“E, enquanto rezava, o céu se abril e o Espírito desceu sobre Jesus...” (Lc 3,21-22)
Terminado o “tempo natalino”, começamos hoje o “tempo comum” (Ano C), ou seja, a vida pública de Jesus, sua missão como Filho em favor dos filhos e filhas. O relato do batismo – que marca a passagem da vida em Nazaré para a vida peregrina – faz referência a uma experiência fundante de Jesus: confirmado pelo Pai, impulsionado pelo Espírito, Ele descobre o sentido de sua vida e a missão que devia realizar.
O batismo de Jesus significou uma profunda experiência espiritual, muito ligada à sua atitude humilde de aproximar-se do rio Jordão, onde as pessoas simples do povo buscavam no batismo de João uma purificação de seus pecados. Jesus foi reconhecido pelos pastores e magos, mas não pelos que compartilhavam com Ele a fila dos pecadores. Uma fila que margeava o rio Jordão, constituída por aqueles que queriam receber o batismo das mãos de João. E ali se pôs Jesus, entre eles, em silêncio. Não era um a mais, mas parecia ser.
Quê foi que levou Jesus a tomar esta decisão? Quê esperava encontrar com o batismo de João? Quais foram os sentimentos que o acompanharam durante este percurso de mais de 100 quilômetros desde Nazaré até o lugar onde recebeu seu batismo? Foi uma viagem solitária ou a fez em companhia de alguns amigos e amigas que também buscavam o mesmo?
Jesus “desce” ao Jordão; este gesto resume sua descida do céu à terra, sua “kénosis”, seu esvaziamento radical. É uma “descida” às águas da humanidade; por isso, sobre Ele “desce o Espírito”. O Espírito não “desce” sobre aquele(a) que “sobe” ao pedestal da vaidade, do poder, da intolerância, do preconceito... Ali, o “ego inflado” não abre espaço para se deixar inspirar pelo mesmo Espírito que conduzia Jesus. É preciso “descer” às águas da própria existência, “entrar na fila solidária” da fragilidade humana, passar pelas águas da renovação vital e sair do outro lado, purificado e humanizado.
Embora não reconhecido pelas pessoas, ao entrar nas águas do Jordão, Jesus foi reconhecido e confirmado pelo Pai. E fez isso com uma voz potente para que todos se dessem conta de que o Filho queria compartilhar a situação da humanidade. E o Pai lhe deu carta branca para estar entre nós sem privilégios, continuando o despojamento que lhe supôs entrar em nosso mundo.
O batismo comove Jesus por dentro, o transtorna, parece que lhe invadem uma compaixão e ternura infinitas. O Deus dos pais se revela a Ele como Fonte de Vida, como Misericórdia e Compaixão, como fonte de dignificação e perdão. O Céu deixa de estar em silêncio, o Céu não se compraz na Lei e no Templo, o Céu se compraz em Jesus, e, a partir de sua profunda percepção do Deus como Ternura e Fonte da Vida, sua vida vai se revelar como Boa Notícia para os abatidos de toda a humanidade. Jesus não será mais o mesmo; o “filho do carpinteiro” foi tocado pelo Compassivo e sua vida vai se converter em visita de Deus a seu povo, em causa de liberdade para os oprimidos, em saúde para os enfermos, em perdão para os indignos, em inclusão para os excluídos, em festa para os tristes...
A Bíblia nos convida a tomar consciência que os lugares de encontro de Deus com o ser humano não são unicamente os sagrados, institucionais ou majestosos, mas, principalmente, os lugares da “margem”, do cotidiano, das experiências de fragilidade e limite, das obscuridades e dúvidas... enfim, das fendas da vida.
E foi das “fendas da humanidade” que o próprio Jesus entrou em comunhão com o Pai.
Segundo o evangelho de hoje, Jesus se faz presente na “fenda’ mais profunda da terra, no Jordão, e é precisamente ali onde Ele escuta a voz do Pai indicando-o como o Filho amado em quem “põe o seu bem-querer”. A partir desse momento, Jesus se descobre portador dessa “complacência divina” e vai fazendo-a presente nos diferentes lugares por onde se desloca com uma mobilidade surpreendente: do deserto à Galileia, onde anuncia a chegada do Reino; às margens do mar, chamando os primeiros discípulos; em Cafarnaum onde exerce seu ministério terapêutico; às portas das casas, acolhendo uma multidão de enfermos; no descampado onde oferece a grande mesa da partilha; nos territórios fronteiriços, onde acolhe e entra em diálogo com o diferente...
Não são lugares “sagrados”; é sua presença que os converte em “teofânicos” (manifestação da presença divina), porque ali onde Ele se faz presente, os céus se “rasgam” e Deus “se deixa ver” em seu Filho, e Suas palavras continuam ressoando em nós, convidando-nos a escutá-lo.
Viver a vocação batismal ativa nossa sensibilidade mais profunda, fazendo-nos entrar em sintonia com Deus e com a realidade. Deus age diretamente no coração e nos conduz com delicadeza, com carinho e com liberdade, preparando-nos para a grande “salto” na vida. E nosso coração aberto, atento, sintonizado com a ação de Deus, dispõe-se, coopera e responde à Graça divina, empenhando-se por encontrar “o que tanto deseja”. Essa é a experiência mística da vida: “sentir Deus em todas as coisas e todas as coisas em Deus”.
O(a) seguidor(a) de Jesus faz a experiência da intimidade, da presença, da comunhão, da proximidade de Deus em sua própria vida. Ele(a) vive embriagado(a) de vida, vive como um peixe nos oceanos de Deus, dizendo um profundo sim às ondas, ao vento, ao sol, à existência... Ele(a) sente-se cativado(a), envolvi-do(a), amado(a), sintonizado(a), habitado(a) por Deus de tal maneira que seus olhos, gestos, suas atitudes, palavras, seu coração, sua existência, transbordam Deus. Sente-se envolvido(a) pela “onda” de Deus e sintoniza-se com o Seu coração. Tal experiência é incomunicável; ninguém pode vivê-la por ele(a).
A vivência batismal implica um contínuo “estar presente” diante do Deus Presente. E estar presente é estar “acordado”, no sentido de desperto e atento, e também no sentido musical de estar afinado, “em acorde”, sintonizado com a Presença que se revela de maneira “sempre nova e inesperada”.
Dentro de cada um de nós existe uma música, uma melodia, uma nota do divino. É preciso criar espaço para que ela possa fluir em forma de canto, de dança, de louvor... No meio desse mundo confuso e dividido é necessário encontrar um princípio integrador; é preciso compor uma sinfonia, buscar a “com-sonância” das diferentes vozes e instrumentos presentes ao nosso redor. O compromisso batismal é esse momento delicado que nos ajuda a recuperar o “som primordial”, e portanto, a unidade do sentido da nossa existência. Por isso, “viver a vocação batismal” não é evento, mas sintonia com o coração de Deus; é estar “antenado” no modo de agir de Deus e corresponder a essa ação divina. Faz-se necessário, portanto, um contínuo discernimento para deixar-se conduzir pelo Espírito e prolongar o modo original de ser e viver de Jesus.
Na oração: Todo(a) seguidor(a) de Jesus é testemunha de uma presença contemplada e ouvida no silêncio da oração.
- Deixe-se levar como se estivesse num rio, observando-se com um olhar interior, escutando, sentindo...
- O Batismo implica expandir os espaços interiores, romper com tudo aquilo que atrofia a vida para acolher o novo: nova missão, novo compromisso, nova presença solidária, acolhida do diferente...
- Renove seu compromisso batismal: ser presença diferenciada em meio a um mundo carregado de morte e violência.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
“...voltaram para sua terra por outro caminho” (Mt 2,12)
“Por que é que os homens se deslocam em vez de ficarem quietos”? Esta pergunta do escritor Bruce Chatwin nos reconduz ao centro do mistério do próprio ser humano. Somos seres de travessia. As viagens nunca são apenas exteriores. Não é simplesmente no espaço geográfico que o ser humano viaja. Isso significaria não perceber toda sua a profundidade; deslocar-se implica uma mudança de posição, uma ampliação do olhar, uma abertura ao novo, uma adaptação a realidades e linguagens diferentes, uma expansão da sensibilidade, um confronto, um diálogo tenso ou deslumbrado..., que deixam necessariamente impressões muito profundas.
A experiência da viagem é a experiência de fronteira e do horizonte aberto, de que o ser humano precisa para ser ele mesmo. Nesse sentido, a viagem é uma etapa fundamental da descoberta e da construção de sua própria identidade e do conhecimento do mundo que o cerca. É a sua consciência que perambula, descobre cada detalhe do mundo e olha tudo de novo como da primeira vez. A viagem é uma espécie de propulsor desse olhar novo. Por isso, é capaz de introduzir na sua vida elementos sempre inéditos que o incitam a uma mudança contínua. Nada mais anti-humano que uma vida estabilizada em posições fechadas, ideias atrofiadas, visões limitadas pelo medo do diferente...
Mais do que viajantes, aos poucos vamos nos descobrindo peregrinos. Quando fazemos uma peregrinação, muitas vezes nos interrogamos onde é que ela termina, porque uma das coisas que experimentamos é que, à medida que caminhamos, a realidade torna-se sempre mais aberta e nós nos enriquecemos muito mais. A peregrinação não tem propriamente um fim: tem uma extraordinária finalidade. No caso dos Magos é o encontro com o “Rei de Israel”.
Na noite de Natal, Jesus se manifestou aos pastores, homens pobres e humildes, que foram os primeiros a se deslocarem para levar um pouco de calor à fria gruta de Belém. Agora são os Magos que chegam de terras longínquas, também eles atraídos misteriosamente por essa Criança. Os pastores e os Magos são muito distintos entre si; mas uma coisa tem em comum: o céu.
Os pastores de Belém foram correndo para ver o menino Jesus não porque fossem particularmente devotos, mas porque velavam de noite e, levantando os olhos ao céu, viram um sinal e escutaram uma mensagem. Assim também os Magos: investigavam os céus, viram uma nova estrela, interpretaram o sinal e se puseram a caminho. Os pastores e os Magos nos ensinam que para encontrar Jesus é necessário saber levantar o olhar para o céu, não fixar-nos em nós mesmos, ter o coração e a mente abertos ao horizonte de Deus, que sempre nos surpreende, saber acolher suas mensagens e responder com prontidão e generosidade.
O termo “magos” tem uma considerável gama de significados; mas, certamente, em Mateus são sábios cuja sabedoria religiosa e filosófica os põe em caminho; é a sabedoria que leva a Cristo. Somente homens de uma certa inquietude interior, homens de esperança, em busca da verdadeira estrela da salvação, seriam capazes de colocar-se em caminho e percorrer a longa distância entre Oriente e Belém.
Chama a atenção a prontidão da resposta dos Magos. Com simplicidade expressam como no preciso mo-mento em que perceberam a indicação do céu, imediatamente reagiram e a seguiram. A estrela que os guiava era uma estrela nova, superior, peregrina, que despertava assombro e atraía àqueles que a contemplavam. Os caminhos deste novo astro, orientam à salvação divina para toda a humanidade.
A experiência dos Magos nos exorta a não nos contentar com a mediocridade, a não permanecer adormecidos e estáticos, mas a buscar o sentido das coisas, a perscrutar com paixão o grande mistério da vida. Eles nos ensinam a não nos escandalizar frente à pequenez e à pobreza, mas a reconhecer a majestade na humildade e sabermos ajoelhar diante dela. O deslocamento dos Magos ajuda a nos deixar guiar pela estrela do Evangelho para encontrar Aquele que é Luz, e despertar a luz que nos habita. Assim, poderemos levar aos outros um raio de sua luz e compartilhar com eles a alegria do caminho.
Os Magos vêm do Oriente e caminham para a luz. Estão orientados. Oriente significa onde nasce o sol, a luz. A desorientação é a perda do sentido, do caminho, é viver na escuridão. A verdadeira luz está mais presente na gruta despojada que nos palácios e templos de Jerusalém.
Epifania, portanto, é abrir caminhos; Epifania é buscar e caminhar para a luz.
Mateus termina seu relato notando que, uma vez que os magos se encontraram com o Menino Jesus, “regressaram por outro caminho”. E não mudam de caminho para evitar Herodes, mas porque encontraram o Caminho: “Eu sou o Caminho, a Verdade e a Vida”. Deus, a Luz, não está presente nos caminhos e pretensões de Herodes (e existem muitos Herodes e faraós soltos pela história), mas naquele que é frágil e está deitado em um presépio.
Como os Magos, levantemos e voltemos à casa por outro caminho!
Quem se encontra com Jesus voltará à sua casa, ao seu trabalho, às suas ocupações, mas já não será o mesmo. Voltará de outra maneira, por outro caminho, com um coração dilatado e um espírito renovado. Quem se encontra com a Criança de Belém, dá-se conta de que os caminhos de Herodes, do poder, do prestígio, da riqueza, são caminhos que levam à morte. E Epifania é o caminho da vida, da acolhida e do encontro. O itinerário espiritual, portanto, pode ser descrito como uma viagem da cabeça ao coração; é uma viagem longa, difícil, mas apaixonante.
Por diferentes motivos, também hoje vivemos uma grande mobilidade; precisamos ser espertos em mover-nos entre o diferente, o que nos confunde, o mistério, o que nos questiona... Sempre caminhando. Esta é a atitude daquele que segue um Deus sempre maior, sempre surpreendente, que está sempre mais além de onde estamos. Então, que sigamos, sempre adiante... mas façamos isso juntos, sem deixar ninguém fora!
Este e o dinamismo que deve perpassar nossa vida: da instalação ao crescimento, da acomodação ao deslo-camento contínuo. Partimos da realidade de que a tendência natural é amparar-nos nas “zonas de conforto”; elas nos dão mais segurança; é mais cômodo; requer menos energias.
A inércia leva a viver o ordinário, o repetitivo; custa-nos admitir e saborear o excepcional, o extraordinário; muitas vezes nos movemos em meio a um certo ceticismo vital, sem paixão pela vida e pela missão. Mas o caminho da fé nos leva de assombro em assombro, de graça em graça, de alegria em alegria.
“Há um tempo em que é preciso abandonar as roupas usadas, que já têm a forma do nosso corpo, e esquecer os nossos caminhos, que nos levam sempre aos mesmos lugares. É o tempo da travessia: e, se não ousarmos fazê-la teremos ficado, para sempre, à margem de nós mesmos” (Fernando Pessoa).
Texto bíblico: Mt 2,1-12
Na oração: Esse “outro caminho” é o caminho que deve direcionar para Deus nossa vida.
O que importa é pôr-se a caminho nas pegadas dos Magos, fazer escolhas e recusar desvios.
- Há alguma “estrela” abrindo horizontes para você?
- O que há de “herodiano” em sua realidade e em seu mundo interior? quais são as causas, as manifestações e os efeitos das suas inseguranças, do fixismo em torno do próprio eu, dos seus medos?
- conserve-se em movimento interior, sempre; nada de roteiros rígidos que sufocam o Espírito, matam a criatividade, prendem à rotina e empobrecem o dinamismo de uma vida em transformação.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
“Os pastores foram às pressas a Belém e encontraram Maria, José e o recém-nascido deitado na manjedoura” (Lc 2,16)
1º. de janeiro é uma data carregada de conotações profundamente humanas: início de um novo ano, o encontro dos pastores com o Menino Jesus, a maternidade divina de Maria, dia Mundial da Paz...
Ao começar o novo ano, a primeira atitude que devemos alimentar é a da gratidão: dar graças a Deus pelo dom do tempo, que é o dom da vida, o dom fundamental. O tempo é graça e tudo depende do que fazemos com ele: podemos fazer dele um tempo morto ou um tempo vivo (carregado de possibilidades, recursos, criatividade, tempo oblativo, aberto ao novo, tempo inspirado…).
O começo do ano nos convida a pensar sobre nossa forma de ativar este “grande tesouro” que é o tempo; Deus nos concede este ano para que multipliquemos a vida, enriquecendo-a de sentido, qualidade e calor humano; é uma nova oportunidade que Ele nos concede para crescer e ajudar a crescer, para alcançar uma experiência nova da vida, de encontro com Ele, com os outros, conosco mesmos.
A festa da travessia para um Novo Ano é uma ocasião privilegiada para descobrir o quê estamos fazendo com nosso tempo. Podemos estar desperdiçando ou perdendo aquilo que nos foi dado para que vivamos com mais intensidade. Vão passando os anos e com eles as oportunidades de dar verdadeiro sentido às nossas vidas. É o momento por excelência da potencialidade de vida, tempo mágico onde as promessas começam seu caminho de realização.
Quem contempla a realidade com os olhos simples dos pastores, não faltarão ocasiões de reconhecer a criatividade de Deus em ação, a inovação do Espírito movendo corações, criando cenários novos, mais humanos, com mais profundidade, mais do Reino...
Talvez muitos se perguntam para onde vai nosso mundo, surpreendidos e preocupados pelo crescimento de fenômenos desconcertantes. Em muitos países triunfam líderes populistas, manejados por forças ocultas sem escrúpulos e marcados por discursos intolerantes, preconceituosos e julgamentos moralistas; a corrupção vai lançando raízes em todos os ambientes; os conflitos e as rupturas se acentuam; a Igreja católica é sacudida por uma grande crise de credibilidade; o sistema de valores e conhecimentos está mudando profundamente. Vivemos um momento de transição ou um colapso de uma civilização: uma metamorfose da sociedade que afeta todos os aspectos da vida, pessoal e coletiva, de toda a humanidade. Trata-se, pois, de uma crise global, embora às vezes possa parecer local ou inclusive pessoal.
Como nos tempos bíblicos, também estamos vivendo um “exílio”. Tanto naquele como neste contexto atual é que se revela a missão original e inspiradora dos profetas. Como ser presença diferenciada em meio a muita gente desconcertada e desesperançada? Como alimentar esperança? Como ativar uma imaginação criativa?
Esta deve ser a marca característica dos(as) seguidores(as) de Jesus: o otimismo frente à realidade e a esperança diante daquilo que vem. Crer em um Deus que se encarna no simples e que realiza suas promessas, permite começar o ano como quem estreia todas as possibilidades, inclusive abertura às possibilidades antes inexistentes. Isto é o que ocorre em nosso tempo natalino: a irrupção de Deus no pequeno e a partir de baixo, modifica radicalmente nossa visão atrofiada da realidade e nos capacita a vislumbrar o broto germinal de uma nova história. Por isso, somos gente carregada de esperança, pois somos n’Aquele que faz tudo novo.
Para muitos pode lhes causar estranheza que a Igreja faça coincidir o primeiro dia do novo ano civil com a festa de Santa Maria, Mãe de Deus. E, no entanto, é significativo que, desde o século IV, a Igreja, depois de celebrar solenemente o Nascimento do Salvador, nos motiva a começar o ano novo sob a proteção maternal de Maria, Mãe do Salvador e Mãe nossa.
