escuras da humanidade – sofrimentos, fracassos, amarguras, pecados... – para sentir como Seu nosso sofrimento e ali falar ao nosso coração.
A primeira coisa que descobrimos ao contemplar o Crucificado do Gólgota, torturado injustamente até à morte pelo poder político-religioso, é a força destruidora do mal, a crueldade do ódio e o fanatismo da mentira. Precisamente aí, nessa vítima inocente, nós seguidores de Jesus, vemos o Deus identificado com todas as vítimas de todos os tempos. Está na Cruz do Calvário e está em todas as cruzes onde sofrem e morrem os mais inocentes.
Jesus foi condenado como herege e subversivo, por elevar a voz contra os abusos do templo e do palácio, por colocar-se do lado dos perdedores, por ser amigo dos últimos, de todos os caídos. “Jesus morreu de vida”: de bondade e de esperança lúcida, de solidariedade alegre, de compaixão ousada, de liberdade arriscada, de proximidade curadora...
“Morreu de vida”: isso foi a Cruz, e isso é a Páscoa. E é por isso que tem sentido recordar Jesus, olhando as chagas de seu corpo e as pegadas de sua vida.
O Crucificado nos revela que não existe, nem existirá nunca um Deus frio, insensível e indiferente, mas um Deus que padece conosco, sofre nossos sofrimentos e morre nossa morte.
A partir da Cruz, Deus não responde o mal com o mal; Ele não é o Deus justiceiro, ressentido e vingativo, pois prefere ser vítima de suas criaturas antes que verdugo.
Despojado de todo poder dominador, de toda beleza estética, de todo êxito político e de toda auréola religiosa, Deus se revela a nós, no mais puro e insondável de seu mistério, como amor misericordioso. Nós cristãos contemplamos o Crucificado para não esquecer nunca o “amor louco” de Deus para com a humanidade e para manter viva a recordação de todos os crucificados da história.
O que nos assusta diante da Paixão de Cristo é o profundo e estridente “silêncio de Deus”. No entanto, o silêncio de Deus não se deve a que Ele queira calar, mas a que nós não podemos escutar. Se existe silêncio, este enraiza-se não no calar de Deus, mas na surdez radical do ser humano.
A Cruz de Cristo revela que Deus continua do lado do inocente sofredor. No silêncio, Deus não apenas se solidariza, mas sofre “em sua pele”, identificado com os sofredores, aqueles que sobram...
“Deus sofre” com seu Filho; seu coração sangra juntamente com ele na cruz. Se Deus “sofre”, é por seu excesso de Amor, desde o princípio.
O silêncio de Deus na paixão do Filho é a fronteira da esperança: atrás do silêncio da Cruz, espera, viva e impaciente, a palavra definitiva da Ressurreição. Ele acolhe o mistério do mal em seu mistério maior de amor, sem utilizar o revide de vingança e de poder. Na sua própria vulnerabilidade, renunciando aos atributos divinos, sobretudo de potência, Deus brilha em atributos que surgem do amor puro e humilde.
Para Jon Sobrino, a vivência da Misericórdia é a que impulsiona a Igreja para fora de si mesma, para as margens, onde acontece o sofrimento humano. Uma Igreja configurada pelo “Princípio Misericórdia” tem força e coragem para denunciar aqueles que produzem vítimas, para desmascarar a mentira daqueles que oprimem, para animar e despertar a esperança daqueles que são as vítimas.
Quando isso ocorre, a Igreja é ameaçada, atacada e perseguida; mas isso mostra que ela se deixou conduzir pelo “Princípio Misericórdia”. A ausência de tais ameaças, ataques e perseguições significa, por sua vez, que a Igreja não está sendo fiel a esta misericórdia reconstrutora que se fez visível na Paixão e Cruz de Jesus Cristo. Se ela leva a sério a misericórdia e deixa transparecer no seu modo de se fazer presente no mundo, então ela se torna conflitiva.
Diante do supremo indicador do amor misericordioso de Jesus e do amor do Pai, abre-se para a Igreja uma inesgotável exemplaridade e uma referência única para ser, também ela, presença misericordiosa.
Textos bíblicos: Mc 14,43-72 Mc 15
Pe. Adroaldo Palaoro sj
Casa de Retiros Vila Kostka- Itaici-SP
“Tomai e comei, isto é meu Corpo; tomai e bebei, isto é meu Sangue”
Os integrantes do Conselho Nacional das Igrejas Cristãs do Brasil (CONIC) estabeleceram para este ano de 2016 mais uma Campanha da Fraternidade Ecumênica com o tema: “Casa comum, nossa responsabilidade”. Todos os cristãos, em suas diferentes denominações, devem assumir o desafio de construir uma Casa Comum justa, sustentável e habitável para todos os seres vivos.
Este compromisso é profético, pois questiona e denuncia as estruturas que provocam diferentes tipos de exclusão: econômica, ambiental, social, racial e étnica. Tudo isso rompe a comunhão com o cosmos, fere e fragiliza a dignidade de homens e mulheres.
Nesta 5ª. feira Santa, dia da instituição da Eucaristia, podemos buscar, nesta última refeição de Jesus, a inspiração e o sentido para uma consciência ecológica integral, restabelecendo a comunhão universal com todas as expressões de vida.
Conhecemos o quadro da Última Ceia de Salvador Dali: o Cenáculo alto, Jesus e os discípulos, o pão partido, o vinho vermelho translúcido... O autor fez as paredes do Cenáculo, enormes, de vidro, como nunca foram na realidade. E, da singeleza da Eucaristia, o olhar vai mergulhando para fora, vendo o mar, as praias, as montanhas, o mundo, o universo... tudo isto transfigurado por um abraço de um corpo humano/divino enorme, braços abertos, acolhendo a cena toda... É como se Ele ficasse transparente e a gente passasse a ver o mundo inteiro através d’Ele.
Um sintoma típico da pós-modernidade é o sentimento de orfandade: o universo já não é mais entranha que gera vida, mas um deserto. Percebemos que temos perdido o contato e a comunhão com o cosmos, com o chão, com os animais, com as aves, com os rios e oceanos... e isto tem provocado em nós toda espécie de mal-estar, de doenças, de insegurança, de ansiedade. Somos “seres urbanóides”, cercados de cimento e asfalto por todos os lados. Quando perdemos o contato com a natureza e nos distanciamos da terra, nos tornamos insensíveis, frios e incapazes de compaixão e cuidado.
A Última Ceia de Jesus com os apóstolos revela que a Criação é obra de Deus e exige uma aproximação contemplativa. Quanto mais proximidade e intimidade com a terra, mais profunda é a comunhão com todos os seres. A Terra nos encanta e nos convida, continuamente, à admiração, ao cuidado e à veneração.
Estamos mergulhados no “grande Templo” formado por uma multiplicidade de notas, sons, sinais e mensagens diferentes. Formamos uma realidade complexa, diversa e única. Uma pedra, uma cascata, uma nuvem caprichosa, um pássaro, convertem-se em veículos de sabedoria. É necessário que nos eduquemos para captar a mensagem que eles nos transmitem e aprender a viver a comunhão com tudo o que nos rodeia. Todo o Cosmos é como um grande livro que precisa ser lido.
Quando o ser humano não percebe o seu parentesco com a Criação, vive numa casa-prisão cujas paredes lhe impedem uma comunhão cósmica. Ao contrário, quando sente a presença de Deus em todas as coisas e entra em comunhão com toda a natureza, seu coração se emancipa e se dilata, sua mente se abre, seus horizontes se ampliam... O Universo passa a ser o seu grande lar, onde ele encontra o coração de Deus. Em tudo se pode vislumbrar um lampejo da divindade. Com isso, a eucaristia revela seu caráter universal que nos permite viver uma espiritualidade ecológica e nos ensina a abraçar a Criação e a nos encontrar com o Deus do Universo. A comunhão com o Universo é ponto de partida e de chegada da Eucaristia.
O dom eucarístico, portanto, não pode ser reduzido a um simples rito desligado das demais relações envolventes (com Deus, com os outros e com toda a Criação). Pela Eucaristia Deus abraça todas as suas criaturas e as envolve no mistério pascal de seu Filho Jesus, de modo que, de Eucaristia em Eucaristia, todo o Cosmos vai sendo “cristificado”.
A partir da Eucaristia tudo é sagrado, tudo é uma grande liturgia cósmica. O universo é um grande sacramento e se transforma no espaço e no lugar de manifestação da divindade. Tudo é sagrado; a Natureza é sagrada, porque é Templo de Deus. Todos os lugares da mãe-Terra pelos quais caminhamos são “territórios sagrados”. Segundo a Bíblia, a Terra é um jardim onde Deus tem prazer em passear.
O Universo inteiro é um imenso altar cósmico sobre o qual celebra-se, diariamente, a liturgia da vida; ao mesmo tempo, ele é o lugar no qual podemos contemplar e acolher a presença do Criador, a harmonia dos seres, a comunhão das criaturas. Sobre o altar do mundo se entrelaçam o céu e a terra, de modo que toda a Criação é iluminada pela Eucaristia.
Todas as criaturas celebram a grande festa, ao redor da Mesa cósmica (Última Ceia – Ceia universal).
A vivência da Última Ceia nos proporciona uma fecunda experiência cósmico-ecológica. Em Jesus, Deus se revelou encarnado na história e fez do Universo seu corpo. A presença real de Jesus, no pão e vinho da Eucaristia, nos desperta a reconhecê-Lo presente no coração do Cosmos e da História. No partir do Pão e no beber do Vinho da Eucaristia, palpita a vida que transcende as fronteiras da morte.
Quem come deste Pão e bebe deste Vinho, compromete-se com a luta contra as forças da morte: egoísmo, violência, indiferença, omissão política, desonestidade na gerência dos bens, descuido nas relações afetivas, isolamento no medo, destruição do meio-ambiente, poluição...
Simbolicamente, na Eucaristia, o pão é partido para significar a doação de Jesus; e ao comermos deste pão, aceitamos ser como o grão de trigo que, caído no chão da história, recebe as energias que vem das profundezas da terra e das alturas do céu.
Num pedaço de pão há o vento que balança as espigas, a noite calma que caiu sobre o campo, o sol ardente que faz germinar e crescer o trigo, a água generosa que possibilitou a vida, a terra que teve de ser arada, o ser humano trabalhando sem parar, a semente que teve de morrer para que viesse a planta, o adubo que foi posto com mãos calosas, o gesto da mão que preparou a massa... A natureza inteira se mobilizou para gerar o pão, que deve ser partido e oferecido com generosidade.
Da mesma forma, toda a Criação foi mobilizada para proporcionar o vinho da alegria e da festa. Diante de nós, sobre o altar, está contido todo o Universo, pronto a se fazer dom e alimento.
Jesus, na Última Ceia, ao tomar o pão e o vinho em suas mãos, acolhe os dons da Natureza para transmitir sua Vida a toda humanidade; Vida em abundância; Vida que não tem fim...; a Vida num pedaço de pão e num cálice de vinho.
Texto bíblico: 1Cor 11,23-35 Jo 13,1-15
Na oração: Rezar a importância e o sentido da Eucaristia em sua vida: obrigação? Lei? Tradição familiar?...
