“Quando jejuares, perfuma a cabeça e lava o rosto...” (Mt 6,17)
Quaresma é tempo favorável para “ordenar a própria vida” na direção do sonho de Deus para toda a humanidade. Para que este processo de “ordenamento” aconteça, o tempo litúrgico quaresmal nos convida a “considerar” as nossas relações vitais: com Deus, com os outros, com o mundo e conosco mesmo.
No Evangelho fala-se das “práticas quaresmais” da oração, esmola e jejum, onde nossas relações são iluminadas e questionadas pelo modo de proceder de Jesus. Quê sentido tem, para nossa cultura, estes três gestos que são propostos para uma vivência fecunda da Quaresma?
Em primeiro lugar, são três gestos que nos humanizam e tornam a vida mais leve e com sentido; eles condensam o sentido da vida cristã. A vida é um abrir-se aos demais (esmola), um mergulhar no mistério de Deus (oração) e ser capaz de ordenar e dirigir a própria existência (jejum).
É preciso criar espaço novo no coração e na mente, para que coisas novas aconteçam. Vividos a partir da identificação com Jesus Cristo, os valores da oração, da esmola e do jejum esvaziam nosso “ego” para nos aproximar dos pobres e excluídos, encher-nos de compaixão e misericórdia, exercitar-nos na prática do bem e da bondade, acolher o outro com sinceridade, perdoar gratuitamente, cuidar com ternura e admiração tudo o que nos cerca, encantar-nos com o mistério da vida, deixar-nos envolver pela graça e permitir que o amor circule em nós e no mundo, gerando vida em abundância.
Trata-se de um “modo de proceder” permanente, não só para o tempo quaresmal.
Há “quaresmas” na vida que nos atingem “fora do tempo”, em qualquer momento do ano; quaresmas que não queríamos viver e que sabemos que não nos resta outra alternativa a não ser passar por elas: enfermidades, momentos de crise, etapas de ruptura, tempos de luto por um ente querido que se foi... Mas há quaresmas que são a vida mesma, o tempo cotidiano de muitas pessoas, especialmente dos mais empobrecidos e sofredores de nossa sociedade. Todas estas realidades não são mudas: fazem chegar seus gritos a cada um de nós e nos falam de nossa limitação, de nossa fragilidade, de nosso pecado...
Quando os fiéis entram na fila para receber, sobre suas cabeças, um pouco de cinzas, na quarta-feira que dá início à Quaresma, eles não estão fazendo um ato derrotista, nem expressando uma tristeza inútil, nem mergulhando na escuridão daquilo que o fogo destruiu. Eles estão fazendo uma profissão de fé na força da esperança. Mesmo que tudo pareça arruinado, há uma potência interior que não permite ao ser humano desistir de si mesmo nem dos outros. Ela recobra a energia do perdão, o ânimo para prosseguir no caminho da vida, a confiança nas pessoas, a amizade que ficou ameaçada.
Nossas cinzas tem um valor muito diferente segundo sua origem. A imagem de uma mulher abatida diante do incêndio de sua casa e que perdeu todos os seus pertences, não é igual à cinzas de uma chaminé da casa de campo. “Cinzas: de quê?” Essa é a questão. Nossas cinzas são uma recordação da fragilidade na qual nos movemos na vida: o que perdemos, desperdiçamos da vida que nos foi dada; o amor aos outros que queimamos inutilmente; a terra calcificada de nossas indiferenças e de nossas cumplicidades; os sonhos que não permitimos que chegassem a ser realidade, queimados pela chama da nossa intolerância; os bons desejos que deixamos à beira do caminho, destruídos lentamente pelos pavios fumegantes...
De tudo isso temos que nos revestir; isso é o que carregamos sobre nossas cabeças, que se inclinam com humildade, ante o gesto sagrado. A sorte que temos é que nos é anunciado também um caminho novo, abre-se diante de nós um caminho para percorrer, desperta-se o fogo novo do amor, ativa-se uma nova energia criativa, mobilizam-se inéditos recursos internos... para dar uma nova feição ao nosso seguimento de Jesus. Portanto, no sentido bíblico, a cinza é força, espírito, vida, projeto, síntese e realidade carregada de futuro. É esperança, é ressurreição; é renovação e conversão, de tudo o que é nosso e dos outros. É comunhão e renascimento. A cinza é purificação.