É bom que, diante do Novo Tempo que se inicia, elevemos nossos olhos para Maria. Ela nos acompanhará ao longo dos dias com cuidado e ternura de mãe. Ela inspirará nossa fé e nossa esperança.
Dia Mundial da Paz. Talvez seja uma das carências que mais afeta o ser humano de hoje, porque a ausência de paz é a prova palpável de uma falta de humanidade em todos os níveis. Não podemos descobrir o que significa paz quando nos vemos cercados de violências e conflitos; não podemos experimentar a paz alimentando uma “cultura da indiferença” e da suspeita.
Não são as contendas internacionais, por muito danosas que sejam, que impedem os seres humanos alcançar sua plenitude. Os grandes conflitos têm sua origem em nossos próprios conflitos internos; nossos corações estão carregados de maledicências, julgamentos, legalismos, moralismos e imposições sobre os outros... O medo daquele que pensa, crê, sente e ama de maneira diferente aumenta as distâncias, cria muros e bolhas de proteção que dão uma falsa sensação de segurança e paz. Nunca se investiu tanto em segurança e, no entanto, a cultura da paz está cada vez mais esvaziada.
A paz não é uma realidade que possamos buscar com um cantil. A paz será sempre a consequência de relações verdadeiramente humanas, entre nós. Se não existe uma autêntica qualidade humana não pode haver uma verdadeira paz, nem entre as pessoas nem entre as nações.
O primeiro passo na busca da paz deve ser dado por cada um de nós, caminhando em direção ao nosso próprio interior. Se não conseguimos uma harmonia interior, se não descobrimos nosso verdadeiro ser e o assumimos como a realidade fundamental em nós, nem teremos paz nem a podemos levar aos outros. Este processo de maturação pessoal é o fundamento de toda verdadeira paz. Uma autêntica paz interior se reflete em todas as nossas relações humanas, começando pelos mais próximos.
Quando perdemos o caminho da interioridade, permanecemos na superficialidade de nós mesmos; ali não há húmus onde enraizar a paz; é da superficialidade de nós mesmos que brotam os julgamentos, a indiferença, a atrofia da comunhão, o extravio da ternura, a segregação..., constituindo o ambiente favorável para todo tipo de rupturas, conflitos, frieza nos relacionamentos...
É preciso, como os pastores, entrar na Gruta interior para encontrar Aquele que é o Príncipe da Paz; aproximar desta Criança significa ativar todos os recursos pacíficos que carregamos dentro de nós.
Ah se recuperássemos o sentido do “shalom” judaico! Nessa palavra se encontra condensado todo o significado verdadeiro da paz. Nossa palavra “paz” tem conotações exclusivamente negativas: ausência de guerra, ausência de conflitos, de intrigas, etc... Mas, a expressão “shalom” se refere às realidades positivas; dizer “Shalom” significa manifestar um desejo de que Deus conceda a cada um tudo o que necessita para ser autenticamente humano, incluída a presença mesma de Deus no interior de cada um. Na raiz bíblica do termo “shalon” está a ideia de “algo completo, inteiro”. A paz pertence à plenitude, à completude, enquanto a violência está do lado da falta, da carência, do incompleto. Paz reflete harmonia consigo, boas relações com os outros, aliança com Deus, enquanto a violência infecciona os relacionamentos, contamina a convivência, quebra as relações, exclui os mais fracos...
Este é o desafio diante do Novo Ano que se inicia: devemos primar por construir “ambientes de paz”: paz que vem do alto, que brota do interior e aquece nossos corações, plenifica nossas relações e se expande, tal como perfume, em todas as direções.
Paz é aspiração congênita do ser humano. Nosso coração humano foi feito para a paz e anseia a convivência harmoniosa com Deus, com o cosmos, com os nossos semelhantes. É processo interminável.
Aprender a amar, preocupar-se com os outros, vibrar com a diferença, entrar em harmonia não só com as outras pessoas, mas com toda a criação é a autêntica preparação para a paz. Quem ama não cria conflitos e fica encantado quando todos tenham acesso aos melhores recursos na própria interioridade.
Texto bíblico: Lc 2,16-21
Na oração: A partir do “olhar” admirado dos pastores, alimentar, ao longo deste ano, um processo minucioso de extirpação das “cataratas” do seu olhar interior: o olhar das lembranças negativas, das suspeitas, dos julgamentos, das comparações... e reacender o olhar contemplativo capaz de expressar a benevolência, a delicadeza, a acolhida, a cortesia, a serenidade, a modéstia, a afabilidade, a alegria simples de estar juntos...
- Recordar todos os “olhares amorosos” que Deus foi depositando sobre você ao longo da vida.
Feliz Ano cheio de Deus!
Pe. Adroaldo Palaoro sj
ESPAÇO FAMILIAR: tempo de enraizamento
mística do encontro no cotidiano
“Jesus desceu então com seus pais para Nazaré...” (Lc 2,51).
Nazaré é a escola do Filho de Maria, rodeado de gente comum, com sua paisagem natal, sua linguagem, seu modo pessoal de ser e viver, sua conduta, sua fé...
Na “vida oculta em Nazaré” encontramos os “nomes” e “verbos” nos quais Deus falou em Jesus e onde continua nos falando hoje. Ali Ele se faz “um entre tantos”, vizinho com os vizinhos, trabalhando com os que trabalhavam, acolhendo a vida cotidiana em toda sua riqueza e limitação. Ele é “o filho do carpinteiro”. Para Jesus, Nazaré é um tempo de aprendizagem: olha, escuta, observa tudo o que acontece nesta escola do cotidiano. Exercício de preparação diante das urgências do Reino. “Tempo de enraizamento...”.
Jesus conheceu a dor real do povo, na escola do Pai, que é a escola da vida humana, em contato com as necessidades dos mais pobres e excluídos, em solidariedade laboral. Assim aprendeu a ser humano, ouvindo os gritos dos homens e mulheres de seu entorno, expulsos, oprimidos, como ovelhas sem pastor. Não teve que entrar no lugar da exclusão a partir de fora: cresceu ali dentro.
Na escola da vida, comum e cotidiana, Jesus também foi aprendiz. O artesão de Nazaré nos ensina o valor das coisas cotidianas quando são feitas com dedicação e carinho. Nesta “ocultação”, estava assumindo a condição da imensa maioria dos mortais deste mundo, dos homens e mulheres “comuns”, daqueles que vão trabalhar ou estão sem emprego, daqueles que precisam “ganhar a vida”, porque na vida não encontram seu lar, daqueles que são pura estatística...
Aprender é consequência básica da dinâmica da Encarnação. Lucas confirma: “Jesus crescia em sabedoria, estatura e graça, diante de Deus e diante dos homens” (Lc. 2,52). Portanto, Jesus viveu a vida como um processo lento e progressivo, a partir da própria condição humana no meio do povo e em vista do Reino de Deus, graças a uma criatividade transformadora.
Foi no cotidiano familiar que Ele aprendeu, aos poucos, a ampliar seus horizontes, seus interlocutores e o sentido de sua missão. É a vida cotidiana que nos revela que Jesus foi uma pessoa nitidamente humana e humanizante, que vivenciou um processo de maturação, de releitura de suas tradições e assimilação do novo, até chegar à proposta original da Boa-Nova. Foi no cotidiano que Jesus viveu a “mística do encontro”: viveu intensamente, em primeiro lugar, o encontro com o Pai, conhecendo e realizando Sua Vontade; foi em Nazaré que aprendeu a valorizar e a saborear o encontro com todas as pessoas. Encontros humanizadores que O humanizaram.
Na sua vida em Nazaré Jesus nos convida a entrar na sua casa para aprender d’Ele e com Ele os valores próprios de uma família. É difícil compreender a “normalidade” da vida de Jesus; parece até que o Reino não tinha exigências sobre a sua vida. Identificando-se com a vida de todo mundo mostrava que a salvação não consistia em coisas extraordinárias e em gestos fantásticos, mas na “adoração do Pai em espírito e verdade”. Jesus passou praticamente toda sua Vida nesta humilde condição; viveu desapercebido como Messias. Pois o Reino se revela no pequeno, no anônimo e não no espetacular, no grandioso. Ele está misteriosamente se realizando entre nós.
Nazaré é o sinal da “epifania” de Deus nas pequenas coisas, é o sinal da palavra divina escondida nas vestes humildes da vida simples, é o sinal do sorriso de Deus que se faz visível nos espaços comunitários.
Tanto em Nazaré quanto na vida pública, Jesus nos comunica uma profunda união com o Pai, vivendo uma oração confiante e de entrega. Jesus sente quando o Pai o chama a mudar o estilo de vida escondido. Ele está atento aos “sinais dos tempos” e saberá discernir, nesses sinais, a Vontade do Pai que o chama a mudar de caminho, a deixar sua terra, a lançar-se numa aventura. Começará, então, uma vida itinerante, missionária, despojado de tudo.
No espaço familiar, em Nazaré, Jesus se revela, para todos nós, como presença inspiradora neste momento em que as transformações são rápidas e exigem de nós maturidade, aprendizado, diálogo, novas expressões de fé... Um dos desafios da espiritualidade atual é motivar a viver a vida em profundidade, apesar da aridez do deserto do cotidiano. O ritmo da sociedade atual e, sobretudo, o culto à novidade, ao efêmero, ao superficial, ao consumismo, pede de nós recuperar a dimensão de profundidade em nossa vida cotidiana.
O chamado universal à santidade nos faz confiar profundamente na vida cotidiana, ou seja, no dia-a-dia da vida familiar, no exercício da profissão, nas relações da vida social, nas decisões éticas, na ação cidadã, no campo dos direitos humanos, da economia, na presença ativa da política, no mundo da cultura, no cuidado e preservação da vida, no diálogo com os meios de comunicação..., como “lugares agraciados” de encontro com Deus e manifestações explícitas de compromisso cristão.
Custa-nos muito descobrir a “espiritualidade da vida familiar cotidiana”, a vida de cada dia nos parece sem sentido, sem muito destaque e sem muitos fatos extraordinários; temos ainda muito que aprender da vida cotidiana do artesão de Nazaré. Precisamente a vida cotidiana é o lugar privilegiado para descobrir Deus (“por onde passa meu Senhor”), sentir o sabor da Sua presença que permanece. Os lugares cotidianos são “lugares sagrados” de encontro com o Senhor da Vida.
Encontrar a Deus no cotidiano significa que é preciso viver em um contexto vital no qual cada um se sinta estimulado a tomar decisões, a assumir responsabilidades, grandes e pequenas, a cuidar pessoalmente dos processos concretos da vida de cada dia. É vital descobrir se nossa vida cotidiana é egocêntrica ou excêntrica, se tem a marca da “cultura do encontro” ou da “cultura da indiferença”, se a missão de nossa vida nos projeta para o compromisso com o outro, se temos paixão pelo Evangelho encarnado nos ambientes onde nos fazemos presentes cotidianamente.
A realidade cotidiana da nossa Nazaré é o lugar onde somos chamados a viver a espiritualidade cristã e a deixar-nos conduzir pelo mesmo Espírito que animou Jesus e o levou a inserir-se na trama humana e a assumir o risco da história. Ser seguidor(a) de Jesus, inserido(a) no mundo, em meio às agitações cotidianas, é acima de tudo tê-Lo como inspiração de vida: suas palavras, suas ações, sua relação com o Pai e com os outros...
A espiritualidade cristã é a espiritualidade do cotidiano, que conserva sua força transformadora, que é capaz de despertar o espanto e a admiração, apontando sempre para um horizonte mais amplo e mais rico;
é a espiritualidade que reacende desejos e sonhos novos, que suscita energias em direção ao mais;
é a espiritualidade que faz descobrir, escondida no cotidiano, uma Presença absoluta que nos envolve;
é a espiritualidade que faz saborear o eterno e o Absoluto no ritmo doméstico e cotidiano da vida...;
é a espiritualidade que projeta a vida a cada instante; abre espaço à ação do Espírito para que Ele nos expanda, nos alargue e nos impulsione em direção a uma nova humanização.
Textos bíblicos: Lc 2,41-52
Na oração: A vida cotidiana exige não apenas fidelidade, mas também amor, gratuidade. É o lugar que inspira a viver encontros com a marca da surpresa, da acolhida do diferente, do respeito ao outro...
- Como é o seu cotidiano? rotina e repetição ou desafio e criação? Espaço de encontros inspiradores ou alimentador da indiferença? Nele há lugar para a esperança e para o novo?
Pe. Adroaldo Palaoro sj
«Ainda que Jesus nascesse mil vezes em Belém, a mim de nada serve se não nasce em mim!» Esta frase do místico Angelus Silesius interpela-nos hoje mais que nunca, num tempo que parece aquilo que celebramos no Natal pouco tem a ver com o mistério da Incarnação. E no entanto, para os cristãos o Natal significa precisamente isto: a vinda de Deus no meio de nós num pobre, débil, frágil bebé de Belém. É o grande mistério da fé cristã: Deus feito homem. Deus entre nós! Mas é também um grande anúncio: Deus amou-nos a tal ponto que se tornou aquilo que nós somos, para que nós nos tornemos aquilo que Ele é.
O cristão, consciente da sua qualidade de filho de Deus, intensifica no dia de Natal a oração e a festa. Mas este renovado fervor religioso permanece vão se o cristão não consegue viver e rezar o Natal e se limita a celebrá-lo pela força do hábito ou como uma verdade dogmática que não o envolve pessoalmente.
Celebrar o Natal não significa reevocar um acontecimento que passou a estar relegado para um passado mítico, nem procurar compreendê-lo intelectualmente, mas dizer: hoje há Natal, para nós, aqui, agora, até repetir na fé a palavra do Evangelho: «Hoje nasceu para nós um Salvador, o Cristo Senhor».
Não chega meditar sobre o acontecimento do Natal, é preciso “Vê-lo”, envolver-se nele com todo o seu ser. O profeta Sofonias dirige-se ao povo, dizendo-lhe: «Alegra-te, faz festa. Rejubila com todo o coração (…) porque o Senhor teu Deus está no meio de ti e dança, exulta por ti, circunda-te».
Isto é o Natal: Deus que dança de alegria e circunda a humanidade como um enamorado faz com a sua namorada. Celebrar o Natal significa aceitar o dom de Deus que se entrega à humanidade, a nós, e responder com alegria, dançando diante da alegria de Deus, que no fazer-se homem chega até à humanidade amada como uma esposa. O Natal é o acontecimento em que Deus, no nascimento de uma criança, nos entrega a sua Palavra feita carne e, na incarnação, manifesta-se a nós, faz-se ver, comunica-se totalmente a cada ser humano e assume toda a humanidade.
Certamente que esta notificação é feita aos cristãos, que na obediência da fé sabem aceitar a vinda ao mundo do Deus que se faz carne, que se faz homem.
Isto, porém, não é um privilégio, mas um compromisso radical com Deus e também com a humanidade. Com efeito, o nosso Natal situa-se entre a primeira vinda anunciada aos pastores de Belém, aos pobres que esperavam a salvação trazida pelo Messias, e a segunda vinda, que envolverá todos os seres humanos, de todos os tempos e lugares, toda a criação, a universalidade dos seres. No Natal, Deus entregou-se para envolver toda a humanidade no desígnio de salvação universal, e isto compromete todos aqueles a quem o acontecimento foi notificado na fé.
Cada comunidade cristã, portanto, ao celebrar o Natal, deve absolutamente tornar-se eloquente também para aqueles que cristãos não se dizem, ou que há muito deixaram de ser praticantes…
Trata-se de viver as festas natalícias de maneira que a alegria cristã e a mensagem de reconciliação e de paz que o Emanuel trouxe chegue a todos e seja anunciada a boa notícia da «paz na Terra aos homens que o Senhor ama».
Não se trata de uma comunicação feita simplesmente com as palavras, trata-se se de uma vivência comunitária que chega aos irmãos e irmãs em humanidade.
Num tempo em que dons universais como a paz e a unidade, a convivência confiante e a solidariedade parecem perdidos no enovelamento dos medos, o Natal pode e deve ser o lugar, o momento privilegiado para reafirmar a boa notícia da fraternidade sobre esta Terra, dom de Deus para o bem de todos, tesouro que só a Ele pertence e que nós, humanos, podemos apenas partilhar na justiça, na paz, na benevolência recíproca.
“Ela o enfaixou e o colocou na manjedoura, pois não havia lugar para eles na hospedaria” (Lc 2,7)
No Natal celebramos esta realidade: Deus “se fez diferente” e é na “diferença” que Ele vem ao encontro do ser humano como chance de enriquecimento vital e de intercâmbio criativo. Deixemo-nos surpreender pelo Deus da vida que rompe esquemas, crenças, legalismos, bolhas...; ou nossa vivência de fé se reduzirá a um ritualismo fechado, impedindo sair de nós mesmos.
Se Deus correu o risco de encarnar-se, de nascer pobremente e crescer como salvação a partir da exclusão deste mundo, já não há excluídos para Ele, ninguém fica fora d’Ele. E o lugar principal para a festa é ali onde Ele aparece: nos “aforas”, onde não há lugar, onde tudo parece esgotar-se e é condenado a crescer em meio às ameaças e às intempéries das situações humanas.
Jesus, em Belém, encontrou o seu lugar: nas periferias. A periferia passa a ser terra privilegiada onde nasce o “novo”, por obra do Espírito. Ali aparece o broto original do “nunca visto”, que em sua pequenez de fermento profético torna-se um desafio ao imobilismo petrificado e um questionamento à ordem estabelecida.
Jesus se fez presente no lugar onde se encontravam aqueles que não tinham “lugar”, os “deslocados”, os socialmente rejeitados e que foram a razão de seu amor e do seu cuidado; fez-se solidário com os “sem lugares” e os convidou a caminhar para um novo lugar. Na Gruta, Jesus teve sua preferência e escolheu o seu “lugar”, o lugar entre os mais pobres, vítimas daqueles que se fazem donos dos lugares.
Um “lugar” é sempre mais do que um simples lugar. A geografia de cada “lugar” revela lembranças, referências, ansiedades, medos, saudades...; cada “lugar” guarda histórias, presenças e tem força de memória. Há vidas, pessoas, caminhos, acontecimentos, experiências... Na verdade, o “lugar geográfico” se confunde com o “lugar interior”. É no lugar geográfico que o lugar do coração encontra seu suporte e seu repouso. Quando dizemos: “não tenho lugar”, “estou sem lugar”, “tenho medo deste lugar”... queremos significar que o coração não encontrou no lugar geográfico o seu lugar próprio.