- Quê ressonâncias tem a Eucaristia em sua vida cotidiana?
Pe. Adroaldo Palaoro sj
Casa de Retiros Vila Kostka- Itaici-SP
“... Jesus caminhava à frente, subindo para Jerusalém” (Lc. 19,28)
A vida de Jesus é uma grande subida a Jerusalém; e nesta subida, segundo os relatos evangélicos, Ele desconcertou a todos. Evidentemente, desconcertou as pessoas mais piedosas e observantes da religião judaica: fariseus, escribas, sacerdotes, anciãos... Não só Jesus foi a pessoa mais desconcertante de toda a história, mas nele aconteceu algo também desconcertante. Ele desencadeou na história da humanidade um “modo de viver” que quebrou toda estrutura petrificada, sobretudo religiosa, constituindo um “movimento” ousado que colocava o ser humano no centro.
Um movimento alternativo às instituições romanas e à organização sacerdotal do judaísmo; um movimento “marginal” que dava prioridade aos pobres, aos deslocados, aos doentes e excluídos, aos perdedores... e que não tem nada a ver com uma organização fundada no poder, no prestígio, na riqueza...
Este movimento, desencadeado na Galileia, chega agora às portas da “cidade santa” , Jerusalém. Aquele homem que movia multidões por todo o país, por sua pregação e milagres, não é um revolucionário violento. E, no entanto, nem por isso deixa de ser inquietante, transgressor e perigoso. Jesus foi assim e assim Ele viveu; todo o resto lhe sobrava (leis, culto, templo, estrutura religiosa...).
Jesus queria entrar na cidade das contradições humanas oferecendo uma mensagem de pacificação e um programa de libertação, correndo o risco de encontrar a morte imposta por aqueles que resistiam a qualquer mudança na estrutura social-política-religiosa de seu tempo. De fato, Jerusalém é a cidade controlada por aqueles que detinham o poder religioso que, aliado aos romanos, não reconheciam n’Ele o profeta do Reino e não acolheram a salvação que Ele trazia.
Jesus queria levar vida a uma cidade que carregava forças de morte em seu interior. Ele queria por o coração de Deus no coração da grande cidade; desejava reativar a tão sonhada nova Jerusalém, a cidade cheia de humanidade, espaço de acolhida e comunhão, luz dos povos, onde todas as nações se encontrariam. Mas Ele encontra uma cidade petrificada, fechada em seus ritualismos, intolerante e resistente à proposta de vida que trazia.
Durante o tempo Quaresmal e Semana Santa as agências de turismo costumam fazer muita propaganda de Peregrinações à Terra Santa. Mesmo que não sejamos turistas e nem peregrinos, teremos, sim, que transitar por Jerusalém durante estes dias. Não podemos ir ali simplesmente como quem vai assistir algumas procissões famosas de Semana Santa; não podemos ir a Jerusalém de uma maneira indiferente, porque em Jerusalém é preciso “tomar partido”. Ou somos um personagem da Paixão ou não somos nada; ou nos identificamos ou seremos meramente estranhos; ou estamos com Ele ou com aqueles que tramam a sua morte.
Fazer memória da Paixão de Jesus pode ser uma ocasião privilegiada para transitarmos por nossa Jerusalém interior, um bom espaço onde encontrar a nós mesmos, identificar-nos com os diferentes personagens e sentir-nos parte daquela história. O relato da Paixão de Jesus revela ser também a história de cada um de nós. Porque, afinal de contas, é uma história que aconteceu no passado e continua acontecendo também hoje em nossa interioridade. E é a partir do hoje que nós temos de vivê-la, numa atitude contemplativa. E é a partir de nós, e não a partir daqueles personagens de então, que teremos de assumi-la.
Vamos, então, com Jesus montado num jumentinho, transitar pelas ruas de nossa Jerusalém interna, reconhecendo os diferentes personagens que ali atuam e que significam diferentes atitudes vividas por cada um de nós. Cada personagem é um espelho onde nos vemos.
Começamos com o relato do Domingo de Ramos.
Jerusalém não é só uma cidade geográfica, situada na Palestina. Domingo de Ramos nos motiva a fazer o percurso em direção à nossa Jerusalém interior. Mas, para descer em direção a esta cidade é preciso despojar-nos da vaidade, do prestígio e do poder, montado no jumentinho da simplicidade.
Nossa Jerusalém interior é também lugar das contradições e ambiguidades; ali dentro experimentamos a trama de relações conflitivas, ali nos deparamos com as angústias, carências e dúvidas... É preciso cuidar o coração da nossa “Jerusalém interior”, esvaziá-lo, limpá-lo, aquecê-lo, transformá-lo em humilde e acolhedor espaço, para que o Espírito do Senhor possa aí descer e habitar, transmitindo-lhe vida, luz, calor, paz, ternura...
É preciso voltar a pôr o “coração de Deus no coração de nossa Jerusalém”. Faz-se necessária uma opção corajosa, como Jesus, para entrar e estar no interior de nossa Jerusalém, para aí descobrir o verdadeiro coração de Deus, que pulsa no ritmo dos excluídos, dos sofredores, dos sedentos.
É preciso aprender a integrar nossos conflitos da cidade interior para convertê-los em vida nova a partir do silêncio, e é preciso percorrer as ruas descoloridas e violentas do espaço interno. Nosso zêlo e amor pelo Evangelho e pela semente do Reino que nele está contida, há de favorecer o advento de um “nova Jerusalém”, cheia de humanidade e comunhão, de justiça e de fraternidade.
É preciso aprender a ler a nossa Jerusalém com os olhos pacientes, misericordiosos, fecundos, cordiais...
Ali reconheceremos também a presença das beatitudes originais que habitam o nosso coração; ali sentiremos a força da ação do Espírito em cada canto desta cidade e em cada rosto que encontramos; ali teremos acesso a outros recursos e possibilidade de vida que ainda não foram ativados.
Nesta nova cidade interior, cristificada pela entrada do Mestre de Nazaré, seremos mobilizados a abrir as portas de nossas casas para estarmos sempre prontos a acolher os desafios que vem de fora. Ao mesmo tempo, entrar na nossa Jerusalém nos faz conscientes de que somos seres em movimento, protagonistas de mudanças, capazes de criar novos modos de existir, de romper com o instituído e buscar o diferente, o novo, o desconhecido... É o espaço das inovações, dos riscos, dos experimentos e da busca do novo. Nele se encontra o lugar dos sonhos, dos desejos, da liberdade e autonomia.
A nossa Jerusalém interior é um espaço sempre em expansão. O Evangelho ilumina a vida de nossa cidade e pede atitudes novas, propostas ousadas... Em nosso coração urbano há um oásis que regenera: continuamente devemos retornar a este oásis se não quisermos que nossa vida se transforme em permanente deserto; é neste oásis que buscamos o sentido, o descanso, o gosto por viver.
É muito mais cômodo continuar viajando até a Jerusalém (imaginativamente) e não sentir-nos implicados com aquilo que está acontecendo em nosso interior e ao nosso redor. Por isso, Jerusalém é missão: é preciso “descer” em direção às periferias da nossa Galileia e ali prolongar a atividade criativa e libertadora de Jesus. Podemos, então, atribuir à nossa cidade interior esta afirmação de G. Dimenstein: “A bela cidade não é aquela que tem necessariamente as melhores paisagens, mas aquela em que a criatividade é a melhor paisagem”.
Hosana a Jesus! Que chegue a Páscoa! Que venha a vida!
Texto bíblico: Lc 19,28-40
Na oração: procure descobrir os sinais do Reino de Deus no meio da aparente confusão de sua Jerusalém interior: lugar da harmonia? espaço aberto e acolhedor?...
- Como recriar, no coração da cidade interior, o ícone da Nova Jerusalém, a cidade cheia de humanidade e comunhão, o lugar da justiça e fraternidade?
- “Diga-me como você habita sua cidade interior e eu lhe direi como é sua presença no seu espaço urbano”.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
Casa de Retiros Vila Kostka- Itaici-SP
“Mestre, esta mulher foi flagrada cometendo adultério. Moisés, na Lei, nos mandou apedrejar tais mulheres.
E tu, que dizes?” (Jo 8,4-5)
Segundo o Papa Francisco, “onde há misericórdia, aí está presente o Espírito de Deus; onde há rigidez, aí estão seus ministros”. Jesus percebeu algo muito sério nesta inclinação que temos de julgar as outras pessoas. É escandalosa a capacidade do ser humano causar dano aos outros; e dentro desse dano infligido às pessoas, ocupa um lugar de destaque o juízo gratuito, a desqualificação e a condenação.
Não podemos negar: todos temos vocação de juízes; todos somos peritos em alimentar um tribunal interior. Onde a lei ocupa o centro, ali não há possibilidade de nova oportunidade de vida. As boas relações entre pessoas só são possíveis quando os que se relacionam entre si não se julgam uns aos outros. Quando alguém sabe ou suspeita que os outros lhe estão julgando, e lhe estão julgando mal, a relação humana se complica, possivelmente se envenena, e termina por fazer-se insuportável. É muito duro ir pela vida sabendo que há alguém que pensa mal do outro, que o julga e o condena.
Todos sabemos que, por detrás de tanto juízo e condenação – como no Evangelho que lemos hoje -, parece indicar uma insegurança radical, que se disfarça justamente de segurança absoluta, fundada na lei, onde a pessoa chega a pensar que possui a verdade e que os outros estão no erro.
A necessidade mesma de ter razão e de acreditar ser portador da verdade é indício de uma insegurança de base que se torna insuportável. Por isso, o fanatismo religioso revela insegurança camuflada, do mesmo modo que o afã de superioridade esconde um doloroso complexo de inferioridade, às vezes revestido de “nobres” justificações.
Quando alguém se eleva em juiz da vida dos outros e, além disso, se considera com conhecimentos e o suficiente critério para condená-los, o que realmente faz é usurpar o lugar que corresponde a Deus. Por isso é tão frequente que as pessoas que se consideram mais próximas a Deus e aos princípios da estrita observância moral são os juízes mais implacáveis. Sem dar-se conta, ocupam o lugar de Deus.
No evangelho de hoje(5º dom.quaresma), o pressuposto de Jesus é que ninguém pode ser identificado com seus atos exteriores, ou com suas aparências. Dentro de cada um, existe um mistério profundo e impenetrável, cujo conhecimento é reservado unicamente a Deus. É preciso respeitá-lo, sabendo que, por detrás de cada ato humano, existe uma história que nos escapa. Deixemos que Deus seja Deus e que Ele tenha a última palavra. Ele conhece cada pessoa, na sua intimidade. Por isso, não corre o risco de se enganar. É com misericórdia que ele pesa as ações humanas; por isso Ele salva sempre.
O relato de João, indicado para a liturgia deste domingo(5º dom quaresma), põe em confronto duas maneiras diferentes de reagir perante a “mulher pecadora”: uma, de acolhida e proximidade; outra, de julgamento e distância. De um lado, os olhares julgadores dos escribas e fariseus se voltam para a mulher, ao mesmo tempo que a atenção repreensiva concentra-se sobre Jesus, buscando motivos para também julgá-lo. Por outro lado, entre o Mestre e a mulher se instaura uma surpreendente compreensão e acolhida: nada de julgamento e condenação. Mesmo sentindo-se julgada e condenada por aqueles que se apresentavam como os legítimos intérpretes da Lei de Moisés, a mulher encontrou e descobriu, nas palavras e na pessoa de Jesus, de modo novo e fascinante, o rosto misericordioso de Deus, a ponto de sentir seu abraço paterno. Ela sentiu-se seduzida por Jesus, o “justo”, o amigo dos publicanos e dos pecadores.
