“No entanto, desde o princípio da criação Deus os fez homem e mulher” (Mc 10,6)
O Mestre Jesus, em sua itinerância missionária, depara-se com diferentes perguntas sobre aspectos da vida, pessoal ou comunitária. Todas elas acabam se revelando uma ocasião privilegiada para Ele anunciar a Boa Notícia do Reino.
No evangelho deste domingo (27º TC), partindo da pergunta que lhe fazem, Jesus não foca tanto na questão do divórcio (ou repúdio), quanto no lugar e na dignidade da mulher; sua resposta vai centrar-se em outra direção, pela qual não lhe haviam perguntado. Para Jesus, não se pode tolerar uma lei machista segundo a qual o marido pode abandonar a sua esposa como se fosse uma mercadoria; os dois são pessoas com a mesma dignidade. O que isso significa é bem simples: situar o homem e a mulher em pé de igualdade. Ou, dito de outro modo, desativar o machismo que, como ainda hoje em nosso contexto, leva a considerar a mulher como “propriedade” do homem ou, ao menos, como aquela que deve estar ao seu serviço. É claro que tais atitudes machistas contradizem flagrantemente aquele primeiro princípio bíblico que falava de “ser os dois uma só carne”.
Na realidade, a atitude de Jesus é coerente com toda sua trajetória. Se algo fica claro, no relato evangélico, é seu posicionamento decidido a favor dos “últimos”, dos “pequenos”, das “crianças”, das mulheres... Por tudo isso, não parece casual que, depois do relato no qual defende a igualdade da mulher com relação ao homem, apareça a cena de Jesus abraçando as crianças.
Seja qual for o motivo da pergunta feita pelos fariseus, a resposta de Jesus vai se centrar neste ponto: a “intuição primeira” (e, portanto, também o “horizonte”) para a qual tende a relação amorosa entre homem e mulher: “o que Deus uniu o homem não separe”. Mas Deus não une pelas leis canônicas e sim pelo amor cuja intenção é a plena comunhão entre duas pessoas. Uma coisa é a indissolubilidade canônica e outra é a fidelidade que o casal deve atualizar cada dia e em cada instante de sua convivência.
No meio de uma cultura marcadamente machista e patriarcal, Jesus desativou o machismo e rompeu com tabus intocáveis, adotando uma atitude de reconhecimento e valorização da mulher em nível de igualdade com o homem; e isso desde “o princípio”, ou seja, por vontade divina. Em um contexto no qual o mundo feminino era invisível, Jesus o fez visível, superando preconceitos e atitudes de dominação.
Ao renunciar sacralizar a sociedade patriarcal de sua época, Jesus restituiu à sua fonte original a relação entre homem e mulher, o matrimônio e a família. Mulheres e homens aparecem em seu projeto como iguais, sem prioridade de um sexo sobre o outro. No discipulado igualitário de Jesus, as mulheres encontraram espaço para se desenvolver em liberdade, rompendo a submissão à ordem patriarcal. Jesus as emancipou e as fez companheiras itinerantes, em companhia dos homens, para escândalo daqueles que olhavam o corpo da mulher como perigoso e contaminante.
Sabemos que o ser humano se humaniza quando em companhia, e uma estável relação de casal alcança o grau mais profundo de realização humana. Esta é a chave de todo o discurso de Jesus. Este projeto matrimonial é para Jesus a suprema expressão do amor humano. É Deus mesmo que atrai mulheres e homens para viverem unidos por um amor livre e gratuito. O matrimônio é a verdadeira escola do amor. Nenhuma outra relação humana chega a tal grau de profundidade.
O amor não é puro instinto, não é paixão, não é interesse, não é simples amizade nem simples desejo de um querer mútuo. É a capacidade de ir ao(à) outro(a) e encontrar-se com ele(ela) como pessoa, para que, no mútuo crescimento e experimentando-se como dom, ambos possam se ajudar para serem mais humanos. E uma das qualidades mais bonitas do amor é que deve estar crescendo toda a vida.
“O amor é faísca de Javé” (Ct. 8,6-7) Nesse sentido, o matrimônio não é uma realidade estática, mas dinâmica, é chama divina, é mudança, é abertura ao novo, é projeto a ser construído cotidianamente a dois, é movimento na direção de um “Amor maior”, “amar melhor”, fundado sobre o amor incondicional de Deus.
A questão fontal, portanto, não é só disciplinar, de ascese e de uma moral rígida, mas a mística do amor; sem ela, o matrimônio se reduz a “um castelo de cartas” que se desmonta facilmente.
O Vat. II define a vida matrimonial como “comunhão de vida e de amor”.
- Comunhão de amor. Não de amor como mero enamoramento transitório; homem e mulher uniram-se em matrimônio não só porque se queriam, senão para plenificar o amor entre ambos.
- Comunhão de vida, porque prometeram percorrer, mutuamente unidos, o caminho de sua vida, não meramente “até que a morte os separe”, mas “até que a vida inteira, percorrida em uníssono, os una por completo”.
Ao envelhecer juntos, meta desafiante, consuma-se o matrimônio. Assim é que se realiza a vida juntos, fazendo-se companhia digna, ajudando-se mutuamente a se tornarem mais humanos; uma companhia experimentada como dom, com alegrias e sombras, querendo-se muito e também sendo mútuo suporte, mesmo no outono da vida. Por isso, ao falar de “indissolubilidade matrimonial”, é preciso assumir com lucidez e serenidade o caráter processual da relação de “duas pessoas unindo-se” em “comunhão de vida e amor”.
Os trâmites legais que certificam o consentimento conjugal se firmam em um momento. Mas a união de duas pessoas em “comunhão de vida e amor” não é momento, mas processo; não tem efeito instantâneo a partir de uma declaração legal, nem de uma fusão biológica, nem de um artifício mágico, nem sequer de uma benção religiosa; não é uma foto estática e morta, mas um processo dinâmico e vivo.
A expressão “sim, eu quero”, não é uma fórmula mágica que produz automaticamente um vínculo indissolúvel. Para o casamento, basta meia hora. Para a consumação do matrimônio “de maneira humana”, é preciso uma vida inteira. Por isso, ao invés de usar a expressão “um casal unido”, deveríamos optar por esta outra: “um casal unindo-se”. O casamento é um momento, mas o matrimônio é um processo; o matrimônio deve ser reinventado, reconstruído cada dia. Isso implica ser criativo na maneira de vivê-lo, buscar novas expressões, novos gestos... A cada dia, o casal deveria dizer, um ao outro: “Hoje eu te recebo novamente como minha esposa/meu esposo, e te prometo ser fiel, na alegria e na tristeza...”.
A indissolubilidade matrimonial não é um caráter selado a fogo como um carimbo, mas uma meta, fim e horizonte do processo em direção a uma profunda unidade de vida: “Serão os dois um só ser” (Gn 2,24); unidade sem costuras, na qual não se nega a diferença, mas esta fica integrada ou abraçada na Unidade maior que nada deixa fora.
“Projeto a dois”, mas sem anular a identidade, a originalidade do outro. O amor faz do homem e da mulher não “duas metades” que se encontram, mas dois inteiros que se doam, e que generosamente acolhem e transbordam o Amor de Deus semeado em seus corações, desde sempre. Por isso, nas congratulações do dia do casamento, este deveria ser o desejo expresso aos noivos: “que realizeis vossa união, acompanhando-vos mutuamente através de uma longa vida”.
Texto bíblico: Mc 10,2-16
Na oração: Toda opção vocacional - matrimônio, vida consagrada, sacerdócio, solteiro(a) - é marcada com o selo do “sim”. É preciso, continuamente, re-encantar o “sim” e carregá-lo de sentido, de afeto, de ternura... Sim que se prolonga...
O “sim” proclamado diante de Deus, torna-se sagrado, compromete, faz cúmplice... Não é um “sim” que se fecha, mas que se expande, repercute nos outros, desencadeia outros “sins”... Sim com a marca da coragem, da ousadia... que arranca do imobilismo e desperta o sentido dos pequenos “sins” cotidianos.
- Fazer memória dos “sins” que significaram um salto qualitativo na sua vida.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
“Mas nós lhe proibimos, porque ele não é dos nossos” (Mc 9,38)
Cresce hoje a consciência sobre a diferença do ser humano como atração, e não como rejeição. A humanidade pós-moderna exige a diversidade na convivência sociocultural e religiosa. Não podemos permanecer trancados em redutos que rejeitam as diferenças existenciais. A humanidade deixou de ser distante para tornar-se mais próxima, mediante as diferenças, os diálogos e as convergências. O mundo globalizado não pode ser apenas econômico. É chamado também a respeitar e a cultivar as diferenças entre as pessoas, as raças, as religiões, as sociedades e as nações.
No entanto, corremos o risco de viver em mundos-bolha; podemos construir nossa vida encapsulada em espaços feitos de hábito e segurança, convivendo com pessoas semelhantes a nós e dentro de situações estáveis. É difícil romper e sair do terreno conhecido, deixar o convencional. Tudo parece conspirar para que nos mantenhamos dentro dos limites politicamente corretos. Todos podemos terminar estabelecendo fronteiras vitais e sociais impermeáveis ao diferente. Se isso acontece, acabamos tendo perspectivas pequenas, visões atrofiadas e horizontes limitados, ignorando um mundo amplo, complexo e cheio de surpresas. Muitas vezes “vemos” o diferente, mas só como notícia, como o olhar do espectador que sabe das “coisas que acontecem”, mas não sente e nem se compadece por elas.
Marcos, no evangelho deste domingo (26º Tempo Comum), recolhe vários ditos de Jesus a partir de uma reação tipicamente preconceituosa do grupo dos discípulos: a de impedir um desconhecido utilizar o nome de Jesus, por uma única razão: “não era dos nossos”. Frente à reação excludente dos discípulos, Jesus propõe a tolerância que nasce de uma atitude aberta e inclusiva. Ao longo da história humana, a etiqueta “dos nossos” gerou desprezo, ódio, preconceito, enfrentamento e morte, numa sequência desumana de sofrimento inútil.
A ironia é que se trata justamente disso, de uma mera etiqueta, completamente superficial e enganosa, que nasce do próprio medo e insegurança, que leva a nos “proteger” do diferente, buscando refúgio naquilo que nos é conhecido.
O diferente não pode ser uma ameaça; no entanto, na vida nos defendemos e, às vezes, questionamos e atacamos posturas, visões políticas, teológicas, espiritualidades, modos de viver uma religião..., culminando em rupturas e, em alguns casos, em conflitos ou ódios. Aos poucos, nos recolhemos em nossos medos, em nossas inseguranças e começamos a acreditar que os diferentes são nossos inimigos. Da indiferença passamos aos discursos fascistas, às práticas fundamentalistas, à segregação, ao fanatismo...
Pode, a identidade cristã coexistir criativamente, e de quê maneira, em meio a uma cultura plural e de identidades múltiplas como a nossa?
O que está em jogo reveste tal gravidade que exige modificar radicalmente nosso modo de ver e de agir: cortar a mão (modificar as ações), cortar o pé (mudar o rumo) ou arrancar o olho (transformar a visão). Trata-se de um processo que nos impulsiona a crescer em humanidade, esvaziando nosso “ego” de suas inseguranças, medos e preconceitos.
Tal transformação radical pede olhos capazes de olhar o mundo em sua complexidade e em suas feridas; mãos prontas para acariciar, construir, e abertas para o encontro e o abraço; pede pés para encurtar distâncias e criar proximidade acolhedora; pede boca disposta a falar com palavras de verdade e de benção; pede coração disposto a implicar-se, vibrar... às vezes, romper-se. Membros que se gastam no serviço. Enfim, sempre amar, com o fascinante que é viver como cristãos de carne e osso.
Sabemos que do ponto de vista psicológico, a questão da intolerância, do preconceito e do fanatismo se acha vinculada à segurança. A segurança constitui uma necessidade básica do ser humano.
Enquanto a pessoa não faz a experiência de uma segurança firme e interna que a sustente, ela buscará fora de si – projetando-a em um líder, em um grupo ou em uma instituição -, ou se fixará em suas ideias, crenças e convicções. Quando isso acontece, a pessoa insegura não poderá tolerar que seu líder, seu grupo, sua instituição, sua religião, sejam questionados; assim como tampouco poderá permitir que suas ideias, crenças ou convicções sejam criticadas. Isso tirará o tapete de sua própria estabilidade.
Para uma pessoa fechada em seu fanatismo, preconceito e intolerância, “os outros” são percebidos como ameaça; porque, quem pensa diferente ou adota um comportamento diferente, lhe faz ver que o seu pensamento ou comportamento não são o valor “absoluto”, senão mais um ao lado de tantos outros.
E isto é o que uma personalidade insegura se vê incapaz de tolerar, pela angústia que lhe gera a falta de seguranças “absolutas”. Por isso mesmo, sentir-se-á incapaz de tolerar a divergência, e tenderá a desqualificar, julgar, condenar (ou empenhar-se em “converter”) a quem não pense como ela. Porque percebe toda diferença como ameaça.
A “saída” do fanatismo requer experimentar uma fonte de segurança que se encontra mais além da mente (de suas ideias ou crenças). Uma experiência que confere à pessoa uma sensação interna de consistência e de autonomia. Quem é capaz de ter acesso ao seu “eu” mais profundo, relativiza também o caráter absoluto que tinha atribuído às ideias e crenças e, ao mesmo tempo, permite aos outros serem diferentes, sem que a diferença seja vista como perigo.
Não é comum prestar atenção ao que acontece no território interior. São grandes os riscos de se viver em horizontes tão estreitos. Tal estreiteza aprisiona a solidariedade e dá margem à indiferença, à insensibilidade social, à falta de compromisso com as mudanças que se fazem urgentes. O próprio território se torna uma couraça e o sentido do serviço some do horizonte inspirador de tudo aquilo que se faz.
E, retomando a queixa de João no Evangelho de hoje, podemos perguntar: “quem são os nossos”? Grupos, tribos, nacionalismos, partidos políticos, religiões e ideologias de todo tipo tendem a definir com claridade os limites que marcam o próprio “território”, impedindo que “os outros” tenham acesso a ele.
A vivência do seguimento de Jesus Cristo implica romper a bolha que asfixia a vida e derrubar os muros que cercam o coração, atrofiando a própria existência. Nada mais contrário ao espírito cristão que a vida instalada e uma existência estabilizada de uma vez para sempre, tendo pontos de referência fixos, convicções absolutas, modos fechados de viver... que impedem a entrada do ar para arejar a própria vida.
Muitas vezes, o zelo religioso, moral ou político degenera em formas de intolerância e violência. “Pode acontecer também que os cristãos façam parte de redes de violência verbal através da internet e dos diversos fóruns ou espaços de intercâmbio digital. Mesmo nos sites católicos, é possível ultrapassar os limites, tolerando-se a difamação e a calúnia e parecendo excluir qualquer ética e respeito pela fama alheia. Gera-se, assim, um dualismo perigoso, porque, nestas redes, dizem-se coisas que não seriam toleráveis na vida pública e procura-se compensar as próprias insatisfações descarregando furiosamente os desejos de vingança. É impressionante como, às vezes, pretendendo defender outros mandamentos, se ignora completamente o oitavo: «não levantar falsos testemunhos» e destrói-se sem piedade a imagem alheia. Nisto se manifesta como a língua descontrolada «é um mundo de iniquidade; e, inflamada pelo inferno, incendeia o curso da nossa existência» (Tg 3, 6).” (papa Francisco, Gaudete et Exsultate, 115)
Texto bíblico: Mc 9,38-43.45.47-48
Na oração: O que é o específico de uma vida cristã? Buscar, no seguimento, fazer e viver o que fez e viveu Jesus. Para isso, adotar as atitudes, o olhar e a capacidade de contemplação da realidade que o mesmo Jesus adotou. Ele abraçou diferenças e novos horizontes. O Seu ministério ultrapassou as fronteiras. Ele rompeu com os muros do preconceito social, racial, religioso...
- Deixar a luz do Evangelho desvelar (tirar o véu) possíveis atitudes intolerantes e preconceituosas diante dos “outros diferentes”.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
“Jesus tomou uma criança, colocou-a no meio deles e, abraçando-a..” (Mc 9,36)
No evangelho de Marcos, o “caminho” representa o itinerário de formação do discipulado. Jesus não quer um grupo de fanático que lhe entoem vivas a seu nome, mas um grupo de pessoas responsáveis que sejam capazes de assumir Seu projeto, em favor da vida, ou seja, o Reino de Deus. Por esta razão, seus esforços se concentram no ensinamento de seus seguidores. Mas, a instrução parte dos desacertos e das incompreensões que eles vão revelando ao longo do trajeto para Jerusalém.
No evangelho deste domingo, Jesus utiliza uma estratégia pedagógica muito criativa: retoma a discussão dos discípulos que, no caminho, estavam concentrados não em Seu ensinamento, mas na partilha dos cargos burocráticos de um hipotético governo. Jesus reconduz a discussão mediante um exemplo tomado da vida diária: coloca uma criança no meio deles. Tal gesto revela como o presente e o futuro da comunidade dos seus seguidores(as) está em colocar no centro não as próprias ambições, mas as pessoas mais simples e excluídas. Só assim se reverte o sistema social de valores; e só assim, a comunidade torna-se uma alternativa inspirada frente ao mundo, que só sabe colocar no centro as pessoas ricas e poderosas. A novidade de Jesus consiste em tornar grande quem é pequeno, despojado de poder e prestígio.
Os discípulos queriam construir a Nova Comunidade em bases de poder, a partir do maior e do primeiro. Mas Jesus não precisa de maiores nem primeiros, busca os últimos e servidores; quer pessoas que saibam se colocar no final, para ajudar os outros a partir desse espaço, superando a lógica do mando. Ao falar assim, não combateu um simples vício de egoísmo, mas inverteu as estruturas mesmas da velha sociedade, edificada a partir dos poderosos.
Ninguém briga para disputar o último lugar. Todos discutimos e buscamos o primeiro lugar. Essa foi também a conversação dos discípulos pelo caminho. Ninguém estava disposto a ser o último; todos queriam ser os primeiros. E isso porque Jesus acabara de anunciar, de novo, a entrega de sua vida em favor dos outros, em serviço de amor. Por isso, quando, em casa, lhes pergunta - “O que discutíeis pelo caminho?” -, todos ficaram mudos. Agora ninguém quer dar a cara; todos são inocentes. Com sua pergunta, Jesus quer que tragam à luz seus íntimos e perversos sentimentos, mas guardam silêncio porque sabem que não estão de acordo com o que Ele vinha lhes ensinando. Entre eles, continuam na dinâmica da busca do domínio e do poder.
Os discípulos haviam discutido sobre quem é (ou deve ser) o maior. Como todo grupo humano, também no grupo de Jesus surgiram invejas, desejos de liderança, disputas sobre privilégios. Mas Jesus não é um ditador, não impõe seu domínio pela força; Ele sabe que seu grupo de seguidores tenderá a dividir-se em grupinhos de influência ou prestígio; Ele tem consciência que onde predomina o poder, a vaidade, a força... alí não há possibilidade de uma verdadeira comunidade.
Só superando a lógica do desejo de poder é que se pode edificar o reino da nova humanidade, um mundo onde os mais fracos e vulneráveis possam viver em amor e crescer em vida. Jesus já tinha apresentado seu projeto em chave de ruptura social e religiosa, investindo toda sua vida em favor dos outros. Ele desencadeou um “movimento humanizador”, onde não há lugar para o domínio, a imposição, mas espaços de gratuidade e de ajuda mútua, abertos aos mais necessitados, a partir de uma perspectiva de entrega da vida. Seu projeto revelou-se luminoso, mas, humanamente falando, parecia inviável, pois todo grupo humano busca organizar-se numa estrutura de poder, e os discípulos de Jesus pretendiam fazer isso, de maneira que alguns pudessem ocupar os lugares-chave da comunidade. Por isso, para inverter esse modelo e criar uma comunidade diferente, Jesus toma uma criança e realiza um gesto provocativo: coloca-a no centro e a abraça.