O Natal nos convida a imaginar lugares em movimento, lugares de encontro, de desafio, lugares provocativos e criativos..., enfim, lugares carregados de presença. Celebrar o Natal implica um contínuo êxodo do “lugar estreito e dispersivo” ao “lugar expansivo e unificador”; ali vivemos uma permanente travessia dos “nossos lugares rotineiros e auto-referenciais” para os “amplos lugares cristificados”.
A travessia para a Gruta é um risco, é um salto para um outro “lugar”, é deixar-se afetar por este “outro lugar”: lugar iluminado por uma Presença despojada de poder, de riqueza, de prestígio... O mistério do Nascimento é profundamente “espacial”: um lugar vital, dramático, que questiona, ilumina, vitaliza e carrega de sentido os lugares cotidianos. Ele nos ajuda a ter acesso a um “lugar inspirador”, um polo de referência e de atração, onde nos sentimos acolhidos, integrados e pacificados na “presença” d’Aquele que, na Gruta, assume e ilumina todos os lugares, sobretudo dos mais excluídos.
A Gruta de Belém é o espelho dessa experiência originária que transforma o “caos” cotidiano em “cosmos” e que, somando-se a outras experiências semelhantes, ativa o modo original de ser e de estar no mundo. Entrar no espaço do Nascimento de Jesus configura e ordena, de modo novo e diferente, os lugares por onde transitamos. Sabemos que o espaço faz parte do ar que respiramos em nível fisiológico e biológico, como faz parte das nossas experiências interiores. No entanto, vivemos um tempo de confusão de “lugares”, conseqüência de uma confusão interior. Nossa sociedade parece estar indo à deriva porque não sabe mais reconhecer “espaços diferentes e vitais”, porque tudo se torna igual e os lugares não falam mais, pois carecem de sentido e se revelam como lugares vazios. Os espaços são violados, os “lugares sagrados” são profanados, os “ambientes” carregados de sentido e de história já não revelam mais nada...
Esse é o primeiro sintoma de uma visão humana desastrosa e desastrada. Na insignificância e no achatamento dos espaços está o primeiro e mais grave esmagamento do pensamento e da consciência, a ruptura das relações sociais, a indiferença para com o lugar do outro que é diferente, frieza ecológica e o definhamento das experiências religiosas.
Descer ao lugar da Gruta para encontrar uma Criança desperta em nós um novo “olhar” para perceber, com mais nitidez e intensidade, os lugares por onde transitamos, uma nova disposição para dar sentido e valor aos lugares cotidianos, um olhar solidário para perceber o lugar do outro, uma nova sensibilidade para “ver” a Presença d’Aquele que ocupa todos os lugares.
Não é comum prestar atenção ao lugar ocupado pelo outro, sobretudo o outro que pensa e sente diferente; é normal perceber, delimitar, defender e fechar-se no próprio lugar. Isso se faz de maneira tão zelosa que nem se vê aquilo que está para além do próprio lugar. São grandes os riscos de se viver em horizontes tão estreitos. Tal estreiteza aprisiona a solidariedade e dá margem à indiferença, à insensibilidade social, à falta de compromisso com as mudanças que se fazem urgentes. O próprio lugar se torna uma couraça e o sentido do serviço some do horizonte inspirador de tudo aquilo que se faz.
O profeta Isaías nos recomenda ampliar o “lugar interior”: “Alarga o espaço de tua tenda, estende sem medo tuas lonas, alonga tuas cordas, finca bem tuas estacas” (Is. 54,2). Um “lugar sagrado” que nasce do coração, carregado de afeto, de inspiração, de vitalidade...
Ampliar os espaços do coração implica agilidade, flexibilidade, criatividade, solidariedade e abertura às mudanças e às novas descobertas. Algumas fortalezas e seguranças pessoais caem quando os “espaços interiores”, abrasados e iluminados pelo Nascimento de Jesus, começam a romper as paredes e se encarnam em “lugares exteriores”, marcados pela beleza e encantamento: lugar familiar, lugar celebrativo, lugar social, lugar de convivência, lugar de trabalho... um lugar nobre que só tem sentido quando carregado de presenças.
Só quem transita com liberdade pelos “lugares interiores” será capaz de ir ao encontro dos outros e entrar em sintonia com eles. O “lugar externo” é o prolongamento do lugar percorrido e saboreado internamente. Não tem sentido ampliar os lugares externos se nossa mente permanece estreita, se nosso coração continua insensível, se nossas mãos estão atrofiadas, se nossa criatividade sente-se bloqueada...
Lugar amplo é convite a sonhar alto, a pensar grande, a aventurar-se, ousar ir além, lançar por terra nosso modo arcaico de proceder, romper com os espaços rotineiros e cansativos para ir ao encontro dos “novos lugares” dos excluídos e marginalizados. Precisamos levantar-nos cotidianamente de nossos “lugares”: há sempre um “lugar ferido” que nos espera, um “ambiente atrofiado” a ser curado, um “espaço” excluído a ser visitado...
Texto bíblico: Lc 2,1-14
Na oração: É o ser humano mesmo o verdadeiro lugar a partir do qual Deus se encontra e se dá a conhecer; cada pessoa é o autêntico lugar da eterna presença de Deus.
O melhor presente: uma “uma cesta natalina” repleta de sensibilidade, tolerância, compreensão, alegria, acolhida, proximidade, generosidade, solidariedade...
Este é o verdadeiro Natal: que, em Jesus, nossos espaços cotidianos sejam incubadores de encontros humanizadores, foco de reconhecimento da dignidade de todas as pessoas.
Um Santo Natal a todos!
Pe. Adroaldo Palaoro sj
“Quando Isabel ouviu a saudação de Maria, a criança pulou no seu ventre...” (Lc 1,41)
Os sinais da quarta Semana do Advento nos devolvem à beleza do pequeno, à humildade do cotidiano, à simplicidade dos encontros. No mistério da Visitação, uma simples saudação, essa experiência universal de acolhida do outro, desencadeia uma torrente de comunicação entre duas mulheres grávidas que se enchem de júbilo, bendizem e se alegram juntas enquanto a vida cresce em suas entranhas.
No encontro entre Maria e Isabel a comunicação abarca, com igual intensidade, tanto a dimensão corporal como a que se expressa em palavras. Nesse clima de confiança total acontece o diálogo entre elas. Duas mulheres que compartilham um segredo que não são capazes de entrever em toda sua imensidade, carregada de transcendentais consequências. E nessa efusão de duas pessoas simples, unidas pelo sangue e sobretudo pela fé, se reconhecem partícipes de uma história que as ultrapassa. Encantadas, agradecidas, maravilhadas, expressam os sentimentos de seu coração no louvor a Deus. “Minh’alma engrandece o Senhor” é a primeira mensagem do Magnificat com que nos evangeliza aquela jovem simples de Nazaré que guardava em seu coração todas as coisas que iam acontecendo.
O evangelho da Visitação nos convida a contemplar como Maria saiu de sua casa e empreendeu apressadamente uma viagem; viagem que é metáfora de todas as viagens da existência humana. Maria disse “fiat” a Deus, pôs-se a caminho e foi renovando cada dia de sua vida esse arriscado e confiado “sim”. Advento, tempo de espera no qual Maria é protagonista, guardando um segredo que afetará a todos nós. O que a move a sair é um grande projeto que vem do alto. Assim ela nos revela que não se pode viver sem mistério, sem paixão; que o mistério nos deslumbra, nos supera e nos dinamiza.
Em Isabel, podemos admirar como se une o assombro por uma maternidade inesperada com a ação do Espírito atuando sobre sua esterilidade. Seu assombro e exaltação ecoam com a alegria e a dança da criança que carrega em suas entranhas. Isabel, a mais velha, se inclina diante de Maria, a mais jovem, num abraço e num beijo acolhedor. As duas são portadoras de mistério; estão profundamente marcadas pela comoção. Nelas tudo é surpresa, vibração e alegria.
Isabel e Maria não só se acolhem e se animam, mas se acompanham e se ajudam. O acompanhamento entre ambas se converte em fonte de bençãos. Maria descobre que não se encontra sozinha; há uma mulher que lhe acompanha. Ela quer compartilhar sua experiência de mulher (e futura mãe) com outra mulher, sua “prima” Isabel, a mãe do Batista. Maria vai ao encontro de Isabel para sentir o apoio na figura de uma mulher madura, mas cheia de vida e de futuro. Não se dirige ao Templo nem ao sacerdote... Os homens de então não são capazes de entender o que está acontecendo nestas duas mulheres, pois estão preocupados com outras coisas. Maria precisa dizer para outra mulher, para celebrar com ela “a maravilha que Deus estava realizando nela”. Toda a história da esperança humana, a humanidade inteira se condensa em duas mulheres.
Ambas, tocadas pelo Espírito, seguem sua própria evolução: cada uma tem sua gravidez, e isto requer cuidado, proteção, equilíbrio...Assim, as duas unidas caminharão em direção a um maravilhoso futuro desconhecido. O novo precisa companhia, unir mãos e corações, mentes, forças e pés. Cada uma com seu segredo dentro de si, presente em suas entranhas. As duas com uma forte convicção: foram visitadas pela misericórdia de Deus.
Em nome do filho que dança no seu ventre e tomando a palavra dos grandes sábios da Antiga Aliança, como encarnação da esperança do povo israelita que aguardou este momento durante séculos, Isabel canta a grandeza da mãe do Messias: “Bendita tu entre as mulheres e bendito é o fruto de teu ventre!” “Bem-aventurada aquela que acreditou, porque será cumprido o que o senhor lhe prometeu”.
Esta é voz de benção, ou seja, de graça criadora e abundância. Esta é a benção e a bem-aventurança que dirigem a Maria todos os “esperantes” do Antigo Testamento. Esperaram longos séculos, dirigidos, animados, pela voz dos profetas. Agora podem sentir-se satisfeitos. Chegou o cumprimento e assim o confirma, em nome de todos, Isabel, mulher israelita, mãe profética.
É verdade que as bênçãos eram comunicadas pelos sacerdotes. No entanto, Isabel bendiz Maria em sua plena juventude e grávida de Deus. Bendiz o fruto de suas entranhas. Só esta mulher que engendrou em sua velhice, assumindo a voz do profeta que carrega em sua entranha, pode entender e receber a mãe messiânica, proclamando sobre ela a grande voz do cumprimento dos tempos. Estamos no centro da oração mais querida dos cristãos católicos (depois do Pai-Nosso), que é a Ave Maria. Maria recebe agradecida as palavras de benção e lhe responde dando graças a Deus com o Magnificat.
Advento é o tempo das mulheres, ou seja, daquelas que tem uma surpresa a oferecer, pondo-se a serviço do amor de Deus que levam em seus ventres, amor que as envolve e as transcende, fazendo-as servidoras da vida.
A cena da Visitação nos situa em um espaço intenso de mulheres. É como se, ao chegar o momento culminante da revelação, os varões passassem a segundo plano. Certamente, realizaram e em algum sentido continuam realizando funções socialmente importantes: fazem negócios, servem como sacerdotes no templo, estudam e explicam o sentido da lei como escribas, definem e encarnam a pureza do povo eleito como os fariseus...
Esses e outros ofícios de varões foram e são valiosos; mas ao chegar a plenitude dos tempos acabam se tornando secundários, pois Deus não precisa de sacerdotes, nem de fariseus, nem escribas, como os antigos. O cuidado da vida e a vida mesma do Messias de Deus, como futuro salvador da humanidade, está em mãos de mulheres.
Também a Igreja hoje deve viver “em tempo de “parto”, pois carrega em seu ventre Alguém maior que ela mesma; ela só poderá “dar à luz” a Deus na história da humanidade se renunciar às suas grandezas externas, feitas de riquezas e privilégios, de honras e poderes... e revestir-se da simplicidade, da ternura e da acolhida amorosa. Para isso, ela precisa pôr-se a caminho, para visitar e dialogar com Isabel e com outras mulheres, e aprender com elas o que significa estar a serviço da vida, que a ultrapassa sempre.
Este ícone da Visitação desvela o modo original de ser e de agir de toda a comunidade eclesial; há diversidades de serviços que a caracterizam, mas todos são convidados a reconhecer, a servir, a celebrar as maravilhas que Deus continuamente realiza em tudo e em todo.
É um ícone dinâmico que nos lança a “sair apressadamente” ao encontro do outro, com quem temos um parentesco, na consciência de que fazemos parte de uma mesma humanidade. A vida cristã de nossos dias precisa voltar à Visitação, reviver a “cultura do encontro” e buscar inspiração nas protagonistas no evangelho deste domingo. A vida cristã necessita Visitação para ser mais vida e mais cristã, para deixar seguranças, cuidar e acompanhar a vida que há nela e nas “periferias existenciais”, ali onde o novo está germinando, para espanto e surpresa de todos.
Com a Visitação nos chega memória agradecida, paixão comprometida e esperança dinamizadora de um possível presente fecundo. A Visitação é um foco criativo de espiritualidade.
Texto bíblico: Lc 1,39-45
Na oração: Advento nos inunda da alegria da Visitação e nos move a ser portadores e portadoras da Vida de Deus para o nosso hoje.
- Você visita ou se deixa visitar por quem é diferente? ou assume posturas de preconceito e intolerância?
- Através das “redes sociais” visitamos tantas pessoas:
suas visitas virtuais são cheias de graça e alegria ou carregadas de julgamento, de mensagens pessimistas...?
Pe. Adroaldo Palaoro sj
Mosteiro de Itaici-SP
Quando penso neste tempo litúrgico do Advento que antecede o Natal, e que em grande medida aprofunda e desvela o seu significado, vem-me muitas vezes à cabeça um livro do poeta brasileiro João Cabral de Melo Neto, “Morte e Vida Severina”. É um livro de poesia, como o são afinal tantos livros bíblicos. Mas este livro contemporâneo o que é que conta? Narra a história de Severino. Severino é o homem, o ser humano apenas, mais um de nós, um qualquer Adão. Severino é uma criatura provada, porque a vida é dura, implacável; a vida não retribui diretamente o sonho, o esforço, o investimento afetivo que nós nela colocamos. Aquele Severino — como muitas vezes nós — sente-se só, traído e espoliado sobre a terra. E vai numa espécie de demanda à procura de uma solução que não encontra. Percepciona, dramaticamente, a existência como inútil empresa. Repete a si mesmo que, se não encontra respostas para as áridas interrogações que traz, talvez o melhor seja pôr fim a tudo. Com estes pensamentos põe-se a caminhar perto de um rio e encontra, a dada altura, um carpinteiro chamado José, a quem pergunta se o braço de rio é suficientemente fundo e com lodo bastante para que uma vida nele se perca.
O carpinteiro percebe o seu tormento e tenta dissuadi-lo. Severino volta-se para José e suplica: “Então dá-me uma razão. Dá-me uma razão que seja, que diga que a vida vale a pena.” Quando estavam os dois nesta discussão, a conversa é interrompida por um coro de vizinhos, parentes e conhecidos do carpinteiro, que lhe vêm anunciar, cantando, que a sua mulher acaba de dar à luz. Somos, então, conduzidos ao lugar onde está o menino e José saúda com entusiasmo o seu nascituro. E dirigindo-se ao desesperado Severino diz que é verdade, que também ele não tem uma resposta para lhe dar, mas adianta: “Não há melhor resposta que o espetáculo da vida:/ vê-la desfiar seu fio, que também se chama vida,/ ver a fábrica que ela mesma, teimosamente, se fabrica”. Na realidade, a vida responde manifestando-se, dando-se a si mesma, abrindo-nos ao desabalado espetáculo que é a própria existência, a esse inacreditável e despojado milagre que a vida é em si mesma. É olhando, acolhendo e abraçando a vida que podemos ser curados das nossas dúvidas, daquilo que em nós parece apenas rasgão, desolada ferida para tratar, vazio e subtração. É quando confiamos no milagre da vida que podemos olhar de outro modo para esta sensação que nos há de acompanhar até ao fim: a sensação de sermos algo de inacabado, inconclusivo, até irreparável. Penso que o Advento constitua um anual interromper a conversa.
Todos andamos ocupados com uma interlocução qualquer. Uma confabulação mais ou menos feliz, mais narcísica ou mais altruísta, mais isto ou mais aquilo. Esbracejamos por uma solução, pela âncora de um sentido que nem sempre é óbvio, que quase nunca é evidente ou fácil. O Advento traz uma interrupção. A conversa interrompe-se com um cortejo que vem anunciar um nascimento, que insiste em abrir-nos os olhos para repararmos antes de tudo na vida, na vida estreme, no valor da vida sem mais, nesse tesouro essencial. Na representação do Jesus que nasce não há ornamentos. Ele nasce desprovido como um Severino, sem nada, naquele curral de animais onde é só a vida que conta. O Advento é, assim, um tempo para suspender as nossas soturnas trocas de razões, os nossos longos percursos fechados, a nossa interminável inquirição. E para deixarmo-nos antes ficar diante do espetáculo da vida, da vida que incessantemente se faz nova, mesmo quando não nos apercebemos, mesmo quando julgamos qualquer saída impossível. A vida encarrega-se de fazer-nos sentir desarmados, repentinos e inocentes diante do parto de Deus.
José Tolentino Mendonça
17.12.2018
In: iMissio.net
“Quem tiver duas túnicas, dê uma a quem não tem” (Lc 3,11)
Em meio às sombras, perplexidades, contradições, provocações e intolerâncias, que constituem o atual momento histórico, queremos, neste Advento, dar vez a um brado de esperança e expressar a fé no futuro da nossa vida. A esperança tem raízes na eternidade, mas ela se alimenta de pequenas coisas; nos despojados gestos ela floresce e aponta para um sentido novo. É preciso um coração contemplativo para captar o “mistério” que nos envolve.
A esperança, como força transformadora da realidade, inclui uma clara tomada de decisões de dirigir as energias vitais para ir ao encontro daquilo que é imprescindível para a vida. Por isso, em um mundo de muita injustiça social, onde milhões de pessoas vivem em condições de pobreza extrema e submergidos em círculos de violência, a esperança se apresenta a nós como uma força capaz de despertar nossa consciência adormecida e assumir nossa responsabilidade. A esperança é sempre inquieta e mobilizadora, é impulso que nos faz desejar e buscar uma mudança decisiva que favoreça instaurar um mundo mais humanizador, abrindo-nos a um “mais além” que já está próximo. Mesmo diante dos profundos dilemas internos e sociais, achamos possível ser e viver de outro modo, inventamos e reinventamos opções, criamos novas saídas... e, sem cessar, sonhamos com o “mais” e o “melhor”. Afinal, somos seres de “travessia”...
Essa “travessia” não é apenas geográfica; trata-se de uma experiência que requer a atitude de “saída de si” para ir ao outro como diferente; e isso implica “passar” para o seu lugar, aprender a ver o mundo a partir de sua perspectiva, deixar-nos questionar e desinstalar-nos por ele, tão despojado da condição de pessoa. Ir ao encontro do outro só é possível a partir do cultivo da sensibilidade, entendida como o movimento afetivo necessário para olhar e sentir a verdade na realidade de quem sofre. Não se trata de “dar coisas”, mas deixar-nos “afetar cordialmente” pela dor do outro.