A maneira misericordiosa de Jesus se fazer presente junto à pecadora, mobiliza esta mulher a fazer da sua vida de erros um trampolim para a sua humanização. Jesus não contabiliza os pecados, não classifica as pessoas em puras e impuras. Ele abraça a realidade em sua totalidade, integrando-a. Ele acolhe e celebra a vida em sua totalidade. Não foi o passado de erros da mulher que determinou a atitude de Jesus para com ela, pois Ele não se deixa determinar pelo passado.
Jesus tem um coração expansivo, voltado para todas as direções, onde quer que se encontre a realidade limitada e frágil. O encontro com Ele não desperta sentimentos de culpa; as pessoas podem retirar-se em paz. Jesus faz da misericórdia o verdadeiro evento divino. Nele, a misericórdia torna-se o dom constitutivo não só do divino, mas também do humano.
Enquanto os escribas e fariseus não entendem a ternura e a acolhida de Jesus para com a mulher, esta, ao contrário, conhece o mistério inefável da Misericórdia e abandona-se a Ele. Libertada de seu passado e amada, a mulher sente-se devolvida à vida, levando consigo no coração um dom inesperado: o perdão, que a inunda de paz e alegria. A pecadora, atraída pelo amor terno e misericordioso de Jesus, finalmente experimenta a gratuidade e a doçura da misericórdia para consigo mesma. Ela muda a sua vida quando percebe ser amada por um amor envolvente, gratuito, antecipado. Assim, ela se torna uma nova parábola da ternura e da misericórdia de Deus.
A mulher estava preparada para a morte, mas Jesus a despede viva, abrindo uma nova possibilidade de futuro. É notável como Jesus encarna a atitude de rejeição ao pecado e amor ao pecador. Isto foi magistralmente expresso por S. Agostinho, quando ficaram sozinhos Jesus e a mulher: “Só ficaram dois, a miserável e a misericórdia”.
Onde impera a Lei, não há futuro, só julgamento; onde a Misericórdia encontra espaço ali a vida tem nova chance. Os acusadores acreditavam estar seguros, fundamentados na lei e na sua consciência. Mas Jesus, sem julgá-los, os conduz também a um nível mais profundo, apelando a que se olhassem a si mesmos, para que vissem que eles estavam condenando a mulher porque tinham medo, se sentiam inseguros e necessitavam descarregar sua agressividade.
Por isso, Jesus não se comportou como juiz, nem com relação à mulher, nem com relação aos cúmplices, nem com relação aos acusadores e aos curiosos, mas se situou em um plano mais alto: no nível da misericórdia de Deus, que envolve esta mulher e, por meio dela, a todos os que a acusavam. Uns e outros devem reconciliar-se e iniciar uma vida em gratuidade, criando condições distintas de convivência, uma história de gratuidade não impositiva.
Texto bíblico: Jo 8,1-11
Na oração: Ser misericordioso é não aprisionar o outro nas consequências negativas de seus atos. A misericórdia é a própria condição para que nossa vida seja vivida de uma maneira nova. Fora do fluxo da misericórdia a vida se torna impossível de ser vivida.
- “O que é que eu não perdôo no outro? O que é que eu não consigo perdoar em mim mesmo?
- O que é que em mim pode perdoar?
- Que força é esta que me atravessa e que, passando pela justiça, me conduz à misericórdia?
- Pedir maior consciência do Amor Misericordioso do Pai; que cada um possa deixar-se surpreender pelo Amor criativo do Pai... e participar em sua festa de reconciliação.
Ao mesmo tempo, pedir um coração desarmado, pronto a re-criar (perdoar é re-criar, é dar oportunidade para alguém viver de novo).
Pe. Adroaldo Palaoro sj
Casa de Retiros Vila Kostka- Itaici-SP
“Trazei depressa a melhor túnica para vestir meu filho. Colocai-lhe um anel no dedo e sandálias nos pés.
Trazei um novilho gordo e matai-o, para comermos e festejarmos” (Lc 15,22-23 )
Tornar presente o Pai como Amor e Misericórdia foi, para Jesus, o cerne de sua missão: toda a sua vida foi uma eloquente revelação da misericórdia divina para com a humanidade.
Jesus, presença visível da misericórdia, revela um Deus Pai-Mãe, cheio de ternura e de misericórdia que vai ao encontro dos perdidos, libertando-os da exclusão e do isolamento; um Deus que exulta de alegria quan-do os reencontra e que convida a todos para a festa da comunhão e do perdão.
Essa é a descrição de Deus cuja bondade, generosidade, amor, alegria e compaixão não tem limites.
Um Deus novo, “desconcertante”, “escandaloso”, totalmente incompatível com o “deus legalista” dos escribas e fariseus. A Misericórdia de Deus por nós faz-lhe perder sua soberania e compostura e sair correndo ao nosso encontro, para abraçar-nos na nossa humanidade ferida e profanada, para devolver-nos a filiação e a dignidade.
“Onde há misericórdia, aí está presente o Espírito de Deus. Onde há rigidez, aí estão seus ministros” (Papa Francisco).
O que escandalizava os destinatários das parábolas da Misericórdia (Lc 15) contadas por Jesus, que se consideravam justos e cumpridores exemplares da Lei, não era propriamente a conduta dos pecadores, mas a conduta do próprio Jesus com relação a eles; Ele, rosto visível da misericórdia, permite que os pecadores se aproximem dele, recebe-os de coração aberto, toma a iniciativa de ir ao encontro deles e senta-se com eles à mesma mesa.
O comportamento de Jesus é uma “parábola viva” do comportamento de Deus com os pecadores. Na parábola de hoje, o pai aparece sempre como alguém que contraria as expectativas dos ouvintes, que vai contra a visão de Deus daquele que está habituado à lei do “olho por olho, dente por dente”. Os escribas e fariseus não podiam suportar que Jesus proclamasse que Deus acolhe e perdoa incondicio-nalmente a todos, que tem um carinho especial, um amor de predileção pelos perdidos; um Deus que vai ao encontro dos perdidos e que transborda de alegria quando os encontra.
A parábola do Pai Misericordioso condensa toda a história de nossa salvação. Ela contém a quinta-essência do Evangelho do Reino do Pai proclamado por Jesus, a história do amor de Deus para com a humani-dade. O que Jesus quis proclamar ao contá-la foi que o amor, a misericórdia, o perdão e a comunhão são oferecidas por Deus aos “perdidos”.
Justamente por ser o Evangelho condensado, esta parábola deve ser incessantemente ouvida e contem-plada por todos nós. E depois de contemplada e experimentada, devemos contá-la, proclamá-la e testemu-nhá-la, sempre de novo, a todos os homens e mulheres que Deus ama. Ela é a parábola da nossa vida, da nossa história, de cada um dos nossos caminhos. Ela é, enfim, a parábola da nossa origem e do nosso destino.
Longe de uma imagem de um Deus severo, com a lei na mão, pronto para nos acusar, Jesus nos revela o rosto de Deus Pai-Mãe de infinita ternura, que se alegra com o retorno de seus filhos à convivência em sua casa. De fato, no Evangelho de hoje (4º dom Quaresma), a volta do filho perdido provoca uma “explosão de alegria” no Pai. Sua alegria era tão intensa que ele não poderia esperar para dar início à comemoração.
A expressão “depressa” com a qual o pai exorta seus criados denota que o serviço deve ser executado sem demora, pois o filho não pode ficar por mais tempo privado de sua dignidade. As ordens aos empregados são dadas em voz alta para que todos fiquem sabendo da festa, para que a sua alegria seja conhecida e partilhada por todos. Ele convida todos a comer, beber e dançar. Uma grande festa tem início, mas não tem fim.
Tão fortemente o pai deseja dar vida a seu filho mais novo que parece quase impaciente. Nada é suficientemente bom. O melhor precisa lhe ser dado. Ele ordena que o filho seja imediatamente vestido com a túnica luxuosa, como a que é usada nos dias de festa pelos hóspedes ilustres. O filho recupera sua identidade e sua dignidade de filho. O pai lhe dá o anel para honrá-lo como seu filho amado e novamente devolver-lhe a condição de herdeiro e a plenitude de seus direitos. Com as sandálias, é devolvida ao filho a condição do homem livre e de senhor da casa. Mas o Pai não ama só o filho perdido e reencontrado. Ele ama também aquele que ficou em casa, a seu lado, e que deixou seu coração endurecer. Ele vai ao seu encontro, vai para pedir que participe da alegria do reencontro e da festa. Não o deixa na sua solidão e na sua rejeição. Não acusa seu pecado.
O Pai vai procurar também aqueles que tem um coração de pedra, invejosos e legalistas. O fato miraculoso não está só em que o pai não renegou o filho mais moço, e sim que tenha sido compreensivo com um homem tão duro, frio e rígido como o filho mais velho, e que continua a chamá-lo de “filho”.
O “princípio misericórdia”, portanto, é o núcleo do Evangelho. E a misericórdia é o “amor em excesso”. Na misericórdia, Deus sempre nos surpreende, sempre excede nossas estreitas expectativas, para abrir caminho a partir de nossas fragilidades. Só o amor misericordioso de Deus nos reconstrói por dentro, destravando-nos, colocando-nos em movimento e abrindo-nos em direção a um horizonte de sentido, de responsabilidade e compromisso.
Deus não só tem um coração que ama. Isso já é extraordinário. Mas também tem entranhas, uma ternura que se comove. Isso é avassalador. A misericórdia constitui a resposta de Deus à indigência do ser humano: ela recria a vida, pois, a força criativa da sua misericórdia põe em movimento os grandes dinamismos de nossa vida; debaixo do modo paralisado e petrificado de viver, existe uma possibilidade de vida nova nunca ativada.
Deus, em sua misericórdia reconstrutora, libera em nós as melhores possibilidades, riquezas escondidas, capacidades, intuições... e nos faz descobrir em nós, nossa verdade mais profunda de pessoas amadas, únicas, sagradas, responsáveis...
A misericórdia é expansiva, ela abre um novo futuro e desata ricas possibilidades latentes em cada um. Ela não se limita ao êrro, mas impulsiona cada um a ir além de si mesmo.
Onde não há misericórdia, não há sequer esperança para o ser humano.
Podemos concluir afirmando que a misericórdia não é só a mais divina mas também a mais humana das virtudes. É aquela que melhor revela a natureza do Deus Pai e Mãe de infinita bondade. É a que revela igualmente o lado mais luminoso da natureza humana; nesse sentido, a misericórdia é a que mais humaniza as relações entre as pessoas.
Por isso, Jesus propõe um modo de ser humano inseparável da misericórdia do Pai: “Sede misericordiosos como o Pai é misericordioso” (Lc. 6,36)
Ser misericordioso “como” Deus constitui o mais elevado convite e a mensagem mais profunda que o ser humano recebe sobre como tratar a si mesmo e aos outros.
