“Pensais que eram mais culpados do que todos os outros moradores de Jerusalém?” (Lc 13,4)
O evangelho deste domingo, exclusivo de Lucas, apresenta uma reflexão sobre a conversão, em forma de parábola, a partir de dois acontecimentos trágicos que causaram comoção no povo judeu. O relato traz à tona este eterno problema: é o mal consequência de um pecado? Assim pensavam os judeus no tempo de Jesus e assim continuam pensando a maioria dos cristãos hoje. Ou seja, uma “visão distorcida” de Deus, leva a acreditar que tudo o que acontece é manifestação de sua vontade. Os males são considerados castigos e os bens são considerados prêmios.
Para entender a “novidade” da resposta de Jesus, é preciso saber que, na mentalidade judaica, a enfermidade e o mal, em geral, eram consequência do próprio pecado. A ausência do mal, pelo contrário, era considerada sinal da benção divina. Por isso, aqueles que sofriam qualquer calamidade ou enfermidade se convertiam automaticamente em objeto de juízo condenatório por parte dos outros; diante do olhar preconceituoso e julgador, eles se sentiam acuados por um angustiante sentimento de culpabilidade e desesperança. A desgraça os limitava; a culpabilidade os afundava.
Jesus se declara completamente contra essa maneira de pensar. Ele se distancia dessa ideia tradicional, desatando o nó “religioso” entre sofrimento e pecado, entre culpa e o mal. Para Jesus, a relação de Deus conosco se situa numa dimensão mais profunda. Devemos deixar de interpretar como atuação de Deus aquilo que é próprio das forças da natureza ou consequência da maldade e violência humana. Nenhuma desgraça que possa nos alcançar devemos atribui-la a um castigo de Deus.
Devemos romper com essa ideia de Deus, senhor ou patrão soberano que, a partir de fora nos vigia e exige seu tributo. De nada serve camuflá-la com estas sutilezas: “Pode ser que Deus não castigue nesta vida, mas castigará na outra vida”; “Deus nos castiga, mas é por amor e para salvar-nos”; “Deus castiga só os maus”; “Merecemos o castigo, mas Cristo, com sua morte, nos livrou dele”. Pensar que Deus nos trata à base de pancadas e prêmios, é ridicularizar a Deus e ao ser humano.
Somos tecidos pela culpa desde o nascimento; somos acompanhados por ela durante toda a vida. Ela nos prende facilmente em suas teias, impedindo a manifestação da força vital que há em nós. Sabemos que o sentimento de culpa pode ser paralisante, ameaçador, freio e obstáculo tanto para o desenvolvimento de uma comunidade humana quanto para o crescimento de uma pessoa; esta, centrada no próprio eu, fica “ruminando” seus limites e fracassos, caindo no desespero e não percebendo nenhuma saída para sua situação.
O sentimento de culpa causa sérios danos que acabam afundando existencialmente as pessoas: isso gera a irresponsabilidade que infantiliza, a passividade que leva ao fanatismo, a atrofia da criatividade, o medo paralisante, o sentimento de indignidade... Também a imagem do Deus Amoroso, do Deus vivo e prazeroso, do Deus livre e libertador, fica diminuída segundo o tamanho de nossa consciência e inconsciência, marcadas pela culpabilidade.
Por obra e força da culpa, “Deus” converte-se em “deus” de morte, em “deus” oprimido e opressor, em “deus onivigilante”, que investiga morbidamente nossa interioridade para captar e julgar qualquer desvio. A este “deus” nada escapa: ele vê tudo, escuta tudo, controla tudo... A mensagem alegre do Evangelho se perverte e a vivência cristã deixa-se invadir por um mal-estar difuso, uma tristeza, uma angústia, um pesar... que muitas vezes tornam difícil reconhecer no anúncio de Jesus uma mensagem da Boa Nova. “Assim como Deus nos libertou do pecado... torna-se urgente libertar Deus da culpa” (Dominguez Morano). Um “Deus de vida” nos foi revelado, mas nossa culpa o transformou num “Deus de morte”. “Libertar Deus da culpa” significa “deixar Deus ser Deus”, abrir espaço para que Ele manifeste sua presença providente e amorosa.