Neste 3º. domingo do Advento, o apelo à mudança, na voz de João Batista, se torna mais concreto. “Quê devemos fazer”? Tal pergunta é uma prova da sinceridade daqueles que se aproximavam de João. Com três pinceladas o Batista enfatiza a necessidade de mudar a maneira de pensar e de agir: é preciso abrir-se à alteridade até chegar a partilhar com outros, é preciso sair do estreito círculo do “meu” para que a escravidão do possuir abra passagem à liberdade de preferir o bem maior da relação; ativar a alegria de saber que uma túnica sobrante abriga agora o corpo de um irmão; a economia deve estar a serviço da vida e de todas as pessoas; reacender o impulso a ser “pacifistas ativos”, defendendo e protegendo os pobres e indefesos.
Encontramo-nos aqui diante da razão ética originária que não se baseia tanto numa compreensão da realidade, mas na compaixão com a pessoa do “outro”, excluído, pobre, dominado, marginalizado... Lucas apresenta a mensagem de João Batista a partir de uma perspectiva ética, que pode e deve aplicar-se a todos os povos. Deixa de lado os aspectos exclusivamente religiosos (confessionais) de sua mensagem e o condensa em um programa ético de deveres sociais, que se aplicam primeiramente a todos os homens e mulheres e logo a dois grupos especiais: os publicanos e os soldados.
Esta é uma mensagem muito simples. Não precisa reuniões episcopais, nem conselhos de países, nem comissões internacionais. É uma mensagem imediata e próxima, de comunhão humana, pacífica, generosa. É uma mensagem que crê no ser humano. Não se trata de “matar” os publicanos e os soldados, mas de descobrir que também eles são humanos, iniciando a grande revolução da igualdade e partilha de bens.
Esta é a moral natural de João Batista. Este é para Lucas o ponto de partida para chegar ao evangelho. Jesus vai além (é gratuidade). Mas, para chegar a Jesus é preciso passar por João Batista. A resposta de João Batista não é teoria vazia. É através de gestos e ações concretas de justiça, respeito, solidariedade, partilha e coerência cristã que se vai construindo um tecido social mais digno de filhos(as) de Deus, realizando as transformações radicais e profundas que as pessoas e a sociedade tanto necessitam. Frente a diferentes públicos, João não faz alusão nenhuma à religião; o que ele pede a todos é melhorar a convivência humana. O envolvimento com o “outro” nos conduz à autenticidade, à libertação de apegos e avareza, à liberdade para partilhar e receber e a uma imensa felicidade.
A “sensibilidade solidária” suscita em nós um desejo novo que articula um novo horizonte de sentido às nossas vidas e gera um horizonte de utopia e de esperança por um mundo justo e fraterno. A solidariedade é a não-violência em ação; é a fonte de todas as qualidades espirituais: a capacidade de perdão, a acolhida compassiva, a tolerância e todas as demais virtudes. Além disso, é a que de fato dá sentido às nossas atividades cotidianas e as torna construtivas.
A solidariedade permeia e ressignifica, assim, toda a nossa existência. Não é um evento, um ato isolado. Ela torna oblativa a vida em suas diferentes expressões, fermenta o cotidiano de nossas existências, infunde sentido e razão de ser àquilo que somos e fazemos.
Nas experiências de “convivência” com os pobres adquirimos os valores evangélicos da capacidade de celebrar, da simplicidade, da hospitalidade... Eles tem um jeito de nos trazer de volta para o essencial da vida. Eles são uma fonte de esperança, uma fonte de autenticidade. Eles se tornam nossos amigos.
Importa, portanto, “re-inventar” com urgência a solidariedade como valor ético e como atitude permanente de vida; não uma solidariedade ocasional, mas uma solidariedade cotidiana que se encarna nos pequenos gestos de inclusão do dia-a-dia. Na criação da “nova comunidade” dos(as) seguidores(as) de Jesus, a partilha substitui a acumulação e a abertura aos outros se apresenta como alternativa às relações interpessoais de opressão e exclusão; aqui está configurada uma das propostas mestras na proclamação do Reino de Deus.
Com nossos gestos solidários nos mobilizamos e nos aproximamos do Senhor que chega. Neste dia Deus discernirá entre o trigo e a palha que existem em nossa conduta. Vivemos a cultura da “palha”, que nos força permanecer na superficialidade, na aparência, na exterioridade da vida, impedindo-nos perceber o trigo presente em nossa interioridade.
Vivemos, muitas vezes, imersos em meio a tanta palha que nos afoga e nos incapacita viver a cultura do encontro solidário. De fato, a cultura da superficialidade, da aparência, da vaidade... são as marcas de nossa sociedade atual; marcas que nos desfiguram e nos desumanizam. Só quem sai de si em direção ao outro, através de gestos solidários, é capaz de peneirar a palha para deixar emergir o trigo de vida que carrega dentro.
Somente a “sensibilidade solidária” será capaz de fazer a pessoa retornar à sua casa, ao centro, ao seu eu profundo; só ela ativará os recursos consistentes, os pontos de luz, o trigo que carrega dentro. O ego não ama ninguém além de si mesmo, atendendo apenas às suas próprias necessidades e à sua própria gratificação. Sofrendo de uma falta total de compaixão ou empatia, ele pode ser extraordinariamente cruel para com os outros. Ele não se dá conta de que vive fechado em si mesmo, prisioneiro de uma lógica que o desumaniza, esvaziando-se de todo dignidade. Aumenta seus celeiros, mas não sabe ampliar o horizonte de sua vida. Aumenta sua riqueza, mas diminui e empobrece sua vida. Acumula bens, mas não conhece a amizade, o amor generoso, a alegria e a solidariedade. Não sabe compartilhar, só monopolizar.
Finalmente, acaba-se por criar uma dura cortiça que defende e isola a pessoa do entorno e que a aliena numa insensibilidade para com tudo aquilo que não seja sua própria realidade. É uma espécie de "embriaguez" na qual a alteridade desaparece.
A verdadeira riqueza é investir numa única fortuna: a do amor, do favorecimento da vida, a do descentramento de si, o do encontro solidário em favor dos mais pobres e desfavorecidos.
Texto bíblico: Lc 3,10-18
Na Oração: Segundo o Batista, a conversão exige “saber peneirar” (saber selecionar ou eleger), “recolher o trigo” (ir ao essencial e não ficar na superfície) e “queimar a palha” (eliminar o que não serve ou o que imobiliza); acolher a Boa Nova da vinda do Senhor requer essa conversão.
- Se sua vida “passar pela peneira”, o quanto de trigo permanecerá? O quanto de palha deve ser lançado fora?
Pe. Adroaldo Palaoro sj
“Esta é a voz daquele que grita no deserto” (Lc 3,4)
Em um mundo no qual há tanto ruído não é fácil prestar atenção às vozes carregadas de vida e que movem à vida. Talvez porque entre tanto palavreado crônico a melhor solução é desconectar-nos, ou por preguiça, ou por impotência, ou pela tentação de querer falar, sem parar. Quem sabe, o excesso de problemas, inquietações, projetos e ideias confusas que se movem por dentro, petrificam nossa própria interioridade. Ou ainda, porque no mundo há tantos discursos vazios, violentos e preconceituosos que, ao nos causarem asco, alimentam em nós uma inércia ou uma atitude cética.
Diante dessa realidade, o tempo do Advento nos apresenta como referência e estímulo a voz de João Batista. Ele não quis renunciar sua voz, apesar das incompreensões e das resistências; sua voz se converteu no apelo a modificar a ordem das prioridades, na voz das minorias, na voz que movia a assumir um outro estilo de vida, na voz que ajudava a descobrir que a pessoa está acima de tudo, na voz que sempre deve estar a favor da vida.
Essa foi a missão de João: ele aparece no deserto não como um sacerdote que convida ao culto, mas como um profeta que proclama a mudança, a conversão, a abertura à novidade d’Aquele que está chegando. É uma voz que clama, mas João é muito mais que uma palavra; João é toda uma vida que se faz palavra. Ou melhor, é a palavra feita vida, revestida de vida. Nos profetas fala a voz mas, sobretudo, fala a vida.
No Advento, a voz de João, que grita no deserto, ressoa em nosso próprio interior, destravando nossa voz, tantas vezes silenciada por uma cultura que impõe sua voz interesseira. Cada um de nós tem, todo dia, a oportunidade de fazer escutar a própria voz. É necessário levantar nossa voz para despertar e ver as coisas a partir de outro ponto de vista, para transgredir esses discursos de morte e preconceito que o contexto, no qual vivemos, quer nos transmitir e que tanto nos desumaniza.
É necessário tomar consciência que, se renunciamos nossa voz, renunciamos defender nossa maneira original de nos fazer presentes numa realidade de exclusão e de propor outra maneira de viver, mais livre, aberta e expansiva. Por tudo isso, como João Batista, expressemos nossa voz sem complexos, mas com o máximo respeito, cheia de ternura e não entrar no barco das vozes furiosas, carregadas de linchamento, de revanches e incompreensões para com quem pensa diferente, crê diferente, ama diferente. Por tudo isso, não renunciemos nossa voz, não renunciemos enriquecer nosso entorno com nossa voz original, porque vozes inspiradoras, em momentos especiais, farão a diferença.
Em segundo lugar, “ouvir a voz de João” nos sensibiliza a escutar outras vozes, carregadas de vida e mobilizadoras de vida. Os personagens do Advento nos tornam sensíveis às verdadeiras vozes que tem a magia de nos tocar a fundo e despertar o impulso para entrar em sintonia com elas.
O fato é que, às vezes, nos acomodamos a viver em bolhas, onde, raras vezes, entram vozes que nos comovem de verdade. E, no entanto, debaixo da parafernália de gritos, ruídos, anúncios, apelos publicitários e frases feitas de mau gosto, continua brotando vozes cheias de verdade, vozes que vale a pena serem escutadas.
Estamos rodeados de diferentes vozes; quem sabe, por detrás de muitos gestos, palavras, gritos... não estarão vozes que pedem ajuda, ou que simplesmente expressam dor, insegurança, medo, clamando por uma presença acolhedora. É claro que não vamos estar o dia todo falando com o coração na mão e os olhos úmidos de lágrimas, desnudando nossa intimidade. É possível que na vida cotidiana continuaremos falando com nossa gente das coisas mais cotidianas. O verdadeiro desafio é aprender a escutar, por debaixo de diferentes vozes, a palavra profunda, o canto tranquilo ou o pranto escondido.
Há outros lamentos, não tão escondidos, que deixamos de escutar, talvez porque se chegássemos a ouvi-las, nos deixariam profundamente impactados, pois, poderiam provocar-nos uma sensação de impotência e de fracasso enorme. São vozes que não tem nada que decifrar, claras, rotundas, honestas. São as vozes dos excluídos de todo o tipo: pobres, famintos, vítimas de preconceito, aqueles homens e mulheres que sofrem a intolerância e a indiferença.
Às vezes, essas vozes nos conduzem a um dilema: para quê escutá-las, se não podemos fazer nada? Para tornar a vida mais amarga? Para sentir uma culpa que não é nossa? Aqui não se trata de fazer discursos voluntaristas ou demagógicos acerca do mal no mundo. O verdadeiro desafio é ampliar dentro de nós um espaço no qual outras vozes possam ressoar, recordando-nos que ainda há muito por fazer para continuar construindo o Reino de Deus, onde todo ser humano possa viver com sua dignidade assegurada; para fazer-nos conscientes do quanto nossa vida tem de benção, e, ao mesmo tempo, o quanto somos responsáveis por todo bem recebido...
Na vida cristã entende-se o viver como uma arte que é preciso praticar. A vida não é um azar, nem um destino, nem um enigma a resolver. A fraternidade evangélica é uma escola da vida e interação, onde cada pessoa inter-atua com os demais e encontra liberdade para expressar sua voz e acolher a voz do outro. Frente ao diferente, o tempo do Advento contém muitas possibilidades: pode gerar variadas combinações e sinergias. Advento é como um calidoscópio que combina uma infinidade de vozes e cores. As vozes dos diferentes encontram seu espaço, se identificam e potenciam a relação mútua. Todos, tendo um só coração e uma só voz, alimentam a unidade na diversidade.
A condição para descobri-las é “levantar os olhos”, ir mais além do imediato que nos cega e nos prende em redes de desejos insatisfeitos, em obsessões por conservar modos de vida que consideramos definitivos, em temores que embotam nosso coração impedindo o fluir da vida.
“Preparai o caminho do Senhor”. Como abrir caminhos para que os homens e mulheres de nosso tempo possam encontrar-se com Aquele que vem? Deus chegará por outros caminhos, totalmente diferentes dos caminhos que estamos construindo habitualmente. Deus não pode vir ao nosso mundo de hoje enquanto não construirmos caminhos mais planos de acolhida, solidariedade e partilha. Deus não pode vir nem entrar pelos caminhos diante dos quais foram construídos muros e valas, impedindo o acesso dos excluídos e perseguidos. Deus não pode entrar na história através de caminhos que desembocam nos corações carregados de ódio, de indiferença, de fanatismo e de preconceito para com tantas vítimas de poderes que desumanizam. Os personagens políticos e religiosos nomeados (Pilatos, Herodes, Anás, Caifás...), apesar de seus poderes e intrigas, não conseguiram extinguir a esperança que a voz profética de João convocava, a partir da periferia. Advento, é tempo de resistência.
Texto bíblico: Lc 3,1-6
Na oração: Pense em tantas vozes rompidas que às vezes ficam silenciadas pelo contexto social onde você vive. Peça a Deus que lhe ajude a ouvir e não perder nunca a capacidade de comover-se diante das:
- vozes daqueles que estão privados do mais necessário;
- vozes que são caladas por todo tipo de discriminação;
- vozes daqueles que são vítimas de intolerância e preconceito;
Pe. Adroaldo Palaoro sj
Um ramo sairá do tronco... brotará das raízes. Assim profetiza Isaías (11, 1).
Talvez o profeta fizesse alusão à videira. De folhagens e frutos frágeis, possui raízes e troncos fortes, de tal modo que, mesmo depois de uma queimada ou de uma devastação, é possível recuperar sua matriz vital. Após a catástrofe do povo, Deus ainda suscitará o Messias de suas raízes. Jesus é o fruto bendito do Espírito de Deus que germina e dá vida nova às raízes feridas da humanidade. Do germe da fé, virá o Salvador. Daquele silêncio divino e da indiferença humana, o Verbo... Para o profeta, o Messias não será um novo Davi, mas anterior a ele mesmo, do pai de todos os reis, de Jessé brotará a mais íntima e virginal esperança do Povo de Deus... Maria será a fé mais virginal encontrada por Deus para brotar o seu e o nosso Messias. O ramo da vida é brotado do ventre de Maria. Da súplica do ventre de Maria, da profundidade do crer humano, a Palavra encarnada.
Tempo de iluminar o céu...
Na fragilidade do ramo, a grandeza do tronco e a força das raízes, de Deus. Do alto da cruz, como no madeiro da manjedoura, o mesmo corpo nu, frágil e despojado de tudo. O corpo delicado, como novo ramo do tronco ferido e maltratado pela violência humana, torna-se o próprio corpo Dele, a Igreja. O corpo que se tornou o madeiro... do tronco fincado no calvário, sem sopro, sem luz, dilacerado para não mais viver... nasce a vitalidade do novo Povo de Deus. A menor dentre todas as hortaliças, que faz abrigo para os pássaros... para os passantes do caminho rumo ao céu. Que lança seus ramos pela extensão do mundo. Celebrar o Advento é sempre retornar às raízes mais íntimas da fé e do amor, às raízes de Deus em nós, entrelaçadas em nossa história humana...
Do pavio que se apagou, da impossibilidade do crer humano, ressurge a fé de Deus que ilumina a humanidade com a sua Luz... O jeito de Deus é eternamente o mesmo: ressurgir do caos, a vida; do crucificado, o Ressuscitado; do fracasso, a misericórdia salvadora; da vela que se gastou, o vigor da chama... Para tanto, é possível e urgente também hoje crer!
Advento é o tempo da espera de Maria, a mais prudente dentre todas as virgens. É o tempo de nossa espera. Também é o tempo da perturbação: como será isso se não conheço homem algum? Não conhecer homem algum é também a nossa inquietude: como se concretizará hoje o projeto salvífico de Deus, se ainda nos falta humanidade? No entanto, Advento é a meditação silenciosa da vontade de Deus. E do fruto da resposta: Emanuel. Advento é quando o céu sente a temporalidade da terra, à espera da resposta de Maria, após o anúncio do anjo. E é a resposta de Maria, o seu amém, matéria de sua vontade e de sua adesão que permitem a encarnação, a matéria da Revelação plena de Deus: o Verbo se fez carne.
É o tempo do silêncio
O frágil barro é revigorado no sopro de seu oleiro. No sopro de seu criador. Daquele não entender humano, a perfeita sabedoria de Deus que nos surpreende quando a vida parece carecer de luz e transparência. Ele vem clemente para congregar os que se encontram na ofensiva... reunirá o que está disperso. O vaso é Maria. E, dentro dele, a graça de Deus. O vaso é a humanidade. Barro e sopro se reúnem. A história do homem terá sempre o ato de Deus.
É tempo de gerar o Natal, que só o é se brota como clamor das vísceras da pessoa humana. Só há natal verdadeiro se advir aquele grito das raízes do coração: Vem, Senhor Jesus. Há natal quando o ramo renasce do tronco machucado das profundas e extensas raízes de Deus, que abraça a terra humana. É o tempo do silêncio da carne, do silêncio da terra que escuta... tudo é silêncio até ecoar numa noite iluminada um choro de criança. Assim Deus fala ao mundo!
Advento é tempo de, aproveitando as chuvas veraneias da graça de Deus, enxertar de novo a fé em nossa carne. É o tempo do enxerto, tempo de ferir nossa temporalidade. O advento tem de ferir-nos... Uma ferida que chegue a nos incomodar, que nos interrogue, que procure em nós uma resposta: como será isso? Como brotará a flor desta carne ferida?
É tempo do Advento do silêncio de Zacarias. Da profecia que silencia, que aguarda a promessa. E do Advento de José. Do sonho de Deus gerado no coração do homem, da cultura, da história... É tempo do Advento dos magos do oriente: a procura da luz... Da busca de uma inteligibilidade para a fé. Jesus é a fé inteligível. Não seja este o advento de Herodes, que disse também querer adorá-lo. Para este tipo, o Natal jamais chega, nunca atinge a profundidade existencial, não germina.