Texto bíblico: Lc 15,1-3.11-32
Na oração: A experiência de misericórdia ativa em nós um modo de viver misericordioso. O Deus de misericórdia cria em nós um coração novo, feito de acordo com o Seu, capaz de misericórdia. Entrar no “fluxo” da misericórdia divina: ser canal por onde circula o amor misericordioso de Deus em favor dos outros.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
Casa de Retiros Vila Kostka- Itaici-SP
“Vou cavar em volta dela e colocar adubo; pode ser que venha a dar fruto” (Lc 13,8-9)
Comprovamos hoje um “déficit de interioridade”. Vivemos num contexto social e cultural no qual o ritmo frenético que nos é imposto para conseguir mais bem-estar material não favorece o acesso à nossa própria interioridade. Seduzidos por estímulos ambientais, envolvidos por apelos vindos de fora, cativados pela mídia, pelas inovações rápidas… vamos nos esvaziando, nos diluindo, perdendo a interioridade e… nos desumanizando. Vítimas da chamada “síndrome da exteriorização existencial”, temos dificuldades de introspecção, silêncio, reflexão, contemplação…; já não somos capazes de velejar nas águas da interioridade, vivendo uma vida superficial e sem sentido. A perda da direção de nossa interioridade, que nos constitui como seres humanos, gera um vazio existencial e espiritual.
Tal como a figueira da parábola do evangelho deste domingo, a vida vai se atrofiando e se ressecando, porque não recebe seiva do seu interior. É pura folhagem, pura aparência e sem frutos.
A originalidade do Tempo Quaresmal encontra-se na aventura da re-descoberta do “mundo interior”, esse mundo desconhecido e surpreendente, onde acontece o mais importante e decisivo de cada um. Conduzindo-nos a viver a experiência no deserto com Jesus, a liturgia quaresmal revela que toda pessoa possui dentro de si uma profundidade que é seu mistério íntimo e pessoal. Por isso, “viver em profundidade” significa “entrar” no âmago da própria vida, “descer” até às raízes da própria existência e chegar à fonte de água viva que ativa uma nova seiva, fazendo surgir novos brotos e novos frutos.
É no “eu mais profundo” que as forças vitais se acham disponíveis para ajudar a pessoa a crescer dia-a-dia; é aqui que ela experimenta a unidade de seu ser; aqui é o lugar da transcendência, onde realmente acontece uma profunda transformação.
Trata-se da dimensão mais verdadeira de si, a sede das decisões vitais, o lugar das riquezas pessoais, onde a pessoa vive o melhor de si mesma, onde se encontram os dinamismos do seu crescimento, onde brotam as aspirações e desejos fundamentais… Assim, a descoberta do próprio ser profundo aproxima cada um do autor da vida: Deus.
A vida está oculta nas profundezas. A pessoa superficial é aquela que se confunde com a aparência de sua folhagem, mas não dá frutos. A pessoa de interioridade, por sua vez, é aquela que vive a partir da raiz, da fonte mesma da vida, e deixa vir à tona todas as suas riquezas, dons, capacidades… É no chão da vida que está escondido nosso verdadeiro tesouro; é do chão da vida que existem, em abundancia, os aspectos positivos de nossa personalidade, os talentos naturais e as boas tendências. Ali se aninham imensas riquezas que se exprimem de maneira diferente, dando a cada um uma fisionomia própria, um caráter único. Esta região profunda coincide com o mundo das certezas, dos valores, das ideias-força… que formam o eixo de nossa existência, o melhor de nós, o lugar de nossa recuperação e de nossa realização.
Quem “desce” até sua própria interioridade, até os abismos do inconsciente, até a escuridão de suas sombras, até a impotência de seus próprios sonhos, quem mergulha em sua condição humana e terrena e se reconcilia com ela, este sim, está “subindo” para Deus, faz a experiência do encontro com o Deus “rico em misericórdia”.
Deus, em sua misericórdia reconstrutora, libera em nós as melhores possibilidades, capacidades, intuições… e nos faz descobrir em nós nossa verdade mais verdadeira de pessoas amadas, únicas, sagradas, responsáveis… É Ele que “cava” no nosso coração o espaço amplo e profundo para nos comunicar a sua própria interioridade. A força criativa de sua misericórdia põe em movimento os grandes dinamismos de nossa vida; debaixo do modo paralisado e petrificado de viver, existe uma possibilidade de vida nova nunca ativada.
Por isso, é decisivo alimentar as raízes com os valores do Evangelho (justiça, compaixão, bondade..) para que uma seiva cristificada se espalhe pela árvore, gerando novos rebentos e novos frutos. “Descer” às raízes é uma oportunidade privilegiada para descobrir-nos e conhecer nosso reino interior, para encontrar nossa riqueza interior e assim experimentar a transformação.
O caminho para uma nova qualidade de vida passa pelo encontro com as próprias raízes. Mas essa descida nos possibilita descobrir um mundo diferente que não conhecíamos, ou que havíamos perdido. Este é o caminho da espiritualidade que brota do húmus; “descer” até o fundo, mergulhar nas dimensões mais profundas onde estão escondidos os recursos que darão significado e sentido às nossas vidas.
É preciso “des-velar” nosso “eu profundo”, o lugar onde se encontra os dinamismos da nossa personalidade, as boas tendências, os dons naturais, as riquezas do ser, as beatitudes originais, as grandes aspirações. Dentro de nós encontramos forças construtivas que podem mudar-nos eficazmente. É preciso escavar, alimentá-las e deixá-las aflorar espontaneamente. Esse é o nível da graça, da gratuidade, da abundancia, onde a pessoa mergulha no silêncio do deserto interior, à escuta de todo o seu ser.
E das raízes profundas brotam as respostas mais criativas e duradouras; a interioridade desvelada ativa uma relação sadia com todos; com a nova seiva a figueira se expande em direção aos outros, fazendo-a viver numa conexão livre com toda a realidade.
A imagem da figueira destaca também a paciência do agricultor. Lucas é o evangelista da misericórdia; e essa misericórdia se faz visível na esperança e no cuidado esmerado do agricultor para com a figueira; ele não desiste, quer dar tempo para cuidá-la de novo, tempo para a mudança. A pesar de levar “três anos” sem dar fruto, o lavrador continua confiando nela: “vou cavar em volta dela e colocar adubo”.
Jesus realça a paciência divina, porque compreende e respeita o momento e o ritmo de cada pessoa. Conhecedor do coração humano, Ele sabe dos condicionamentos de todo tipo que pesam sobre ele. Na vivência cristã, a terra interior também pode ser cavada, adubada para que seja despertada a verdade pessoal. Os mecanismos, que ainda impedem a transformação interior, algum dia deixarão de funcionar, e o seguidor de Jesus quebrará suas resistências e se abrirá para dar início à a uma nova caminhada.
Portanto, revolver a terra é o primeiro requisito a ser cumprido para que a árvore dê fruto; o segundo é o adubo que alimenta e desperta um novo reflorescimento da nossa árvore.
Provavelmente, o místico Johann Tauler estava pensando nessa parábola quando disse: “Dia após dia, o agricultor leva o esterco ao campo, e, após um ano, o campo dá seus frutos. É uma imagem consoladora que, justamente, aquilo que consideramos o esterco da nossa vida – os fracassos, as coisas pouco vistosas e pouco louváveis – prepara o campo para a nossa árvore da vida e a faz florescer”.
Texto bíblico: Lc 13,1-9
Na oração: Há uma força de gravidade que nos atrai progressivamente para o mais profundo de nós mesmos, onde Deus nos espera e nos acolhe, e onde encontraremos o nosso “eu original” e a verdadeira paz.
É preciso “descer” até às raízes de nossa existência para descobrir uma nova “seiva” para nossa vida; é “descendo” que poderemos revitalizar a vida que se tornara vazia e ressequida.
Trata-se de despertar, de escavar nosso chão interior, alargar nosso coração e garimpar em direção às energias que estão disponíveis no eu mais profundo.
- O quê alimenta as raízes de sua existência? Onde você busca o adubo que se transformará em seiva vital?
Pe. Adroaldo Palaoro sj
Casa de Retiros Vila Kostka- Itaici-SP
“Enquanto rezava, seu rosto mudou de aparência e sua roupa ficou muito branca e brilhante” (Lc 9,29)
O relato da Transfiguração não é crônica de um fato histórico; é, muito mais, a experiência de fé dos discípulos que, com toda certeza, perceberam em Jesus uma “transparência” ou “profundidade” que os impactou profundamente.
Podemos expressar numa frase o significado do relato: “Jesus é transparência do divino”. Por isso, podemos dizer também que Ele é um homem transfigurado. Jesus viveu constantemente transfigurado. A transfiguração não foi um fato isolado na vida do Mestre de Nazaré, mas o ‘estado habitual de seu ser’. Mas foi durante sua oração no monte que Jesus deixou transparecer sua identidade mais profunda e escondida; algo que os seus discípulos não podiam captar no ritmo da vida cotidiana.
Quê fazia de Jesus um “homem transfigurado?” Era sua bondade, sua compaixão, sua autenticidade, sua integridade e coerência, sua liberdade, seu projeto de vida, sua relação com o Pai... Ou seja, o que há de divino em Jesus está em sua humanidade. Só no humano transparece Deus.
Jesus nos dá a medida do humano: ser pessoa compassiva e comprometida com os demais. É precisamente na condição humana de Jesus onde podemos conhecer quem é Deus e como é Deus. Mais ainda, é na entranhável humanidade de Jesus onde compreendemos a profunda e desconcertante humanidade de Deus.
Sua humanidade e sua divindade se expressavam cada vez que Ele se aproximava das pessoas, especialmente as mais excluídas e sofredoras, ajudando-as a reconstruir a própria humanidade ferida. Sua humanidade levada à plenitude é Palavra definitiva. Por isso, é preciso “escutá-Lo”. Escutar o “Filho amado” é transformar-se n’Ele e levar uma vida comprometida, semelhante à d’Ele, ou seja, empapar-se do “modo” como Ele humanamente viveu.
A Transfiguração está nos dizendo quem era realmente Jesus e quem somos realmente cada um de nós. Ela nos revela também nossa identidade e nos faz caminhar em direção à nossa própria humanidade. Por isso, uma pessoa transfigurada é uma pessoa profundamente humana. Tudo o que é autenticamente humano é transparência de Deus. Em outras palavras, a vivência do humano nos diviniza.
Somos todos “pessoas transfiguradas”..., mas desconhecemos essa realidade surpreendente. Na Transfiguração, Jesus nos faz descobrir nosso verdadeiro ser, que vemos refletido n’Ele. Jesus continua se “transfigurando” na montanha interior de cada um de nós. N’Ele, encontramos “indicações” que nos conduzirão a essa descoberta: a vivência do amor, da compaixão, da confiança, do silêncio, da coragem, da experiência de Deus...
A transfiguração não é condição de um “iluminado”, mas a realidade de toda pessoa que é capaz de “sair de seu próprio amor, querer e interesse” (S. Inácio). Transfigurar é descentrar-se e expandir-se na direção do outro. Transfigurar é ativar todas as possibilidades de vida para que ela se torne oblativa.