Os discípulos conspiram, buscando poder e prestígio; no entanto, Jesus descobre e desmascara tal conspiração, oferecendo amor (abraçando) a uma criança. Dessa forma, a autoridade (colocá-la no meio) se torna ternura: a criança é importante porque está à mercê dos demais e necessita carinho. Jesus põe a criança no centro de todos. Os discípulos buscam o centro, mas o verdadeiro centro da Vida de Deus está já ocupado pela criança a quem Jesus a coloca de pé, em sinal de autoridade, no meio do círculo onde Ele mesmo havia se situado, convertendo-a em autoridade máxima.
Aqui aparece um Jesus escandaloso, messias de ternura que não só abraça as crianças, senão que propõe esse gesto como sinal de identidade de seu discipulado e reino. A mesma criança aparece assim como autoridade, sinal do messias (“quem a recebe, a mim me recebe”).
No espaço central da Igreja, abraçada a Jesus, encontramos uma criança; a nova comunidade passa a ser lugar para o abraço. Ambos, Jesus e a criança, formam a verdade messiânica. Com esta imagem desaparecem os modelos de domínio e prestígio (ser maior, ser primeiro, ter mais poder). A criança é a maior e a primeira, não é preciso buscar mais. A partir daí se pode falar de igreja: quem acolhe a criança, oferecendo-lhe espaço para o abraço no centro da casa, esse, sim faz parte da comunidade cristã.
Frente aos discípulos patriarcalistas que buscavam o domínio e o poder (ser grandes, conquistar com risco os primeiros lugares) Jesus elevou aqui o modelo de uma Igreja que é família, lar materno a serviço dos pequenos, lugar da acolhida e do crescimento das crianças. O Jesus de Marcos superou um modelo de família patriarcalista, entendida como hierarquia de poder; ao iniciar um movimento de vida nas casas, Jesus insiste na necessidade de que toda a comunidade de seus seguidores atue de um modo materno-paterno, acolhendo os mais necessitados, e de um modo especial as crianças, com um gesto de autoridade (a criança é o centro da comunidade) e de ternura (à criança oferece-se o calor da vida e o abraço).
Frente uma sociedade do “descarte”, onde as crianças são as primeiras vítimas da violência, o evangelho de hoje torna-se ocasião privilegiada para repensar a atitude dos cristãos frente à infância desamparada. Também a Igreja, quando está só focada no poder, no ritualismo, na doutrina, no legalismo, no moralismo, no dogmatismo..., deixa de ser mãe terna e carinhosa para com os mais frágeis, para deixar-se contaminar pela “mosca azul” do poder e prestígio.
O que importa para a igreja é oferecer espaço humano à criança que já existe e que ocupa o seu centro. Não é questão de dogmas mais ou menos racionalizados, nem tampouco das grandes estruturas. A Igreja deve fazer-se lugar de vida para as crianças!
A comunidade cristã não é (não deveria ser) um grupo dominado por sábios anciãos (uma gerontocracia), não é sociedade de sacerdotes poderosos ou influentes, um sindicado de burocratas do sagrado, funcionários que escalam passo a passo os degraus de sua grande pirâmide de influências, poderes, competências (e também incompetências). De acordo com o evangelho deste domingo, a Igreja é, antes de tudo, lar para as crianças, espaço onde encontram acolhida e ajuda para seu crescimento, humano e espiritual.
Texto bíblico: Mc 9,30-37
Na oração: Há gestos cotidianos que nos ajudam a descobrir em profundidade quem somos realmente. Um abraço, um beijo, uma mão estendida, um olhar sereno..., são gestos que quebram toda pretensão de poder e desmascaram o impulso de querer colocar-se acima dos outros. São gestos que nos recordam que somos seres amados.
Sem dúvida esta é a linguagem de Deus: Ele se desvela mais nos gestos, que dão conteúdo a tantas palavras já desgastadas.
- Prolongar, no seu cotidiano, o modo terno e carinhoso de ser e de agir de Jesus, sobretudo com os mais frágeis.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
“Quem perder a sua vida por causa de mim e do Evangelho, vai salvá-la” (Mc 8,35)
O Seguimento é tema central em todos os evangelhos, ou seja, “fazer o caminho” com Jesus, identificando-se com Ele na entrega aos outros, sem buscar para si poder ou glória. Ao longo de todo seu escrito, Marcos manifesta uma prevenção especial frente a qualquer ideia de um messianismo triunfalista, centrado no poder e na glória. O caminho do Messias – repetirá diversas vezes – passa pela entrega e pela cruz. Os discípulos, pelo contrário, aparecem obcecados, “surdos e cegos”, discutindo habitualmente por questões de poder, de importância e de privilégio, enquanto que Jesus lhes fala de serviço e doação.
Neste sentido, é sumamente significativo o contraste que Marcos apresenta, intencionalmente, entre o caminho de Jesus e o caminho dos discípulos: nos três anúncios da paixão, quando Jesus lhes fala de seu caminho de entrega, eles manifestam uma clara resistência. O choque é grande: Jesus e seus discípulos caminham em direções diametralmente opostas: o caminho serviço X o caminho da ambição. Mas, para Jesus, trata-se de uma questão não negociável: seu caminho reflete o “pensamento de Deus”. A vontade do Pai nunca passará pelo caminho do poder sobre os outros, senão pelo caminho do serviço.
No evangelho deste domingo, a divergência entre ambos caminhos fica explicitada tanto na reação de Pedro como na resposta dura de Jesus. O caminho dos discípulos reflete os mecanismos próprios do ego, que não busca outra coisa a não ser a autoafirmação a qualquer preço, apegando-se ao ter, ao poder e ao aparentar, ao mesmo tempo que foge de tudo o que soa a desapego e entrega.
Para o ego, a entrega desinteressada é uma loucura, que é preciso evitar a todo custo. Para Jesus, pelo contrário, o impulso do ego se opõe frontalmente a Deus. A resposta de Jesus a Pedro é a mesma que Ele deu ao diabo nas tentações; nem aos fariseus, nem aos letrados, nem aos sacerdotes dirige Jesus palavras tão duras. Quer com isso indicar que a proposta de Pedro era a grande tentação, também para Jesus. A verdadeira tentação não vem de fora, mas de dentro. O difícil não é vencê-la, mas desmascará-la e tomar consciência de que ela é a que pode arruinar a Vida.
Pedro é “Satanás” na medida em que espera que Jesus siga o caminho do messianismo convencional, glorioso, vencedor dos inimigos do povo, que estabelece seu próprio reinado, e não aceita o caminho que Jesus começa a propor, o do serviço que acaba na cruz. Mas Jesus não rejeita Pedro e nem pede a ele simplesmente que se vá ou se afaste (costuma-se traduzir por “aparta-te de mim...”). Diz-lhe “põe-te detrás de mim”; a mesma expressão que utiliza no versículo seguinte: “se alguém quiser vir atrás de mim...”. Ou seja, Jesus está repropondo a Pedro e aos discípulos o seguimento e que se ponham atrás d’Ele, agora que o caminho vai passar pela cruz.
E aqui vem a frase que fecha, como chave de ouro, toda a cena: “Se alguém me quer seguir, renuncie a si mesmo, tome a sua cruz e me siga”. Uma consideração superficial destas palavras deu margem a uma apresentação do cristianismo como a religião que preconizava a dor e a negação da própria vida e da própria identidade. Jesus vive na sabedoria de onde brota a fidelidade. Não vive para o ego, que busca sempre seu interesse e comodidade, mas está ancorado naquela identidade profunda, na qual permite que a Vida flua, numa atitude de serviço ou de entrega sábia.
Aquele que quer salvar seu ego, perde a Vida, porque se fecha numa jaula estreita e se introduz em um labirinto de inevitável sofrimento e, em último termo, de vazio e sem-sentido. Uma existência egocentrada, embora aparentemente satisfatória para o ego, não pode evitar uma sensação de profunda insatisfação.
Todos os caminhos autênticos de espiritualidade começam por um esvaziamento do ego, uma renúncia de si mesmo, não para negar-se como pessoa, mas, pelo contrário, para crescer ao recuperar sua verdadeira identidade na totalidade. Quando “eu me perco”, então me encontro; quando meu ego diminui, descubro que faço parte de algo maior, que pertenço a Deus. A “renúncia a si mesmo”, que Jesus propõe, não é um exercício de masoquismo, mas uma maneira mais profunda de realização humana.
Portanto, a expressão “renunciar a si mesmo” faz referência ao nosso falso “eu”, aquilo que, iludidos, acreditamos ser: o “eu” que busca poder, prestígio, riqueza... O desapego do falso “eu” é imprescindível para poder entrar no caminho de vida que Jesus propõe.
“Renunciar a si mesmo” é não se reduzir ao eu superficial ou ego. Só quando nos desapegamos do eu, tomamos consciência de nossa identidade mais profunda, a vida que somos.
Essa é a Vida de que fala o Evangelho, a mesma Vida que Jesus viveu, com a qual Ele estava identificado (“Eu sou a Vida”) e que buscava despertar em todos os seus seguidores(as). O ego compara-se com os outros e compete pelos elogios e pelos privilégios, pelo amor, pelo poder e pelo dinheiro. É isso que nos torna invejosos, ciumentos e ressentidos em relação aos outros. Também é isso que nos torna hipócritas, dominados pela duplicidade e pela desonestidade.
Aquele que não é capaz de superar o “ego” e nem da centralidade em si mesmo), frustra toda sua existência; mas, aquele que, superando o egocentrismo, descobre seu verdadeiro ser “des-centrado e oblativo”, vivendo em favor dos outros, dará pleno sentido a toda sua vida e alcançará sua verdadeira plenitude humana. Precisamos reconhecer que, aquilo que para nosso ego é “perda” e perigo, para nosso Eu verdadeiro é ganho profundo e libertação.
“Renunciar a nós mesmos” não é cair em um automenosprezo, nem anulação daquilo que somos, mas descobrir que há valores que estão mais além de nós mesmos. É tomar consciência que há recursos e capacidades superiores pelos quais vale a pena investir a vida, assumindo as consequências.
“Tome sua cruz e me siga”: tampouco Jesus quer apresentar-nos um cristianismo e um seguimento doloroso. A verdadeira cruz do cristão não está no sofrimento, não está na dor de privar-nos de tudo, não está nas penitências e sacrifícios... A verdadeira cruz do seguimento de Jesus é a da fidelidade ao evangelho, ao amor, ao compromisso, à própria vocação de serviço.
A cruz do cristão não pode ser outra que a Cruz do mesmo Jesus. Ele nunca amou a cruz como cruz. Mas tampouco fugiu dela por manter-se fiel ao Reino e ao Evangelho que anunciou. Ele nunca amou a dor pela dor, ao contrário, sempre buscou aliviar a dor dos outros. Mas tampouco fugiu, negando sua própria verdade, sua própria missão e sua própria identidade.
A cruz para todo(a) seguidor(a) nunca pode ser uma meta; ela é sempre uma consequência. A cruz para o cristão não é algo que se busca, mas uma realidade que chega a partir de fora, como consequência da verdade e da autenticidade evangélica.
Texto bíblico: Mc. 8,27-35
Na oração: nosso coração se encontra diante da revelação do “eu original”, porque está enraizado na identidade do próprio Jesus (“quem sou eu para vocês?”).
A contemplação de Jesus é também revelação do eu “escondido com Cristo em Deus” (Col. 3), ou seja, revelação da verdade do meu eu profundo, onde descubro os traços de minha própria fisionomia.
Não posso responder a essa pergunta – “Quem é Jesus para mim” – se não me pergunto ao mesmo tempo: “Quem sou eu, diante do Senhor”? Sem identificação não haverá um encontro profundo com o Senhor. O encontro comigo mesmo me aproxima do encontro com o Senhor e o encontro com o Senhor revela minha própria identidade.
- Sua vida cotidiana: descentrada? Oblativa? Aberta ao diferente?... Ou: autocentrada, “buscando o próprio amor, querer e interesse”?
Pe. Adroaldo Palaoro sj
“Jesus saiu de novo da região de Tiro, passou por Sidônia e continuou até o mar da Galileia...(Mc 7,31)
Uma imagem constante no evangelho de Marcos: Jesus, portador da Vida, é um itinerante; rompe os espaços geográficos-culturais-religiosos e transita com muita liberdade pelo território pagão. Ali também se encontravam os excluídos, aspirando viver relações mais humanizadoras.
Nesse deslocamento, algumas pessoas trazem um surdo-mudo a Jesus e pedem que lhe imponha a mão. O surdo-mudo poderia ir ao encontro d’Ele, mas não teria como expressar seu pedido. Portanto, parece lógico, que alguém tivesse que atuar para conduzir o surdo-mudo até Jesus, para que fosse “tocado”; aqui aparece a força do contato.
Sabemos pouco da riqueza de nosso contato. O contato nos cura. É um caminho de comunicação maravilhoso. Na enfermidade, muitas pessoas não buscam mais que o contato. Um verdadeiro contato nos envia sempre para dentro. Não é somente o contato da pele, mas o que nos põe em marcha para nosso interior. O contato nos faz despertar. Existe a idade da palavra, a do ouvido, a do olhar..., mas neste momento Jesus se detém na idade do contato. O caminho do contato é o da mais profunda comunhão. A mão é fonte de contato, é canal de passagem da energia curativa.
O Mestre separa o surdo-mudo da multidão e lhe confere uma atenção especial, em um espaço protegido, onde pode estar a sós com o doente. É apenas nesse encontro entre os dois que a confiança necessária pode crescer para que aquele, cuja boca e ouvidos estão fechados, se abram.
O processo da cura do surdo-mudo é descrito aqui em cinco passos, onde Jesus abre a possibilidade para o encontro deste homem com os outros e para o encontro com o Pai: coloca os dedos nos ouvidos do surdo, toca a língua do mudo, eleva os olhos ao céu, suspira e ordena: “Efatá” – “abre-te”. Palavra dirigida ao coração do surdo-mudo. É como se dissesse: “abre-te à tua identidade! Destrava teu interior!” Depois de tantos passos através do não-verbal, vem a palavra. E o surdo-mudo desata sua língua e começa a falar.
Contrariamente aos outros milagres, Jesus realiza uma série de gestos que demonstravam proximidade e envolvimento: tocou o corpo do homem, olhou para o céu, exprimindo sua comunhão com o Pai, e suspirou como sinal de participação profunda no acontecimento. A cura deixa de ser um ritual puramente exterior, mas brota de um encontro, de um gesto que demonstra comunhão entre o doente e Jesus.
Jesus, com seus sentidos abertos e acolhedores, destrava os sentidos do pobre homem excluído e o capacita a integrar-se na convivência social; com os sentidos abertos, agora ele pode expressar a riqueza de sua interioridade. Uma vez libertado da atrofia dos sentidos, o homem se emancipou, recuperou sua autonomia e agora pode manifestar-se sem bloqueios; nada mais o limita. Com todos os órgão e sentidos do seu corpo mobilizados, ele insere-se na comunidade que ouve a Deus e proclama que Ele é o único Senhor. Desaparecem as causas que lhe impediam optar com liberdade; a possibilidade de uma nova vida se abriu para ele.
Nessa nobre missão de ajudar os outros a “dar à luz” o melhor deles mesmos, Jesus foi um sábio “parteiro”: n’Ele podemos contemplar em quê consiste o saber servir de ajuda para que a vida possa emergir como dom. Jesus se dedica ao surdo-mudo de forma carinhosa, como uma mãe. Ele toca a língua do mudo com sua saliva. Este é um gesto maternal. O surdo-mudo só consegue abrir seus ouvidos e sua língua, num ambiente marcado pela confiança e pelo amor maternal.
É sugestiva a imagem de ser “parteiro da vida”, ou seja, saber favorecer o nascimento de cada um, em sua verdade mais profunda, em todas as suas possibilidades. É colaborar com o Deus Pai/Mãe nessa bela missão, ajudando cada pessoa a ser o que pode e está chamada a ser.
“Ativar e expandir vida” foi a paixão que mobilizou todo o ministério de Jesus: seu desejo de que todos tivessem vida e vida em plenitude, sua capacidade de fazer emergir a vida atrofiada, centrou-se de um modo especial nos excluídos, marginalizados, enfermos, pessoas “oficialmente pecadoras”...; pois, assim Deus o havia revelado, assim sentia Ele seu coração entrar em sintonia com o coração do Pai, que põe mais amor onde há mais necessidade. Poder “dar vida”, capacitar para que cada pessoa pudesse viver sua vida e sua verdadeira identidade foi, para Jesus, uma fonte profunda de fecundidade e de felicidade.
Assim como o surdo-mudo, também nós podemos viver dentro de bolhas, que nos atrofiam e impedem que cheguem até nós o rumor da vida dos demais, com seus problemas e suas alegrias; ou permanecer fechados dentro de nossas pequenas fronteiras, com dificuldades para expressar o que sentimos e vivemos. Enquanto permanecemos fechados, reduzidos a falsas identidades, geramos confusão e sofrimento. Acreditamos naquilo que não somos e esquecemos quem realmente somos. Tal fechamento evoca a imagem de uma jaula, feita à medida dos limites que nossa própria mente estabelece. Condenar-nos-emos a um sofrimento estéril e insolúvel, por um único motivo: confundimo-nos com algo que não somos.
“Efatá”: “abre-te”. O ser humano, mesmo sendo pura abertura e amplitude sem limites, tende a fechar-se. Talvez, porque isso lhe traz uma sensação de segurança, ao crer que mantém o controle sobre o pequeno espaço ao qual se reduziu. Para começar, ele se fecha em seu próprio corpo, como se as fronteiras físicas do mesmo delimitassem também sua identidade; fecha-se em suas ideias atrofiadas, em sua religião burguesa, em seu legalismo e moralismo doentios, em suas intolerâncias e preconceitos...
Nesse contexto, a palavra de Jesus aparece como um convite firme a sair de qualquer identificação redutora: “abre-te”, “não te mantenhas fechado na crença de uma identidade isolada, que não pode ouvir nem contar a Beleza que realmente és”. “Abre-te”, “não te feches em nada, não te reduzas a nenhum objeto, não te deixes aprisionar em nenhuma jaula, reconheça a abertura sem limites do “oceano” que constitui tua verdadeira natureza”. “Abre-te”…, “a quê? À tua verdadeira identidade!”
O surdo-mudo necessitava abrir os ouvidos e a língua, mas todos nós temos necessidade de abrir alguma dimensão de nossa pessoa, ou talvez alguma capacidade adormecida ou bloqueada. É provável que, normalmente, a abertura seja progressiva: à medida que consentimos abrir algo em nós, ser-nos-á mostrado o próximo passo a ser dado. Como nas “sete moradas” de S. Teresa D’Ávila, diferentes portas se sucedem, uma depois de outra; assim se revela ser nosso mundo interior. Cada porta aberta nos coloca diante de outra nova “porta”, que clama para ser também aberta. E, no percurso interior, vamos tendo acesso a espaços cada vez mais originais e inspiradores, até chegar finalmente a nos reconhecer na Divina Morada, nossa verdadeira identidade, nosso “eu profundo”. Daí nasce a sabedoria, unindo corpo-mente-afetividade, coração.
Esse caminho conduz à descoberta de que somos Um com Aquele que nos habita e nos conecta com o universo, forjando nossa identidade de filhos(as), irmão e irmã de todos. Quando conectamos com esta realidade, toda nossa vida se equilibra e adquire sentido; esbarramos na Fonte.