É o nosso tempo no tempo de Deus
O advento é caminho para o Messias encarnado, morto e ressuscitado. É caminho para o Messias esperado... E este Messias vem ferir nossa humanidade, romper nossas raízes, afim de que, com o cheiro de pasto dos pastores e a melodia dos anjos, também proclamemos: Glória a Deus nas alturas...
Enquanto a esperança for queimada até no seu tronco e cortada até em suas raízes e crucificada sob o solo santo, como crer na nova humanidade? Por isso, clamamos aos céus que façam chover a justiça e brotar do madeiro ferido do Povo de Deus um tempo de paz... Que a humanidade, banhada pelas novas águas da misericórdia, neste tempo favorável, se renove na ternura do Menino Deus, na eterna novidade do broto das raízes de Jessé.
Pe. Gilvair Messias
Padre da Diocese de Guaxupé-MG e mestre em teologia.
“Tomai cuidado para que vossos corações não fiquem insensíveis...” (Lc 21,34)
Com o Advento, começamos um novo ano litúrgico, um tempo que sempre nos fascina. O ser humano, ferido pela estreiteza da vida, imposta pelo seu ego, descobre a fragilidade, o medo, a dor, o sem-sentido, pelo qual volta a gritar a seu Criador, buscando, suplicando de novo que lhe envie um raio de luz. Desolado pela experiência do sofrimento, da violência, da intolerância, da solidão e do medo, dirige novamente seus olhos para “Aquele que está à vista”. O Advento é o tempo mais adequado à nossa existência atual. Queremos intuir algo novo, reacender nossa esperança, alimentar uma presença inspiradora nesse contexto social no qual vivemos, carregado de trevas e abalos sísmicos.
O Tempo do Advento tem algo de belo e atraente que mobiliza o nosso coração a entrar em outra sintonia; tal qual um sedutor, ele revela sua capacidade para debulhar dias até completar um tempo que vai nos guiando em direção ao Natal. Um tempo tão tranquilo, tão sussurrante, como um manancial que, em silêncio, vai espalhando vida em todo seu entorno. Tempo que nos convida a sonhar e a viver despertos.
Vários personagens que emergem no Advento, com sua maneira original de ser e de viver, vão se tornando familiares; eles nos acompanham neste tempo inspirador, ativando em nós uma ousada esperança e um outro modo criativo de nos fazer presentes no contexto social, tão carente de esperanças.
Isaías nos ensina como viver o sempre jovem Advento; ele nos ensina a gritar esperança no sofrimento, a confiar em tempos melhores, a provocá-los. Este homem tão sensível nos diz que somos nós que devemos dar um colorido especial à vida e que Deus é como um tição fumegante que abrasa a nossa vida. Poeta do futuro, Isaías nos ensina a viver carregados de entusiasmo, gestando a paz.
João Batista, aquele do dedo que aponta o caminho novo e o Novo. Sim, João, o parente austero, impaciente, metódico, que pergunta sem rodeios: “és tu Aquele que há de vir ou devemos esperar outro?”
João também se revela como um bom mestre porque nos recorda que, com muito pouco se pode viver, e que a qualidade de vida é dada pela relação com Deus, que sempre nos surpreende. Ele nos anima a viver com simplicidade e a gritar sempre que o Reino de Deus está próximo, tão próximo, que o temos colado em nosso interior.
Maria, a mulher bendita e abençoada de Nazaré, a do anúncio original, a filha de Sião que recebeu de novo a Ruah Santa, a que interpelou o anjo até que ambos se puseram de acordo no “sim”. Diante dela, nos inclinamos admirados, porque ela, que pronunciou poucas palavras, no entanto, gestou a Palavra em seu ventre. Maria nos diz agora, no Advento, que o coração deve ser grande para poder guardar nele todas as coisas em silêncio.
Tudo é permanente Advento, transformação, movimento. Espaço em expansão, interioridade que se abre, braços que se unem. Seu ardor nos inspira, sua esperança nos alenta. Há uma eternidade que devemos inaugurar cada dia, em cada instante: a eternidade da vida expansiva, justa e ditosa. Esperar é transformar este mundo em outro mundo humano, fraterno, e muito mais feliz. Esperar é derrubar o que impede viver. Se esperamos, podemos.
Não encontramos melhor maneira de traduzir a linguagem apocalíptica de Lucas a não ser fazendo referência ao mundo da construção. O toque de atenção que ressoa no evangelho deste domingo nos chama a derrubar e a construir. Lucas nos fala de sinais cósmicos, de sismos e desmoronamentos. Justamente ali onde algo se desmorona, é onde aparece espaço livre para uma nova construção.
Há um mundo que deve acabar: este mundo contaminado pelo “deus dinheiro” e pelo mercado; este mundo que gera exclusão e violência; este mundo que abafa a “cultura do encontro” para alimentar a “cultura da indiferença e do preconceito”; este mundo que faz opção em favor da morte...
Nada nosso é tão caduco que não permita um projeto novo. Nada é tão antigo que não tenha algo aproveitável. As calçadas velhas das cidades, os antigos casarões, o centro histórico, se remodelam conjugando o velho e o novo. O resultado costuma ser uma nova obra de arte. Cada um de nós é convidado, no início deste Advento, a uma “reabilitação ou remodelação” de todo nosso ser. Entrar no fluxo inspirador deste tempo nos leva, cada dia, a desfazer e refazer. Uma fé que se paralisa e não avança é como um edifício que se faz velho.
O Advento nos mantém erguidos e com dignidade, afugentando o medo, denunciando a injustiça que provoca exclusões e sofrimentos, aplicando o antídoto do amor contra a imbecilidade do ódio, da intolerância e da manipulação. Por isso, as expressões do evangelho: “tomai cuidado”, “ficai atentos”, “orai a todo momento”, são gritos de ânimo e gritos de construção de futuro. Talvez, para alguns, a única coisa que precisa fazer seja pintar a casa, ou mudar algum cômodo. Para outros, a obra será de maior envergadura. E, quem sabe, para outros ainda, o futuro depende de uma reestruturação mais a fundo da vida: esvaziá-la e reconstruí-la.
A obra de Deus em nós consiste em que derrubemos o que construímos, segundo nossos gostos e egoísmos, e não segundo o querer d’Ele. A Deus lhe agrada um coração com estâncias cheias de luz e de sol, liberadas de apoios inúteis, capazes de acolher a todos. Como estar atentos(as) ao Deus que em cada Advento quer dar à luz algo novo em nossas vidas, em nosso contexto, em nosso mundo, embora pareça que não temos mais idade, como aconteceu com Isabel, a mãe de João Batista e continue rompendo nossas lógicas, como aconteceu com Maria de Nazaré?
O que realmente mata o ser humano é a rotina sem sentido; o que lhe salva é a criatividade, a capacidade para vislumbrar e resgatar a novidade. Se contemplarmos a realidade em profundidade, tudo é sempre novo, diferente e em constante mudança. Participar desse movimento de mudança que chamamos vida é a única promessa sensata de felicidade.
O Advento nos provoca a perfurar a realidade para nela ler a vida, os acontecimentos, mais além da superficialidade e da banalização que se impõe a todos nós. Perfurar a realidade é buscar, na densidade dos acontecimentos e do próprio coração, os respiradouros de Evangelho, por onde o mistério de Amor e Vida Plena revelam sua face e nos urgem a impulsionar seu dinamismo na história. Por isso, é preciso focalizar nosso olhar, pôr lupa, afinar a sensibilidade para detectar as pegadas da misericórdia criativa, resiliente e fecunda de Deus em nosso mundo e no nosso próprio coração.
Que é Deus senão este Advento e Presença que é e que vem, Calma vivente, Coração latente no qual somos e respiramos?
Texto bíblico: Lc 21,25-28.34-36
Na oração: Os caminhos de Deus têm desertos difíceis, mas sempre anunciam a “terra prometida”.
Os caminhos de Deus têm momentos de tremores e abalos sísmicos, mas nunca falta a Boa Notícia de uma vida nova. Desparecerá a obscuridade, porque sempre há um amanhecer.
Deus não anuncia finais; Deus sempre anuncia começos; Deus não anuncia entardeceres, mas amanheceres.
O importante é que nossas vidas não estejam embotadas e incapacitadas de ver a nova luz.
- Fazer memória dos abalos em sua vida que foram ocasião privilegiada para expandi-la em novas direções.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
Todo aquele que é da verdade escuta a minha voz” (Jo 18,37)
É muito importante que tenhamos uma pequena ideia sobre o momento e o motivo que levou o Papa Pio XI, em 1925, a instituir a festa de Cristo Rei. A Igreja estava perdendo seu poder e seu prestígio, acossada pela modernidade. Com esta festa, tentou-se recuperar o terreno perdido frente a um mundo secular, laicista e descrente. Na encíclica o papa dava as razões para instituir a festa: “recuperar o reinado de Cristo e de sua Igreja”.
Ao confessar Cristo como Rei universal queria-se, com isso, veicular o desejo de que também a Igreja fosse testemunha e participante já aqui na terra dessa realeza; em outras palavras, uma realeza de Cristo reconhecida, redundava inevitavelmente em uma igreja respeitada, favorecida pelo Estado, com alto status na sociedade, forte e organizada, que, embora já não podendo mais revestir-se de poder político temporal, pelo menos pudesse participar dele através de uma relação estreita e harmoniosa.
A intenção da festa pode ser boa, mas o título atribuído a Jesus não poderia ser de seu agrado. Embora muitos estejam ainda centrados na visão de uma Igreja que busca poder, prestígio, riqueza... a partir da imagem do Cristo Rei, na realidade, o que celebramos é uma radical mudança de linguagem: Jesus rei servidor, que se coloca a serviço dos mais desfavorecidos, sem poder, sem glória, sem pompas... Podemos conservar o título, mas mudar a maneira de entendê-lo; Jesus é “Rei do Universo” quando a paz, o amor e a justiça reinarem em todos os rincões da terra, quando todos forem testemunhas da verdade, quando em todos os ambientes a mesa do Reino se tornar mesa de inclusão e de acolhida...
Portanto, qualquer conotação que o título tenha com o poder e com as pompas, esvazia a mensagem de Jesus. Uma coroa de ouro na cabeça, um cetro brilhante nas mãos, um manto tecido de brocados e pedras preciosas, são muito mais degradantes que a coroa de espinhos e a cana que os soldados colocaram em suas mãos no momento do seu julgamento. Ali, diante do poder violento e corrupto de Pilatos, Jesus, açoitado e coroado de espinhos, se mostra sereno e revela a plena humanidade de um Rei sem reino; um rei das nações de exilados, do povo sem lar, dos desamparados..., que prefere o poder do amor ao poder da força e da violência.
Há uns domingos atrás, Jesus nos dizia que aquele que queria ser o primeiro, deveria ser o último, e aquele que queria ser grande deveria ser o servidor de todos. Esse afã de identificar Jesus com o poder e a glória, não será acaso uma maneira de justificar nosso afã de poder, de prestígio, de nos impor sobre outros? Não será porque nós cristãos temos projetado n’Ele nossa necessidade de grandeza?
Reinar e ter poder é objeto de desejo de extraordinária magnitude e fascínio para o ser humano. Seu brilho encanta e seduz; sua proposta é extremamente atraente; para muitos, é a suprema ambição. Não há ser humano que não tenha sido tentado pelo canto desta sereia.
“Reinar”. Em nosso mundo reina o terror, reina a miséria, reina a exploração, reina a vingança, reina o negócio sujo, reina a violência, a intolerância, o preconceito... Quando em nosso mundo reinar a confiança mútua, quando todos viverem a cultura do encontro, quando não houver excluídos nem sofredores, quando os negócios forem honrados, quando formos capazes de compartilhar e de acolher o diferente..., então poderemos começar a atribuir o título de Rei a Jesus e proclamar que Ele reina.
Jesus acreditou na força da semente, no poder do fermento, na criatividade dos pobres, no dinamismo incomparável do Espírito, mas a partir de dentro, a partir da humanização dos corações. Por isso, Jesus é Rei porque deixou transparecer sua “realeza interior”: o que n’Ele era mais humano e divino, a sua verdade, seu ser verdadeiro..., no mais profundo de si mesmo. Realeza que se visibilizava no encontro com o outro. Jesus destravava e ativava a realeza escondida em cada um, desvelava a verdade mais nobre presente nas profundezas de cada pessoa.
Dentro do processo de Jesus frente a Pilatos, segundo o quarto Evangelho, ocupa um lugar destacado a questão sobre a verdade; ali o título de “rei” é identificado com ser “testemunha da verdade”. Jesus é consciente, como os grandes sábios, de viver na verdade de si mesmo, porque se adentrou no “território” de sua verdadeira identidade. A Verdade estava na sua atitude de vida. Esta era a Verdade. O convite de Jesus é, portanto, absolutamente inclusiva: toda pessoa que, a partir de uma atitude de busca sincera e humilde, se “adentre” na experiência de sua própria verdade, sentirá necessariamente a “sintonia” com Ele, assim como com todos aqueles(as) que o seguem e vivem de maneira verdadeira e transparente. Portanto, o verdadeiro sentido do seguimento de Jesus e a fé madura em Deus não se reduzem à segurança e firmeza em umas determinadas verdades; mais importante que as verdades de nosso saber é a humanização de nossas atitudes.
“Vim ao mundo para dar testemunho da verdade”. Jesus não se refere a verdades doutrinais ou científicas; Ele está falando da autenticidade de seu Ser; Ele está falando da verdade de seu Ser e da verdade de todo ser humano. Jesus é rei porque vive na verdade, vive na transparência; Ele é verdadeiro porque revela o que é mais nobre em seu coração e no coração de todos os seguidores(as); não usa máscara, é pura transparência do rosto do Pai.
Jesus é o Homem autêntico, a referência de ser humano, o ser humano verdade. Jesus é a última referência para todo aquele que queira deixar transparecer em sua vida a verdadeira qualidade humana. Em certo sentido, poder-se-ia dizer que a verdade não passa pela mente, mas pela vida; nem pelo pensar de uma determinada maneira, mas por ser e viver de um modo humano e inspirador. Por isso, frente ao fanatismo e intolerância que denota fechamento e estreiteza de vida, a verdade requer abertura humilde, questionamento e flexibilidade.
O importante não é ter a verdade, mas ser verdadeiro. A pessoa verdadeira pode entrar em ressonância e em sintonia com a verdade do outro. O intolerante, o preconceituoso julga ser dono da verdade e quer impô-la sobre os outros. A verdade não é um dogma e sim um caminho. Quanto mais verdades absolutas, mais estreito vai ficando o nosso mundo. A humanidade busca a verdade, mas também pode asfixiá-la. Costuma-se calar a verdade que incomoda. Também existe sempre a tendência de querer impor, pela força, pelo medo, aquilo que se acredita ser verdadeiro. “A verdade também pode ter suas vítimas”.
Texto bíblico: Jo 18,33-37
Na oração: precisamos dar passos em direção a maiores níveis de verdade humana e evangélica em nossas vidas, nossas relações, nossas instituições...
* o que há de verdade e o que há de mentira em nosso seguimento de Jesus? Onde há verdade que nos humaniza e onde há mentira que nos atrofia?
Pe. Adroaldo Palaoro sj
“...ficai sabendo que o Filho do Homem está próximo, às portas” (Mc 13,29)
Estamos no penúltimo domingo do “ano litúrgico B” e o evangelho deste domingo é tirado do “discurso escatológico” ou “pequeno apocalipse” de Marcos (cap. 13). Este capítulo faz a ponte entre a vida pública de Jesus e sua Paixão. Escatologia, procede da palavra grega “escatón”, que significa “o último”. Ao pro-por leituras que fazem referência “aos últimos tempos”, a liturgia quer nos convidar à “vigilância” e à atenção ao tempo presente.
O discurso escatológico, que encontramos em Marcos, quer recordar algumas convicções que deverão ali-mentar a esperança dos(as) seguidores(as) de Jesus. O anúncio esperançador é reforçado pela imagem da figueira que, carregando-se de brotos, anuncia a primavera. Esse é nosso destino: caminhamos para uma Primavera que não conhecerá ocaso. A certeza disso está enraizada na promessa de Jesus: “O céu e a terra passarão, mas minhas palavras não passarão”.
O Evangelho deste domingo tem muito de inverno e tem muito de primavera. Primeiramente, fala-nos desse momento final, onde tudo parece terminar em cataclismo. Mas logo nos abre à primavera da figueira que começa a gerar novos brotos nos ramos ainda quase desnudos do inverno. E, finalmente, enraíza nossa esperança na Palavra de Deus. A realidade pode tremer, o céu pode ficar escuro, como se o sol tivesse apagado. No entanto, aí está a Palavra de Jesus que nos abre para acolher um “novo tempo”.
Se nos deixassem optar, certamente escolheríamos as estações da primavera e do verão. No entanto, não podemos imaginar um ano sem a estação do inverno. É possível que aconteceria uma catástrofe. Porque, no inverno, a terra se faz mais fecunda, a seiva se concentra nas raízes e fortalece as árvores; logo, elas poderão dar melhores frutos. No inverno, as plantas ficam hibernando para estarem mais sadias nas outras estações; no inverno a vida se retrai, parece que tudo morre; ele desnuda as árvores para que a primavera possa vesti-las com novas folhas. O inverno é estação de silenciosa transformação que começa nas profundezas das raízes.
A vida passa por contínuos invernos: as dúvidas, os momentos de obscuridade, as tribulações, a desolação, o silêncio de Deus..., são o inverno da fé, mas não matam a fé; tais invernos nos fazem descer às raízes para concentrar energias e, assim, robustecer-nos e fortalecer-nos para um novo impulso vital.
Os incômodos do presente, os fracassos, a obscuridade diante do futuro, as crises sociais e econômicas, a onda de intolerância e preconceito..., são o inverno da esperança, mas não matam a esperança; pelo contrário, dão-lhe mais consistência e profundidade, gestando a surpresa de um novo tempo.
As palavras do evangelho deste domingo são muito fortes, pois põem um sinal de interrogação sobre toda nossa velha história, feita em grande parte de mentiras e injustiças, ódios e violências... Sobre este mundo, petrificado e indiferente, se anuncia e se prepara a vinda de Jesus, o Homem novo... Isso significa que serão destruídos os modelos atuais de vida, centrados no individualismo e no descarte, no poder e violência que excluem, na fria intolerância que cria muros... Este será um grande “desastre”; os “falsos astros” do céu da vaidade e do poder serão abalados e cairão.