Tal experiência também nos confere um “olhar contemplativo” que nos faz descobrir que toda realidade já está “transfigurada”. Seguramente reacenderá em nós a capacidade de admiração, de assombro e de contemplação, para ver as pessoas e “todas as coisas criadas” para além do meramente superficial. O olhar habitual de nosso contexto pós-moderno não é precisamente esse, mas outro, caracterizado pelo imediatismo, pragmatismo, interesse e voracidade. Em tal contexto há tanta superficialidade e tanto narcisismo que a vivência da profundidade, do silêncio, da admiração... se tornam estranhos para nós.
A Transfiguração possibilita cultivar um “olhar” que sabe ver em profundidade, descobrindo em cada ser humano, para além de suas aparências, um ser transfigurado, porque somos capazes de vê-lo em sua beleza e bondade originais; um olhar que sabe deixar-se impactar por tudo aquilo que nos cerca e é capaz de render-se diante do Mistério.
Nesse sentido, “subir” ao Tabor implica “descer” em direção à nossa própria humanidade. A Montanha nos “transfigura” , revelando nosso ser essencial. Todos estamos dispostos a “subir”, mas nos custa muito “descer”. Não haverá plenitude de humanidade enquanto os de cima não decidam descer, e os de baixo não renunciem subir passando por cima dos outros.
Não se trata de ter a antena dirigida ao céu para esperar que dali venha algumas palavras para indicar o que devemos fazer. Trata-se de descobrir a voz de Deus no grito desesperado de cada um dos seres humanos que encontramos em nosso caminhar. “Humanizemo-nos!” Esta é a voz d’Aquele que viveu permanentemente “transfigurado-humanizado”.
Aquele Monte (Tabor) é um espaço instigante, lugar alto de experiência radical de Jesus, para ver os problemas da humanidade, para senti-los, para assumi-los e mudar... Jesus nos faz subir à grande montanha para que vejamos as coisas de outra forma, de outra perspectiva... É preciso, de vez em quando, tomar distância e nos afastar do cotidiano rotineiro e atrofiado, para ampliar nossa visão e contemplar o drama humano; é decisivo nos situar diante do calor de Deus (sarça ardente) para desvelar nossa verdadeira identidade. Somente assim a Montanha nos transfigurará para que nos empenhemos a serviço dos “desfigurados” do mundo.
A espiritualidade cristã nos possibilita fazer a síntese entre o novo e o antigo, entre a interioridade e exterioridade, enfim, síntese entre a Transfiguração do Tabor e o cotidiano da vida comprometida com os desafios do vale. Sínteses profundas que nos educam para a “liberdade dos filhos de Deus” (Rom. 8,21).
A transfiguração de Jesus é como uma parábola que nos recorda: a vocação cristã é transfigurar o tempo e o espaço. É preciso transfigurar nossas relações humanas: passar de relacionamentos interesseiros a relações afetuosas e amáveis.
É urgente transfigurar a política, transformando o poder e a gestão da coisa pública em serviço ao bem-comum. É preciso transfigurar a natureza na comunhão do ser humano com o universo.
A Transfiguração do ser humano acontece no coração de cada um que crê. É Deus que nos transfigura, “mudando nosso coração de pedra em coração de carne” (Ez. 36,26).
Texto bíblico: Lc 9,28-36
Na oração: Na nossa vida de seguidores de Jesus não faltam momentos de claridade e certeza, de alegria de luz. Ignoramos o que aconteceu no alto do Tabor, mas sabemos que na oração e no silêncio é possível vislumbrar algo de nossa identidade interior.
A oração nos transfigura e nos faz descer em direção à nossa própria humanidade e à humanidade dos outros.
Na vida de cada um de nós, como na vida de todo ser humano, certamente encontramos tempos especiais ou momentos privilegiados, cheios de sentido, embriagados de amor, de felicidade plena. Reviver estes momentos ou tempos nos fará bem: quais foram? Como aconteceram? Como os vivemos, que sentimos, porque acabaram?
* Fazer um tempo de oração revisitando em sua memória essas vivências de “transfiguração”.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
“Jesus, cheio do Espírito Santo, voltou do Jordão e, no deserto, Ele era guiado pelo Espírito” (Lc 4,1)
Segundo a tradição, a primeira imagem da tentação foi uma maçã: uma fruta vermelha, carnosa, saborosa e brilhante. Seu atrativo aroma penetrou até os tutanos de nossos ancestrais e eles caíram na armadilha da superficialidade.
Atrai-nos a superfície das coisas, justamente aquela que brilha, ainda que de maneira fugaz e solucione nossa fome e nossa sede. Cremos que com apenas uma mordida podemos saciar nossa ânsia de sentir-nos diferentes, reconhecidos e valorizados. Tempos depois o superficial continua sendo superficial e o reconhecimento, o prestigio, o aplauso ou o acúmulo de bens revelam seu rosto inconsistente.
A tentação vai estar sempre ai, como maçã ou como pedras que se convertem em pães, como aplauso buscado a partir dos critérios do mundo, ou como joelhos que se dobram frente às promessas de um ídolo com pés de barro. Sempre vai estar presente, buscando saciar nossa fome e nossa sede, conhecendo onde pisamos, oferecendo-nos novidades no jardim florido e consolo nas gretas de nossos desertos.
Livra-nos Senhor desses “espelhismos” que prometem vida e escondem o vazio!
Ser tentado é próprio do humano, mas o que é divino pode ser encontrado em nosso interior.
Quem não se deixa conduzir pelo Espírito, não é capaz de acessar a própria interioridade, permanece na superfície de si mesmo e se deixam enredar pelos estímulos externos.
Muitos já não conseguem mais recolher-se e voltar para “dentro” de si, para recuperar o centro gravitacional de sua vida, o ponto de equilíbrio interior.
Este é o desafio que nos inquieta: é preciso “conhecer-nos a fundo”, ou seja, ter a experiência de si mesmo, do próprio íntimo, do centro do ser, da região profunda da qual sem cessar tiramos, como de um poço, a água viva, a energia, as certezas para viver.
Vivemos um contexto social e cultural no qual se constata um modo de vida que não favorece o contato profundo consigo mesmo. Seduzido por estímulos ambientais, envolvido por apelos vindos de fora, cativado pela mídia, pelas inovações rápidas, magnetizado por ofertas alucinantes... o ser humano se esvazia, se dilui, perde a interioridade e... se desumaniza. Tudo se torna líquido: o amor, as relações, os valores, a ética, as grandes causas... (cf. Bauman).
O Evangelho de hoje(1º Dom. Quaresma) insiste que Jesus se deixa conduzir pela força do Espírito; por isso, vive uma integração a partir de seu coração e não se deixa levar pelas aparências enganosas.
Tradicionalmente, as tentações de Jesus foram interpretadas num sentido moralizante; costumava-se dizer que Jesus nos queria dar o exemplo de como superar nossas tentações cotidianas.
Tal interpretação não capta em toda sua profundidade o sentido das “tentações de Jesus”.
Elas não são tanto uma prova a superar quanto um projeto que deve ser discernido.
O que parece claro é que Jesus, depois do batismo, buscou o deserto para um tempo de discernimento, em oração, em solidão, diante do Pai que o proclamou seu Filho, sob o impulso do Espírito; de algum modo teve de refletir e discernir sobre que tipo de messianismo assumiria para sua missão em sua vida pública. É um tempo de confronto interior, de crise.
A “crise” põe à prova sua atitude frente ao Pai: como viver sua missão e a partir de quê lugar? Buscando seu próprio interesse ou escutando fielmente sua Palavra? Como deverá atuar? Dominando os outros ou pondo-se a seu serviço? Buscando sua própria glória ou a vontade de Deus? Centrando sua vida na busca de poder e riqueza ou assumindo uma vida pobre, como expressão de solidariedade aos mais excluídos?
Jesus não quer um messianismo que reduza o ser humano a um consumidor de pão; este precisa também do alimento da Palavra de Deus que ative sua dignidade de interlocutor de Deus, o coloque pé e o conduza a assumir ele mesmo o trabalho de fazer o pão e reparti-lo entre todos.
Em vez de seduzir o povo com prodígios e espetáculos, Jesus prefere uma proximidade do tu a tu, nas mesmas praças e caminhos, na convivência criativa e nos encontros humanizadores.
Jesus não buscará o poder da dominação política e da imposição pela força. Preferirá o caminho do serviço. O caminho de Jesus é absolutamente novo. Nem impressionar, nem seduzir, nem dominar a liberdade do ser humano. Só servir.
Aqui também é preciso nos perguntar:
* Qual é a nossa provação? qual é a nossa tentação? O que é que nos seduz?
* O que é que nos tenta? O que é que nos desvia de nosso eixo, do nosso caminho?
* O que é que nos desvia do ser essencial?
É preciso questionar certos acontecimentos, certas situações, certas vivências, que podem nos induzir a um caminho que nos afasta de nós mesmos, que nos afasta do melhor de nós.
Desde sempre, a humanidade inteira e cada um de nós, estamos expostos à tentação. Faz parte de nossa condição humana. Trata-se de um conflito que dilacera a existência por dentro.
Por um lado, o ser humano sente o apelo e o impulso para o alto, para a plena liberdade, para o compromisso e a fraternidade. Mas por outro, ele também sente a caducidade, a fragilidade, a fraqueza, toda sorte de limitações... que o deixam prostrado no chão.
Concretamente, em cada um de nós não existe apenas o chamado para a fraternidade, para o entrega, para a comunhão.... mas também a sedução e a tendência para o egocentrismo, o prestígio e os instintos de poder e posse. Sentimo-nos simultaneamente santos e pecadores, oprimidos e libertados.
Nossa liberdade sente-se movida e atraída em duas direções. A cena das “tentações de Jesus” desvela (distingue, põe às claras...) os dois dinamismos, duas tendências, dois impulsos... que se fazem presentes em nosso interior (um de alargamento ou expansão de si mesmo em direção aos outros e de Deus; e outro de fechamento, auto-centramento, resistência e medo).
A questão de fundo é saber qual dos dois dinamismos alimentamos; é aqui que entra a liberdade (ordenada) para deixar-nos conduzir pelo Espírito. O centro é o Espírito.
Trata-se de sermos dóceis para deixar-nos conduzir pelos impulsos do Espírito, por onde muitas vezes não entendemos e não sabemos. É Ele que ativa o que há de melhor em nós, expandindo nossa vida em direção aos valores do Reino: desapego, serviço, esvaziamento do ego...
Às tentações do poder, do ter e do prestígio, o seguidor de Jesus responde com a partilha, o serviço, a comunhão, a solidariedade... O tempo quaresmal vem ativar esse dinamismo expansivo.
Texto bíblico: Lc 4,1-13
Na oração: A oração sobre as “tentações de Jesus” nos ajuda a tomar consciência das alianças e cumplicidades nas quais podemos cair em nossas relações com o mundo e com aqueles elementos que de modo mais decisivo põe em perigo nossa liberdade: as riquezas, o poder, o prestígio. É uma espécie de "embriaguez existencial" na qual a alteridade desaparece, a abertura a Deus se atrofia e a gratidão frente aos bens se esvazia.