Texto bíblico: Mc 7,31-37
Na oração: No evangelho deste domingo, o autor transmite a palavra chave no próprio idioma de Jesus, o aramaico “Efatá”, “abre-te”.
É preciso deixar ressoar no próprio interior esta expressão; enquanto pronuncia, pergunte-se: “A quê ou em quê preciso abrir-me?”
- Quê portas de sua vida é preciso abrir? Capacidades adormecidas (amor, ternura, alegria, generosidade, solidariedade, liberdade...), defesas protetoras que se converteram em armadura oxidada (medo, indiferença, imagem idealizada, intolerância...), “manias” nas quais se instala, costumes e rotinas que o(a) mantém fechado(a) em uma bolha de tolerado conforto...
Pe. Adroaldo Palaoro sj
“Pois é de dentro, do coração humano, que saem as más intenções...” (Mc 7,21)
Depois de um parêntesis de cinco domingos dedicados ao cap. 6 do evangelho de João, retomamos o percurso de Jesus seguindo o evangelista Marcos. Após a multiplicação dos pães, Jesus se encontra nos arredores do lago de Genesare, um lugar afastado de Jerusalém, onde era menor a vigilância em relação ao cumprimento das leis e das normas de purificação.
O texto de hoje(22º Dom TC) contrapõe a prática dos discípulos com o ensinamento dos letrados e fariseus. Jesus se coloca a favor dos discípulos, e aproveita a ocasião para nos mover a ir mais além; Ele nos adverte que toda norma religiosa, escrita ou não, tem sempre um valor relativo. A Lei deve ser cumprida quando nos leva à plenitude humana. Para os fariseus, é preciso cumprir o preceito por ser preceito e não porque ajuda a ser mais humano. Todas as normas que podemos por em conceitos, são preceitos humanos; não podem ter valor absoluto. Um preceito que pode ser adequado para uma época, pode perder seu sentido em outra. Mais ainda, as normas morais estão mudando sempre, porque o ser humano vai conhecendo melhor seu próprio ser e a realidade na qual vive. As normas antigas não servem para as situações novas que vão aparecendo. Algumas coisas que eram importantes para o ser humano no passado, perderam agora sua força quando se trata da plenitude humana.
Em todas as religiões, as normas e preceitos são dadas em “nome” de Deus. Isto pode ter consequências desastrosas, se não é entendido bem. Todas as leis são humanas. Quando essas normas surgem de uma experiência autêntica e profunda do que deve ser um ser humano e o ajudam a atingir sua plenitude, podemos chamá-las divinas.
O preceito de lavar as mãos antes de comer não era nada mais que uma norma elementar de higiene, para que as enfermidades infecciosas não fizessem estragos entre aquela população que vivia em contato com a terra e os animais. No instante em que uma tradição se converta em um entrave que impeça a pessoa ser mais humana, deve-se abandoná-la. É o que quer dizer Jesus: “deixais de lado a vontade de Deus para apegar-se às tradições dos homens”.
O que Jesus critica não é a Lei como tal, mas a interpretação que faziam dela. Em nome dessa Lei oprimiam as pessoas e lhes impunham verdadeiras torturas com a promessa ou a ameaça de que só assim Deus estaria a seu favor. Davam valor absoluto à Lei. Todas as normas tinham a mesma importância, porque seu único valor estava no fato de que eram “dadas” por Deus. Isto é o que Jesus não podia aceitar.
Toda norma, tanto ao ser formulada como ao ser cumprida, deve ter como fim primeiro o bem do ser humano. Nem sequer podemos colocá-la à frente de Deus, porque o único bem de Deus é o ser humano. A base de todo fundamentalismo está em propor o bem de Deus, inclusive contra o bem do ser humano.
Deus é Pai/Mãe de Misericórdia e nunca vem complicar nossa vida com uma carga de preceitos, leis, tradições... O que Ele deseja é que vivamos intensamente; as leis e normas são só uma mediação para possibilitar mais vida. No momento em que elas bloqueiam o fluir da vida com o peso dos sentimentos de culpa, não devem ser cumpridas.
O segundo ensinamento é consequência deste: não há uma esfera sagrada na qual Deus se move e outra profana da qual Deus está ausente. Na realidade criada não existe nada impuro. Tampouco tem sentido a distinção entre o ser humano puro e o ser humano impuro, a partir de situações alheias à sua vontade. Por isso, a pureza nunca pode ser consequência de práticas rituais. A única impureza que existe é quando o ser humano busca seu próprio interesse à custa dos outros.
Todo aquele que pretende nos impor leis em nome de Deus, está nos enganando. A vontade de Deus é encontrada dentro de nós. O que Deus deseja de nós está inscrito em nosso mesmo ser, e nele temos que descobri-la. A prioridade não corresponde, portanto, às doutrinas, mas ao coração. Porque costuma ocorrer algo que é chamativo: quanto maior a insistência nas doutrinas e nas leis, mais frieza e petrificação no coração. Isto parece ser a reprovação que Jesus dirigia aos fariseus, ou seja, às pessoas que tendiam a absolutizar a religião: “honra-se a Deus com os lábios”, mas o coração está apagado.
É o que sai de dentro que determina a qualidade de uma pessoa. O que comemos pode fazer bem ou mal, mas não afeta nossa atitude espiritual A armadilha está em confiar mais na prática externa de uma norma que na atitude interna que depende só de nós. As práticas religiosas, muitas vezes, são um álibi para dispensar-nos da conversão do coração.
A contaminação e a poluição do meio ambiente são realidades por demais conhecida. Nas grandes cidades, o ar está cada vez mais irrespirável. Em algumas delas já se começou a regular o tráfego para diminuir o nível de poluentes, através da proibição de circulação de automóveis com determinados números de placa. Tal situação, juntamente com a mudança climática e a ecologia, é uma das preocupações dominantes das pessoas que vivem no mundo considerado “desenvolvido”. Mas, junto à contaminação ambiental, que também afeta os povos em desenvolvimento, transformados em lixões dos países ricos, há outra contaminação mais profunda que temos esquecida. E, no evangelho de hoje, Jesus nos fala da necessidade de cuidar da ecologia interior.
Assim como está sendo proibida, cada vez mais, a circulação de veículos contaminantes, também se deveria impedir a saída às ruas de pessoas com mentes contaminadas, cheias de sentimentos poluídos, palavras ácidas, gestos agressivos, carregada de entulhos – mágoas, ira, inveja – que se acumulam no próprio coração. Seus passos sujam os caminhos de lama, deixando um rastro de tristeza e desalento; seu humor intoxica-se de raiva e arrogância; seu temperamento explode com frequência, expelindo tanta fuligem pelas chaminés da intolerância e do preconceito.
O termo “ecologia” não se refere apenas a uma “ecologia exterior”, ou seja, aos ecossistemas em seu instável equilíbrio. Engloba também toda uma “ecologia interior”, própria do ser humano, ou seja, o “mundo” de sua psique, de seus afetos, de seus dinamismos, de sua espiritualidade, de suas relações básicas, quer consigo e com os outros, quer com o mundo e com Deus.
Para ordenar a fragmentação interna precisamos dialogar com as energias instintivas e que se tornaram energias “diabólicas” (que dividem). Cada uma delas representa os instintos, impulsos, paixões, fragilidades, sensualidade, sentimentos... que, quando não pacificados e integrados, criam uma desarmonia interior. São os chamados “pecados de raiz”, ou seja, endurecimentos, fechamentos e fixações... que impedem a energia vital, a misericórdia de Deus fluir livremente. São bloqueios e empecilhos colocados por nós mesmos e que interceptam a relação com Deus, com os outros e com as criaturas, portanto, com a plenitude da vida, e cortam nossas próprias potencialidades de vida.
Quando falamos de “pecados de raiz” queremos destacar a necessidade de uma conversão radical. O convite a “ter um coração próximo a Deus” poderia traduzir-se deste modo: viver conscientes de nossa verdadeira identidade, em conexão com o que realmente somos – essa é a dimensão especificamente espiritual – o qual nos abrirá a uma vivência aberta e inclusiva, humilde e tolerante, prazerosa e compassiva..., a partir da sintonia radical com Aquele em quem nos desvelamos e nos reconhecemos.
Texto bíblico: Mc 7,1-8.14-15.21-23
Na oração: Diante do Evangelho deste domingo, pare por uns instantes, esqueça a poluição do ar e do mar, a química que contamina a terra e envenena os alimentos e medicamentos, e pergunte a si mesmo(a):
- como anda o meu equilíbrio ecobiológico?
- tenho dialogado com meus órgãos interiores?
- acariciado o meu coração? Respeito a delicadeza de meu estômago?
- acompanho mentalmente meu fluxo sanguíneo?
- tenho consciência de onde nascem minhas palavras?
- tenho queimado a minha língua com as nódoas dos comentários maldosos da vida alheia?
- meus olhos estão sujos pelas ilusões de poder, fama e riqueza? (Frei Betto)
Pe. Adroaldo Palaoro sj
“As palavras sempre rompem alguma coisa” (M. Yourcenar)
“As palavras que vos falei são espírito e vida” (Jo 6,63)
Estamos no final do cap. 6 do evangelho de João. Chega a hora do desenlace; a alternativa é clara: abrir-se à verdadeira Vida ou permanecer enredados numa vida atrofiada. Não há neutralidade; no mundo de hoje “tomam-se mais decisões por não tomá-las (que já é uma decisão) do que por tomá-las”, por acomodação, por medo de mudança, por inércia, por deixar que as coisas sigam seu curso...
Quê resultado teve a oferta de Jesus? Suas palavras entraram em choque com a mentalidade vigente; era inadmissível que uma pessoa pudesse comunicar uma mensagem tão exigente e tão libertadora. Suas palavras romperam visões distorcidas, mentalidades fechadas, modos arcaicos de viver, conservadorismo...
Também hoje corremos o risco de “adocicar” as palavras de Jesus para que não firam nossos pré-juizos. Com frequência, queremos transformar Suas Palavras de Vida em um conjunto de ritos, doutrinas, normas... para serem manipuladas segundo nossos critérios e nosso modo de viver. Mas, a Palavra de Jesus nos desestabiliza, nos desequilibra e questiona a normalidade doentia de nossa vida cotidiana. Às vezes, como os discípulos, também dizemos: “Esta palavra é dura. Quem consegue escutá-la?”
No entanto, se queremos seguir Jesus, a única resposta possível deve ser um “sim” profundo, um “amém” decidido e generoso. Desejamos segui-lo e queremos ser como Ele; queremos abrir nossa vida à Palavra de Vida que nos sustenta e nos inspira; sentimos o forte impulso de caminhar com o Nazareno pela difícil e tortuosa estrada do povo de Deus na história.
A “palavra dura” de Jesus, no evangelho deste domingo, deve nos inspirar a uma tomada de consciência do lugar e do valor das palavras em nosso cotidiano. Quantas palavras temos dito ou escrito hoje? Temos consciência do peso, da força que elas carregam? Vivemos saturados de palavras; elas nos assaltam através das canções, estão nos perfis virtuais, nos livros, em mil e uma conversações cotidianas. Falamos, dizemos, escrevemos, escutamos, lemos... E de tanto usá-las, talvez elas acabem perdendo o sentido. Começamos a considerá-las de um modo tão natural que não nos damos conta do quanto elas significam. Então falamos, mas não vivemos. Palavreado crônico, desconectado da vida.
O desenlace do cap. 6 de S. João torna-se uma ocasião privilegiada de calar, de silenciar o palavreado, de deixar de abusar das expressões gastas... para retomar a palavra sincera, para recordar que a vida não é uma brincadeira, para que, quando voltemos a pronunciar, com delicadeza, palavras carregadas de sentido e de vida, possamos nos fazer conscientes da beleza, profundidade, promessa e compromisso que está por detrás de cada uma delas. Nesse sentido, para crer em Jesus é preciso ter fome: fome de vida e de justiça, que não fica satisfeita com palavras vãs, ocas e desprovidas de sentido.
Professamos que Jesus é a Palavra de Deus, uma Palavra sem a marca da falsidade ou do vazio, uma Palavra viva e vivida; Palavra autêntica, de amor e paixão pela humanidade. Pois, através da identificação com Jesus, também nós podemos ser palavra do mesmo Deus neste mundo. Uma palavra de amor, de sustento, de presença solidária... E eu, que palavra sou?
Sabemos que a palavra é uma das realidades humanas mais profundas: elas podem embalar ou golpear, ferir ou acariciar e curar. Sinceras ou falsas, pensadas ou espontâneas... são um de nossos maiores tesouros. Dizemos, escrevemos, lemos e compartilhamos palavras carregadas de vida ou de morte. A palavra, escrita ou falada, é a expressão mais perfeita de nosso pensamento, revela-nos ao mundo exterior e é traço de união de nossos recíprocos relacionamentos.
A palavra, no dizer de um pensador, é um poderosa soberana que realiza feitos admiráveis. Pode expulsar o temor, suprimir a tristeza, infundir alegria, dilatar a compaixão. A palavra é fundamento de todo relacionamento humano. Serve para comunicar o que queremos, expressar sentimentos, argumentar, despertar... O mutismo e a negação da palavra constituem terras de desolação. Aprendemos com as palavras emprestadas de outros ou, quem sabe, também nós chegamos a dizer algo que fez a diferença para alguém.
Falamos, e na fala-escuta, nós nos encontramos e revelamos nossa identidade.
A palavra é meio divino para o encontro com todo o humano, e é sinal humano para acariciar e sonhar o divino. A palavra é lugar de encontro, de compromisso, de descanso, de ajuda, de luta, de consolo e de silêncio. Na palavra podemos chegar a ser tudo o que somos, ou podemos nos evaporar como o alento. Melhor falar com palavras que estendem pontes, encurtam distâncias e entrelaçam vidas. Melhor falar a partir do carinho, da ternura e do amor, aprendendo a reconhecer tanta bondade ao nosso entorno.
Com as palavras podemos sacudir as consciências, animar, levantar, entusiasmar, despertar desejos de arriscar-nos a viver a fundo; ou podemos desanimar, atrofiar, destruir, seduzir para fazer da vida um acontecimento trivial e sem sentido. É melhor calar aquilo que levanta muros e gera desconfiança e fraturas; é melhor calar o que envenena os sonhos e atrofia as vidas.
“As palavras que vos falei são Espírito e são vida” (Jo 6,63)
Para nós cristãos, trata-se de algo definitivo: a Palavra se fez carne. E compartilhou nossos caminhos, sentou-se em nossas mesas para revelar-se, para dar-se a conhecer, para despertar vida... Jesus foi o homem que movia com suas palavras vivas. É no encontro com a Palavra encarnada que brotam em nós palavras criativas, carregadas de esperança e de sentido. As palavras nos tocam e nos constituem.
Fora do percurso da palavra encarnada, vivemos intoxicados de palavras, ou seja, um amontoado de palavras mortas, sem carne, sem entranha, sem verdade, modelando seres adoecidos e desencarnados. A palavra tem um peso, porque sua ressonância permanece. Em tempos de “sociedade líquida”, também nossa palavra pode escorrer e evaporar-se.
Hoje, muita gente prefere Snapchat a WhatsApp ou outras redes sociais porque o conteúdo se evapora em poucos minutos. É a volatilidade das palavras que desemboca na volatilidade da comunicação e da relação. Por isso, precisamos de um novo Pentecostes, ser penetrados pelo Espírito que nos leve a nos entender, apesar de falar línguas diferentes.
É curioso: o evangelho diz com palavras muito simples e cotidianas as coisas mais profundas. Nós, com palavras complicadas e com jargões, que só os iniciados entendem, ou não dizemos nada significativo ou cobrimos o fato de não ter nada que dizer. No entanto, em nossa cotidianidade, são as simples palavras que nos ajudam a assumir os desafios da nossa existência. Não é que as outras grandes palavras sobrem. Mas é que essas palavras pequenas e simples são as que nos fazem sentir e saber-nos em caminho de Evangelho, de Reino de Deus.
Que nossas palavras sejam sempre vivas! ...e a serviço da vida!
Texto bíblico: Jo 6,60-69
Na oração: As palavras, para que tenham sentido e função, para que não se tornem falsas nem dolorosas, deveriam passar pelo filtro da mente e do coração. Seguindo o conselho de S. Agostinho, as palavras deveriam antes passar pela lima que pela língua, para que cheguem à boca polidas pela inteligência e pelo amor.
- Considere sua história de vida e tente recolher delas as palavras que, espalhadas no chão de sua existência, foram criadoras de possibilidades e abertura sem limites.
- Quê palavras estão em excesso em seu falar? Quê seria melhor calar? Em quê seu falar é bem-dizer? Em quê circunstâncias da vida suas palavras são carícia, bálsamo, consolo?
Pe. Adroaldo Palaoro sj
O que significa a Assunção de Maria? Esta festa celebra que, ao terminar sua vida aqui na terra, ela foi totalmente assumida por Deus, de corpo e alma. Não uma simples “viagem ao céu” ou a reanimação de um morto, como Lázaro (Jo 11,43-44) e o filho da viúva de Naim (Lc 7,13-15). O corpo de Maria foi transformado por Deus, embora não saibamos os detalhes. Ela já experimenta o que está prometido para cada um de nós: sermos semelhantes a Jesus ressuscitado (1 Jo 3,2). Paulo assegurou: se morremos com ele, com ele ressuscitaremos (Rom 6,8). Maria está junto de Jesus, glorificada por inteiro. Deus assumiu e elevou sua história, o sim renovado, suas ações, a sua pessoa inteira.
O dogma da assunção estimula a fé, especialmente quando o mal parece destruir as conquistas do Bem. Deus assumiu e transformou tudo de bom que Maria construiu aqui na terra, inclusive o seu corpo. Olhando para Maria glorificada, a gente se anima a lutar pelo bem e pela justiça. Mesmo que a incompreensão e o fracasso pareçam mais fortes, cremos na vitória definitiva do Cristo ressuscitado. Ele inaugura o “Novo Céu e a Nova Terra”, onde Maria já está. Lá, Jesus ficará definitivamente juntinho de nós (Fil 1,23). Não haverá nem morte, nem sofrimento. O Senhor fará novas todas as coisas (Ap 21,1-7).
A assunção de Maria foi o término feliz de seu peregrinar nesse mundo. Cada vez que ela dava novos passos para seguir a Jesus, para realizar a vontade de Deus, o Senhor ia assumindo e transformando sua pessoa. Até que chegou o momento final. Acontece algo parecido com cada cristão. Na vida de fé, cada novo passo novo corresponde a um dom da parte de Deus. Ele nos acolhe, toma-nos pela mão, assume-nos e nos transforma. Conforme o Concílio Vaticano II, Maria assunta ao Céu é a imagem e o começo da comunidade dos seus seguidores, a ser consumada no futuro. Ela brilha aqui na terra como sinal de esperança segura e de conforto para o povo de Deus peregrino, até que chegue o dia do Senhor (Lumen Gentium 68).
Ir. Afonso Murad
In: blog Maria: mãe nossa e companheira na fé
“Como posso merecer que a mãe do meu Senhor me venha visitar?”
Na festa da Assunção, a liturgia nos propõe aprofundar o sentido do encontro a partir da contemplação deste horizonte inspirador: a Visitação. Os ícones que ao longo dos séculos expressam esta visita, esta saudação, nos apresentam duas mulheres vinculadas, unidas por um abraço, por um beijo, por uma mesma alegria. Em seu modo de entrar em comunhão, em sua maneira de dialogar e de se alegrar, elas se revelam mestras para nós, para nossa humanidade fragmentada que aspira viver a “cultura do encontro”.
A cena apresentada por Lucas nos deixa na agradável e desafiante companhia de Maria e Isabel: duas mulheres, dois ventres cheios de vida; duas mulheres cheias de Deus; duas mulheres em um mesmo encontro. Ambas estão grávidas e de um modo surpreendente. As duas esperam filhos muito especiais; sentem que carregam em seus ventres uma novidade que as supera. As duas tem “um corpo abençoado” e um ventre fecundo, sinal e realidade da ação de um Deus que é Vida.