A finalidade da imposição das Cinzas e a vivência das práticas quaresmais (oração, jejum e esmola) é nos ajudar a fazer uma “travessia interior”. Não se trata de viver a Quaresma só retocando, com certa “maquiagem cristã”, o exterior de nossa vida. É preciso deixar que a Graça de Deus encontre liberdade para transitar pelos recantos mais “escondidos” do nosso eu profundo. “E o teu Pai, que vê o que está escondido, te dará a recompensa”. Nosso coração há de empapar-se desta Graça, desse afeto a Jesus e ao seu Reino, que nos conduzirá até à alegria da Páscoa.
Precisamos de tempos, silêncios, espaços..., para criar um ambiente favorável para o encontro verdadeiro com Aquele que sempre vem ao nosso encontro; é preciso sair do espaço cotidiano, rotineiro, para entrar em outro espaço, amplo, provocativo, surpreendente... e deixar-nos afetar pelas coisas de Deus.
Redescobrir o próprio lugar interior é sinal de maturidade e sabedoria de vida.
Esse lugar nada tem a ver com o êxito social, ou o reconhecimento dos outros. É um lugar interior, uma atitude de prontidão em ultrapassar todas as camadas exteriores de si mesmo e chegar à dimensão mais profunda, que nem sequer temos palavras para expressá-la. Um lugar no qual não importa nem o que os outros opinam a respeito de nós, nem sequer a ideia que fazemos de nós mesmos. Um espaço íntimo, lugar de serenidade e de intimidade, a partir do qual a Graça tem plena liberdade de atuar.
Esse lugar só se pode indicar como “o escondido”, onde aprendemos a decifrar a vida, onde temos acesso aos recursos e às riquezas mais nobres que desvelam nossa verdadeira identidade. Ali, “no escondido”, é onde devemos acudir para orar, para tornar possível a emergência do “Deus escondido” em nós e nas transformações de nossa vida. Um lugar onde não contam os reflexos e as imagens, mas a realidade primeira, a que fica desvelada a partir do coração, o nosso interior, o centro vital que somos e a partir do qual nos nutrimos e vivemos.
“Entrar em casa” expressa bem uma atitude de movimento de fora para dentro, da rua onde transitamos indiferentes para o lugar onde vivemos a “mística do encontro”. Além disso, “entrar no quarto” indica um sinal especial de intimidade recolhida: é ali, onde é preciso fechar a porta e esperar pacientemente “Aquele que mora no escondido”.
Trata-se de fazer a experiência de entrar no “escondido”, na gruta do Horeb, na fenda das rochas do Sinai, no interior da tenda do deserto, no coração e centro da vida... Ali é onde uma visão nova e diferente da vida é possível: a d’Aquele que vê no “escondido” e sabe derramar graças como uma medida sacudida e ampla: seu próprio Coração.
Precisamos reavivar nossas pobres práticas quaresmais: fazer do coração um espaço humilde e rico; de nossas mãos, carícia e ternura; de nossos pés, desejo de proximidade e comunhão, para ungir com o azeite e vinho de nossa fragilidade tantos feridos e quebrados que se encontram às margens de nossos caminhos.
Texto bíblico: Mt 6,1-6.16-18
Na oração: Orar é um exercício de ida ao centro, encontrar-se consigo mesmo na essência do ser, e ali encontrar-se com Aquele que é o mais íntimo: o próprio Deus.
Portanto, orar nunca foi e nem será obrigação, regra, norma, lei, mandamento, ou outra coisa qualquer que uma pessoa se sinta forçada a fazer. No dizer de S. Inácio: “orar é uma conversação entre amigos”. Orar é um exercício das pessoas que querem se encontrar, centralizar-se, para sempre agir a partir do seu centro, e não a partir de outros centros (opinião alheia, costumes, moda, meios de comunicação, conveniência, tradição, etc.). Orar é um exercício disponível àqueles que querem ter vida a partir de sua própria vida, junto com o Autor da vida, levando vida a todos.
- Qual é do seu estado de ânimo ao iniciar o percurso quaresmal?
Pe. Adroaldo Palaoro sj