- Rezar minhas “afeições desordenadas”. Onde está o centro de minha vida? Na aparência ou no interior?
Pe. Adroaldo Palaoro sj
Casa de Retiros Vila Kostka- Itaici-SP
Essa experiência de cooperação e intercâmbio rege-se por indicação preciosa dada pelo Papa Francisco na sua Carta Encíclica Louvado Sejas, que inspira o tema da Campanha da Fraternidade Ecumênica 2016: toda a humanidade deve voltar o olhar para a “Casa comum, nossa responsabilidade”. E os cristãos, que exercem a cidadania nos alicerces da fé em Jesus, têm evidentes responsabilidades quando se trata desse tema. A compreensão cristã de mundo requer uma postura singular no tratamento dos dons e bens da “casa comum”. É assim desde os primórdios do cristianismo, quando, conforme narração do capítulo dois, nos Atos dos Apóstolos, logo após as primeiras conversões, “todos os que abraçavam a fé viviam unidos e possuíam tudo em comum, vendiam suas propriedades e seus bens e repartiam o dinheiro entre todos, conforme a necessidade de cada um”. Um tempo novo que nasce pela força da fé.
Cristãos que caminham de mãos dadas na vivência da Campanha da Fraternidade Ecumênica 2016 é ato que ultrapassa o alcance de um evento com seus desdobramentos possíveis. Trata-se de possibilidade singular para um novo exercício com poder de qualificar o tecido antropológico que sustenta o funcionamento da sociedade. Esse tecido é de qualidade comprometida, o que se comprova no âmbito das crises que se abatem sobre a sociedade brasileira, particularmente na esfera política, que mais evidentemente expõe a carência de certos valores e princípios e, por isso, não consegue oferecer respostas adequadas. Na contramão disso, essa esfera alimenta encaminhamentos que abrem brechas para o crescimento das diferentes formas de violência e reforça posturas egoístas – a busca de soluções apenas para problemas particulares.
Não é simples promover uma Campanha da Fraternidade Ecumênica como a deste ano. É preciso grande esforço para vencer preconceitos, resistências e autodefesas que encastelam grupos, segmentos e confissões religiosas na mediocridade, doença contagiosa que se alastra nas instituições diversas. Posturas medíocres inviabilizam a clarividência necessária para, a partir do diálogo, superar atrasos. Agravam os problemas que, para serem solucionados, demandam de cada cidadão, de diferentes setores e, particularmente, de governantes, de formadores de opinião, de acadêmicos e de intelectuais, adequada compreensão a respeito do ser humano e da criação. No horizonte desafiador da responsabilidade com a “casa comum”, a meta da Campanha da Fraternidade Ecumênica 2016 é a união de esforços com o objetivo de assegurar o direito ao saneamento básico para todas as pessoas. Busca também, à luz da fé, a promoção de políticas públicas pautadas pela responsabilidade cidadã com a “casa comum”. É a fé cristã a impulsionar segmentos diversos para promoverem a efetivação do direito ao saneamento básico, o que reúne questões fundamentais, como a ampliação do acesso à água tratada e a garantia de que comunidades diversas sejam contempladas com eficazes sistemas de esgoto. Essas prioridades constituem forma efetiva para combater a pobreza, reduzir a mortalidade infantil e garantir a sustentabilidade ambiental.
Com a Campanha da Fraternidade Ecumênica 2016, a fé cristã ilumina a realidade, cria a oportunidade para contribuições que vão além dos templos e dos seus cultos. Impulsiona o contexto social e político rumo a novas direções. Sonha-se, pois, com o testemunho ecumênico - na contramão de todo tipo de competição e proselitismo - como investimento no diálogo, à luz da fé em Cristo. Um compromisso que promove a congregação dos cristãos para o intercâmbio de experiências, a partilha de convicções e a efetivação de novas práticas, em âmbitos pessoal, familiar, institucional e governamental. Tudo para que se construa o sonho de Deus: “Quero ver o direito brotar como fonte e correr a justiça qual riacho que não seca” (Am 5,24). Isso é possível quando caminham os cristãos de mãos dadas.
“Cuidado! Não pratiqueis vossa justiça na frente dos outros, só para serdes notados” (Mt 6,1)
Em meio a um mundo desumanizado e sacudido pela violência, lutas fraticidas, intolerância e egoísmo exacerbado, o papa Francisco nos convida a viver um Jubileu extraordinário, colocando a Misericórdia no centro de nossas vidas e respondendo ao chamado que Cristo nos faz: “sede misericordiosos como o Pai”.
De maneira especial, o tempo Quaresmal pode ser um momento privilegiado para que deixemos transparecer no mundo a missão de testemunhas da Misericórdia de Deus Pai-Mãe.
A Quaresma pode ser o ponto de partida de uma transformação de vida; os quarenta dias de duração são um tempo propício para viver a “operação saída”, ou seja, expandir a vida em novas direções, rompendo com aquilo que é rotineiro, estreito e atrofiante. Se, nesse tempo, algo calar fundo, o ano se tornará pequeno para aquele que vive uma existência com mais intensidade, coerência e solidariedade.
Este tempo litúrgico especial certamente mobilizará e ativará todas as dimensões de nosso ser: nossos sentidos se expandirão, olhando, escutando e sentindo a realidade que nos envolve; nossa mente tornar-se-á mais clara, sabendo discernir e não se deixando manipular; nosso coração se fará mais atento e misericordioso diante do sofrimento humano; nossa alegria que será o fermento do pão cotidiano, compartilhado com os outros. E se dedicarmos mais tempo ao silêncio e à oração, recobraremos energia e sentido, necessários para sair da “normose doentia” de todos os dias.
A Igreja nos proporciona este momento litúrgico como parada estratégica em meio à voracidade do caminho e perguntar-nos se vivemos como realmente desejamos viver; se haverá algum reajuste necessário para reorientar nossos passos de maneira mais acertada, para estabelecer uma harmonia entre cabeça e coração, desejos e hábitos. A Vida de Jesus, testemunhada nos evangelhos, nos convida a viver de um modo mais integrado.
Somos o que somos graças a essa matriz de relações que nos conecta conosco mesmos, com os outros, com o Outro e com as criaturas. Não nos estranhará, então, que a liturgia nos convide a perguntar a nós mesmos como nos relacionamos com nossos desejos/impulsos/decisões (jejum), como consideramos os nossos semelhantes (esmola) e como cuidamos de nossa amizade com Deus (oração).
Neste perspectiva, as três disciplinas espirituais da Quaresma (oração, jejum e esmola), encontram sua relação com as três dimensões do amor: a Deus, ao próximo e a si mesmo. Não é preciso estar publicando no Facebook ou no WhatsApp cada pequeno passo adiante. De fato, nos diz Jesus: “Vosso pai, que vê no segredo, vos recompensará”.
Neste ano em que celebramos o Jubileu extraordinário da Misericórcia, as práticas quaresmais que a liturgia busca ativar (oração, jejum e esmola) vão mais além de nós mesmos: elas devem ter impacto na relação com os outros, em especial com aqueles que mais sofrem e se encontram mais excluídos.
Com a Quarta-feira de Cinzas damos início à Quaresma e entramos num movimento de discernimento: de quê jejuar e com quê saciar-nos nesse tempo litúrgico? Mais que jejum de alimento e bebida, podemos jejuar de soberba, de vaidade, de consumismo, de fazer-nos centro de tudo, de ativismo, de afetos desor-denados (smarts, internet...), jejuar de desculpas frágeis e de distâncias, de indiferença e de frieza nos relacionamentos...
Tudo aquilo de que jejuamos, deixa um vazio imenso em nosso interior e que só o amor poderá preencher. O jejum ativa o dinamismo do amor que nos faz mais compassivos, solidários, misericordiosos...
Em definitiva, o jejum e a abstinência nos conduzem ao autocontrole e à autoestima e são sinônimos de desintoxicar-se, desconectar, desapegar-se, desprender-se... Ou seja, fazer tudo o que nos leve a ser pessoas mais equilibradas, autônomas e livres... que tem mais tempo para amar a Deus e ao próximo.
A esmola (“elemosyne”) sempre esteve ligada à compaixão e piedade. Quem partilha do que tem é compassivo e misericordioso (“eleémon”). Trata-se, fundamentalmente, da inclinação para os desfavorecidos. A misericórdia (qualidade da esmola) é a atitude própria de quem tem um coração sensível à miséria do outro. Mantém indissoluvelmente unidos o sentimento de compaixão e ternura com a solidariedade efetiva. Está atenta à necessidade de cada pessoa, que em uns casos será econômica, em outras psicológica, em muitos afetiva...
A esmola – misericórdia em ação – é uma atitude central para o cristão. Uma das suas qualidades mais atraentes é precisamente sua capacidade para criar laços de comunhão. Se cada um põe seus dons e bens a serviço dos outros e se deixa socorrer em suas necessidades, criará verdadeira comunidade.
A oração nos ajuda a amar a Deus e a colocá-Lo como centro de nossa vida. A vivência da oração e de todas as práticas associadas a ela, como o silencio, a solidão, a reflexão, a “consciência plena”, a meditação bíblica, a participação na liturgia da comunidade, a leitura de um livro de espiritualidade..., nos preparam e nos ajudam a entrar em sintonia com a ação de Deus no mais profundo de nosso ser.
Quando oramos, conhecemos e amamos mais a Deus, sentimos sua misericordiosa presença em nosso dia-a-dia, alimentamos nossa vida interior, somos menos artificiais, nos fixamos mais naquilo que nos é dado continuamente como graça, vivemos em contínua gratidão por estarmos rodeados de tanta ternura e beleza, mesmo em meio às situações conflitivas, despertamos empatia para com aqueles que mais sofrem, recobramos novo ânimo para ajudá-los, somos conscientes de nossa fragilidade e pequenez, ao mesmo tempo que cresce em nós a percepção de nossa maravilhosa dignidade de filhos ou filhas de Deus.
À luz da misericórdia, a esmola, a oração e o jejum não são cargas pesadas sobre nossas costas neste tempo quaresmal e que podemos esquecê-las dentro de algumas semanas. Não são um evento, mas um modo de proceder que tem ressonância na nossa vida. Por isso mesmo, tais práticas quaresmais são uma autêntica revolução e uma alternativa para viver com sentido.
Aqueles que se empenham pacientemente em dar à sua vida um perfil mais evangélico acabam se depa-rando com o valor do pequeno e do que não é ostentoso, daquilo que nasce do mais profundo e que tem a autenticidade das coisas verdadeiras.
Esse é o movimento de vida despertado pelo tempo quaresmal.
Texto bíblico: Mt 6,1-6.16-18
Na oração: A oração é o lugar onde se pode indicar “o escondido”, onde aprendemos a decifrar a vida, onde buscamos ter acesso ao nosso tesouro mais apreciado, aquele que não pode ser arrebatado à força e não pode ser comprado por nenhum valor, embora podemos facilmente perdê-lo.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
Casa de Retiros Vila Kostka- Itaici-SP
“Subiu num dos barcos e pediu que se afastasse um pouco da terra” (Lc 5,3)
Jesus entrou em conflito com o mundo religioso da sinagoga. A Lei, que se expressava em inumeráveis preceitos minuciosos, fragmentava a existência, atrofiava a criatividade e não representava vida nova para o povo. A novidade de Jesus não cabia nos moldes da sinagoga, e começou a buscar outros espaços onde criar a vida expansiva do Reino, elaborar novos sinais e cunhar novas palavras.