Duas mulheres com duas missões diferentes: uma, portadora do Messias, e outra, portadora daquele que preparará os caminhos. Duas mulheres diferentes, mas cada uma com sua experiência de Deus. Uma, a experiência de Deus em um seio virginal; a outra, a experiência de Deus em um seio seco e estéril. No encontro entre as duas, cada uma descobre e reconhece o mistério da presença de Deus na outra.
O ícone da Visitação contagia e desperta o prazer e a alegria: a do encontrar-se, a do crer e a do servir. Alegria fecunda, já que está ligada a dois nascimentos que vão mudar a história de seu povo e da humanidade. Nesta cena, Deus mesmo se infiltra no cotidiano e naquilo que socialmente não tem maior relevância, ou seja, a vida diária de duas mulheres: Maria e Isabel. Quebra-se assim a centralidade do Templo. Elas festejam as maravilhas do Senhor em um lugar simples, numa região montanhosa, num caminho e numa casa de família simples. O maravilhoso e extraordinário tem lugar no ordinário e humilde. Ali se celebra a vida chegada e por chegar. As protagonistas da cerimônia são duas simples mulheres.
Neste maravilhoso acontecimento tudo é encontro, junta-se o Antigo e o Novo Testamento, a juventude e a idade madura. As duas mulheres estão profunda e intimamente vinculadas entre si. Com elas e delas nasce o tempo novo, o do Reino, o de Jesus. Tem-se a impressão de viver um momento culminante da história. Elas nos conduzem a agradecer a capacidade feminina de deixar transparecer o Mistério que nos habita, de despertar-nos uns aos outros para essa Vida cuja presença reconhecemos em nosso interior.
Maria, aquela que sente o êxodo de Deus, saindo de si mesmo, para encarnar-se no seu seio virginal, e que a move a pôr-se em caminho, saindo de si mesma, porque o serviço aos outros a apressa.
Maria é a Mulher que inaugura e estabelece os critérios para encontrar-se com o Senhor e com os(as) demais. Sua capacidade de encontro parte de uma experiência de profunda interioridade; interioridade visitada por Deus e, portanto, fecundada por seu olhar cheio de amor e ternura, cheio de compaixão pela humanidade e pela criação. Só a partir de uma interioridade fecunda se dá a possibilidade dos encontros mais verdadeiros.
Na Laudato si (n. 240) o Papa Francisco nos diz que “a pessoa humana mais cresce, mais amadurece e mais se santifica à medida que entra em relação, quando sai de si mesma para viver em comunhão com Deus, com os outros e com todas as criaturas. Assim, assume em sua própria existência esse dinamismo trinitário que Deus imprimiu nela desde a criação. Tudo está conectado, e isso nos convida a amadurecer uma espiritualidade da solidariedade global que brota do mistério da Trindade”.
O dogma da Assunção, festa do encontro pleno, nos revela que precisamos nos converter à cultura do encontro em todos os sentidos. Maria foi “assumida” para o encontro definitivo com Deus porque foi presença que inspirava e proporcionava encontros humanizadores. Ela “subiu” porque “desceu” ao encontro dos preferidos do Pai.
Maria, na cena da Visitação, passa da interioridade ao acontecer, à história, ao encontro. É assim como se dá uma autêntica experiência de Deus. Ela nos mostra que tal experiência tem dois pés: um posto na experiência do amor de Deus que nos visita, e outro posto sempre no caminho que precisamos percorrer para ir ao encontro dos demais. Os dois pés são indispensáveis para que a experiência de Deus seja cristã, seja encarnada, seja Visitação. Os dois pés, sempre em movimento cordial: de sístole e diástole.
Deus começa sempre pelo coração; mas logo desce aos pés. Em outras palavras: Deus põe pés no coração. Maria recebeu do anjo a notícia que sua prima Isabel estava esperando um filho e já estava no sexto mês de gestação. Não foi necessário que Isabel pedisse a Maria e solicitasse seus serviços. O amor descobre as necessidades dos outros; o amor não necessita que ninguém lhe peça favores, nem que alguém lhe solicite serviços. Maria não esperou o chamado de Isabel. Porque o amor não espera, antecipa. O amor sempre tem pressa, não sabe esperar. O amor não fica em sentimentos; o amor se faz gesto, atitude, caminho e serviço. “O amor consiste mais em obras que em palavras” (S. Inácio).
O amor põe o coração em caminho; o coração põe pressas aos pés. Amor, coração e pés se fazem serviço aos demais. Quando amamos, nossos pés se põem em caminho: levar alegria aos outros. Por isso, nesta visita e neste encontro, todas saltam de alegria: João salta de alegria no ventre de Isabel. Isabel salta de alegria e extravasa seu júbilo. Maria salta de alegria e entoa seu hino de reconhecimento e agradecimento. Isabel encheu-se de surpresa ao ver a surpreendente Maria diante de si. E não pode segurar sua alegria; por isso, também explodiu em um grito de louvor e reconhecimento.
Nosso mundo está carente de Visitação, de uma vida cristã com iniciativa e experiência de encontros, que deixe suas seguranças, que saia, atenta às necessidades dos demais, que cuide da vida que há nela e onde queira que esteja germinando ou tenha possibilidades de acontecer; assim entendemos a vida cristã vinculada com a terra e o cuidado da casa comum.
Encontrar-nos é construir pontes e derrubar muros, é desafiar a cultura do desencontro, da fragmentação e do descarte. Os encontros mudam nossa vida e vamos descobrindo nossa identidade através deles. Eles nos colocam em atitude de êxodo, de saída, de Visitação. O encontro, quando se dá a partir da experiência de Deus, que é contemplação e saída, se torna autêntica e solidária profecia.
Texto bíblico: Lc 1,39-56
Na oração: é indispensável situar-se na cena da Visitação; escutar as duas mulheres que conversam entre si; seguir seus passos, proceder como elas, viver hoje o que elas viveram.
A Visitação é, portanto, um convite a “cruzar montanhas”, transpassando fronteiras, abrindo buracos nos ilusórios muros de classe, de cultura, de raça, de gênero, de religião, etc... Cruzar montanhas, saindo apressadamente ao encontro do outro, para fazer a experiência de viver, em ritmo de Visitação, o regozijo da vida divina que habita no humano e se expande na criação inteira.
- Como encarnar o ícone da Visitação no seu ritmo cotidiano? Há lugar para encontros surpreendentes?
Pe. Adroaldo Palaoro sj
“Quem come deste pão viverá eternamente” (Jo. 6,51)
Continuamos no cap. 6 do Evangelho de João. Aumenta a tensão entre os judeus e Jesus. À medida que Jesus vai aprofundando no seu ensinamento, vai aparecendo a enorme diferença existente entre o que eles aprenderam da tradição e o que Jesus lhes quer transmitir. E vão aparecendo as doentias murmurações. “E começaram a murmurar contra Jesus”. Murmuravam porque Jesus havia dito: “eu sou o pão vivo descido do céu”. É o mesmo verbo para falar das murmurações dos israelitas no deserto contra Moisés, por não lhes dar alimento, como eles tinham no Egito. Jesus lhes recorda que o povo esteve contra Moisés nos momentos difíceis e agora também não confiam nas palavras do próprio Jesus.
Sabemos que a murmuração se expressa de inúmeras maneiras, sutis ou não, formando uma montanha de ressentimentos, queixas, críticas ácidas... Murmurar é contraproducente e nocivo. Alguém que murmura é uma pessoa difícil de conviver e poucas pessoas sabem como responder às queixas feitas por outras que expelem sua fuligem interior. O trágico é que, uma vez expressa, a murmuração leva ao que mais se queria evitar: um afastamento maior. Essa murmuração íntima é sombria e pesada: condenação dos outros, condenação de si mesmo, justificativas... entrando numa espiral de amargura e fechamento. À medida que a pessoa se deixa arrastar ao interior do vasto labirinto das suas murmurações, fica mais e mais perdida, até que, no fim, acaba achando-se a pessoa mais incompreendida, rejeitada, negligenciada e desprezada do mundo.
Em um coração carregado de murmurações e queixas, o Espírito não tem liberdade de atuar; elas são a fonte poluidora de onde brotam as doentias divisões internas, que atrofiam as forças criativas, petrificam o coração, resistem ao novo e levam ao distanciamento de tudo e de todos. Com isso, a pessoa se blinda, tornando-se rígida, fechada em suas posições, crenças, valores... e não se deixa impactar pelo encontro com o diferente. Como quebrar os ferrolhos das murmurações e estender as mãos para acolher o surpreendentemente novo? Como passar do coração de pedra para a morada da fonte de água viva?
Nesse contexto “carregado”, Jesus vai abrindo um caminho de existência compartilhada, que se expressa na comunicação do pão e que culmina na comunicação de vida. Ele não se deixa afetar pelas murmurações que levam à morte. Jesus, o “Pão da Vida”, tocou as “vidas feridas” com delicadeza e ternura e as transformou. Seus gestos terapêuticos foram o prolongamento da ação criativa de Deus; com palavras e ações Ele inaugurou no meio de nós o Reino de Vida do Pai. Não só optou pela vida e se comprometeu com a vida, mas fez de sua Vida uma entrega radical a favor da vida. Em Jesus acontece algo totalmente novo; Ele traz uma nova maneira de viver e de comunicar vida que não cabe nos nossos esquemas. Quem entra em comunhão de vida com Ele, conhece uma vida diferente, de qualidade nova, expansiva...
A comunhão com Jesus é fonte de vida e vida em crescente amplitude. Quando nos dispomos a caminhar com Ele, sob a ação do seu Espírito, realiza-se em nós um processo de abertura e de superação, de crescimento e de reconstrução de nós mesmos...; tomamos consciência de uma dimensão profunda de nosso interior, que nos permite experimentar uma outra vida, que supera tudo o que vivemos até então.
A “vida eterna”, então, não é um prolongamento ao infinito de nossa vida biológica. É a dimensão inesgotável e decisiva de nossa existência. Ela torna-se “eterna” desde já. Para o evangelista João, a “vida” é uma totalidade, ou seja, a vida presente, a vida atual, é uma vida que tem tal plenitude que, com toda razão, podemos chamá-la de “vida eterna”, uma vida com tal força e tão sem limites, que nem a morte mesma terá poder sobre ela.
Precisamos adquirir uma consciência mais profunda da vida do espírito, perceber as pulsações desta vida eterna que está em nós, do mesmo modo que, prestando atenção, percebemos as batidas de nosso coração. A vida, desde o mais íntimo da pessoa humana, deseja ser despertada e vivenciada em plenitude. Vida plena prometida por Jesus: “Quem crê, tem a vida eterna”
Jesus faz-se alimento que gerar vida nova no mundo; alimentar-nos d’Ele, desperta nossa vida interior, fazendo-nos redescobrir nossa verdadeira riqueza; ao mesmo tempo, fazendo-se “pão partilhado”, Jesus nos ensina a gerar vida, ou seja, Ele nos move a fazer com que nossa própria vida seja “alimento substancioso”, para que outros também tenham vida. A comunhão de vida com Cristo nos faz ter um “caso de amor com a vida”.
Nem sempre sabemos viver: conformamo-nos com uma vida estreita, estéril, fechada ao novo, carregada de “murmurações”. Quando nos saciamos com o Pão, que proporciona vigor inesgotável, nossa vida se destrava e torna-se potencial de inovação criadora, expressão permanente de liberdade, consciência, amor, arte, alegria, compaixão.... É vida em movimento, gesto de ir além de nós mesmos; vida fecunda, potencial humano. Vida com fome e sede de significado, que busca o sentido... Vida que é encontro, interação, comunhão, solidariedade. Vida que é seduzida pelo amor, pela ternura. Vida que desperta o olhar para o vasto mundo. Vida que é voz, é canto, é dança, é festa, é convocação...
Ao afirmar: “Eu sou o pão vivo que desceu do céu”, Jesus nos revela que a vida é sempre uma novidade que rompe velhos barris; ela é um fenômeno que emerge de forma misteriosa; ela se impõe, simplesmente. Tal realidade desperta fascinação, provoca admiração e veneração... porque a vida é sempre sagrada. Diante dela ficamos extasiados, boquiabertos, escancarados os olhos e afiados os ouvidos. Ela nos atrai por sua força interna. A vida é sempre emergência do novo e do surpreendente. Portador de uma vida inesgotável, somos muito mais que o simples resultado de nossos esforços e lutas. Vivemos para mergulhar em algo diferente, novo e melhor.
Nossa vida não é um problema a resolver, mas uma experiência a acolher, uma aventura a amar e um mistério a celebrar. Afinal, somos discípulos(as) permanentes na escola do Mestre da vida! Nesse sentido, a experiência do Seguimento de Jesus é uma verdadeira “escola de vida”, cuja aprendizagem nos leva ao âmago do nosso ser, para enraizar nossa vida no coração cheio de nutrientes, dele haurir a força da vida divina e deixar-nos plenificar pela graça transbordante de Deus. Nada mais contrário ao espírito do Evangelho que a vida instalada e uma existência estabilizada de uma vez para sempre, tendo pontos de referência fixos, definitivos, tranqüilizadores...
Texto bíblico: Jo 6,41-51
Na oração: Para viver a partir do ser mais profundo, é preciso dedicar, cada dia, algum tempo de atenção ao próprio coração e aprender a regozijar-se da maravilhosa vida de Deus em cada um. Basta um repouso e o estar presente para fazer acalmar a agitação interior e aproximar-se da fonte da vida.
- Temos nas mãos e no coração a opção de viver “em chave de murmurações” (queixas, ressentimentos e desencantos) ou “em chave de benção”, descobrindo na vida a presença d’Aquele que nos faz estremecer de alegria, desafiando-nos a ser “pão para os outros”.
- Sua vida cotidiana: “pão amargo de murmurações” ou “pão substancioso de bênçãos”?
Pe. Adroaldo Palaoro sj
“Quem vem a mim não terá mais fome...” (Jo 6,35)
Continuamos seguindo o cap. 6 do evangelho de S. João. No texto deste domingo Jesus entra diretamente em discussão com os judeus e o v. 59 diz expressamente que este encontro conflituoso teve lugar na sinagoga de Cafarnaum. Estamos no início de uma discussão longa e dura, na qual Jesus vai aprofundando as exigências do seguimento. E, à medida que Ele vai radicalizando o discurso, aumenta a distância dos seus ouvintes. O processo será esse: entusiasmo, dúvida, desencanto, desilusão, oposição, rejeição, abandono.
O diálogo tenso desvela a real motivação daqueles que O buscavam, não porque tinham visto sinais, mas porque comeram pão até ficarem saciados. O “sinal” tinha sido um convite a compartilhar. Mas eles se fixaram só na satisfação da própria necessidade. Esvaziaram o sinal de seu conteúdo. Essa busca de Jesus é vazia, porque eles só estavam atrás da segurança alimentar. Jesus vai diretamente ao ponto e desmascara tal intenção. Não buscavam a Ele, mas o pão que Ele lhes deu. Não O buscavam porque Ele abriu as portas de um futuro mais humano, mas se fixaram nos seus próprios interesses.
“Eu sou o pão da Vida”. Em todos os grandes discursos que encontramos no 4º. Evangelho, há uma referência explícita à Vida, com maiúscula. Trata-se de uma realidade que não podemos explicar com palavras, nem enquadrá-la em conceitos humanos. Somente através de símbolos e metáforas podemos indicar o caminho de uma vivência que é o único que nos levará a descobrir de quê se está falando.
A Vida que Jesus promete não vem de fora e de maneira espetacular, como o maná no deserto. Ela está presente em cada um e se manifesta no cotidiano, como amor descentrado, como partilha dos dons, como preocupação pelo outro. Esta Vida interior é ativada pela adesão e identificação com a pessoa de Jesus. Daí a necessidade de trabalhar pelo alimento que dura dando Vida definitiva. Este apelo de trabalhar em favor da Vida, é o resume de toda a mensagem do evangelho deste domingo.
Jesus salva e alimenta porque é pão. Ele é o alimento que gera vida nova no mundo, vida oferecida e compartilhada. Devemos unir a imagem de Jesus/pão com a imagem Jesus/grão de trigo que é triturado para ser alimento e fecundar a vida. Um alimento “subversivo” porque subverte a tradicional “ordem” das coisas. Antes de partir o pão, Jesus parte-se a si mesmo, faz-se alimento. Toda sua vida foi entrega. Sua vida inteira dá significado ao partir, compartilhar e repartir o pão da vida.
E é isso que, no nível mais profundo, somos todos. Todos somos Vida, todos somos “pão de vida”. Somos pão quando alimentamos o outro na esperança, no perdão, na acolhida, na compaixão, no compromisso... Sim, podemos multiplicar o pão da festa, da alegria, o pão da justiça, o pão da ajuda fraterna... Quanto pão para ser dividido! Em nosso interior há uma reserva de nutrientes, de pão substancioso, que corre o risco de perder a validade, se não é compartilhado. O centro da vida é “pão”, e (como Jesus), só somos pão na medida em que partilhamos o que somos e temos.
Tal como Jesus, todo(a) seguidor(a) é chamado(a) a ter vida e a ser vida. E vida expansiva. A vida não deve ser corroída pela tirania do egoísmo mesquinho. Vida é encontro, interação, comunhão. Vida é solidariedade. Vidas são olhares que se cruzam, são mãos que se estendem e se estreitam, são passos que rompem distancias e se interligam. Somos chamados a ser “biófilos”, amigos e defensores da vida.
“É entre nossas mãos que está a vida” (Bloch). Nossas mãos não podem jogar fora a vida. Nossas mãos precisam manter, nutrir e proteger a vida. Nossas mãos devem ser protagonistas para sustentar a vida, precisam dignificar a vida. Nosso compromisso é preservar a vida que dança em nossas mãos. Nas raízes profundas do nosso ser, reside a Biofilia, o amor à vida.
“Eu sou o pão da vida”. O encontro com a Vida que se faz Pão nos move a buscar o sentido de nossa própria existência; e quem encontra o sentido se torna dinâmico, persegue um horizonte, abre-se a uma causa mobilizadora. Para isso é necessário outro ritmo de vida, que nos permita vivê-la com mais sabor, com mais autenticidade.
A vida é vivida intensamente quando a força do “Pão da Vida” atua, impulsionando a abrir, a avançar, a progredir. Porque a vida autêntica é a vida movida, iluminada, impulsionada pelo amor. É este dinamismo de amor que somos chamados a contemplar no mistério do Pão da Vida, do qual cada pessoa é uma pequena, mas preciosa imagem. O(a) seguidor(a) de Jesus deixa refletir esta imagem em sua vida concreta de cada dia quando vive esse dinamismo do “pão partilhado”, numa relação cordial, aberta e receptiva à originalidade do outro, entrando num verdadeiro dinamismo de vida. Um dinamismo de amor.
A adesão a Jesus, portanto, não fica na exterioridade. Ele não é modelo exterior a ser imitado, e sim, é presença interiorizada. Essa comunhão íntima muda o interior do(a) discípulo(a), possibilita a sintonia com Jesus e faz viver a identificação com Ele. Fazendo-se alimento, Jesus nos ajuda a conhecer nossa própria interioridade, desperta nossa vida, arrancando-a de seus limites estreitos e constituindo-a como vida expansiva em direção a novos horizontes.
E Jesus não somente vai conosco, mas nos precede, nos sustenta e, na liberdade de seu amor, nos impele a ampliar nossa vida a serviço. Toda peregrinação, em clima de admiração e assombro, se revela rica em descobertas e surpresas, e desperta o coração para dimensões maiores que a rotina de cada dia. Nesse sentido, a vida tem a dimensão do milagre e até na morte anuncia o início de algo novo; ela carrega no seu interior o destino da ressurreição.