A atitude sadia, portanto, é a da responsabilidade, como sentimento maduro de quem entende a vida como “resposta” (essa é sua etimologia) coerente com as diferentes situações que se apresentam. É a responsabilidade que desperta pesar e dor nas ocasiões em que, afastando-nos da fidelidade ao melhor de nós mesmos, provocamos dano aos outros ou ao nosso meio. Mas esse pesar doloroso, diferente da culpabilidade, não paralisa nem afunda, senão que mobiliza para a mudança.
A consciência responsável, de modo especial, nos move para a cura, a reparação; ao longo da experiência, com a ajuda da Graça e em constante discernimento, poderemos experimentar a contrição que leva à mudança, à busca de alternativas melhores de comportamentos e atitudes, a assumir modos de agir que tornem possível uma vida mais plena e amorosa. Só quando tomamos consciência do dano feito é possível restaurar as condições que favoreçam logo um viver mais feliz e pleno.
É esta responsabilidade que podemos associá-la com a conversão, pedida pelo evangelho de hoje. Porque o “perecer” de que fala não deve ser entendido em chave de ameaça nem castigo, mas simplesmente como a consequência de uma atitude e um comportamento desajustados. “Se não vos converterdes, todos perecereis”. A expressão não traduz adequadamente o grego “metanoia”, que significa “mudar de mentalidade, ver a realidade a partir de outra perspectiva”.
Jesus não diz que aqueles que morreram nas duas tragédias não eram pecadores, mas que todos somos igualmente pecadores e precisamos mudar de rumo. Sem uma tomada de consciência de que o caminho que fazemos nos leva ao abismo, nunca estaremos motivados para evitar o desastre. Se somos nós que vamos caminhando para o abismo, só nós podemos mudar de rumo.
Todos devem assumir a responsabilidade de suas ações. Não somos marionetes nas mãos de Deus, mas pessoas, ou seja, seres autônomos que devemos assumir nossa responsabilidade. A melhor tradução seria: “se não aprendes, inclusive com os erros, perecerás”. Dizendo de um modo mais simples: se não somos responsáveis, se não respondemos humanamente aos diferentes desafios que a vida nos apresenta, estaremos fechando a saída, alimentando infelicidade para nós mesmos, tornando a convivência impossível e destruindo o planeta; ou seja, estamos provocando nosso próprio desastre.
Libertados do “círculo infernal da culpa”, agora sim, podemos aderir à novidade do Reino, na plenitude da alegria e da festa. Temos diante de nós a nobre missão de transformar a realidade em Reino, e isso não será possível enquanto vivermos aprisionados nas malhas da culpa; enquanto a lei, o pecado e a culpa nos enredarem, não será possível perceber a novidade do Reino, que conduz à própria liberdade e à dos outros, à própria aceitação de si mesmo e à aceitação e ao amor aos outros.
O “Deus de Jesus” é Aquele que nos descentra e nos lança à realidade, com toda a dureza que esta pode nos apresentar em muitos momentos de nossa existência; em lugar de solucionar os problemas, Ele prefere nos dinamizar para que nós mesmos trabalhemos na busca de soluções. Deus é a plenitude de todas as aspirações humanas. Não há porque temer o Deus de Jesus.
Texto bíblico: Lc 13,1-9
Na oração: Examinar com cuidado a origem dos sentimentos de culpa, pode produzir um grande avanço no caminho da saúde interior e espiritual. Esclarecer, desmascarar a culpa, pode ser muito libertador, pois fortalece nossa atitude esperançosa; nossa relação com Deus, com o mundo e com os outros revela-se mais transparente e otimista.
- Sua relação com Deus tem a marca da confiança amorosa ou está carregada de culpa paralisadora?
Pe. Adroaldo Palaoro sj