O “outro lado”, para Ele, passa a ser terra privilegiada, onde nasce o “novo” por obra do Espírito. Ali aparece o broto germinal do “nunca visto”, que em sua pequenez de fermento profético torna-se uma denúncia ao imobilismo petrificado e um questionamento à ordem estabelecida. Isso vai gerar uma maneira nova de viver, um estilo de vida, um compromisso diferente, uma ação carregada de ousadia...
Uma multidão vinda de todas as partes o seguiu até à beira do lago de Genesaré, e Jesus pediu a seus discípulos que tivessem uma barca preparada, pois o povo o apertava, porque tinha curado a muitos. O povo acorre onde há vida nova que estremeça sua letargia. Jesus se afasta do centro, da sinagoga e busca as margens do lago. E ali desencadeia um “movimento humanizador”: vida destravada e abundante, horizonte de sentido, relações de comunhão...
Encontrando-se em meio a um mundo em efervescência, Jesus lançou por terra as paredes e os muros dos templos e sinagogas e mergulhou no mar espaçoso da vida cotidiana. Ele alcançou sua plenitude humana precisamente porque foi capaz de “transgredir” o que estava estabelecido e abrir-se à universalidade de todas as terras, de todos os povos, sem distinção de raças, condição social... Seu itinerário não foi unicamente geográfico. Mais que um simples deslocar-se, trata-se de um “modo de viver” e de situar-se no mundo. Ele se fez presente nos lugares socialmente rejeitados, lugares de exclusão e da marginalidade, e ali revelou a presença d’Aquele que se faz presente e santifica todos os lugares: o Pai.
Jesus, na Galiléia, encontrou os seus lugares: junto ao mar, nas estradas poeirentas, nas margens... Ele se fez presente nos lugares onde se encontravam aqueles que não tinham “lugar”, os “deslocados” e que foram a razão de seu amor e do seu cuidado.
Na Galiléia, Jesus tem suas preferências e escolhe o seu “lugar”, o lugar entre os mais pobres, vítimas daqueles que se fazem donos dos lugares ou os excluem dos “lugares sagrados”.
Jesus transitou livremente por diferentes espaços; o deserto foi para ele um espaço necessário de solidão e de oração, onde, na intimidade com o Pai, alimentava a originalidade de sua pessoa e de sua missão. As margens do lago constituíam a trama da vida cotidiana, lugar de trabalho, de mercado, de encontros. As margens das cidades situavam-no frente à vida descartada, excluída, enferma ou fracassada. A montanha foi um lugar de perspectiva em momentos especiais de mudança, como a eleição dos Doze, a apresentação das Bem-aventuranças ou a Transfiguração no caminho para a Páscoa.
Jesus não se move preso aos espaços do Templo, mas vive aberto à surpresa e ao dinamismo do Reino, que irrompe como graça no centro da vida cotidiana. Em seus deslocamentos descobre, nas margens do lago e nas aldeias dos camponeses, que os homens e mulheres considerados os excluídos e os sem lugares são os verdadeiros criadores de uma nova realidade, os reais protagonistas, construtores de um mundo novo, sal nos paladares desanimados e luz nas noites escuras da humanidade e da história.
Com sua presença inspiradora e provocativa, Jesus alarga os espaços e os corações das pessoas: ao entrar no barco, este deixa de ser simples instrumento de pesca para ser lugar do anúncio; Ele amplia o rotineiro modo de pescar (“lançai as redes em águas mais profundas”); por fim, desafia aqueles rudes pescadores a deixarem aquele atrofiado mar e entrar no vasto oceano da vida (“sereis pescadores do humano”). Do mar da Galileia ao mar da vida: este é o movimento que Jesus desperta nas pessoas.
Ele continua desafiando a que cada um mergulhe mais fundo no oceano do coração e ali ative os recursos ainda escondidos: novos sonhos, novas possibilidades, nova inspiração, novo sentido para a existência... Para isso, é preciso vencer o medo que atrofia tudo o que é humano em nós e entrar no movimento expansivo de Jesus.
Onde estão os espaços de nossa missão e de nossa presença? Em quê margens da sociedade, da economia, da cultura, devemos nos situar para aí descobrir a novidade de Deus que nos desinstala e nos abre um futuro iluminador? Onde estão os espaços de solidão e de silêncio, de desintoxicação de informações, de encontro com o mais profundo de nós mesmos, por onde surge a palavra única que Deus nos dirige, integrando-nos como pessoas e expandindo-nos a uma presença mais criativa na realidade?
O profeta Isaías nos recomenda ampliar este “espaço interior”: “Alarga o espaço de tua tenda, estende sem medo tuas lonas, alonga tuas cordas, finca bem tuas estacas” (Is. 54,2). Ampliar os espaços do coração implica agilidade, flexibilidade, criatividade e abertura às novas ideias e às novas descobertas. Algumas fortalezas e seguranças pessoais caem quando os “espaços interiores”, abrasados e iluminados pela força do Espírito, começam a romper as paredes e se encarnam em “espaços exteriores”, marcados pela beleza e encantamento: espaço familiar, espaço celebrativo, espaço esportivo, espaço de convivência... um espaço nobre que só tem sentido quando carregado de presenças.
Não tem sentido ampliar os espaços externos se nossa mente permanece estreita, se nosso coração continua insensível, se nossas mãos estão atrofiadas, se nossa criatividade sente-se bloqueada... Espaço amplo é convite a sonhar alto, a pensar grande... ousar ir além, lançar por terra nosso modo arcaico de proceder, romper com os espaços rotineiros e cansativos.
Deus nos chama cada dia, nos tira de nosso estreito mar, nos faz sair do que é nosso, da segurança, da comodidade... e nos faz entrar numa “terra nova”. A “travessia” ativa e revela o que há de melhor em cada um de nós. Igualmente, com nossa presença expansiva e inspiradora seremos também capazes de “pescar o humano” que está escondido no outro.
Somos desafiados a “viver uma vida no mundo e no coração da humanidade” (Pe. Kolvenbach). Precisamos levantar-nos cotidianamente de nossos “lugares” estreitos e seguros: há sempre um “lugar ferido” que nos espera, um “ambiente atrofiado” a ser curado, um “espaço limitado” a ser ampliado...
Texto bíblico: Lc 5,1-11
Na oração: Para S. Inácio, os lugares nascem na imaginação; nos Exercícios Espirituais, ele nos convida, através do preâmbulo “composição vendo o lugar”, a imaginar lugares em movimento, lugares de encontro, de desafio, lugares provocativos e criativos..., enfim, lugares carregados de presença.
A “composição vendo o lugar” desperta em nós um novo “olhar” para perceber, com mais nitidez e intensidade, os lugares por onde transitamos, uma nova disposição para dar sentido e valor aos lugares cotidianos, um olhar solidário para perceber o lugar do outro, uma nova sensibilidade para “ver” a Presença d’Aquele que ocupa todos os lugares e que nos conduz para o “lugar” da plenitude.
Da imaginação para a realidade, da oração para a ação..., uma travessia dos “nossos mares estreitos” para os “amplos lugares cristificados”. Um “lugar sagrado” que nasce do coração, carregado de afeto, de inspiração, de vitalidade... O “lugar externo” é o prolongamento do lugar saboreado internamente.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
Casa de Retiros Vila Kostka- Itaici-SP
“Todos davam testemunho a seu respeito, admirados com as palavras cheias de encanto que saíam da sua boca” (Lc 4,22)
“Nós somos palavra”. Somos feitos para a comunhão, para unir as nossas vidas. É graças à força das palavras que derrotamos o silêncio angustiante da solidão, derretemos o gelo da indiferença, criamos pontes, abrimos horizontes e chegamos a lugares jamais imaginados ou tocados pelos nossos pés. Quando não existe a troca de palavras, ditas e ouvidas, a vida é mutilada nas suas expressões mais vitais, as espirituais. Talvez porque sejam a mais genuína invenção humana.
A palavra tem os atributos divinos. Os próprios textos sagrados nos dizem que “Deus é Palavra” e, em Jesus, ela se faz carne. Chegada a plenitude dos tempos, Deus disse sua Palavra definitiva e insuperável em Jesus. Ele, em sua vida e missão, prolonga a Palavra criativa de Deus; começa a falar uma Palavra sedutora a partir da margem geográfica, cultural, religiosa e econômica. Palavra encarnada, Jesus sintoniza e ajusta sua palavra à palavra do Pai.
Com sua vida e sua palavra, Jesus interrompe o discurso dos especialistas sobre Deus. A surpresa, o desapontamento e o conflito que Jesus provocou, ensaiam cada dia novas palavras e novos gestos. Seu ensinamento, cheio de “autoridade” introduz uma perspectiva nunca ouvida antes; apresenta uma alternativa que as pessoas mais simples do povo entendem como revelação do Pai aos pequeninos.
No encontro com a realidade dos pobres e excluídos, Jesus extrai palavras significativas, previamente cinzeladas e incorporadas no seu interior, onde elas revelam dinamismo, sentido e alteridade; sua palavra brota de uma vida interior fecunda e conduz a uma vida comprometida. A partir das periferias do mundo surge um canto de vida nova, a sabedoria oculta a muitos sábios e expertos. É uma sabedoria que vem de Deus, desconcertando a sabedoria exibida a partir do centro.
Suas palavras revelam uma força “re-criadora”, que é o sentido belo do viver; através delas Jesus põe em movimento a realidade, reconstrói pessoas feridas em sua dignidade, comunica saúde onde há enfermidade, faz emergir a vida onde impera a morte.
As palavras têm um peso no anúncio e na atividade missionária de Jesus; não são neutras. Como um raio x que transpassa, as palavras proferidas por Ele iluminam os recantos mais profundos do ser humano; como um refletor em noite escura, ela reacende a esperança onde tudo já perdeu o sentido; como a chuva em terra seca, ela desperta novidades na vida, sacode as consciências adormecidas, põe em questão as atitudes de indiferença e de fechamento...
É extraordinário perceber como as palavras ditas com cuidado e amor (pedagogia de Jesus) produzem efeitos benéficos para o ser humano. Suas palavras são bem-aventuradas, pois são capazes de fazer crescer, sustentar, edificar as pessoas para o convívio social, humano-afetivo, espiritual. São palavras que trazem luz e calor, infundem confiança e segurança. Suas palavras jamais deixam as coisas como estão. Elas não se limitam a transmitir uma mensagem; elas tem uma força operativa, desencadeiam um movimento...
É preciso, a partir do encontro com Jesus Cristo, “sentir” a palavra que proferimos a cada instante; verificar se a palavra pronunciada procura traduzir a palavra interior, se sabemos “empalavrar”, ou seja “pôr em palavras” nossa realidade interior e exterior. Desde o nascimento até à morte, continuamente estamos “empalavrando” nossos sentimentos, sonhos, aspirações... A palavra abarca todas as expressividades humanas. Ela não se reduz à oralidade: a gestualidade, a linguagem corporal, a presença solidária e compassiva... tudo isso também forma parte da palavra humana. Os comportamentos éticos e os valores também são formas de “empalavramento”.