Tomamos esta palavra “desastre” em seu sentido forte, como destruição da ordem astral onde se sustenta a vida da terra e a história da humanidade. Mas, no final, como no quarto dia da Criação (quando o Criador fixou a ordem da abóboda celeste, com o sol, a lua e as estrelas, por cima da terra, para iluminá-la e tornar possível a existência de vida), Deus novamente intervirá criando uma nova ordem de salvação, centrada no Filho do Homem (e não no sol, lua e estrelas que alimentam o ego social). Este mundo não será consumido, mas consumado, pois Deus reserva uma plenitude de sentido para a Criação inteira. Um dia Deus salvará definitivamente, mas essa salvação já começou, aqui e agora. Mas, o “desastre” não se refere somente a uma realidade exterior; o discurso escatológico nos convoca a dirigir o olhar para o nosso “mundo interior”, onde o ego brilha como o “sol”, a vaidade se revela como “lua”, a competição e a aparência nos fazem sentir como “estrelas”.
Vivemos hoje tempos complicados, difíceis...; partilhamos um momento de grande inquietude espiritual, de distúrbios existenciais, de profundos dilemas morais, de trágica opção pela morte e pela violência... Aqui, sempre se revela válido o alerta de Guimarães Rosa: “Viver é muito perigoso”. No entanto, resistimos! A esperança é um princípio vital, expresso na sábia constatação de que “enquanto houver vida, há esperança”. Também resistimos diante da memória das inevitáveis e sofridas experiências cotidianas, que poderiam deixar como consequência o medo, a perda do sentido da existência, o vazio de horizontes, o desânimo... O ser humano é um “animal teimoso”, pleno de esperança, sedento do novo...
Nem a fé, nem a esperança amadurecem na bonança. A esperança se fortalece na obscuridade e na crise. Nos momentos difíceis, a esperança se esconde nas raízes. Por isso, logo brota com mais força.
De onde nasce a esperança? Com certeza, não nasce aguardando que o problema se solucione, que a crise passe ou a situação mude. Esta atitude só produz saudade e passividade. A esperança está mais próxima de uma resposta ativa de rebeldia positiva frente à incerteza que nos desequilibra. Está profundamente conectada com a incansável construção do amanhã a partir do agora e do presente.
A condição humana pode ser definida em termos de "espera radical" ou de "esperança". Chamados a ser mais do que somos, abrigamos em nosso interior uma "insatisfação existencial", uma tensão entre o que somos e o que ansiamos ser. Porque nos definimos como radical espera, caímos na tristeza, quando vislumbramos um futuro ameaçador, ou caímos na euforia, quando pensamos alcançar algo que nos agrada.
Em meio às sombras, perplexidades, contradições, provocações e promessas, que constituem o atual momento histórico, queremos expressar a fé no futuro da nossa vida. Ainda que soframos ventos contrários e as nuvens se adensem no horizonte, sabemos e confessamos com o profeta Isaías, e pela graça do Espírito, que existe futuro.
Para ser fiel, é preciso seguir o Espírito, deixando-se surpreender pelos novos rumos que Ele aponta, seduzir pelos novos horizontes que Ele descortina, desafiar pelas novas provocações que Ele lança, a partir da realidade histórica e dos novos sinais dos tempos. Essa relação viva e dinâmica com o Espírito é fundamental para a vida cristã, em qualquer circunstância.
Sabemos que a esperança é algo constitutivo no ser humano. Para ele, viver é caminhar para um futuro. Sua vida é sempre busca de algo melhor. O ser humano “não só tem esperança, senão que vive na medida em que está aberto à esperança e é movido por ela” (H. Mottu). Por isso, quando numa sociedade se perde a esperança, a vitalidade atrofia, a marcha se paralisa e a vida mesma corre o risco de degradar-se. A esperança é como uma “memória do futuro”; tem caráter profético. Não se pode dizer que veja o que está por vir, mas afirma como se o visse. E, enquanto o anuncia, de certa forma, o prepara. Precisamente por vivermos tempos difíceis, precisamos mais do que nunca da pequena e teimosa esperança.
Texto bíblico: Mc 13,24-32
Na oração: O nosso coração está habitado por esperanças que nos abrem ao futuro imprevisível, benfazejo e plenificante.
O que nos diferencia é a qualidade, a consistência e o realismo das nossas esperanças.
- Em quê ou em Quem estamos colocando a nossa capacidade de esperar?
- Quê esperanças alimentamos em nosso interior?
Pe. Adroaldo Palaoro sj
“Esta pobre viúva deu mais do que todos os outros que depositaram no cofre” (Mc 12,43)
Encontramo-nos nos últimos versículos do cap. 12 de Marcos; só temos, pela frente, o discurso escatológico do cap. 13 e o relato pascal. Jesus, mais uma vez nos ensina. Embora o relato deste domingo se reduz a poucos versículos, tem uma profundidade enorme. É o melhor resumo que se pode fazer do evangelho. A simplicidade do relato esconde a mensagem mais profunda de Jesus: toda a parafernália religiosa externa não tem nenhum valor espiritual; o único que importa é o interior de cada pessoa.
Vivemos a cultura da superficialidade e da aparência e perdemos o caminho do coração; carecemos de interioridade, carecemos de humanidade.
Este simples relato deixa clara a crítica de Jesus à religião de seu tempo (e a de todos os tempos). N’Ele destaca-se a diferença entre religião e religiosidade, entre cumprimento de normas e vivência interior, entre os ritos programados e a experiência de Deus. Ainda não aprendemos a lição. Hoje continuamos dando mais importância ao externo que a uma atitude interior. À religião continua interessando-lhe mais que sejamos fiéis à doutrina, aos ritos e às normas. E a verdade é que nós mesmos continuamos dependentes da vaidade e da aparência e não de atitude vital, de onde flui nossa vida.
A crítica de Jesus aos escribas é dura, pois desmascara a falsa religiosidade deles. Em vez de orientar o povo a buscar a glória de Deus, atraem a atenção das pessoas para si mesmos, buscando sua própria honra. Mas há algo que, sem dúvida, dói mais ainda em Jesus que este comportamento fantasioso e pueril de ser contemplados, saudados e reverenciados. Enquanto aparentam uma piedade profunda em suas longas orações em público, aproveitam-se de seu prestígio religioso para viver à custa das viúvas, as pessoas mais fracas e indefesas de Israel segundo a tradição bíblica.
É inútil querer fazer bela figura diante de Deus, pensando que Ele se deixa impressionar pelas grandezas humanas. O Reino de Deus subverte as categorias humanas. Assim, o que é grande aos olhos humanos, é desprezível para Deus. E vice-versa: o que o mundo desvaloriza, encontra valor aos olhos de Deus. Mas Jesus, que acaba de criticar tão duramente os “controladores” do Templo e da Religião, descobre também a riqueza espiritual que uma pobre viúva manifesta, e reconhece que a maneira dela atuar deve ser referência para todos, porque é reflexo de sua atitude para com Deus. Distante de todo cálculo mesquinho, ela se deixa levar pelos sentimentos mais nobres. Jesus descobriu naquela mulher uma atitude esplêndida: o comportamento de alguém que espera tudo de Deus.
Precisamente, esta viúva vai desvelar (tirar o véu) da religião corrupta dos dirigentes religiosos. Seu gesto passou desapercebido a todos, mas tocou a sensibilidade de Jesus. O Evangelho nos diz muito pouco sobre ela; diz-nos somente que, enquanto para muitos olhos ela passa desapercebida, o olhar de Jesus, pelo contrário, a descobre e a eleva.
Encontramo-nos aqui diante de uma mulher sem nome, não sabemos se jovem ou idosa, somente sabemos que era viúva, que viveu perdas. E Jesus nos faz olhar a magnitude, a generosidade desta mulher em meio à sua pobreza e como ela se envolve no dom da entrega. Seu atrevido gesto torna-a aberta, vazia e disponível para deixar-se conduzir por uma Vida maior, para confiar na bondade do Mistério.
Não é uma mulher que anda escondida no anonimato, para que ninguém a veja colocar sua oferenda. Não está se esquivando do olhar dos outros. Não lhe dá vergonha colocar pouco no cofre, nem se sente grandiosa por depositar tudo o que tinha. Esta viúva não buscou honras nem prestígio algum; age de maneira calada e humilde. Não pensa em explorar ninguém; pelo contrário, dá tudo o que tem porque outros podem precisar. Segundo Jesus, ela deu mais que todos, pois não dá do que lhe sobrava, mas “ofereceu tudo o que tinha para viver”.
“Muitos ricos depositavam grandes quantias”. As moedas eram depositadas em uma espécie de funis enormes, colocados ao longo do muro do Templo. A ampla boca do funil de bronze permitia lançar as moedas de uma certa distância, fazendo muito ruído ao caírem. Os ricos podiam ouvir, com orgulho, o som de suas moedas ao se chocarem com o metal no interior do cofre. O que a viúva depositou foram duas moedinhas do mais baixo valor da época e que não emitiam sons ao passarem pela boca do funil.
Era preciso ter um ouvido bem apurado para descobrir esse gesto silencioso de uma mulher que vive como oferenda, porque não retém nada para si. Mas Jesus, com sua sensibilidade aguçada, chama os seus discípulos para observá-la, pois dificilmente encontrarão no ambiente do Templo um coração mais generoso e mais solidário com os necessitados. Gente simples que poderá ensiná-los a viver o Evangelho.
Por que o gesto da viúva chamou tanto a atenção de Jesus? É que Ele tem outra lógica para olhar os acontecimentos, não tem uma visão gananciosa, nem mercantilista. Ele vê além das aparências e descobre a generosidade e o desprendimento dessa pobre mulher que entrega tudo o que tinha. Jesus fica impactado pela gratuidade do gesto: ela tinha entre as mãos duas moedas e não duvidou, nem calculou quanto lhe dariam a prazo fixo se investisse em um seguro de velhice ou na poupança da Caixa. Pareceu-lhe que era melhor investir tudo em uma só cartada, a da entrega, a da totalidade, e toda ela estava inteira em sua eleição tão arriscada. Toma a decisão temerária de depositar no cofre do templo, e de uma só vez, as duas moedinhas que era tudo o que tinha para viver.
Dizia S. Ambrósio: “Deus não se fixa tanto no que damos, quanto no que reservamos para nós”. Aquilo que se guarda acaba se perdendo. A viúva, ao renunciar a menor segurança, manifesta a verdadeira grandeza. Oferecendo aquilo que lhe restava para viver, a mulher colocava-se toda nas mãos do Pai e fazia sua vida depender totalmente d’Ele. Reconhecia que tudo, em sua vida, era dom de Deus. Por isso, com toda a liberdade e sem a ânsia de possuir, foi capaz de arriscar tudo. Esta é a oferta que tem valor diante de Deus.
“Ofereceu tudo aquilo que possuía para viver”. Para captar toda a força desta frase final, temos que levar em conta que em grego “bios” significa não só vida, mas também modo de vida, recursos, sustento; seria o conjunto de bens imprescindíveis para a subsistência. Nós temos uma palavra que poderia se aproximar bastante da expressão grega: “víveres” ou “sustento”. Deu tudo o que constituía sua possibilidade de viver. Equivaleria a pôr sua vida nas mãos de Deus.
Eis a questão: passar de nossas mãos possessivas às mãos que se estendem para oferecer e partilhar. Aquilo ao qual estamos apegados nos ata, e o que retemos nos possui. Para viver uma sadia relação com os bens precisamos ser capazes de tomar, de abraçar e de soltar. O que nos impede estar disponíveis para Deus vai sendo afastado, e pouco a pouco vamos nos aproximando cada vez mais de nosso centro, ou seja, o nosso coração, onde as moedas não fazem barulho; são moedas cunhadas no silêncio do encontro com Aquele que é fonte de todas as nossas riquezas; e é no silêncio que essas moedas se expressam através dos gestos despojados do serviço, do compromisso e da partilha...
E, assim, a vida se faz uma oferenda contínua.
Texto bíblico: Mc 12,38-44
Na oração: Esta cena tão simples do Evangelho nos desafia mais uma vez, e nos vemos retratado nela; simplesmente temos que nos deixar interpelar pelo relato e tentar descobrir se nossa atitude de vida está mais próxima da dos escribas ou mais próxima daquela da viúva.
* o quê prevalece em mim: uma religião de aparência, de ritualismos, de moralismos (própria dos doutores da lei) ou uma religião do coração (simplicidade, generosidade, despojamento...) própria da viúva?
Pe. Adroaldo Palaoro sj
“Vinde, benditos de meu Pai!” (Mt 25,34)
Todos somos criaturas procedentes das entranhas d’Aquele que é Plenitude e Presença. Filhos e filhas de Deus, gerados pelos nossos pais, desde toda a Eternidade estamos em seu pensamento e em seu coração; daí nosso desejo de eternidade. Na Eternidade não há passado nem futuro, só Presente, aqui e agora.
Ao nascer, começamos a existir, mas já estávamos na mente e no coração de Deus; existir é ser no tempo; ao morrer, deixamos de existir, mas não deixamos de ser. Usando uma expressão poética podemos dizer que “somos suspiros de amor de Deus” e, tal como as ondas do mar que beijam a praia e retornam ao oceano que as constitui, assim nós também retornaremos à nossa Fonte original; seremos “aspirados” para dentro do coração oceânico do Deus Pai/Mãe.
Isso celebramos cada 2 de novembro: a esperança de que aqueles que morreram, já vivem ressuscitados para a Vida de Deus. No “Dia de Finados”, nós cristãos recordamos (visitamos de novo com o coração), na oração e no afeto, aqueles(as) que amamos e que já deixaram este mundo. Apesar de sua ausência física, pela fé sabemos que a morte não tem nunca a última palavra. De fato, a morte é a passagem para a Vida, para sempre; a Vida que não terá fim, pois nosso Deus não é Deus de mortos, mas de vivos. Porque para Deus, todos vivem.
Celebrar e recordar os falecidos a cada 02 de novembro e cada dia na eucaristia nos anima a viver a fé na Ressurreição e nos encher de esperança. A experiência cristã da morte parte de uma revelação básica: Deus não quer a morte, mas a vida, a vida plena para toda pessoa humana. “Tu perdoas a todos, porque são teus, Senhor, amigo da vida” (Sab. 11,26). Somos convidados à confiança em Deus, renunciando toda pretensão de querer controlar nossa existência; somos movidos a reconhecer que os momentos cruciais de nossa vida foram “dom de Deus”, mais que planificada construção nossa.
Morrer é o processo pelo qual nos “reintegramos” na Vida que sempre fomos.
Somos viventes mortais e honramos os nossos mortos, aqueles cuja recordação ainda nos afeta. Mas todos os mortos, grandes e pequenos, santos e pecadores, são nossos, somos de todos eles, pois a mesma vida nos une na morte, e a mesma morte nos une na vida. O que eles(elas) foram na vida agora faz parte do que somos, e nossa vida deve restaurar e completar o que eles não alcançaram viver. Nisso consiste honrar os mortos: em dar culto à vida, em cultivá-la, cuidá-la, curá-la neles e em nós.
Celebrar o dia de Finados é um ato de justiça para com os mortos. Os mortos também tem direitos e é bom que se reconheça isso. Vivemos uma cultura que extingue o passado, obscurece o futuro e fica preso a um presente emocional vazio. Os mortos têm direito a que lhes agradeçamos sua vida e a marca original que nos deixaram.
Celebrar e recordar aqueles que nos precederam é negar à morte a última palavra, é afirmar que a Vida é a palavra definitiva; recordar aqueles com os quais convivemos nos faz viver a partir das raízes humanas, ancorados em nossa existência cotidiana.
Não querer ver a morte de frente, ignorá-la, apagá-la de nossa vida, fazê-la invisível..., é perder humanidade, é um autoengano sobre a condição humana frágil, banaliza-se a mesma vida que acaba não valendo nada. Quando a morte é “consumida” diariamente nos noticiários, só se ativam emotividades instantâneas que não levam a nada, ou a uma resignação estéril diante do que acontece.
Pensamos que a morte é o contrário da vida e essa lógica é falsa. A vida é como uma moeda que tem duas faces: uma é o nascimento, a outra é a morte. Entre as duas faces está a moeda, que é o importante. É a vida que devemos dar valor, não seus limites.
Diante da necessidade inata de recordar nossos antepassados devemos aproveitá-la para encontrar segurança e sentido em nosso próprio mundo. A consciência de que somos o que somos, graças aos seres humanos que nos precederam, é uma realidade inspiradora para o nosso viver. Recordar os nossos familiares falecidos e agradecer-lhes o que fizeram por nós nos ajudará a fazer o mesmo por aqueles que caminham conosco.
Entrar em sintonia com os seres queridos que morreram nos impulsiona a viver com maior intensidade a vida que ainda temos nas nossas mãos. Todo o humano que eles nos transmitiram devemos potenciá-lo em nós para que o mundo vá se humanizando. Pelos mortos já não podemos fazer nada, mas sua recordação nos impulsiona para aqueles que vivem junto a nós. O maior elogio que se pode dizer de um ser humano é que, quando partiu, deixou o mundo um pouquinho melhor que quando chegou a ele.
O grande teólogo Karl Rahner entendia a morte em chave de generosidade. Morrer, escreveu ele, é “dar lugar” aos que virão depois, é nosso último exercício de amor, responsabilidade e humildade. É, inclusive, nosso derradeiro exercício de liberdade. Precisamos morrer, não só para que outros vivam, abrindo, com nossa morte, um espaço para eles, mas também para que valorizemos a vida como presente recebido, que vamos legando aos que vem, constituindo, assim, uma corrente de vida sempre mais expansiva.
Todos morremos, mas há mortes e mortes. Na cultura da “pós-moderna líquida” a morte se apresenta como termo, ruptura e aniquilação. Somente os que não viveram seriamente, os que esbanjaram sua vida em caprichos e superficialidades, os que semearam dor e morte ao seu redor, os que asfixiaram a vida e não se importaram com os outros, tem medo de morrer.
Os que aceitaram sua vida e se atreveram a vivê-la seriamente, os que a viveram como dom que se entrega, aceitam sua morte e a esperam de modo sereno e livre, como o descanso devido depois de uma jornada trabalhosa e fecunda. Assim como a jornada cumprida devidamente dá alegria ao sonho, uma vida bem vivida dá alegria à morte. Porque a vida valeu a pena, também vale a pena morrer.
Dia de Finados é ocasião privilegiada para confrontar a morte, como fazemos com outros medos. Devemos contemplar nosso fim último, familiarizar-nos com ele, aprofundá-lo e analisá-lo, conversar com ele e descartar as aterrorizadoras distorções infantis sobre a morte. Ao compreendermos, de verdade, nossa condição humana – nossa finitude, nosso breve período de tempo sob a luz -, não só passamos a saborear a preciosidade de cada momento e o simples prazer de existir, como também intensificamos nossa compaixão por nós mesmos e por todos os outros seres humanos.
Morre-se no instante da morte, como morremos ao longo da vida. Este é o caminho normal de morrer. A presença da morte na existência não se veste de luto, mas de seriedade e irreversibilidade nas decisões. Uma vida pensada sem morte perde-se, no final, na total irresponsabilidade.