Jesus se revela, assim, como autoridade de amor, porque ofereceu seu “corpo”, isto é, sua vida, para que outros pudessem viver. Na multiplicação dos pães, nas refeições com pecadores e sobretudo na Última Ceia, Ele oferece aquilo que não pode ser comprado nem vendido: o pão do próprio corpo carregado de humanidade, o vinho de sua vida portador das energias alegres e criativas.
Comungar o pão e o vinho não é só aderir a Jesus, à sua pessoa e à sua mensagem; não é só experimentar sua intimidade, deixando-se transformar por Ele. Implica estar dispostos a comungar com todos, porque Jesus nunca vem só: “traz” com ele toda a realidade. “Não nos devemos envergonhar, não devemos ter medo, não devemos sentir repugnância de tocar a carne de Cristo” (papa Francisco).
Todo ser humano carrega “outras fomes” em seu interior. Jesus procura despertar nas pessoas uma fome diferente: Ele lhes fala de um pão que não sacia a fome de um dia, mas a fome e sede de vida plena. Ou seja, ser seu seguidor é associar-se à Sua Fome: aliviar o sofrimento humano. Trata-se de uma “fome humanizadora”: fome de comunhão, de cuidado, de compaixão..., fome de novas relações, de um mundo novo... Fome de vida! Jesus quer oferecer-lhes um alimento que pode saciar esta fome de vida.
Texto bíblico: Jo 6,24-35
Na oração: Jesus é Aquele que sabe a arte de despertar fomes. Estamos saturados de “coisas”, mas carentes de fome. Quem tem fome, busca, cria, constrói... Quem não tem fome cai numa apatia paralisante.
Experimentamos fome quando saímos de nós mesmos, quando nos consumimos no trabalho pelo Reino, quando nos empenhamos por abrir caminhos de humanização...
- Quais são minhas fomes existenciais?
- Vivo faminto de sabedoria? Ou me contento com alimentos que não saciam?
- Em quê circunstâncias experimento ser “pão de vida”?
- Quê pão me sacia existencialmente? De quê tenho fome?
Pe. Adroaldo Palaoro sj
“Jesus tomou os pães, deu graças e distribuiu-os aos que estavam sentados...” (Jo 6,11)
No domingo passado, o relato evangélico de Marcos nos deixou às portas da multiplicação dos pães. Em seu lugar, a liturgia insere, a partir deste domingo, todo o capítulo 6 do evangelho de João. É o mais longo e denso capítulo de todos os evangelhos, e que vai ocupar os próximos cinco domingos. Em seus 71 versículos, partindo da multiplicação dos pães, João elabora toda uma teologia do seguimento. No fundo trata-se de um processo de iniciação catequética, que na primitiva comunidade cristã durava vários anos e que, no final inspirava o catecúmeno a tomar uma decisão definitiva: o batismo.
João, o evangelista dos detalhes, começa trazendo um dado interessante: “Jesus foi para o outro lado do mar da Galileia”. Ao passar para a outra margem, Jesus desencadeia um movimento inspirador: não podemos nos limitar a ver as coisas a partir das margens conhecidas. É preciso deslocar-nos para a outra margem, para ver as coisas sob outra perspectiva, com um olhar mais amplo.
Jesus desvela o perigo de fechar-nos no próprio grupo, nas próprias ideias, doutrinas e considerar-nos como donos da verdade; somos sempre tentados a instalar-nos no conhecido e custa abrir-nos a outras percepções. É preciso fazer a travessia para deixar-nos interpelar pelo novo, colocar em questão nossa própria visão e compreensão da vida e enriquecer-nos com outros pontos de vista: a dos pobres e marginalizados. O Evangelho não é para acomodados ou para aqueles que tem medo de fazer a travessia; o Evangelho é para fazer estrada, viver em atitude de saída. Sair dos lugares conhecidos, rotineiros, estreitos e abrir-nos às surpresas dos lugares novos.
Outro dado instigante, apresentado no evangelho deste domingo: não basta ver a fome nas fotos, embora as fotos costumam “doer”. O importante é ver os rostos famintos. Jesus não é daqueles que, quando passa junto ao faminto, baixa os olhos para não ver. Jesus “levantou os olhos e viu uma grande multidão”. Segundo a versão de João, Jesus é o primeiro que pensa na fome daquela multidão que acudiu para escutá-lo. Ela precisa comer e é preciso fazer algo. Assim era Jesus. Vivia pensando nas necessidades básicas do ser humano.
Jesus é daqueles que, quando descobre que a multidão tem fome, busca respostas, busca soluções. “Onde vamos comprar pão para que eles possam comer?” A solução de Felipe é aquela que a maioria tem às mãos: só vê a dificuldade e, inclusive, a impossibilidade de encontrar uma saída para a situação. Ele recorda que o grupo não tem dinheiro. Entre os discípulos, todos são pobres: não podem comprar pão para tantos.
Jesus sabe disso. Os que tem dinheiro não resolverão nunca o problema da fome no mundo. É preciso algo mais que dinheiro. A solução de Jesus é abrir outra possibilidade: Ele vai ajudá-los a vislumbrar um caminho diferente. Antes de mais nada, é necessário que ninguém monopolize o seu alimento para si mesmo, quando há outros que passam fome. Seus discípulos terão que aprender a pôr à disposição dos famintos o que têm, mesmo que seja só “cinco pães de cevada e dois peixes”.
Jesus ensina que a dinâmica do Reino é a arte de compartilhar. Talvez todo o dinheiro do mundo não seja suficiente para comprar o alimento necessário para todos os que passam fome... O problema não se soluciona comprando, o problema se soluciona compartilhando. O pão nas mãos de Jesus era pão para ser partido, repartido e compartilhado. O pão armazenado, como o maná no deserto, se corrompe, apodrece.
Também hoje Ele precisa de nossas mãos para multiplicar os grãos; precisa de nossas mãos para triturar esses grãos, amassar a farinha e fazer o pão. E precisa de nosso coração para que o pão seja repartido.
O pão sem coração é pão “monopolizado”. Pão indigesto, que engorda o egoísmo. O pão sem coração gera divisões e conflitos. Quantas guerras fraticidas provoca o pão sem coração! Deus precisa de nosso coração para que o pão leve o sinal da fraternidade, seja vitamina de solidariedade, alimento de comunhão, para que possamos comungar. No pão compartilhado, encontramos a luz da vida. “Se partes teu pão com o faminto... brilhará tua luz como a aurora” (Is. 58,7-8).
Uma refeição fraterna foi servida por Jesus a todos, graças ao gesto generoso de um menino, com seus cinco pães de cevada (pão dos pobres) e dois peixes.
Para Jesus, isso é suficiente. Esse menino, sem nome e desconhecido, vai tornar possível o que parece ser impossível. Sua disponibilidade para partilhar tudo o que tem é o caminho para alimentar aquela multidão. Jesus fará o resto. Toma em suas mãos os pães, dá graças a Deus e começa a “reparti-los” entre todos. Esta refeição compartilhada era, para os primeiros cristãos, um símbolo atrativo da comunidade nascida do movimento de Jesus para construir uma humanidade nova e fraterna. Esta cena, evocavalhes, ao mesmo tempo, a eucaristia, celebrada no dia do Senhor, para que todos pudessem se alimentar do espírito e da força de Jesus, o Pão vivo vindo de Deus.
Mas, os seguidores de Jesus nunca esqueceram o gesto despojado daquele menino. Se há fome no mundo, não é por escassez de alimentos, mas por falta de solidariedade. Há pão para todos, falta espírito generoso para partilhar. Temos deixado a marcha do mundo nas mãos do poder financeiro, nos dá medo partilhar o que temos, e as pessoas morrem de fome devido ao nosso egoísmo irracional.
A dinâmica do mundo neo-liberal é precisamente o dinheiro. Cremos que sem dinheiro nada se pode fazer e procuramos converter tudo em dinheiro, não só os recursos naturais, mas também os recursos humanos e os valores: o amor, a amizade, o serviço, a justiça, a fraternidade, a fé, etc. Neste mundo capitalista nada é dado gratuitamente, tudo tem seu preço, tudo é taxado e comercializado. Esquecemos que a vida acontece por pura gratuidade, por puro dom de Deus.
Jesus, nesta multiplicação dos pães e dos peixes, partiu daquilo que as pessoas tinham no momento. O milagre não foi tanto a multiplicação do alimento, mas o que aconteceu no interior de seus ouvintes: sentiram-se interpelados pela palavra de Jesus e, deixando de lado o egoísmo, cada um colocou o pouco que ainda tinham; maravilharam-se, depois, ao verem que o alimento se multiplicou e sobrou.
Compreenderam, então, que se o povo passava fome e necessidade, não era tanto pela situação de pobreza, mas pelo egoísmo dos homens e mulheres que, conformados com o que tinham, não lhes importava que os outros passassem necessidades. O gesto de compartilhar marcou profundamente a vida das primeiras comunidades que seguiram a Jesus. Compartilhar o pão se converteu num gesto para prolongar e manter a vida, um gesto pascal. Ao partir o pão descobriam a presença nova do Ressuscitado.
Nós seguidores(as) de Jesus, não devemos esquecer o gesto de partilhar é a chave para tornar realidade a fraternidade e para nos reconhecer como filhos e filhas do mesmo Pai. Quando se compartilha com gosto e com alegria, o alimento se multiplica e sobra.
Texto bíblico: Jo 6,1-15
Na oração: Nosso próprio interior é dotado de pães que devem ser acolhidos, abençoados, repartidos e distribuídos.
O alimento vem de nossa própria interioridade: poucos pães e peixes, mas o suficiente para saciar a fome de muitos. Há um menino interior que aponta para a presença dos pães e peixes e nos instiga a partilhar.
- A atitude de Jesus é a mais simples e humana que podemos imaginar. Mas, quem vai nos ensinar a compartilhar, se só sabemos comprar? Quem vai nos libertar de nossa indiferença frente àqueles de morrem de fome? Há algo que possa nos fazer mais humanos?
Será que algum dia acontecerá esse “milagre” da solidariedade real entre todos?
- Quais são seus pães e peixes do seu interior que devem ser apresentados e partilhados?
Pe. Adroaldo Palaoro sj
“Ao desembarcar, Jesus viu uma numerosa multidão e teve compaixão” (Mc 6,34)
No evangelho deste domingo(16º dom do Tempo Comum), contemplamos Jesus olhando a realidade para além da superfície evidente de abandono em que vive o povo, até chegar a outra dimensão mais profunda onde descobre o rosto de um Pai compadecido, que sofre o abandono e a dor de seus filhos e filhas. Jesus olha e vê. Esse é o primeiro passo. Não desvia de seus olhos a realidade dura de seu povo. “Contemplava”, ou seja, olhava atentamente, uma e outra vez, pousava o olhar sobre a crosta ressecada e sem beleza provocada por golpes mal curados. E, nesse primeiro olhar, vê a miséria da multidão dispersa frente a ausência de verdadeiros pastores que cuidassem de suas ovelhas; vê as mordidas mal cicatrizadas dos lobos. Desse primeiro olhar nascem a compaixão, a misericórdia. Seu coração sensível deixa-se afetar pela miséria e abandono de seu povo.
Como em outras passagens do Evangelho, Jesus muda o plano do dia de descanso com seus discípulos para acolher a dor das pessoas que surge de repente em seu caminho; contempla-as, e em sua maneira de se fazer próximo está já encarnado, em gestos, palavras e olhares, o Reino que anuncia.
Deus é compassivo: esta é a base da atuação de Jesus. É precisamente esta compaixão de Deus aquela que move Jesus em direção das vítimas inocentes: as maltratadas pela vida ou pelas injustiças dos poderosos. É a compaixão de Deus que faz Jesus tão sensível ao sofrimento e à humilhação das pessoas. Sua paixão pelo Deus da compaixão se traduz em compaixão pelo ser humano.
A partir desta experiência de um Deus compassivo, Jesus vai introduzir um princípio de atuação, a compaixão. Chegou o momento de recuperar a compaixão como a herança decisiva que Jesus deixou à humanidade, a força que deve impregnar a marcha do mundo, o princípio de ação que deve mover a história para um futuro mais humano. É a compaixão, ativa e solidária, aquela que nos há de conduzir para esse mundo mais digno e ditoso querido por Deus para todos.
“Com-paixão”, palavra de etimologia latina, significa “padecer-com”, “sentir-com”, vibrar-com”, “afetar-se-com”... Seu equivalente, derivado do grego, seria a palavra “sim-patia”, termo ao qual se opõe diretamente o de “a-patia”, ausência de sentimentos, de vibração, de capacidade de proximidade... Muitos se referem à compaixão como uma paixão, outros como uma emoção forte, outros ainda, como um sentimento...; mas todos coincidem em um ponto: ela tem a ver com nossa comum humanidade.
A compaixão nos situa em uma espécie de irmandade entre seres radicalmente iguais em sua humanidade. É um dinamismo natural que expressa a bondade original do ser humano, a origem dos sentimentos altruístas, a sensibilidade solidária...
A compaixão é força que impulsiona à ação; não se trata de uma relação de cima para baixo, de quem, a partir de uma situação superior e distante, faz concessões a quem lhe é inferior. A compaixão é, antes de tudo, uma situação na qual prevalecem a igualdade, a dignidade básica e comum do ser humano; ela capacita a superar barreiras e condicionamentos que impedem uma vinculação fraterna entre as pessoas, para chegar a se colocar no lugar do outro e atuar por e para ele.
A compaixão é essa capacidade de sentir com o outro, particularmente o outro golpeado pelas circunstâncias da vida. É a valentia para compartilhar sua paixão, é participação imediata no seu sofrimento e buscar com ele a esperança, o alívio e a alegria. A compaixão desvela o sentimento profundo de amor para com aqueles que sofrem, buscando eficazmente aliviar sua situação, através de uma ação bondosa e serviçal.
Por isso o outro deixa de ser um estranho e se converte em próximo.
Mas a compaixão genuína nasce de uma fonte ainda mais profunda: não é só a experiência da própria vulnerabilidade, mas a consciência de uma identidade compartilhada. Não somos seres separados que, eventualmente, se ajudam uns aos outros, mas que constituímos uma Unidade, pela qual ninguém nos é indiferente. O bem dos outros é nosso bem; sua dor, nossa dor. “Sou humano, e nada do humano me é alheio” (escritor romano Lactancio). Por isso, podemos afirmar que o obstáculo comum para viver a compaixão é a identificação com o ego. Tal identificação apoia-se na crença fundamental de que somos seres separados. Dessa crença nascem, entre outras coisas, o individualismo, a egocentrismo, a indiferença, a intolerância...
O ego busca a comodidade, porque se rege pela lei do mínimo esforço, ou seja, pelo apego ao “agradável” e a aversão para o “desagradável”. Tende a evitar tudo aquilo que lhe implica mudança em suas rotinas ou expectativas e busca, acima de tudo, “sentir-se bem”. Dado que a necessidade do outro o implicaria em um compromisso, o ego tende a refugiar-se na indiferença, que não é outra coisa que a “cegueira” diante da realidade, porque, como diz o refrão popular “olhos que não veem, coração que não sente”.
Em definitiva, para poder viver a compaixão, precisamos ativar os recursos internos que potenciam nossa capacidade de sentir e nossa capacidade de amar e, simultaneamente, o empenho pessoal que nos permita libertar-nos da identificação com o ego, assumindo um compromisso solidário com quem mais sofre.
A compaixão esvazia toda pretensão de poder, pois ela projeta a pessoa para o outro, torna a pessoa sensível ao clamor e às necessidades do outro. A compaixão rompe a couraça do “eu” constituída pelo poder. A vida do outro é a razão única da autoridade.
Um dos sintomas que definem a nossa época é o fato de ser um tempo de “sem-compaixão”, um tempo no qual se faz muito difícil vibrar de verdade com os outros, alegrar-se com quem se alegra, caminhar juntos, com-viver, oferecendo-se mutuamente o ombro e dando-se as mãos. O outro, sua necessidade e sofrimento, será sempre a alavanca que gera no coração humano a compreensão e o exercício da autoridade como verdadeiro serviço.
Só a compaixão desloca cada um para o lugar do outro. Só a compaixão ilumina a realidade do sofrimento do outro. Só a compaixão move na direção da oferta do outro. A compaixão é a entrada do ser humano no mundo do humano; ela é o perfume do humano que invade a chão da vida, a sua fragilidade e sofrimento, e torna operativo o processo de humanização.
Texto bíblico: Mc 6,30-34
Na oração: A experiência de viver permanentemente sob o olhar compassivo de Deus nos permite descobrir que “o ser-com” e “o ser-para” é a autêntica condição humana que se desloca em direção ao outro, na arte de deixar e abrir lugar ao excluído, ao estranho, ao sobrante...
- Sua vivência do Seguimento de Jesus é marcada pelo “olhar compassivo e comprometido” ou por práticas piedosas alienadas, que não o(a) projetam em direção aos mais sofredores?
Pe. Adroaldo Palaoro sj
“E Ele percorria os povoados da região, ensinando” (Mc 6,6)
“Adeptos(as) do Caminho”: assim eram conhecidos os(as) primeiros seguidores(as) de Jesus (At 9,2). Assim também quer Jesus que sejamos seguidores seus, sempre em caminho, em todos os lugares, em todas as casas de passagem, dispostos a parar e conversar, prontos ao encontro e à solidariedade com todos os que vão e vem pela vida.
Deveríamos voltar a recuperar o sentido desta expressão (“adeptos do Caminho”), pois ela nos convida a continuar percorrendo o caminho cotidiano da existência de uma maneira cristificada; e isto é algo fundamental para o encontro profundo com o outro, com as alegrias e os sofrimentos daqueles que se encontram às margens, com a novidade e a surpresa da senda da vida, com o desafio de prosseguir confiando na Boa Notícia de Jesus, que se manteve sempre em caminho pelas estradas da Palestina, para levantar os feridos, oprimidos e excluídos do sistema social e religioso.
Hoje como ontem, sair, caminhar, deslocar-se, ser itinerante... tem sentido, porque significa ir ao encontro do novo e do diferente. “Sair” é também uma experiência constitutiva da natureza humana porque tem um ar transformador. Cada um, ao longo do caminho, experimenta “novos modos” de habitar a existência, de olhar-se, pensar e relacionar-se. A itinerância permite ir mais além de si mesmo para encontrar outras maneiras de viver, para entrar em outras terras prometidas, para aproximar-se de outras pessoas, povos, culturas, onde encontrar o sentido de vida; sobretudo, possibilita ir ao encontro d’Aquele que nos transcende e sempre se revelou Peregrino.
A vida humana, neste sentido, é caminho, com um ponto de partida, uma meta, um trajeto e um horizonte. Caminho, palavra familiar e também humilde que evoca a existência de uma origem e um destino e, entre ambos, de uma aventura: a aventura de nosso caminhar, feita de desafios e extravios, e também de encontros e de momentos inesquecíveis que nos confortam ao longo do percurso.
Todos somos “peregrinos” neste “êxodo de nós mesmos para Deus”, no qual nos “adentramos em terra estranha, despojados dos suportes usuais da existência, desprovidos de todo amparo que não seja o da caridade...” (Tellechea Idógoras).
Quem caminha calcula seu trajeto, suas próprias forças, fadigas, planeja suas paradas. Por outra parte, decide correr o risco de sair de sua zona de conforto, para abrir-se à paisagem de novas relações, ao inesperado e inexplorado, a novos encontros e sensações, a confiar e percorrer a própria existência. O caminho é um processo de mudança pessoal, um lugar pedagógico de cura, de aprendizagens, abertas ao assombro, a um olhar dinamizador, à liberdade de pensamento e de ação. Ele nos move a dilatar o coração e interessar-nos pela situação das demais pessoas, a aproximarmos dos(as) samaritanos(as) que encontramos nas idas e vindas. Porque o caminho é a ocasião, o Kairós, o tempo pedagógico de um movimento que vivifica, deixa pegada e sabor de um outro sentir.