As palavras são, ao mesmo tempo, pensamento, ação, sentimento... Não possuímos nada que tenha, ao mesmo tempo, o poder e a leveza das palavras. Em todos os lugares aonde vamos somos cercados por elas; palavras murmuradas com suavidade, proclamadas em altas vozes ou berradas irritadamente; palavras faladas, recitadas ou cantadas; palavras em sites, em livros, em muros ou no céu; palavras de muitos sons, muitas cores ou muitas formas; palavras para serem ouvidas, lidas, vistas ou olhadas de relance; palavras que oscilam, que se movem devagar, dançam, pulam ou se agitam. As palavras podem mudar a vida, para o bem ou para o mal. Há palavras que ferem e há palavras que curam. Há uma palavra que constrói e uma que destrói, uma palavra que comunica calor e luz, outra que semeia frieza, uma que infunde confiança, outra que arrasa...
As palavras nos tocam e nos modelam; às vezes, elas nos tocam como brisa suave, outras vezes como punhais, mas sempre nos deixando marcas profundas de estímulos ou de desânimo: sentimentos de alegria ou tristeza, de paz ou inquietação, de fé ou descrença, de amor ou ódio...
Há uma palavra pela qual tudo começa e recomeça, outra pela qual tudo termina, deixando o silêncio atrás de si. Depois de certas palavras, não resta mais nada a dizer.
Todos conhecemos pessoas destruídas pelas palavras, como também pessoas reconstruídas, recriadas pelo toque das palavras. A palavra tem uma força reconstrutora.
As palavras perdem força e criatividade quando não nascem do silêncio. O mundo está repleto de “papos” vazios, confissões fáceis, palavras ocas, cumprimentos sem sentido, louvores desbotados e confidências tediosas, palavras enfeitadas e vazias, sem alma, nem paixão. Vivemos cercados de “palavras vãs”. Às vezes temos a sensação de que as palavras nos saturam: nas aulas, na televisão, nos jornais, nas liturgias, na Internet, nas redes sociais... há demasiado palavrório. Carecemos de poesia.
Sem dúvida, em nossa sociedade pós-moderna, a palavra cada vez tem menos relevância, cada vez é menos significativa. Elas são atrofiadas, manipuladas ou submetidas a um violento esvaziamento de significados, segundo nossa conveniência. Vivemos hoje uma “crise gramatical”, ou seja, temos cada vez menos palavras. O leque de palavras carregadas de sentido é muito limitado. Daí a dificuldade de encontrar palavras para nomear a experiência de Deus, para expressar as grandes questões da vida, para dar sentido a uma busca existencial.
Vivemos tempos de “fratura da palavra” e, portanto, “fratura de sentido”. E a raiz disso tudo está na carência de uma interioridade, lugar da gestão das palavras de sabedoria que inspiram nossa vida.
Quem sabe articular silêncio e palavra é um verdadeiro artífice da vida.
Texto bíblico: Lc. 4,21-30
Na oração: Percorrer as palavras proferidas, normalmente, ao longo do dia: são palavras que elevam? curam? animam? Palavras marcadas pela esperança? Palavras carregadas de sentido? Palavras criativas?
Cave palavras nas minas do seu silêncio, e deixe que o Espírito diga a “palavra” misteriosa, diferente, reveladora de sua verdadeira identidade. Somente o silêncio poderá gerar “palavras de vida”.
- Busque palavras nas profundezas de seu interior, palavras carregadas de sentido e de ânimo.
- Crie silêncio para poder dialogar com seu eu profundo, para ver o que há atrás de suas palavras, de seus
sentimentos, de suas intenções... Silêncio para tentar ir ao coração de sua verdade.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
“Jesus voltou para a Galileia com a força do Espírito...” (Lc 4,14)
Depois do prólogo, saltando os relatos da infância, do batismo e das tentações, o texto evangélico que a liturgia nos propõe para este domingo nos situa no começo da chamada “atividade pública” de Jesus, com a proclamação daquilo que constitui seu “discurso programático”. Lucas quer apresentar Jesus como o “Ungido” de Deus, cuja missão consiste em ser “boa notícia” para todos.
Antes de começar a narrar o ministério público de Jesus, Lucas quer deixar muito claro a seus leitores qual é a paixão que impulsiona o Profeta da Galileia e qual é a meta de toda sua atuação. Os cristãos deverão saber em que direção o Espírito de Deus move a Jesus, pois segui-lo é precisamente caminhar com Ele na mesma direção.
Em Lc 4,14 começa propriamente a vida pública de Jesus com este relato da pregação na sinagoga de seu povoado, depois de uma breve introdução geral na qual fala de seus ensinamentos nas sinagogas da Galileia. Ao aplicar-se a si mesmo o texto de Isaías, Jesus está declarando sua condição de “Ungido”. Ele voltou à Galileia conduzido pelo Espírito. Aqui está a chave. Só o Espírito pode nos capacitar para cumprir a missão que temos como seres humanos. Tanto no AT como no NT, ungir era capacitar alguém para uma missão. Paulo nos diz isso com uma claridade meridiana: se todos bebemos de um mesmo Espírito, seremos capazes de superar o individualismo, e entraremos na dinâmica de pertença a um mesmo corpo.
A primeira coisa que chama a atenção é a apresentação que Lucas faz de Jesus como alguém que é movido “pela força do Espírito”. Nem sempre somos conscientes das “forças” que nos movem em nosso viver cotidiano, tampouco das motivações reais que nos impulsionam a tomar certas decisões. Dois dinamismos atuam em nosso interior: um, de impulso para algo maior, para o serviço, para ser presença inspiradora; outro, de atrofia, de acomodação e medo. Qual das duas “forças” alimentamos em nosso interior? Jesus chamava a atenção pela claridade de suas motivações e a coerência com as mesmas: é o homem íntegro e fiel, lúcido e transparente. Deixa-se conduzir pelo Espírito no mais profundo de si mesmo; deixa que Deus viva nele; deixa Deus ser Deus nele.
Lucas descreve com todo detalhe o que faz Jesus na sinagoga de seu povo: põe-se de pé, recebe o livro sagrado, busca uma passagem de Isaías, lê o texto, fecha o livro, o devolve e se senta. Todos hão de escutar com atenção as palavras escolhidas por Jesus pois elas explicitam a missão à qual Ele se sente enviado por Deus. Ele começa a gritar uma mensagem nova e diferente, surpreendente e provocativa.
Estas são as credenciais de Jesus, aquelas que identificam sua personalidade e sua missão. E serão também estas as credenciais que nos identificam como seus seguidores. Surpreendentemente, o texto não fala de organizar uma religião mais perfeita, de implantar um culto mais digno ou de apresentar novas leis, mas de comunicar libertação, esperança, luz e graça aos mais pobres e excluídos. É curioso que os traços distintivos de sua missão não fazem referência à sua relação com Deus; todos fazem referência à relação com as pessoas mais necessitadas e marginalizadas: os pobres, os cativos, os cegos.
Sua única preocupação é a missão de “anunciar o Evangelho”. Jesus não veio anunciar desgraças, castigos, nem impor medo através de uma religião moralista e legalista. Jesus veio anunciar “boas notícias”: uma vida digna e de esperança aos pobres; a liberdade àqueles que carecem dela; a vista àqueles que não podem ver. Jesus não faz proselitismo e nem nos convoca para seguir uma determinada religião, uma doutrina... mas para sermos presenças humanizadoras e libertadoras.
A missão de Jesus é a de aliviar o sofrimento humano; o sofrimento dos inocentes é a primeira preocupação d’Ele: não suportava ver as pessoas sendo exploradas e marginalizadas; não aguentava a dor dos outros, porque sua sensibilidade não tolerava isso. Jesus “desce” em direção a tudo o que desumaniza as pessoas: os traumas, as experiências de rejeição e exclusão, as feridas existenciais, a falta de perspectiva frente ao futuro, o peso do legalismo e moralismo, a força de uma religião que oprime e reforça os sentimentos de culpa, as instituições que atrofiam o desejo de viver...
Enfim, tudo aquilo que prejudica as pessoas, provoca miséria, tira a dignidade do homem e da mulher. Lucas destaca que “todos os que estavam na sinagoga tinham os olhos fixos n’Ele”.
E ao “fixar os olhos n’Ele” os ouvintes são movidos a ampliar o olhar e voltar-se para aqueles que são vítimas do sistema social e religioso de seu tempo. As pessoas percebem n’Ele um novo Mestre, cujo ensinamento desperta o assombro e a admiração.
Vamos, na oração, considerar algumas expressões do Evangelho de Lucas e que revelam a essência de uma vida que se deixa impactar pelo modo de ser e viver de Jesus:
- “Ungidos pelo Espírito”: todos somos marcados, assinalados pela unção no Espírito. Carregamos a “marca” do Espírito: Espírito que não está sobre nós, mas dentro de cada um de nós; Espírito que nos habita e que nos conduz para fora de nós mesmos, em direção ao compromisso com os outros.
- “Enviados para anunciar o Evangelho”, ou seja, ser boa notícia para os outros através de nossa presença alegre e solidária. Não somos enviados para anunciar más notícias e desgraças, nem para alimentar culpabilidades nos outros, impondo falsos moralismos e legalismos que bloqueiam a vida das pessoas.
Somos enviados a anunciar aos tristes a alegria de Deus, aos pobres a esperança de um mundo mais humano, justo e fraterno, aos excluídos o amor de Deus, aos que nada contam aos olhos dos homens que eles são importantes para Deus.
- “Enviados a anunciar a liberdade aos oprimidos”: anunciar que Deus nos quer a todos livres; ser presença libertadora de tudo o que desumaniza o ser humano: pobreza e miséria, ignorância e violência, opressão religiosa, preconceitos, exploração...
- “Enviados a ativar a visão aos cegos” para que vejam as maravilhas que acontecem ao seu redor, para ver o rosto de Deus no rosto de cada irmão, para encantar-se com a beleza e grandeza da Criação, para contemplar a presença do Criador em tudo e em todos...
- “Enviados a proclamar o ano da Graça do Senhor”: a plenitude humana que Jesus começou a realizar se expressa como festa jubilar: ano de graça, tempo de júbilo que, conforme à tradição de Israel, se torna celebração de fraternidade, perdão das dívidas, libertação dos escravos, partilha das terras...
Neste “Ano jubilar da Misericórdia” somos convocados a ser presença reconciliadora em meio aos conflitos, a indicar para os desanimados a esperança da salvação, a viver como filhos de Deus e como irmãos, a viver a presença de Deus neles...
Texto bíblico: Lc 1,1-4; 4,14-21
Na oração: “Hoje se cumpre essa escritura em ti”. Esse mesmo Espírito que atuou em Jesus, está atuando sempre em ti. Deus dá o Espírito sem medida. Se não descobres e não experimentas isto, nenhuma vida espiritual será possível. O Espírito te levará ao amor. O amor se manifestará em atitudes, que sempre beneficiarão os outros. A força do ego nos separa. A força do Espírito nos identifica. Conecta com essa energia divina que já está em ti, e a espiritualidade será o que há de mais espontâneo e natural de tua vida.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
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