Texto bíblico: Mt 25,31-46
Na oração: O “depois da vida” é um grande encontro onde seremos perguntados: “o quanto você viveu sua vida?”
- “Fazer memória” das pessoas que viveram intensamente e deixaram “marcas” em sua vida.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
“Alegrai-vos e exultai, porque é grande a vossa recompensa nos céus” (Mt 5,12)
No dia em que a Igreja faz memória de todos os Santos e Santas, a liturgia escolhe sabiamente o evangelho das Bem-aventuranças. A sabedoria deste texto, surpreendente e genial, está no fato de apresentar um projeto de realização total, de felicidade sem limites. O Evangelho que nos foi confiado é um programa de vida para alcançar a felicidade, a beatitude, a vida ditosa, prazerosa, bem-aventurada... Na boca de Jesus brilha sempre a palavra-chave: “Felizes”.
A primeira coisa que Jesus proclama e deseja para o ser humano é: “seja feliz, ditoso, bem-aventurado...”
Ele não faz referência às práticas religiosas, rituais, doutrinas, leis... mas à vida e vida plena, aberta e solidária, compassiva e justa, mansa e humilde... As nove bem-aventuranças desvelam uma atitude para com os outros: a simplicidade de vida, o chorar com o outro, trabalhar pela justiça, viver misericordiosamente, ser perseguido por causa da justiça...., é centrar-se nos outros, acima dos próprios interesses.
No texto evangélico, a bem-aventurança ou beatitude tem o sentido de “estar em marcha”, de “estar a caminho”. “Bem-aventurança”, em hebraico, quer dizer “em marcha” e a infelicidade é estar imobilizado, parado sobre a própria imagem, parado sobre as memórias do passado, parado sobre o sofrimento... Por isso a bem-aventurança consiste em dar um passo a mais. Esta é uma bela definição da “espiritualidade”, dar um passo a mais a partir do lugar onde estamos. Cada uma das bem-aventuranças é um convite para nos recolocar em marcha, a partir do caminho que já percorremos. Há ainda muito por caminhar.
As palavras de Jesus nas Bem-aventuranças poderiam ser interpretadas no sentido em que Ele convida a nos colocar em movimento, a sair de nossa paralisia e fixação; Ele nos desperta para nos colocarmos em marcha através de nossa sede, de nossa fome de justiça, através dos lutos que temos de superar e das oposições que temos de enfrentar... Jesus nos convida a viver uma felicidade que está em marcha. A vida é movimento e as bem-aventuranças possibilitam a passagem de uma vida suportada para uma vida plenamente assumida.
As bem-aventuranças não são formuladas negativamente, nem na forma de um código moral, mas de maneira positiva e aberta. Elas são o compêndio do ministério de Jesus. Não é lei que se impõe por si mesma; é confissão: “o Reino chegou”. Não é pura doutrina, mas estilo de vida, um modo de proceder. Jesus não prega diretamente uma moral. Proclama a “irrupção” da graça, do amor, da misericórdia, da justiça de Deus na história da humanidade. Porque tem a certeza de que chegou a “hora” de Deus intervir na história, Jesus fica feliz e proclama “felizes” os até agora indefesos, oprimidos e marginalizados, mas que mantiveram viva a confiança em Deus.
Os enunciados das bem-aventuranças soam à primeira vista como “idealistas”, “utópicas”, absolutamente irrealizáveis no mundo em que vivemos. No entanto, pela sua provocação e questionamento, elas são a proposta mais realista, mais revolucionária e mais eficaz jamais pronunciada. As bem-aventuranças são a exposição mais exigente e, ao mesmo tempo mais fascinante, da mensagem e da “intenção de Cristo”. Elas são a plenificação daquilo que é o mais humano.
Devemos levar em conta também que as bem-aventuranças não são um “sim” de Deus à pobreza e ao sofrimento, mas um rotundo “não” de Deus às situações de injustiça, assegurando a todos o maior dom que poderíamos esperar, o seu Amor. N’Ele os pobres podem esperar, ter confiança, não para um futuro distante, mas já, aqui e agora. Pode ser bem-aventurado aquele que chora, mas nunca aquele que faz chorar. Pode ser feliz aquele que passa fome, mas não aquele que é responsável pela fome dos outros. Buscar a felicidade nas seguranças terrenas é a melhor prova de que não se descobriu o amor de Deus. Mesmo nas piores circunstâncias imagináveis, as possibilidades de ser alguém, único e original, podem se fazer presentes.
Os Santos e as Santas são as testemunhas (martyria) da vida, ou seja, aqueles(as) que, inspirados nas Bem-aventuranças, foram presenças inspiradoras no mundo, portadores(as) de valores humanos e que construíram suas vidas sobre a rocha firme do amor incondicional e generoso; homens e mulheres que “viveram um caso de amor com a vida”.
Esta é a vocação fundamental à qual somos todos chamados, enquanto seguidores(as) de Jesus Cristo. Ser santo(a) é ser dócil para “deixar-nos conduzir” pelos impulsos de Deus, por onde muitas vezes não sabemos e não entendemos. Seus caminhos não são os nossos caminhos.
Este “deixar-nos levar” pela mão providente de Deus é uma ousadia. Na vida espiritual a liberdade tem que ser ousada, mas a maior ousadia é “deixar-se levar”. “Deixar-se levar” é uma ousadia porque pressupõe a ação de Deus, um Deus que impulsiona e que impulsionará sem limites. É também uma ousadia porque a pessoa confia tranquila e descansadamente na força do Senhor que não falha. Ser santo(a) é “arriscar-se” em Deus. É navegar no oceano da gratuidade, da compaixão, da solidariedade...
O apelo à santidade perpassa toda a história do cristianismo e chega até os nossos dias. E o papa Francisco trata deste tema na Exortação Apostólica “Gaudete et Exsultate”, ou seja, o chamado à santidade no mundo atual. Numa cultura espiritualmente desnutrida, mas sequiosa de espiritualidade, como a nossa, longe de ser um tema e um assunto fora de moda, a santidade, é um assunto pertinente. É preciso revela-la a uma humanidade cansada de novidades e sedenta de verdade. É preciso purificá-la de tantas ambiguidades, equívocos, mal-entendidos para que a santidade seja entendida como um programa de vida, acontecendo no altar da vida, encarnada em pessoas de carne e ossos.
Papa Francisco fala de santidade acontecendo “ao pé da porta” (cf. n. 7), sendo, por isso, o rosto mais belo da Igreja (n. 9). A santidade não é uma subida em direção às perfeições, mas uma descida em direção à própria humanidade e à humanidade dos outros. Ser santo(a) é ser humano por excelência. E o caminho da santidade é, segundo o papa, transfigurar o cotidiano, resgatar o extraordinário em meio ao ordinário.
Texto bíblico: Mt 5,1-11
Na oração: O melhor modo de fazer esta oração é seguir um dos “modos de orar” proposto por S. Inácio, ou seja: “Contemplar o significado de cada palavra da oração” (EE. 249).
* Rezar as dimensões da vida que estão paralisadas, impedindo-lhe viver a dinâmica das bem-aventuranças.
* Como ser presença visível das Bem-aventuranças no seu cotidiano?
Pe. Adroaldo Palaoro sj
“Mestre, que eu veja”!’” (Mc 10,51)
Continuamos fazendo caminho com Jesus, rumo a Jerusalém. Estamos na última cena, antes de entrar na “cidade santa”, onde acontecerão os mistérios centrais da nossa fé: Paixão, Morte e Ressurreição de Jesus.
Detenhamo-nos em alguns detalhes que o evangelista Marcos deixa transparecer no evangelho deste domingo, para uma maior assimilação do modo de ser e agir de Jesus.
O cego Bartimeu é o símbolo da marginalização: está fora do caminho, jogado na sarjeta, sem poder se locomover, percebendo como os outros vão passando por ele, dependendo deles, de suas esmolas e de seus cuidados, porque não podia fazer outra coisa. Trata-se de um homem na beira do caminho, que vive às custas da bondade ou da maldade dos outros e, na maioria das vezes, à mercê da indiferença de todos; um homem sem ofício nem benefício e sem serviços sociais que o sustentassem ou o acompanhassem; um ser humano de quem ninguém queria se aproximar porque era tido também como impuro; um cego sem companhia, sem possibilidade de ser amado, habitando na solidão física e psíquica, com o agravante de sentir-se julgado e culpado, sem possibilidade de defesa, porque a sentença já era pública.
A situação de Bartimeu já estava determinada, ou seja, a exclusão; ele aparece aqui como alguém consciente de sua situação desesperada, de seus limites e de que sozinho não poderia superá-los. Mas não fica resignado com sua situação; este é o ponto de partida. Daí o grito por compaixão, quando percebe que Jesus passa por perto.
Como cego, não tem outro meio de chamar a atenção de Jesus senão gritando. Muitas pessoas próximas se irritam e o mandam calar a boca, mas ele o chama mais alto ainda. Ele investe toda sua força nessa oportunidade única e vai até Jesus, expressando assim sua alegria em encontrá-lo e em receber a sua ajuda.
Jesus é aquele que ouve, para e chama justamente aquele cego cujo grito perturbava e incomodava a “tranquilidade” da multidão que o seguia. Ele interrompe bruscamente a sua caminhada apressada para Jerusalém. Os dois ainda não se conheciam, mas era forte, em ambos, o desejo de se encontrar.
O cego levanta-se de um pulo, deixa de lado seu manto, sem hesitar: sua proteção, sua segurança, seu teto..., e entra na luz do olhar de Jesus. Sai de seu fechamento (o manto era considerado um prolonga-mento da pessoa); desfaz-se do que lhe trazia segurança e recupera sua dignidade: “pôs-se de pé”.
Ao lhe perguntar - “o que queres que eu te faça?” -, Jesus está ativando o protagonismo no outro, estabelecendo um diálogo de tu a tu, sem intermediários, oferecendo-lhe a possibilidade de afirmar-se diante de alguém, de ter uma palavra que é escutada (não só um grito que se instala como música de fundo para os transeuntes indiferentes), de expressar os desejos de seu coração, de “empalavrar” suas aspirações e esperanças. O espaço de diálogo experimentado devolve ao cego a confiança, conecta com suas forças resilientes, lhe confere autonomia e o mobiliza a entrar no caminho de Jesus.
A capa que antes acompanhava o cego e o protegia, agora é abandonada. Fica lá, na beira da estrada, marcando o lugar da mudança. A imagem que ela representa é coisa do passado. A capa continua lá no mesmo lugar, mas Bartimeu, agora tomado pelo olhar de Jesus, é homem do caminho, discípulo, seguidor. Ao chamado de Jesus, reage dando um salto. Salta para um novo olhar, salta ainda mais para um novo ser. Salta da vida sem graça, limitada a pedinte da margem do caminho, para a graça da vida de caminheiro solidário rumo à transformação.
Bartimeu viveu a experiência de uma profunda “travessia”: antes, cego e sentado à beira da estrada pedindo esmola; agora, com a visão recuperada, pode fazer a sua escolha: “...e seguia Jesus pelo caminho”. Esta frase expressa mobilidade e proximidade. Depois da experiência do encontro com Jesus, Bartimeu passou da imobilidade ao movimento, da exclusão à inclusão, do afastamento à proximidade...
Para ele, a obscuridade se tornou luz; a marginalidade se tornou estrada; o estranho se tornou familiar; a liberdade se tornou gratidão; a exclusão se tornou seguimento...
Ao “fixar seu olhar” em cada um(a) de nós, chamando-nos pelo nome, seremos movidos(as) a fazer eleições mais radicais e integrais pelo Reino, segundo o modo de ser, de viver e de fazer do próprio Jesus.
“Chamado-resposta” implica, pois, uma troca comprometedora de olhares. O olhar transparente e livre de Jesus ressuscita o nosso olhar tímido e estreito e nos capacita a olhar amplos horizontes: seu povo, seu mundo dividido e excluído... Seu olhar nos predispõe a encontrar motivações saudáveis e maduras que nos permitam olhar e viver no contexto atual plural com amor, com entusiasmo e criatividade.
Precisamos suplicar como o cego do relato de Marcos: “Mestre, que eu veja!”, para poder reconhecer e agradecer, descobrir portas onde antes víamos muros. Hoje somos afetados por muitas cegueiras: não vemos aqueles que economicamente não são contados, e há milhões de pessoas consideradas invisíveis.
Estamos ameaçados pela cegueira da segurança, da intolerância, do preconceito..., e aqueles que são diferentes nos parecem estranhos. As telas frias dos aparelhos eletrônicos tiram o brilho e o calor de nosso olhar e petrificam o nosso coração. Vivemos cegos pela pressa e pelo auto-centramento; e as rupturas humanas, as divisões e o ódio, embotam nossos sentidos e nos cegam a respeito de nossa unidade essencial.
É preciso deixar que o Evangelho e os outros vão nos tirando as vendas, vão nos curando a visão, vão nos despertando para que possamos chegar a ser homens e mulheres de olhos grandes, que contemplam a vida em sua profundidade e em sua vulnerabilidade, e também em suas infinitas possibilidades.
Sabemos que toda a realidade nos entra pelas janelas de nossos olhos. Cultivar a espiritualidade em nossa vida cotidiana tem a ver com aprender a olhar de outra maneira, e aprender a observar sem qualificar, sem medir, sem emitir juízo, simplesmente, recebendo o que existe, deixando-o ser, dando-lhe espaço.
Uma visão sadia, é aquela que sabe ver o outro no melhor de si mesmo, em seu mistério único, em sua originalidade, em todo seu potencial latente ainda por acontecer; e que sabe também aceitar suas arestas, sua parte de sombra, sem rejeitar nada. Um olhar que descobre uma sensibilidade por debaixo da aparente aspereza, que reconhece a benção que se oculta por detrás da ferida. Um olhar amável e incondicional que oferece o espaço para que os nós existenciais comecem a se desatar e a vida possa fluir.
Que possamos olhar através dos outros e ativar dentro de nós aquela bem-aventurança: “Ditosos vossos olhos porque vêem” (Mt 13,16).
A oração é o ambiente natural para mobilizar-nos, expandir nosso olhar e preparar-nos para o grande salto da vida: um novo projeto, um novo compromisso, uma nova missão....
Texto bíblico: Mc 10,46-52
Na oração: Chegaremos algum dia a aprender, como Jesus, a olhar através dos olhos dos simples e pequenos deste mundo?
Quando nos abrimos a outros olhares, quando chegamos a poder olhar pelos olhos daqueles que estão em um lado da vida diferente do nosso, expande-se em nós a capacidade de perceber e agradecer a realidade.
Nosso modo de olhar depende do lugar onde pisamos: olhar burguês, olhar preconceituoso, olhar intolerante...
- Faça um pequeno exercício de “olhar a si mesmo” com o olhar do pobre, do excluído, daquele que pensa e sente diferente... Como você se sente?
Pe. Adroaldo Palaoro sj
“Quem quiser ser grande seja vosso servo” (Mc 10,43)
Jesus segue o caminho para Jerusalém; enquanto isso, vai revelando aos seus discípulos as consequências de sua entrega em favor dos últimos e excluídos. Pois, todo aquele que investe sua vida a serviço da vida, sempre encontrará oposições, perseguições e morte.
Marcos, ao anunciar três vezes a paixão de Jesus, está revelando o preço da fidelidade ao Reino de Vida. Ao descrever, depois de cada anúncio, a resistência e a incompreensão dos discípulos, está nos advertindo sobre a dificuldade do verdadeiro seguimento. Depois do primeiro anúncio, Pedro quer desviar Jesus do caminho de fidelidade que o levará à Cruz e morte; depois do segundo, os discípulos continuam discutindo quem era o maior entre eles. Hoje, no terceiro anúncio da paixão, os dois irmãos, Tiago e João, pretendem sentar-se, um à direita e outro à esquerda de Jesus, no seu Reino Não há maior contraste entre a atitude do Mestre e a de seus seguidores; estão em diferentes amplitudes de onda.
Os outros dez se indignaram. Esta reação é apenas um sinal de que todos estavam na mesma dinâmica. Os outros discípulos tinham as mesmas ambições dos dois irmãos, mas eram covardes e não tinham a coragem de manifestá-las. Também no protesto pelo que o outro faz podemos manifestar o desejo de fazer o mesmo. Como a imensa maioria dos cristãos, continuamos tentando manipular Deus em nosso proveito.
Seguindo a linha do profetismo crítico, Jesus desmascara a trama oculta da busca do poder: “Sabeis que os chefes das nações as oprimem e os grandes as tiranizam”. Dessa forma alude a uma conduta que, a seu juízo, é clara entre os poderosos deste mundo.
Embora manifestem o desejo de caminhar com Jesus, Tiago e João deixam transparecer que carregam no coração o impulso para dominar e impor-se sobre os outros. Esta busca de poder destrói a paz e as relações entre os membros de uma comunidade que se diz seguidora daquele que não buscou o poder, mas o serviço.
Jesus apostou na vida de todos os seres humanos e não se deixou subornar por nenhum poder destruidor de vidas. Ele convidou ao serviço e à solidariedade como novidade radical. Sua fidelidade ao Reino se tornou transparente e iluminadora no seu ministério em favor da vida. O Deus que Ele nos revelou é o Deus que se faz presente no pequeno, no simples, naqueles que não tem voz e nem vez neste mundo. Não é o Deus do poder absoluto, nem o Deus que exige obediência e submissão àqueles que se apresentam como representantes do divino. O Deus de Jesus é o Deus que responde e corresponde aos anseios de respeito, dignidade e felicidade, que todos trazem inscritos no sangue de suas vidas e nos sentimentos mais autênticos e nobres.
O Deus Misericordioso não impulsiona ninguém a desejar poderes, por mais nobres que pareçam ser. Ele é o Deus que só legitima a identificação e até a fusão com o destino das vítimas deste mundo. Por isso, os discípulos de Jesus (e toda a Igreja) devem renunciar toda expressão de poder, os métodos de força, imposição e domínio que os poderosos deste mundo exercem sobre as pessoas. Não há, para Jesus, um poder mau (próprio dos tiranos) e outro bom (que seria próprio de seus discípulos). Todo poder é, no fundo, destruidor, toda imposição é má. Por isso, Jesus não quer melhorar o poder (convertê-lo), mas superá-lo na raiz, isto é, não deixar que ele se manifeste.
Jesus não veio fundar hierarquias entendidas em chave de honra, poder e prioridade social ou espiritual. Ele iniciou, sim, um movimento humanizador, onde o poder não tem lugar. A partir daqui, é que se entende seu apelo ao seguimento, que implica uma inversão a respeito da ordem antiga: o poder (desejo de domínio) deve tornar-se gratuidade, gesto de amor desinteressado pelos outros, serviço comprometido...