Podemos dizer que na Igreja são imprescindíveis os itinerantes, os peregrinos do Reino de Deus, como o próprio Jesus, que enviou discípulos e discípulas pelos caminhos e povos, sem nenhuma estrutura de apoio a não ser um coração disposto a não querer outra riqueza a não ser o fermento de nova humanidade. Com os itinerantes Jesus iniciou um movimento a serviço do Reino e Ele mesmo foi um itinerante. Não permaneceu numa casa, não se fechou em um lugar, não fundou uma instituição vinculada a um tipo de templo, sinagoga ou santuário, mas foi percorrendo, com um grupo de discípulos(as)/amigos(as), também itinerantes, os povoados e aldeias da Galileia, anunciando e tornando presente o Reino. Jesus os tirou de seus lugares estáveis, de suas simples redes da margem do mar, e os fez itinerantes através de outros e amplos caminhos e mares, para assim encontrar-se com os caminhantes, os perdidos e expulsos, e iniciar com eles a grande Marcha da Vida.
Jesus, o Homem dos Caminhos, chama para uma Vida nova. Chama na vida e para a vida e põe as pessoas em movimento, a caminho. A “pegada” que Ele deixa ao passar é sua própria Vida partilhada. Ele é o inspirador de toda itinerância; com sua peregrinação Ele abre possibilidade de outros caminhos.
Jesus, o homem que se definiu, tem um sonho, um projeto (Reino). E surge diante dos outros com força pessoal capaz de sacudi-los e colocá-los em movimento. Ele “passa” e sua presença os atrai arrancando-os da acomodação. Faz-se do chamado um caminho, quando se partilha a vida com quem chamou. Responder ao chamado feito por Jesus significa tornar esse chamado um caminho de entrega e de serviço.
Jesus nos apresenta uma causa muito nobre e, com seu chamado, rompe nosso estreito mundo e desperta em nós ricas possibilidades, reacende o que de mais nobre há em cada um e amplia nosso horizonte de vida. Para isso é preciso sair dos templos que pretendem fechar e aprisionar o Espírito, para dirigir-nos aos caminhos do mundo, para entrar em sintonia com o Coração e o Manancial da Vida, “em espírito e verdade”, tocando a carne concreta da Humanidade e da Mãe Terra.
“Chamado-resposta” implica, pois, um encontro comprometedor. O modo de ser de Jesus, transparente e livre, ativa nossa vida atrofiada e estreita e nos capacita a olhar amplos horizontes: seu povo, seu mundo dividido e excluído... A ressonância de seu chamado nos predispõe a encontrar motivações saudáveis e maduras que nos permitam peregrinar e viver no contexto atual com amor, entusiasmo e criatividade. Jesus envia seus discípulos com o necessário para caminhar: cajado, sandálias e uma túnica. Não precisam de mais nada para serem testemunhas do essencial. Jesus quer vê-los livres e sem ataduras, sempre disponíveis, sem instalar-se no bem-estar, confiando na força do Evangelho.
“O discípulo-missionário é um des-centrado: o centro é Jesus Cristo que convoca e envia. O discípulo é enviado para as periferias existenciais. A posição do discípulo-missionário não é a de centro, mas de periferias: vive em tensão para as periferias” (Papa Francisco)
Quê significa “fronteiras geográficas e existenciais”? É preciso sair dos limites conhecidos; sair de nossas seguranças para adentrar-nos no terreno do incerto; sair dos espaços onde nos sentimos fortes para arriscar-nos a transitar por lugares onde somos frágeis; sair do inquestionável para enfrentarmos o novo...
É decisivo estar dispostos a abrir espaços em nossa história a novas pessoas e situações, novos encontros, novas experiências... Porque sempre há algo diferente e inesperado que pode nos enriquecer... A vida está cheia de possibilidades e surpresas; inumeráveis caminhos que podemos percorrer; pessoas instigantes que aparecem em nossas vidas; desafios, encontros, aprendizagens, motivos para celebrar, lições que aprenderemos e nos farão um pouco mais lúcidos, mais humanos e mais simples...
A periferia passa a ser terra privilegiada onde nasce o “novo”, por obra do Espírito. Ali aparece o broto original do “nunca visto”, que em sua pequenez de fermento profético torna-se um desafio ao imobilismo petrificado e um questionamento à ordem estabelecida.
Texto bíblico: Mc. 6,7-13
Na oração:
- Nas nossas vidas acontece algo de verdadeiro e belo quando nos dispomos a buscar dentro de nós mesmos a razão da nossa existência.
- No “mapa espiritual” de nosso interior ainda existe uma “terra desconhecida”, que proporciona interesse à vida, suscita curiosidade, nos põe a caminho... Grandes surpresas interiores estão à nossa espera, e a capacidade de continuar procurando é que dá sentido ao esforço e vigor à vida.
- A quê você se sente chamado(a)? A quem se sente enviado(a)?
Pe. Adroaldo Palaoro sj
“E ficaram escandalizados por causa dele” (Mc 6,3)
Marcos não tem relatos da infância de Jesus. Por isso, busca narrar alguns encontros dele com seu povo e sua família. No entanto, para aqueles que melhor O conheciam, Jesus era visto como um homem a mais, um galileu a mais do povo. Seus conterrâneos estavam tão seguros de que Ele era uma “pessoa normal”, que não podiam aceitar Seu modo original de ser. Eram seus companheiros de infância, tinham brincado juntos, trabalhado com Ele, sabiam perfeitamente quem Ele era. “Enquadraram-no” numa família, requisito indispensável, naquela época, para ser alguém. Até esse momento não haviam descoberto n’Ele nada fora do “normal”. Como não esperassem nada extraordinário, de onde Ele tirava tanta sabedoria?
O relato deste domingo é surpreendente. Jesus foi rejeitado precisamente pelos seus parentes e familiares. É a primeira vez que Ele experimenta uma rejeição coletiva, não dos dirigentes religiosos, mas de sua comunidade familiar, com quem convivera tanto tempo. Jesus se sente “desprezado”: os seus não o aceitam como portador da mensagem profética de Deus. Por isso, fecham-se em suas ideias preconcebidas a respeito do seu vizinho Jesus e resistem a abrir-se à novidade revolucionária de sua mensagem e ao mistério que se revela em sua pessoa.
Porque estavam acostumados a ouvir sempre o mesmo, rejeitam-no por ensinar “coisas novas”. Mas Jesus não se deixou domesticar e nem se acomodou às expectativas de seus conterrâneos.
Sua vida desconcertou a todos; seu modo de falar, seus critérios, seu compromisso em favor da vida, sua liberdade de espírito suscitou um espanto em todos. Sua presença despertou perguntas, dúvidas e até discussões. Quem será Ele? Será o Messias? Ou não será? Como explicar sua vida?
Porque, “sendo um entre tantos”, atuava, pensava e vivia um estilo único que o diferenciava de todos?
Sua postura de mestre e sua atuação desencadearam no seu povo uma crise, ou seja, romperam com a “normalidade doentia” das pessoas e se revelou imprevisível e desconcertante.
Na realidade, a reação dos familiares e parentes de Jesus é expressão da mesma reação que surge em todos nós quando, diante de alguém que se revela original, com um novo modo de ser e viver, manifestamos suspeitas, dúvidas, indiferença... O ser humano, em todos os tempos, tende a instalar-se, acomodando-se facilmente ao conhecido e se deixando levar pela rotina que evita sobressaltos; isso lhe confere uma certa sensação de segurança e tranquilidade: “para quê e por quê mudar...?”
E isso ocorre também com suas idéias, crenças, visões...
Habituado a ver a realidade a partir de uma determinada perspectiva, custa-lhe abrir-se a outras percepções, novas ou desconhecidas. Tem medo de ser diferente e reage com indiferença frente àqueles que são diferentes. E a indiferença mata.
Prefere a vulgaridade de ser como todo mundo à originalidade de ser diferente; prefere a monotonia de ser como todos e passar desapercebido na multidão, sem chamar a atenção por ser distinto a todos, sendo ao mesmo tempo, como todos.
Podemos, então, afirmar que o mais anti-evangélico será sempre uma pessoa, um grupo ou uma instituição instalada em suas ideias, posturas normóticas, preconceituosas, intolerantes...
Todos sabemos que isso constitui um mecanismo de defesa através da qual a pessoa busca proteger-se frente àquilo que poderia questioná-la ou trata de desqualificar a alguém diante de quem se sentiria inferi-or. Aqui aparece claro como a desqualificação do outro esconde medo ao diferente ou, simplesmente, ao novo, e algum sentimento oculto de inferioridade.
O filósofo Gabriel Marcel escreveu que “a indiferença é o grau mais baixo da liberdade” e o Pastor negro, Martin Luther king Jr, concordava com isso, ao dizer que se assustava mais com a indiferenças dos bons do que com as atitudes dos maus. De fato, ele tinha razão.
Se, por um lado ela é “a maneira mais polida de desprezar alguém” (Mario Quintana), a indiferença, em relação ao outro, é terreno fértil para alimentar o ego, levando-o à cobiça e à inveja.
Não admira o semelhante a não ser para desconstruir ou destruir a sua imagem.
De fato, a indiferença é como uma praga no jardim, vai se espalhando e contaminando e pode revelar, em sua raiz, uma insegurança estonteante em relação ao outro. Psicologicamente, diríamos que a indiferença é um mecanismo de defesa, é negação. Na negação do outro se escondem sentimentos de auto-destruição e um deles é a inveja. Quem cultiva a indiferença, facilmente sente-se alegre ao saber que o outro está numa pior. Nietzsche afirma que não saber voar é a qualidade dos indiferentes que, cada vez menos, enxergam aqueles voam alto e, se os enxergam, é a partir de uma ótica corrompida pela forma ofuscada de ver a vida. Jesus foi aquele que começou a voar alto e sua comunidade tentou cortar suas asas.
Também para nós hoje continua sendo difícil crer n’Aquele que simplesmente se revela “como um de nós”. Não é fácil reconhecer a passagem de Deus por nossa vida, especialmente quando essa passagem se reveste de “roupagem comum”; às vezes, gostaríamos que Deus se manifestasse de maneiras espetaculares, mas o enviado d’Ele, seu próprio Filho, come em nossas mesas, caminhas nossos passos e veste nossas roupas. Rejeitamos, quase que por instinto, a revelação de um Jesus muito humano e que não esteja de acordo com o que aprendemos desde pequenos. Acostumados a ouvir sempre o mesmo, se alguém diz algo diferente, mesmo que esteja mais de acordo com o Evangelho, rejeitamos de imediato.
Estamos seguros de que “tudo o que não corresponde ao sabido, ao esperado, não pode vir de Deus”. Em outras palavras, temos medo do Jesus humano, porque Ele coloca em questão nossa segurança, nosso estilo de vida e nossa vivência religiosa.
Entrar no caminho do seguimento de Jesus implica estar desapegado de todas as falsas imagens que podemos fazer sobre Ele. Sempre que nos fechamos em ideias fixas sobre Jesus, estamos nos preparando para o escândalo.
O Jesus do Evangelho nunca se apresenta duas vezes com o mesmo rosto. Se O buscarmos de verdade, descobri-Lo-emos sempre diferente e desconcertante. Se esperamos encontrar um “Jesus domesticado”, nos enganamos a nós mesmos, aceitando o ídolo que já nos é familiar. A consequência é uma vida cristã atrofiada e pesada, centrada na doutrina, na lei, na moral, e não no seguimento d’Aquele que, na “normalidade da vida”, deixou trans-parecer o extraordinário Amor do Pai.
Texto bíblico: Mc 6,1-6
Na oração: Marcos não narra este episódio em Nazaré para satisfazer a curiosidade de seus leitores, mas para advertir às comunidades cristãs que Jesus pode ser rejeitado justamente por aqueles que acreditam conhece-Lo melhor: aqueles que se fecham em suas ideias pré-concebidas, sem abrir-se à novidade de sua mensagem e nem ao mistério de sua pessoa.
- Esta era a preocupação de Paulo: “Não apagueis o Espírito, não desprezeis o dom de Profecia, mas examinai tudo e ficai só com o que é bom” (1Tes. 5,19-21). Nós cristãos deste tempo pós-moderno estamos precisando alimentar esta atitude. Estamos vivendo demasiado indiferentes frente à novidade revolucionária da mensagem de Jesus. Com o peso do legalismo, do moralismo, do ritualismo... estamos correndo o risco de apagar seu Espírito e desprezar sua Profecia.
- Rezar sua presença cristã no cotidiano da vida: faz diferença? Presença inspiradora e provocativa? Ou presença acomodada, sem deixar-se interpelar pelo modo original de ser e viver de Jesus?...
Pe. Adroaldo Palaoro sj
“Tu és Pedro, e sobre esta rocha edificarei a minha igreja...” (Mt 16,18)
Há indicações históricas de que já no séc. IV se celebrava uma festa em honra de S. Pedro e S. Paulo. Não é fácil descobrir as razões que levaram aqueles primeiros cristãos a unir em uma mesma celebração litúrgica duas figuras humanas tão diferentes. O mais provável é porque os dois foram martirizados em Roma durante a perseguição de Nero e quase ao mesmo tempo. Pode ser também porque suas sepulturas estivessem juntas durante muito tempo. É também provável que muito cedo se descobriu a complementariedade desses dois homens. De qualquer forma, são um claro exemplo de que personalidades tão diferentes, que inclusive discutiram duramente aspectos importantes da primitiva fé cristã, pudessem ser dois seguidores autênticos de Jesus.
Mas, desde sempre, Pedro e Paulo foram considerados como as colunas da Igreja. No caso de Paulo é tão evidente que alguns estudiosos chegaram a dizer que ele foi o verdadeiro fundador da Igreja, enquanto organização. Pedro é o personagem mais destacado em todo o NT. Mesmo assim, sabemos muito pouco de sua vida. Pelo contrário, Paulo é a pessoa melhor documentada. É o único apóstolo do qual podemos fazer uma biografia quase completa.
O texto do Evangelho da festa de hoje nos ajuda a reler nossa vida. Ali afirma-se nossa identidade: temos um nome, que carrega algo sólido, firme, resistente, que não se desfaz com as adversidades existenciais (crises, fracassos...). A identidade de uma pessoa é dada por aquilo que é consistente, seguro... no seu interior e não pelo nome em si.
“Tu és Pedro e sobre esta rocha edificarei minha Igreja..."
E sobre ela, ao longo dos séculos, se assentou a fé dos cristãos de todos os tempos. Mas a Pedra da qual Cristo fala não é Pedro, pois a pedra da sua presunção, de sua segurança, de seu orgulho se transformou em cacos com suas negações na noite da Paixão. Mais tarde, Pedro, estará em condição de entender que a Pedra é unicamente Jesus. Somente Ele oferece toda a segurança. Pedro nos alenta na fé: confirma os seus irmãos, mas a fé é em Jesus Cristo.
O fundamento da Igreja é Jesus Cristo. Quem é decisivo na Igreja é Ele. O papa, os bispos, a clero tem sua missão e sua importância, mas a pedra angular é o Senhor. Igualmente decisivo é o Reino de Deus, não a Igreja. A Igreja é aquela que trabalha em favor do Reino de Deus, mas o fundamento último é o Reino de Deus. Um Reino de justiça, de amor e de paz.
Mateus, no evangelho deste domingo, nos situa diante de um jogo de palavras entre “petros” (pedregulho, pedra sem estabilidade e que se esfarela) e “petra” (rocha firme, consistente). Simão é, por si mesmo, um “petros”, mas através de sua confissão messiânica, acolhendo a revelação de Deus e confessando Jesus como o Cristo, Filho de Deus vivo, alargou sua interioridade para que o mesmo Jesus ali se fizesse “petra” (Rocha – fundamento). Pedro chega ao grau máximo de identificação com Jesus, que mais tarde Paulo afirmará: “Não sou eu que vivo é Cristo que vive em mim”. Pedro é proclamado bem-aventurado porque na sua fragilidade (petros) Jesus se faz presença solidificada (petra). A Igreja se fundamenta na misericórdia de Deus, não na força dos homens. A Igreja é a comunidade dos pecadores perdoados, não a comunidade dos perfeitos.
A primeira coisa que estes dois personagens, Pedro e Paulo, nos ensinam é que não é nada fácil aceitar a mensagem de Jesus e segui-lo. Precisamente, os dois foram os mais resistentes, cada um à sua maneira, na hora de dar o passo e aceitar o verdadeiro Jesus. Tanto Pedro como Paulo eram pessoas muito religiosas e que se encontravam muito confortáveis dentro do judaísmo. O encontro com Jesus desbaratou essa segurança e os fez entrar na dinâmica de uma autêntica relação com o Mestre galileu. Pedro, com toda espontaneidade, não perde ocasião de manifestar sua oposição àquilo que o Mestre dizia. Paulo foi um fanático na defesa de sua religião. Por defender o judaísmo se converteu em perseguidor de todos aqueles que seguiam a maior heresia surgida dentro do judaísmo: “os seguidores do caminho”.
Mais ainda: pode-se perceber claramente nos evangelhos os obstáculos que eles tiveram de superar para passar do conhecimento de Jesus à vivência de tudo o que Ele pregou. Seria muito interessante descobrir que somente a partir da vivência pessoal alguém pode se lançar à missão de comunicar uma fé. Isto explica como um punhado de pessoas, em pouco tempo, foram capazes de transformar o mundo até então conhecido.
Essa dificuldade que Pedro e Paulo tiveram para seguir Jesus, pode ser de muita ajuda para nós hoje. Pedro, antes da experiência pascal, seguia a um Jesus que se encaixava em seus ideais e interesses de bom judeu. Paulo, antes da queda a caminho de Damasco, servia ao Deus do AT que estava a anos-luz do Deus de Jesus.
Não serve para nada seguir a Jesus sem conhecê-Lo a fundo, identificando-nos com seu modo de ser e viver. Só depois de termos superado os nossos pré-juízos, estaremos preparados para despertar nos outros o desejo de viver o mesmo seguimento. Todos temos de passar pelo doloroso processo de maturação na fé, pelo qual passaram Pedro e Paulo. No caso deles, a dificuldade se agravou porque os dois tiveram que dar o salto de uma religião centrada na Lei a uma experiência interior de seguimento, o que não é em nenhum caso, algo cômodo.
Da aprendizagem de uma doutrina à vivência do seguimento de uma Pessoa, há um grande percurso que todos devemos fazer. Sem essa passagem a fé se converte em pura teoria, que torna estéril nossa vida e nem desperta sedução nos outros. Talvez esteja aqui a causa de muitos fracassos no caminho da evangelização. Estamos mais preocupados em “passar” uma doutrina, uma moral, uma religião... e não deixamos transparecer em nossas vidas que somos seguidores d’Aquele que é Rocha em nosso interior.
Na origem do discipulado e da igreja está sempre presente a consciência de termos sido chamados. A vontade e a decisão de cada um são imprescindíveis, mas são despertadas pela chamado e testemunho de outros, pelo chamado de Jesus e, em último termo, pelo chamado do próprio Deus. Isso é o que significa originariamente o termo “igreja” (ekklesia): “comunidade de chamados”. No chamado de Jesus, Pedro e Paulo reconheceram o chamado de seu próprio interior, o chamado do povo sofredor, o chamado dos tempos difíceis e, em última instância, o chamado do Deus grande e próximo que lhes convidava à identificação com seu Filho e ao compromisso com o Reino.
Texto bíblico: Mt 16,13-19
Na oração: É o Espírito que, guiando-nos pelo caminho da escuta de nosso “eu interior”, nos faz sentir originais, únicos, sagrados...