Os discípulos tiveram dificuldades em compreender que o Seguimento passa pela implicação pessoal na solidariedade com as minorias e excluídos, pela denúncia do poder dominador e manipulador, gerador de morte. Eles queriam um líder triunfador que dividisse o poder com eles; por isso, lhes custou crer que a marca do Mestre de Nazaré é a vida que se doa para que o outro viva.
Ao colocar-se nessa atitude de serviço em relação ao mundo, a comunidade dos(as) seguidores(as) espelha-se em seu Senhor, que não veio para ser servido, mas para servir e dar sua vida por todos. Estar a serviço é uma atitude gratuita que brota do amor, que faz a pessoa “sair” de si mesma e ir ao encontro do outro; coloca seu centro de atenção não em si, mas no outro e na coletividade, visando o bem de todos.
A atitude do serviço é o oposto do egoísmo autoreferencial, que leva o indivíduo a viver somente para si,
tendo em vista os próprios interesses. O caminho do Seguimento de Jesus desconstrói essa lógica rasteira do egoísmo interesseiro e descortina perspectivas novas que, pela doação de si no serviço generoso, abrem os horizontes da pessoa para o verdadeiro sentido da vida e da realização humana.
Amar servindo e servir amando: este é o sentido de nossa missão cristã. Tal amor e espírito de serviço concretizaram-se na generosa doação de tantos cristãos que, ao longo dos séculos, ofereceram e continuam oferecendo a vida a serviço dos outros em hospitais, creches, orfanatos, asilos, escolas, universidades, e numa infinidade de projetos e pastorais que atendem, sobretudo aos mais necessitados. Assim, a Igreja presta serviço formando gerações, influenciando culturas, salvando vidas, infundindo e consolidando valores em meio a sociedade onde se situa.
Jesus, com seu modo original de ser e viver, nos coloca diante da tentação que sempre nos ameaça: o gosto do poder, da comodidade, das pompas, do querer ser como os “chefes das nações”, de ter privilégios, de ser servido. Sua proposta de vida é de uma sabedoria e de uma humanidade finíssima; seu horizonte é o serviço.
Todos temos algo ou muito dos “filhos de Zebedeu” em nosso interior. Quanta afetividade mal resolvida procura se satisfazer com doses de poder! Essas doses na veia existencial é a morfina para acalmar problemas mais profundos. Os sedativos não curam nada, mas nos deixam anestesiados.
Quanto mais desintegrada a afetividade, mais despóticos e tirânicos nos tornamos. Os fanatismos, as intolerâncias, a violência e o ódio, o afâ de se impor sobre os outros..., tem sua incubadora em uma afetividade não ou mal resolvida. Mesmo quando, na prática, não temos chances de exercer o poder, nos projetamos e nos identificamos com alguém que visibiliza as mazelas de nossa interioridade não integrada.
Portanto, mudar poder por serviço é a chave. A partir do serviço, a hipocrisia e a corrupção do poder se estatelam contra o solo; o serviço nos situa todos no mesmo nível, o horizontal: ninguém é mais que ninguém. Aclarando que serviço não é servilismo, que é do que se vale qualquer poder.
Jesus propõe o serviço como uma verdadeira revolução e é Ele quem dá o primeiro passo, rompendo esquemas, indicando que o caminho não é o poder que se impõe, mas a “descida” solidária.
Todos somos chamados à revolução do serviço, crentes e não crente, de todas as religiões e culturas. Coloquemos a serviço da vida os dons particulares, as habilidades, a profissão, os estudos, a sabedoria herdada de nossos antepassados, a capacidade de denúncia diante dos abusos, a luta contra a corrupção e a hipocrisia, a violência e o ódio.
Como cristãos, somos chamados a um “serviço amoroso”, gerador de vida e vida em plenitude.
Texto bíblico: Mc 10,35-45
Na oração: na intimidade com o Senhor, perguntar-me:
- minha presença no mundo e na Igreja é carregada de esperança? É inspiradora e servidora? Está a serviço da vida ou da morte?
- em quê posso crescer no serviço eficaz? Onde devo atu-ar? Como sair do “serviço repetitivo” e sem criatividade?
- no serviço, sou o “centro” ou o centro é o outro?
Pe. Adroaldo Palaoro sj
“...que devo fazer para ganhar a vida eterna”? (Mc 10,17)
Ao começar a narrar a cena do jovem rico, Marcos nos faz cair na conta que o encontro acontece quando “Jesus saiu caminhando”. O caminho é o lugar dos encontros surpreendentes, do diálogo com o diferente, da amplitude de vida... A itinerância é o modo próprio de Jesus viver e, portanto, também é a marca do discipulado.
Ao mover-se de um lugar a outro Jesus se põe em condições de acolher o outro, de deixar-se afetar por suas buscas e perguntas existenciais. Abandona os lugares seguros e corretos para dirigir-se, não só às margens da história, mas também ali onde estavam outros homens e mulheres com inquietações diferentes, com outras visões e experiências..., mas carentes de sentido.
Toda saída implica deixar para trás lugares conhecidos, experiências que funcionaram, certezas adquiridas, crenças, valores, referências fixas...; enfim, tomar distância daquilo que parece nos dar mais segurança. Em outras palavras, toda saída, todo êxodo, implica uma profunda experiência de despojamento, um exercício para tornar leve a equipagem, uma confrontação com o novo e o diferente que, tantas vezes, assusta e provoca medo.
Nossos estilos de vida cristã e nossas estruturas precisam de uma transformação, uma itinerância, que só acontece quando corremos o risco de sair de nossas estufas mofadas e entrar nos novos espaços abertos, quando deixamos os lugares seguros e percorremos as ruas, ali onde acontece a vida das pessoas, procurando acolher todo o humano no coração.
Precisamos transitar novas sendas, exercer uma sadia autocrítica com respeito a ideias, linguagens, estilos de vida, modos de compreender a fé, etc., que temos recebido e nas quais nos encontramos seguros e tranquilos. Precisamos passar de um olhar auto referencial e moralizador a um olhar que corre o risco de encontrar-se com os olhos dos outros, dos diferentes, que se abra a novas aprendizagens e não tema as mudanças; de um olhar superficial a outro olhar capaz de perfurar a realidade até descobrir o Deus que “a todos dá a vida, respiração e tudo mais” (Atos 17,25)
“Ao sair caminhando, quando veio alguém correndo...”. O encontro dá-se no caminho de Jesus para Jerusalém, e o homem que vem à sua procura (no começo, Marcos não oferece nenhum outro dado sobre ele, deixando o “efeito surpresa” para o final), aproxima-se correndo, como que fustigado por uma urgência implacável, e se ajoelha diante de Jesus, com respeito, como se visse nele seu último recurso para encontrar resposta à pergunta que lhe angustia.
Não vem a Jesus como outros personagens, oprimidos pela enfermidade, mas sim a partir de uma inquietude interior: “o que fazer para ganhar a vida eterna”? Não parece preocupá-lo a vida terrena, pois sua subsistência estava garantida; ele pergunta por uma vida definitiva, própria do mundo futuro: como evitar que a morte seja o fim de tudo? Que fazer para “ganhar outra segurança”?
Podemos dizer que os evangelhos desvelam dois tipos de perguntas dirigidas a Jesus:
A primeira é: “Senhor, o que devo fazer para ganhar a vida eterna”? Esta pergunta nunca sai da boca de um pobre, mas de quem já tem assegurada a vida terrena e, agora, preocupa-se com a “poupança celestial”. É o caso do doutor da lei, de Nicodemos, do homem rico... A resposta de Jesus é, no mínimo, irônica, pois brota de uma pergunta que visivelmente o incomodava.
A outra pergunta é bem diferente: “Senhor, o que devo fazer para ter vida nesta vida? Pois, sou cego e quero enxergar, tenho a mão seca e preciso trabalhar, sou paralítico e quero andar, minha filha está doente e quero vê-la curada...”
Em outras palavras, “o que devo fazer para ter vida em plenitude”? Esta pergunta só é feita pela boca dos pobres. Pobreza é estar ameaçado num direito fundamental de vida. A esses, Jesus respondia com seriedade e acolhida. Interessante como a espiritualidade de Jesus era a de quem gerava vida, sobretudo para aqueles que estavam ameaçados em sua vida, dom maior de Deus. Ativava a Vida nesta vida.
No evangelho deste domingo, o jovem expõe sua inquietude pela vida eterna em termos de posse (“ganhar”) e, em relação aos mandamentos, diz que os “observava”. Em sua resposta, Jesus emprega os mesmos termos, mas em outra direção: não naquela da posse ou da herança, mas naquela do despojamento, do desprendimento, do esvaziamento e da entrega... Isso é “o que lhe falta: vai, vende, dá, segue-me...”.
A inquietude do jovem estava centralizada na vida eterna, e Jesus responde apontando para esta vida, arrancando-a de um fatal “ponto morto”; diante de sua preocupação com o “além”, Jesus indica-lhe o “aquém”. O caminho para conseguir a outra vida (“um tesouro no céu”) passa necessariamente por uma maneira criativa e oblativa de usar os bens, tendo como horizonte de vida o mundo dos pobres.
“Uma coisa lhe faltava”, não para herdar a vida definitiva, mas para realizar em si mesmo o projeto de Deus, para encontrar a felicidade que não possuía e a plenitude à qual sentia-se chamado. Todo acesso a um “tesouro no céu” passa por um modo concreto de “gerenciar” o tesouro que se possui aqui, ao estilo de Jesus (“depois, vem e segue-me”). Participar da vida de Deus, que é o que consiste a vida eterna, é participar em sua prodigalidade e em sua generosidade já nesta vida.
A nova sabedoria pede capacidade para deixar-se surpreender e que os “diferentes” irrompam em seu mundo, mudem seus ritmos, as dinâmicas, desestruturem seus tempos e seus espaços..., revirem seus modos de viver, pensar, sentir e fazer; requer que a vida deixe certezas herdadas, e esteja disposta a reinventar-se, quebrando “modos fechados” de ver o mundo, para depois reconstruí-los à luz de uma perspectiva mais ampla.
O espanto se apoderou do jovem: sentia-se diante de uma encruzilhada, na qual era convidado a deixar para trás todos os caminhos já frequentados, e adentrar-se em outro absolutamente novo e cheio de surpresas; mudar o “modo de proceder e viver” que estava acostumado, desconectando-se de seus apegos às riquezas; atrever-se a crer numa palavra que afirmava que a vida plena, feliz e abundante que ele buscava, estava mais em deixar que em possuir; acolher o apelo para renunciar tudo aquilo que até esse momento, constituía sua segurança, e abrir-se a uma vida de partilha solidária....
Sentiu vertigem e se afastou devagarinho, consciente de que os olhos do Mestre continuavam fixos nele, esperando talvez que fizesse meia volta. Jesus, ao fixar seu olhar no interior do jovem, o desafiou a colocar-se “em movimento” (“vem comigo”), pronto para começar algo novo, uma nova existência que não lhe era familiar e que o faria percorrer caminhos desconhecidos, sendas que não sabia por onde o levavam, porque estava fora da sua “ bolha de conforto”, confirmada pelo seu grupo social e religioso. Jesus o convidou a fazer caminho com Ele. No entanto, o jovem escolheu a estabilidade, o lugar que lhe era familiar e que lhe dava segurança. Atrofiou sua vida e esvaziou-a do sentido de eternidade.
Texto bíblico: Mc 10,17-31
Na oração: Para identificar aquilo que sobra e que vai se tornando um “peso”, é bom tomar distância e considerar nossa vida a partir de outra perspectiva. É preciso parar e atrever-nos a acessar a esse recipiente vital onde vamos acumulando e perguntar-nos: quanto do que possuímos faz tempo que não usamos ou não precisamos? Quanto do que ali vemos ocupa um lugar desnecessário? Que encontramos ali que não nos enche de esperança? Que vemos ali que pode ser passível de ser mudado? Se tivéssemos que fazer limpeza, por onde começaríamos?... No nosso mundo interior, é necessário esvaziar para encher, tirar para deixar lugar para aquilo que é essencialmente importante e decisivo.
- Por que não colocar um pouco de ordem na sua mochila vital? O que lhe está sobrando?
- De verdade, de que você quer preencher sua vida? Está sua vida cheia de Vida?
Pe. Adroaldo Palaoro sj
“A mãe de Jesus estava presente” (Jo 1,1)
O papa Francisco, em uma homilia proferida no Santuário Nacional de Aparecida, convidou a "nos deixar surpreender por Deus" constantemente. Deus espera que nos deixemos “surpreender por seu amor, que acolhamos as suas surpresas”.
O papa nos mostrou como modelo de surpresa a história do Santuário: três pescadores depois de um dia inteiro sem apanhar peixe encontram, nas águas do Rio Paraíba, a imagem da Senhora Aparecida. Sabemos que os pescadores, após encontrarem a imagem milagrosamente, têm uma pesca abundante e conseguem o que precisavam para atender ao conde de Assumar. O Papa Francisco vai além, vai ao essencial desse episódio para entendermos melhor como Deus atua: “Quem poderia imaginar que o lugar de uma pesca infrutífera, torna-se-ia o lugar onde todos os brasileiros podem se sentir filhos de uma mesma Mãe? Deus sempre surpreende, sempre nos reserva o melhor”.
É decisivo estar dispostos a abrir espaços em nossa história a novas pessoas e situações, novas vivências, novas experiências... Porque sempre há algo diferente e inesperado que pode nos enriquecer. A vida está cheia de possibilidades e surpresas; inumeráveis caminhos que podemos percorrer; pessoas instigantes que aparecem em nossas vidas; desafios, encontros, aprendizagens, motivos para celebrar, lições que aprendemos e nos fazem um pouco mais lúcidos, mais humanos e mais simples... Em Maria nos inspiramos para viver também uma presença inspiradora em nossa existência cotidiana.
Maria foi aquela que, como ninguém, abriu-se ao Deus surpreendente e deixou-se conduzir por Ele. Dela não se diz muito nos evangelhos, mas o que ali se diz nos revela uma presença surpreendente, capaz de ver mais além do cotidiano e estabelecido. Sua presença revela um gesto profético de solidariedade e de anúncio: presença que aponta para uma outra presença, a de seu Filho. Sua presença dignifica e revela um novo sentido à presença de Jesus numa festa de Casamento.
É o evangelista João quem nos apresenta Maria em sua verdadeira missão de presença mobilizadora e mediadora junto a Jesus. Não porque ele fale muitas vezes dela, mas porque a situa claramente nos dois momentos-chave da vida de Jesus: no início, quando faz adiantar a Hora, e na Hora da Cruz. No relato da festa de casamento em Cana, o evangelista, com uma frase tipicamente sua, quer realçar um aspecto que muitas vezes nos escapa. Ele nos diz: “a mãe de Jesus estava presente”. E desta maneira, pela primeira vez, João apresenta a Virgem Maria em seu evangelho. E a nomeia como a mãe de Jesus. E será a primeira e única vez em que nos relata algumas palavras de Maria. Só duas frases curtas: a primeira é para avisar o seu Filho que o vinho tinha acabado – “Eles não tem mais vinho”.
Maria, que sempre se revelou como uma mulher atenta à realidade, certamente andou pela cozinha da casa e se inteirou da dificuldade dos noivos e do problema que significaria interromper a festa do casório. Com sua sensibilidade feminina, entendeu a difícil situação e soube que atitude tomar.
Em outras palavras, Maria é aquela que sabe entrar em sintonia com os sentimentos dos outros e construir vida festiva, e vida em abundância. Ao sussurrar no ouvido de seu Filho - “Eles não tem mais vinho” - ela se revela sensível e atenta às necessidades das pessoas que vivem ao seu redor e as põe em comunicação com Aquele que pode remediar tais necessidades. O vinho simboliza o dinamismo da vida, a alegria, a festa contínua, a celebração... E disse a segunda frase que ficará para sempre como um grande convite para todos os seguidores e seguidoras de Jesus: “Fazei tudo o que Ele vos disser” É como se esta frase fosse a condensação da mensagem e da atitude de Maria no evangelho. Ela se apresenta como caminho que conduz ao Caminho verdadeiro; foi aquela que mais conheceu e mais seguiu seu Filho; precisamente por isso, sua presença é capaz de alimentar em todos nós a confiança em Jesus e nos acompanha até Ele.
Porque estava presente a Deus, Maria fez-se presente nos momentos decisivos de seu Filho, bem como fez-se presente na vida das pessoas. Uma presença que faz a diferença: presença solidária, marcada pela atenção, prontidão e sensibilidade, próprias de uma mãe que acompanha com ternura. Sua presença não era presença anônima, mas comprometida; presença expansiva que mobilizou os outros, assim como mobilizou seu Filho a antecipar sua “hora”. Trata-se de uma presença que é “música calada” nos lugares cotidianos e escondidos, que sabe enternecer-se e escutar as inquietações que procedem desses lugares. Uma presença que descobre o próximo no próximo, que sabe resgatar a solidariedade na vida cotidiana; uma presença que se manifesta na ausência de recompensa ou de interesse próprio.
A presença silenciosa, original e mobilizadora de Maria des-vela e ativa também em nós uma presença inspiradora, ou seja, descentrar-nos para estar sintonizados com a realidade e suas carências. Tal atitude nos mobiliza a encontrar outras vidas, outras histórias, outras situações; escutar relatos que trazem luz para nossa própria vida; ver a partir de um horizonte mais amplo, que ajuda a relativizar nossas pretensões absolutas e a compreender um pouco mais o valor daquilo que acontece ao nosso redor; escutar de tal maneira que aquilo que ouvimos penetre na nossa própria vida; implicar-nos afetivamente, relacionar-nos com pessoas, não com etiquetas e títulos; acolher na própria vida outras vidas; histórias que afetam nossas entranhas e permanecem na memória e no coração.
Disto se trata: aprender dos outros; recarregar nossa própria história de um horizonte diferente, no qual cabem outras possibilidades e outras responsabilidades; descobrir uma perspectiva mais ampla que ajuda a formular melhor o sentido de nossa própria vida.
Em Maria descobrimos a verdadeira vocação de todo ser humano. Ser como Maria não é uma simples meta a alcançar, pois partimos da mesma realidade da qual ela partiu. O que estamos celebrando, nesta festa da Mãe Aparecida, nos indica o ponto de partida de nossa trajetória humana, não o ponto de chegada.
E fazer este percurso vital é abrir-nos às surpresas do Deus Surpreendente.
Texto bíblico: Jo 2,1-11
Na oração: por onde você tem transitado normalmente? Somente por lugares conhecidos, junto às pessoas amigas? Sua presença eleva, anima, desperta os outros? Você se deixa afetar pelas presenças provocativas? os pobres? os marginalizados? as minorias?...
Pe. Adroaldo Palaoro sj
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