A oração é a chave interior que abre caminho para chegarmos até o “eu original”, aquele lugar sólido, a rocha sobre a qual construímos nossa vida. Este é o nível da graça, da gratuidade, da abundância, onde mergulhamos no silêncio, à escuta de todo o nosso ser.
Nossa própria interioridade é a rocha consistente e firme, bem talhada e preciosa sobre a qual encontramos segurança para caminhar na vida, superando as dificuldades e as inevitáveis resistências na vivência do Reino.
- Dê nomes aos seus recursos internos, valores e capacidades, sonhos e desejos... que dão solidez à sua vida.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
“João é o seu nome” (Lc. 1,63)
A natividade de João Batista assemelha-se às festas da infância de Jesus. O espírito da festa é tipicamente de Lucas, ou seja, ela é inspirada e sustentada pela manifestação da graça e da bondade de Deus.
O nascimento de João se dá num clima de intensa alegria. Isabel se alegra e com ela os vizinhos. É a alegria de haver nascido um menino de uma mãe que era estéril e de idade avançada. Esta alegria do coração se manifesta no louvor: o Senhor tem favorecido com grande misericórdia. O reconhecimento agradecido dos grandes feitos do Senhor proporciona alegria.
A alegria é um sentimento central na experiência cristã. Nisto consiste a verdadeira alegria: sentir que um grande mistério, o mistério do amor de Deus, nos visita e plenifica nossa existência pessoal e comunitária. Alegria que brota do interior e é um dom do Espírito. “O fruto do Espírito é: amor, alegria” (Gal 5,22). Este dom nos faz sentir como filhos(as) de Deus, capazes de viver e saborear sua bondade e misericórdia.
O nascimento de João Batista é cheio de mistério, porque ali todos descobrem o agir misterioso de Deus. É o mistério da vida. É o mistério de Deus que dá a vida como presente; é o mistério de um ventre seco que se torna fértil; o mistério do novo em um ventre que carrega a “novidade”. Dois anciãos, Isabel e Zacarias: uma grávida, o outro mudo. No entanto, uma vida que cresce. “Os vizinhos e parentes ouviram dizer...” Não tinham percebido até o nascimento? Alguém afirmou que, de vergonha, Isabel se retirou a um sítio vizinho para esconder o mistério de Deus em seu ventre. Pode-se ocultar a gravidez; não se pode ocultar o filho. Para eles, é o filho esperado no silêncio que faz amadurecer a fé. Para os vizinhos e parentes, o filho da surpresa. E todos o veem “como o Senhor tinha sido misericordioso para com Isabel, e alegraram-se com ela”. E todos se perguntavam: “O que virá a ser este menino?”
A natividade de João é uma visibilização do mistério da misericórdia de Deus; é o mistério da missão que Deus tinha para ele. Não seria sacerdote como seu pai; seria um mensageiro que prepara caminhos.
João Batista é a primeira ruptura com o passado. Já não se chamará Zacarias, porque não será como seu pai. Chamar-se-á João porque anunciará o novo que está ali mesmo, a seu lado, no ventre virginal de Maria.
Não será o “homem do templo e do culto”, mas o “homem do deserto e do anúncio”.
Não será o “homem que recorda o passado”; será o “homem que anuncia a proximidade do novo”.
Não será o “homem que anuncia a esperança”; será o “homem que anuncia que a esperança já é realidade”.
Não será o “homem da lei”; será o “homem que abre caminhos onde tudo parece estar bloqueado.
Por isso, o tema central do Evangelho deste domingo é este: “João é seu nome”. Esta frase é uma mensagem da gratuidade e bondade de Deus. João é um nome muito especial. Nele são guardadas muitas e importantes lembranças. De fato, o nome “Yohanan” significa “Deus se mostrou misericordioso”.
João é um dom gratuito de Deus, pois está além dos cálculos humanos; pertence plenamente a Deus. Nem sempre Deus elege o tradicional, o velho costume, o caminho trilhado. Agora nasce um tempo novo: o Espírito vai por caminhos novos, que nem sempre são fáceis de conhecer. É Deus quem toma a iniciativa e chama pelo nome. O “nome” encerra toda a verdade da pessoa e, ao mesmo tempo, todo o mistério da sua relação direta com Deus.
Na Bíblia, o nome é algo dinâmico, é um programa de vida. A troca de nome implica uma missão que deve ser realizada pela pessoa (Gen, 17,5; Jo. 1,42). Um nome novo: uma aventura que começa; uma história a ser construída. O nome é ponto de partida e de chegada na relação com Deus.
Todo nascimento é um mistério. Por isso, cada um de nós é fruto do mistério da misericórdia de Deus. E todos somos o mistério do anúncio do novo. Não somos repetição de ninguém. Somos únicos. E somos preparadores dos caminhos de Deus. Nosso nome, escrito na palma da mão de Deus, é uma missão a realizar.
É preciso crescer na consciência de que o próprio nome tem uma história e manifesta uma identidade única, irrepetível, original. O nome próprio está relacionado com nossa realidade pessoal, responsável, criativa e livre. Essa identidade vai sendo elaborada ao longo de nossa história pessoal, com os avanços e recuos, vitórias e fracassos, as alegrias e os sofrimentos... que vão pontilhando nossa existência e formando esse ser único que somos nós.
Na linguagem bíblica, “nome” significa aquilo que torna a pessoa única. O nome é um símbolo que exprime a individualidade de cada um. No nome está toda a pessoa. O nome é a pessoa. Interessar-se por conhecer o nome é interessar-se pela pessoa; é o primeiro passo para o encontro pessoal; é pelo nome que nos identificamos.
Os orientais, por exemplo, não dizem o seu nome a qualquer um. Só aos amigos, aos seus mais íntimos.
Conhecer o nome de alguém, para eles, é conhecer a pessoa toda. Fazer saber o seu nome é prova de amizade. Interessar-se por conhecer o nome é interessar-se pela pessoa.
O nome é referência reveladora da verdade da pessoa. É a porta de entrada de cada história particular.
Deus sabe o nosso nome: “Eu te gravei na palma de minha mão” (Is. 49,16). Deus nunca pode olhar Sua mão sem ver o nosso nome. E o nosso nome quer dizer: “EU mesmo”. Deus garante a nossa identidade: podemos ser nós mesmos. Ter recebido um nome de Deus significa tomar um lugar na história, uma missão a cumprir. Nosso nome secreto Deus o conhece.
Cada um de nós tem um nome, que é próprio, não comum. É de uma pessoa. Ele expressa o nosso ser, indica uma missão a realizar, uma vocação a viver, um apelo a responder.. Somos seres chamados. É isso que significa ter um nome.
Nós realizaremos nossa vocação, sendo nós mesmos, com nosso modo de ser, nossas possibilidades, nossa originalidade. Ninguém realiza-la-á por nós. Ser fiel ao nome é ser fiel à própria vocação. A dinâmica da relação com Deus passa através da nossa história, das nossas alegrias, dos nossos sofri-mentos, e das nossas perguntas: “Quem sou eu?”, “O que quereis de mim?”.
Não posso permanecer indiferente. É preciso ter coragem de perguntar: “Quem me chama?” e “a quê me chama?”; pedir ajuda para conseguir entender, reconhecer, descobrir o próprio nome. Deus, no momento em que me chama pelo nome, me revela a mim mesmo. Assim, meu nome se torna a minha própria vida, o meu patrimônio existencial, a minha realidade.
Texto bíblico: Lc. 1,57-66
- Tome consciência de que também você tem um no-me, é pessoa única e com características muito parti-culares. Você tem uma dignidade imensa: é imagem e semelhança de Deus.
- Para realizar o seu nome, você deve ser você mesmo. Você tem a sua própria vida, o seu modo próprio e original de ser.
- Ser “João” é ser graça amorosa de Deus na vida e na história de tantas pessoas.
- Rezar o sentido do seu nome.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
“O Reino de Deus é como quando alguém espalha a semente na terra;
... e a semente vai germinando e crescendo, mas ele não sabe como isso acontece” (Mc 4,26-27)
Todas as religiões e culturas se servem de relatos para revelar a verdade e fazer chegar até nós a sabedoria de nossos antepassados. A revelação mais antiga e universal é que a Terra e todas as suas criaturas, assim como o ar, o solo, a pedra e a água são sagrados, e que esta verdade deve refletir-se em nossas vidas.
Como cristãos, seguir Jesus Cristo hoje é adquirir conhecimento e experiência consciente desta história oculta e sagrada. Com efeito, a Terra acolheu Jesus como acolhe toda pessoa que vem a este mundo.
É a casa verdadeira, a mais básica. Jesus sentiu a companhia desta Terra que é irmã e mãe.
Os Evangelhos destacam de muitas maneiras a boa relação que Ele teve com a Terra. Desfrutou dos caminhos andados, dos campos semeados, do vento que se assemelha ao Espírito, das árvores que servirão como parábolas do Reino, das vinhas que serão símbolo de sua oferta em novidade...
Jesus experimentou a dureza da Terra, sua aspereza no deserto e o calor de seu abrigo à hora da morte; pisou o chão de terra batida, machucada, rasgada... Teve uma mentalidade inclusiva porque, no fundo, entendeu que tudo estava relacionado e que as coisas e as pessoas espreitam o mesmo horizonte.
O ritmo da natureza inspirou Jesus para anunciar que o Reino também tem seu ritmo e seu momento. Não o acelera a impaciência de uns nem o paralisa o fracasso de outros. Não somos nós que levamos o Reino em nossas mãos, mas é nossa missão ajudar a desvelá-lo (tirar o véu) na vida humana como o dinamismo mais profundo da existência. O Reino alcança a todos, ninguém fica excluído; ele não está fechado dentro dos limites de uma igreja ou das religiões.
Ninguém tem a exclusividade do Reino, e por isso mesmo devemos viver constantemente despertos para descobri-lo e acolhê-lo ali onde se faz presente, seja onde for.
Precisamos cultivar processos. O Reino tem seu tempo, o tempo de Deus, que não coincide necessária-mente com os nossos tempos, projetos e ansiedades. Saber distender-se nos processos, não querer acelerá-los pela ansiedade que nos chega de uma cultura estressante, nem nos paralisar diante de um ambiente de desencanto, é uma grande sabedoria. Atravessamos momentos favoráveis e luminosos como o dia, e momentos desfavoráveis como a noite, com sua obscuridade e seu desconcerto. Não podemos nos apoderar dos momentos luminosos, nem nos perder nas trevas obscuras e ameaçantes: “o agricultor vai dormir e acorda, noite e dia, e a semente vai germinando e crescendo...”
Por isso, a melhor imagem que Jesus encontrou para expressar essa “presença misteriosa” do Reino é a da semente. Na semente acha-se presente uma grande força de crescimento. A força da vida, contida na semente, envelhecerá e se apodrecerá se não houver quem confie nela, se não houver quem arrisque sua terra, seu tempo e seu trabalho. Quando a semente é enterrada na terra, ela já conhece o seu caminho; escondida ali, debaixo da terra, envolvida pelo absoluto silêncio, a semente germina e vai crescendo.
Mesmo à margem de todo e qualquer esforço que possa ser feito pelo agricultor, “a terra por si mesma produz fruto”, ultrapassando etapas precisas e bem definidas, que de modo algum podem ser modifica-das, apressadas ou suprimidas. O importante é dar frutos no seu devido tempo.
“As sementes armazenam possibilidades misteriosas e surpreendentes aos nossos olhos. Cada semente é uma fonte, um desfecho, uma pausa da eternidade. Ser semente é possuir todas as idades, todos os percursos, todas as histórias. É preciso prezar a coragem das sementes. Apodrecer para inaugurar o fruto. Cada semente, como poesia, é um bilhete para viagens” (Campos Queiroz).
“O Reino é verde”: as parábolas do Reino nos animam a “descer” junto à natureza com um sentimento e uma visão de parentesco; todos procedemos das mesmas entranhas amorosas do Criador. As parábolas nos ajudam a desenvolver uma relação de proximidade e um conhecimento espiritual da vida, para aproximarmos da terra com espírito de gratidão, frente a uma visão de domínio e exploração; elas também nos animam a despertar em nós um espírito de solidariedade para compartilhar os bens da terra com os pobres e os marginalizados. Este equilíbrio conserva a comunidade de vida para o futuro e promove uma esperança cósmica.
A relação com a terra, pegá-la entre as mãos, espremê-la, semear e plantar, regar e ver crescer, é um exercício espiritual para o ser humano; conhecer a terra e o entorno é conhecer o que torna possível a vida. A vida depende de uma fina camada de 15 cm ao redor da terra: por que maltratá-la, desconhecê-la, ignorá-la, desprezá-la? Dizem os cientistas que em um punhado de terra há mais biodiversidade que toda aquela que até o momento conhecemos no resto do Universo. E este milagre não nos diz nada?
Sabemos que o “novo” sempre nasce pequeno, frágil, oculto e a partir de baixo. As sementes, muito pequenas, são colocadas na terra e desaparecem. No entanto, contém uma vitalidade oculta que as leva a germinar. O fundamental não é seu tamanho senão a enorme força transformadora que contém e sua grande fecundidade.
Submergidas na terra, as sementes vivem um lento processo até poderem liberar uma vida nova e abun-dante. Mas para que isto aconteça sofrem uma certa morte: para gerar vida, entregam sua vida.
Não esqueçamos que somos terra e em terra nos converteremos.
Somos terra de Deus, alimentada pela seiva de seu Espírito. Sobre esta terra, Deus plantou a semente de seu Reino para que germine, cresça e dê frutos. O que essa semente carrega em seu interior é um novo modo de viver e conviver, em sintonia com todas as expressões de vida.
Como as sementes na terra, somos movidos a atuar a partir de dentro, transformando a realidade e mobilizando os meios mais simples, mas com criatividade e audácia.
Viver a experiência do Reino significa, portanto, “mergulhar os pés na terra” (Lev. 25,1-24). É na obscu-ridade da terra que a planta vai buscar a força que a manterá viva, que lhe dará condição de expandir sua copa em direção à imensidão do céu. As raízes mergulham na terra de modo profundo, silencioso e lento.
Na experiência espiritual nos é pedido que mergulhemos no “chão da vida”, como as raízes na obscuri-dade, na presença do silêncio. O movimento de enterrar profundamente as raízes possibilita alcançar a seiva, o pulsar da vida e o equilíbrio.
Sentir que somos Terra faz-nos ter os pés no chão da vida e viver em comunhão com a comunidade das criaturas. Faz-se necessário lançar raízes no mais profundo do humano e despertar todas as energias criativas, todas as grandes motivações adormecidas, toda bondade aí presente, toda decisão de assumir-se como cooperador e artífice de um novo tempo.
Sentir-se Terra é perceber-se dentro de uma complexa comunidade de seres vivos. É a diversidade incontável de seres vivos, animais, pássaros e peixes, nossos companheiros dentro da unidade sagrada da vida. A Terra produz, para todos, condições de subsistência, de evolução e de alimentação, no solo, no subsolo e no ar. Terra, nossa “casa comum”!
Sentir-se Terra é mergulhar na comunidade terrenal, todos filhos e filhas da grande e gene-rosa Mãe. A hora é de somar em prol da vida e no cuidado de todos os seres da Terra.
É para Deus que tudo converge. É Ele que tudo sustenta. É Ele que, no Amor, tudo atrai.
Texto bíblico: Mc 4,26-34
Na oração: Mobilize seus sentidos para ver, ouvir, tocar, sentir e saborear a beleza de nossa terra.
Considere sua conexão com esta beleza e como ela lhe faz perceber o amor da Trindade ao cosmos em constante evolução.
Considere o novo sentimento de maravilha que cresce em seu coração e como dá novo sentido à sua missão de ser colaborador(a) no grande jardim do Criador.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
“Os mestres da lei, que tinham vindo de Jerusalém, diziam que Ele estava possuído por Belzebu…”
Desconcertante: exatamente assim foi Jesus; e sabemos disso através dos evangelhos. Jesus foi um homem que viveu e falou de tal maneira que se revelou desconcertante para aqueles que o conheceram e se aproximaram dele. Jesus desconcertou sua família que o considerava louco; desconcertou àqueles que o acusavam de “blasfemo”, de “Belzebu”, de “escandaloso”. Jesus desconcertou todo mundo, até o final de sua vida, que foi o mais desconcertante de tudo. Desconcertou porque assumiu uma postura diferente frente ao contexto social, religioso e político no qual viveu. Jesus não se “encaixou” em nenhum grupo e deixou transparecer sua liberdade frente às leis, às tradições de seu povo, ao templo, aos poderes... Por isso foi incompreendido e rejeitado.
Numa sociedade corrupta e deformada, uma pessoa que se ajusta ao modo de proceder e de pensar dos intolerantes e preconceituosos, não desconcerta ninguém; é uma pessoa “formatada” que passa pela vida sem deixar “marcas”, sem saber “por quê e para quê vive”, deixando tudo como está.
Jesus viveu deslocamentos contínuos; fez-se presente em diversos lugares; teve contatos com outras culturas, raças, expressões religiosas… Tudo isso o enriqueceu, tornando-o diferente, aberto; sua vida se ampliou, sua mente se abriu, seu coração se expandiu… Nova visão, nova experiência… Seu movimento de vida foi desencadeado nas casas, ao longo dos seus percursos; Jesus desejou que também sua casa entrasse nesse movimento em favor da vida. Mas não foi acolhido pelos seus parentes, pois não se “encaixou” mais nos esquemas da família, da religião, da sua comunidade… Seus parentes em Nazaré continuaram vivendo uma estreiteza de vida; Jesus não voltou mais o mesmo, saiu da “normalidade” de vida própria de Nazaré. Voltou enriquecido, expansivo, muito maior, mas não foi compreendido.
O deslocamento de Jesus pelos territórios vizinhos da Galileia revela-se como um apelo e uma ocasião privilegiada para pôr em questão nosso confinamento religioso, nossas posturas fechadas, nossas visões preconceituosas... e abrir-nos à diversidade e ao diferente. Sem alteridade regenerante caímos no confinamento de uma pureza de ortodoxia, de um fascismo enrustido, de um legalismo estéril, de uma doutrina impositiva. Confinamento que nos torna cegos aos valores e riquezas que vem de outras expressões humanas, sociais e religiosas.
Vivemos contínuos deslocamentos geográficos, sociais, culturais, religiosos… Tudo isso nos enriquece. Com esta riqueza voltamos às nossas Nazarés, para ampliá-las, expandi-las. Não se trata de impor, mas de propor; compartilhar as ricas experiências adquiridas. Não é fácil ser diferente dos outros; não é fácil assumir uma vida alternativa frente àqueles que estão petrificados em suas posturas e ideias; não é fácil dizer “não” onde todos, como cordeiros, dizem “sim”; não é fácil fazer o que ninguém quer fazer.
Toda autêntica vida humana é vida com os outros, é convivência, é encontro... Assim, o princípio de alteridade está fundado no princípio de identidade; a diversidade reforça a identidade pessoal: podemos nos compreender apesar de sermos diferentes, porque todos somos seres criados e agraciados por Deus, chamados a ser habitados por uma verdade que está para além de uma religião e uma cultura específica.
Somos humanos, seres em caminho, buscadores de sentido, buscadores da verdade e habitados pelo mesmo Deus. E viver a “cultura do encontro” (Papa Francisco) implica respeitar e se alegrar com a diversidade, considerando-a riqueza. Saber conviver com as diferenças é sinal de maturidade. É maravilhoso que haja raças, costumes, cultura, gênero, religiões, tradições, línguas, formas de pensar... diferentes. Assim, ser seguidores(as) de Jesus nos converte em seres abertos, acolhedores da diferença.
As diferenças mobilizam a energia e a fertilidade criadora; elas provocam intercâmbio entre as pessoas. A diversidade é uma forma de aproximação entre os seres humanos. A diferença do “outro” deve ser motivo para o encontro e para o enriquecimento mútuo. A diferença é rebelde, quebra o uniformismo, convulsiona a quietude, sacode a rotina. É a diferença que gera alteridade. O outro é diversificado e não repetitivo. Massificar as pessoas é uma forma de silenciá-las e dominá-las. Perverter a diferença é uma atitude que degrada a pessoa. Diferença é originalidade, é o inédito, é o que excede a medida comum, é o que distingue uma personalidade de outra. A humanidade é profundamente diversificada em seus talentos, valores originais e em sua vitalidade; seu tesouro está precisamente em sua diversidade criadora.
Daí a importância e a urgência de aprender a valorizar o que é próprio e também o que é diferente, esforçando-se para não transformar as diferenças normais (geográficas, culturais, de raça, de gênero...) em desigualdades. É preciso educar e preservar as diferenças humanas.
Deveríamos pensar mais sobre a importância das diferenças que nos humanizam. Deveríamos admirar as diferenças pessoais e grupais, e não lamentá-las. É necessário evitar tudo o que reprime as diferenças e desenvolver a verdadeira coexistência pessoal, social, científica, religiosa, ética. Deveríamos remover abusos e vícios que anulam a diferenças. Perverter a diferença é uma atitude que degrada a pessoa. Valorizar a diferença e os diferentes implica tratar com cortesia, saber interagir, trabalhar juntos, respeitar...
Segundo o modo de ser e proceder de Jesus, o que mais nos desumaniza é viver com um “coração fechado” e endurecido, um “coração de pedra”, incapaz de amar e de abrir-se ao novo. Quem vive “fechado em si mesmo”, não pode acolher o Espírito de Deus, não pode deixar-se guiar pelo Espírito de Jesus, pois acredita que quem é diferente “está possuído por um espírito mau” (3,30).
Quando nosso coração está “fechado”, em nossa vida não há mais compaixão e passamos a viver indiferentes à violência e à injustiça que destroem as relações entre as pessoas. Passamos a viver separados da vida, desconectados. Uma fronteira invisível nos separa do Espírito de Deus que tudo dinamiza e inspira; é impossível sentir a vida como Jesus sentia. Quem assume atitudes de indiferença tem medo do diferente, e a vida vai se atrofiando...
Num coração petrificado o Espírito não tem liberdade de atuar; dessa resistência à ação do Espírito brotam as doentias divisões internas. São os dinamismos “diabólicos” (aquilo que divide) que se instalam em nosso interior, atrofiam nossas forças criativas e nos distanciam da comunhão com tudo e com todos.
Não podemos permanecer trancados em redutos que rejeitam as diferenças existenciais. Daí a importância de aprender a ver o melhor de cada pessoa e de cada povo, superando as visões estreitas e fundamentalistas e todo tipo de racismo, xenofobia, desprezo, mixofobia, preconceito, dominação...
A “Ruah de Deus” nos move a construir uma Comunidade fraterna, capaz de abrir suas portas e derrubar seus muros, para que ninguém se sinta excluído. É missão específica da Ruah integrar as diferenças numa grande comunhão universal. Não podemos matar a presença e a ação original do Espírito.
Texto bíblico: Mc 3,20-35
Na oração: “E olhando para os que estavam sentados ao seu redor…” Estar em círculo supõe uma postura de acolhida e comunhão com os outros, respeitando sua diversidade. Tal atitude quebra toda pretensão de imposição, de poder, de violência... Isso só é possível quando Jesus se faz o centro.
Trata-se de uma imagem espacial do discipulado que pode nos ajudar a entender melhor nossas posturas vitais, tanto no nível pessoal como no comunitário ou na missão.
- “Estar em círculo” também quer dizer que estamos vinculados a outros numa postura corporal que tem Jesus como centro. A imagem do círculo é a que melhor expressa o modo de seguir Jesus e não a “hierarquia” que dá margem ao carreirismo e à busca de poder.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
“...os fariseus, com os herodianos, tramaram, contra Jesus, a maneira como haveriam de matá-lo”
No Evangelho deste domingo (9º dom TC), Jesus desmascara uma patologia do espírito, uma enfermidade da alma, uma espécie de tumor social: trata-se da intransigência, que se expressa nas atitudes de preconceito, intolerância, fanatismo, racismo, indiferença, legalismo, moralismo..., matando na raiz toda possibilidade de encontros humanizadores, sobretudo com os “diferentes”.
O intransigente, precisamente porque é vazio de humanismo, deixa transparecer uma visão hermética e fechada da realidade. Esta visão atrofiada, a partir do lugar e da posição social ou religiosa que ocupam, os leva a um enfrentamento com outros por razões ideológicas, políticas ou religiosas, em lugar de compreender a perspectiva do outro e as verdades latentes que há em todo ser humano.
O roteiro que rege todo intransigente é sumamente simples: consciente ou inconscientemente, divide a humanidade em dois grupos que considera radicalmente opostos. De uma parte, estamos “nós”, que nos encontramos na verdade e somos merecedores de atenção e cuidado, de respeito e inclusive admiração; de outra, se encontram “os outros”, aqueles que estão forçosamente equivocados porque pertencem a um grupo que pensa, sente, age... de maneira diferente. Só resta eliminá-los, ou afastá-los da presença para que não “contaminem” o ambiente com ideias e atitudes subversivas. Em outras palavras, o que transparece é isto: “nós” temos a verdade, “eles” estão no erro.
Sofrendo de uma falta total de compaixão ou empatia, o intransigente pode ser profundamente cruel para com os outros; com a lei na mão e no coração, ele alimenta um tribunal interior que julga, emite pareceres, condena..., acreditando ser fiel a Deus. Os obsessivos e os intransigentes sempre criam problemas; e os intransigentes religiosos mais ainda, porque fundamentam sua intransigência em Deus.
A intransigência edifica uma barreira instransponível entre o “nós” e os “outros”. Ao negar sua condição criatural de com-viver junto aos diferentes, seus semelhantes, o intransigente torna-se uma ilha sem vida e triste. Sua intransigência é sintoma de desumanização. E essa desumanização afeta e é prejudicial a todos. Todo mundo perde. Aos poucos, as pessoas se recolhem em seus medos, em suas inseguranças e começam a acreditar que os diferentes são seus inimigos. Da intransigência passa aos sentimentos hostis, aos discursos fascistas, às práticas fundamentalistas, à segregação...
O princípio da diversidade nos diz que no outro há verdade e que esta verdade deve ser reconhecida e entendida. Considerado sob o enfoque do ouvir sem preconceitos, do conhecer a diferença e do amar a verdade presente no outro, a “diversidade reconciliadora” supõe o diálogo fundado no amor.
Para que haja amor é preciso que haja diferenciação. No amor respeitamos a diferença do outro, amamos a diferença do outro. Diferenciar não é separar; a unidade não é a uniformidade. A diferença não dispersa nem divide, mas provoca convergência crítica e favorece a unificação na diversidade. Ao tornarem absoluta uma verdade, os intransigentes se condenam à intolerância e passam a não reconhecer e a respeitar a verdade e o bem presentes no outro. Não suportam a coexistência das diferenças, a pluralidade de opiniões e posições, crenças e ideias. Daí surgem o conservadorismo radical, o medo à mudança, a violência diante da crítica, a suspeita, a vigilância, o controle autoritário...
A intolerância é uma expressão de atrofia espiritual que tem graves consequências na vida social e no desenvolvimento dos povos. É a incapacidade de aceitar os outros em razão de suas ideias, convicções ou crenças. É uma grave debilidade que torna impossível a coesão e a correta interação entre pessoas e grupos humanos. No fundo, tudo isso é expressão de um avassalador vazio existencial. A vida fanática e intolerante é uma vida sem sentido, carente de interesse e de originalidade,
Em um mundo polarizado por fanatismos de caráter muito diverso, tensionado por forças irracionais, tanto de origem religiosa como política, a educação do “sentido espiritual” da vida constitui uma urgência, frente a uma insistência mecânica de padrões de conduta e de modelos impostos pelos grandes meios de comunicação de massa. A vida espiritual é abertura, receptividade e movimento. As grandes figuras da história espiritual nunca sucumbiram ao fanatismo e à intransigência. Foram benevolentes, compassivos e receptivos. Praticaram o diálogo com todos, sem discriminação alguma.
Há demasiadas divisões entre nós; há demasiadas condenações e violências (verbal e física); há demasiadas exclusões e marginalizações. E tudo simplesmente “porque não é dos nossos”, “porque não pensa como nós”... Podemos pensar diferente, mas nem por isso temos de nos excluir; não somos donos da verdade; também os outros pensam e tem uma percepção diferente da realidade.. Podemos ter critérios diferentes, mas nem por isso temos que criar muros que nos separam. O diferente não deve excluir ninguém; o diferente pode ser uma fonte de enriquecimento mútuo.
O evangelho deste domingo (9º dom TC) nos revela que o intransigente nunca se põe no lugar do outro; só ele tem razão. Isso porque ele pensa a partir da lei, mas não pensa a partir da situação e das necessidades dos outros. E com isso ele faz um triste favor a Deus, porque dá a impressão de que Deus prefere suas leis ou suas interpretações e não as carências dos outros.
O intransigente se converte em centro de sua fidelidade à lei; mas prescinde do ser humano. Ao intransigente não lhe importa que o outro tenha fome no sábado, como tampouco lhe importa que esteja enfermo. O importante é o sábado e não a pessoa.
Mas Jesus pensa e age de outra maneira; primeiro é o ser humano e depois a lei; esta deve estar a serviço do ser humano. Por isso, a presença de Jesus na sinagoga revela-se como um apelo e uma ocasião privilegiada para pôr em questão nosso confinamento religioso, nossas posturas fechadas, nossas visões sociais estreitas e preconceituosas... e abrir-nos à diversidade e ao diferente. Sem alteridade regenerante caímos no confinamento de uma pureza de ortodoxia, de uma ideologia segregadora, de um legalismo estéril, de uma doutrina impositiva. Confinamento que nos torna cegos aos valores e riquezas que vem de outras expressões humanas e religiosas. O modo de proceder de Jesus nos instiga a acolher a diversidade como expressão da inesgotável criatividade divina.
A diferença promove a unidade lúcida e criativa; por isso é valor a ser preservado e a ser desenvolvido, é potencial a ser ativado. “O Espírito Santo cria a diversidade na Igreja. A diversidade é bela, mas o mesmo Espírito Santo faz também a unidade, para que a Igreja esteja unida na diversidade; para usar uma expressão bela: uma diversidade reconciliadora” (papa Francisco).
Texto bíblico: Mc 2,23-3,6
Na oração: a intransigência impede a pessoa de viver, de se abrir ao mundo, de ser espontânea e de viver mais intensamente;
- a impiedade da intolerância frente ao “diferente” e o descalabro dos racismos envenenam corações e fomentam as dinâmicas excludentes que envergonham a humanidade e não podem ser aceitas, pacificamente, pelos(as) seguidores(as) de Jesus;
- o racismo é sutil; está presente lá no fundo; é uma grande praga que exige grande esforço para dela se livrar; vira sentimento que se justifica e dá forma a modos de falar, define posturas e cria as distâncias, rompendo a comunhão.
- Como você se posiciona diante das diferenças religiosas, políticas, raciais, de gênero, de cultura...?
Pe. Adroaldo Palaoro sj
“Jesus tomou o pão e, tendo pronunciado a benção, partiu-o e entregou-lhes, dizendo: ‘Tomai, isto é o meu corpo” (Mc 14,22)
Na celebração da festa de Corpus Christi, corremos o risco de honrar o Corpo de Jesus, mas desprezar o corpo humano, “ a carne de Cristo”. Participamos, com muita fé, dedicação e respeito, das celebrações do “Corpo de Cristo”, mas pode ser que, às vezes, façamos uma profunda cisão ou ruptura entre o que celebramos e a realidade que nos cerca, ou seja, o encontro com os “corpos desfigurados”: explorados, manipulados, usados, escravizados, destruídos... Pode ser que tenhamos um profundo amor e respeito pelo “Corpo de Cristo vivo e presente na Eucaristia”, e não O vejamos nos “corpos” que estão aqui, ali, lá, por todos os lados. “Não nos devemos envergonhar, não devemos ter medo, não devemos sentir repugnância de tocar a carne de Cristo” (Papa Francisco)
É esse o sentido que a festa de “Corpus Christi” nos revela, ou seja, a festa do Corpo Histórico e Humano de Jesus, corpo prazeroso e sofredor, amado por muitos e muitas, rejeitado, crucificado, morto e ressuscitado. Esta é também a festa do grande Corpo de Cristo que é a Humanidade inteira. Corpo real de Cristo são especialmente todos os que sofrem com Ele no mundo, os enfermos e famintos, os rejeitados e encarcerados, os pobres e excluídos... Eles são a humanidade ferida no Corpo do Filho de Deus.
Corpo de Cristo é também o universo inteiro, criado por Deus para que nele se encarnasse e habitasse seu Filho. Assim Jesus, na Ceia, ao tomar o pão e o vinho em suas mãos, abraça os bilhões de anos de evolução e chama-os de seu Corpo e de seu Sangue. Cada cristão, ao fazer “memória” do Corpo de Jesus, entra em comunhão com todas as energias da Criação. Corpo de Cristo que continua sendo o Pão, fruto da terra e do trabalho dos homens e mulheres, todo pão que alimenta e é compartilhado, em fraternidade, a serviço dos que tem fome.
“Corpus Christi” também nos motiva a perguntar: Como viveu Jesus, em sua corporalidade, a relação com o Pai, com os outros e com a natureza? E como nós somos convidados a viver nossa corporalidade? Jesus não compactuou com a visão dualista do ser humano (corpo e alma). Para Ele, tudo era sacramento, epifania de Deus, revelação do Reino, história de salvação... Jesus escandalizou a muitos proclamando que o “puro” ou “impuro”, não está fora, em ritos e prescrições. Não são impuros os enfermos, as mulheres menstruadas, os leprosos, as prostitutas...; a “pureza” está no coração que nos permite um olhar límpido, não possessivo, egoísta, invejoso ou violento...
Jesus levou muito a sério a questão do corpo, o seu e o das pessoas que encontrou ao longo de sua vida. Cuidou do seu descanso e o daqueles que com Ele compartilhavam o mesmo caminho; deixou-se acariciar e ungir sua cabeça e seus pés com perfumes valiosíssimos por algumas mulheres, algumas delas malvistas pelos rótulos preconceituosos que os varões lhe impunham, agradecendo esse gesto fruto de um amor sem cálculos; curou corpos atrofiados pela doença e fragilizados pela exploração... Os Evangelhos nos situam Jesus no nível da corporalidade próxima: é Ele que sabe olhar, tocar, sustentar, acariciar...
Se fixarmos nossa atenção em Jesus na última Ceia, descobriremos que suas palavras (“isto é o meu corpo”) e seus gestos (partir e repartir o pão) constituem a essência afetiva e social (de amor e justiça) do cristianismo, a verdade central do Evangelho.
Eucaristia é “Corpo” e é corpo doado e partilhado, não pura intimidade de pensamento, nem desejo separado da vida. A Eucaristia é Corpo feito de amor expansivo e oblativo, que se expressa no trabalho da terra, na comunhão do pão e do vinho, no respeito mútuo frente o valor sagrado da vida, no meio do mundo, nas casas de todos... Não são necessários grandes templos e nem suntuosas procissões para celebrar a festo do Corpo de Deus; basta a vida que se faz doação e partilha, no amor, como Jesus fez.
Diante do Corpo de Cristo, nosso corpo se plenifica na comunhão com outros corpos, com Deus e com o corpo da natureza. Nosso humilde corpo é parte da Criação inteira e nosso bem-estar faz sorrir a natureza. Aqui precisamos encontrar a justa proximidade para nos relacionar com o corpo e estabelecer um vínculo sadio com ele. Afinal, nossas maneiras de nos relacionar estão configuradas por ele. Não há experiência de amor, e por isso não há experiência de Deus e dos outros, que não ocorra em nosso corpo. O nosso corpo nos pede espaço, tempo, atenção, alimento e, sobretudo, nos pede descanso e bem-estar, inspiração e contemplação... O corpo não é só a unidade de nossos membros, mas a presença de nossa pessoa; por ele estamos e somos.
O corpo é o companheiro inseparável de nosso caminho. É preciso senti-lo, percebê-lo, escutá-lo. Mas é preciso ir mais longe: podemos afirmar que o corpo se transforma em caixa de ressonância da “voz de Deus” que nos previne contra caminhos equivocados e nos orienta para uma vida natural e plena. O corpo é “lugar” teológico, lugar da manifestação de Deus; neste sentido é morada do divino, habitação do Espírito, enquanto participa, pensa, sente, deseja, decide...
Quem não escuta nem percebe seu corpo não pode compreender o sentido da vida, do amor, das relações... pois cairá no narcisismo de seu próprio ego. Não é possível viver feliz sem relações amistosas e próximas com o corpo, para poder entendê-lo e expressar-se adequadamente com ele. Para conhecer-se é necessário acolher o corpo, querer o corpo, observar o corpo, olhar para dentro do próprio corpo, com atitude reverente.
Minha própria casa é meu corpo; o templo onde Deus se revela a mim. Só eu posso habitar e possuir meu corpo. Eu me identifico com meu corpo, sem o qual não posso viver. Deus, com seu Espírito, anima meu corpo; mas não pode habitar em mim a graça de Deus sem a colaboração e a abertura de meu corpo.
Nosso corpo constitui nossa presença no mundo; a acolhida do próprio corpo nos projeta para uma relação sadia com o corpo do outro; é o cuidado do corpo do outro que determina nossa relação com Deus (Mt. 25,31-46). O corpo do ferido, do faminto, do preso... tornam-se “territórios sagrados” onde crescemos e nos humanizamos; são os “lugares” nos quais Deus revela seu rosto compassivo.
O corpo é um documento histórico: há corpo burguês e corpo proletário, corpo de cidade e corpo de roça; há corpos explorados e corpos que são só força de trabalho; corpos que são modelos anatômicos; os “corpos empobrecidos” gritam a Deus por justiça, por alimento, por saúde e por novas relações entre os humanos e o cosmos, gritam a Deus por viver.
O corpo desrespeitado, expropriado e dominado de muitas pessoas, clama a liberdade, a paz, a vida. O corpo é lugar de êxtase e de opressão, de amor e de ódio, lugar do Reino, lugar de ressurreição. O corpo é espaço de salvação, de justiça, de solidariedade, de acolhida, é lugar da experiência de Deus, da celebração, da festa, da entrega... Celebrar “Corpus Christi” é “cristificar” nossos corpos.
Texto bíblico: Mc. 14,12-16.22-26
Corpo de Cristo
Olhos inquietos por verem tudo. Ouvidos atentos aos lamentos, aos gritos, aos chamados.
Língua disposta a falar verdade, paixão, justiça…
Cabeça que pensa, para encontrar respostas e adivinhar caminhos, para romper noites com brilhos novos.
Mãos gastas de tanto servir, de tanto abraçar, de tanto acolher, de tanto repartir pão, promessa e lar.
Entranhas de misericordiosas para chorar as vidas golpeadas e celebrar as alegrias.
Os pés em marcha em direção a terras abertas e a lugares de encontro.
Cicatrizes que falam de lutas, de feridas, de entregas, de amor, de ressurreição.
Corpo de Cristo… Corpo nosso. (José María Olaizola, SJ)
“Tomai, Senhor, e recebei”, toda minha corporalidade, com suas pulsões, seus limites e sua energia profunda. Que não fique nada em mim onde Tu não entres. Nenhum quarto escuro nem fechado que não seja invadido por Ti”.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
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