“Maria Madalena e Maria, a mãe de Tiago e Salomé, compraram perfumes para ungir o corpo de Jesus.
E bem cedo, no primeiro dia da semana, ao nascer do sol, elas foram ao túmulo” (Mc 16,1-2)
As mulheres revelaram uma presença fundamental nos relatos da Páscoa. Elas seguiram e serviram a Jesus com seus bens pelos caminhos da Galileia (Lc 8,1-3) e permaneceram fiéis até o final, até a Cruz. São testemunhas, como tantas mulheres de hoje, da fidelidade nas situações limite, onde o que lhes toca fazer é estar e acompanhar, na sua impotência e luto, até que emerja o inédito. São testemunhas da semente do amor entregue, que, embora invisível no ventre da terra, vai pouco a pouco abrindo caminho para a luz, afastando pedras e abrindo sepulcros, dando à luz o novo, porque o Deus de Jesus não é um Deus de mortos, mas de vivos. Frente à traição e a ausência dos discípulos, as mulheres foram significativas por sua lealdade. Enquanto o grupo de homens se trancou na passividade covarde, elas optaram pelo enfrentamento da realidade, vencendo o medo, colocando-se a caminho.
Das mulheres que foram ao sepulcro na manhã de Páscoa levando perfumes podemos aprender sua capacidade de enfrentar os acontecimentos com sabedoria e audácia. Elas são as mulheres “mirróforas”, ou seja, portadoras de perfumes, que madrugam para ir ungir o corpo de Jesus. São conscientes do tamanho da pedra e de sua impossibilidade de removê-la, mas isso não é um obstáculo em sua determinação de ir ao túmulo para fazer memória d’Aquele que abriu para elas um horizonte de sentido. A alusão ao “primeiro dia da semana” e o “nascer do sol” acompanham a entrada delas em cena, na madrugada da Páscoa: estamos no começo da Nova Criação e a luz da Ressurreição as envolve em seu resplendor.
Quem busca, encontra; as mulheres foram as primeiras que viram este instigante sinal: a grande pedra tinha sido removida e o túmulo estava vazio. E foram as primeiras a “entrar”. Entraram no túmulo: esta foi a experiência das discípulas de Jesus, ou seja, entraram no mistério que Deus realizou com sua vigília de amor. Não se pode fazer a experiência da Páscoa sem “entrar” no mistério.
“Entrar no mistério’ significa capacidade de assombro, de contemplação; capacidade de escutar o silêncio e sentir o sussurro de fio de silêncio sonoro no qual Deus nos fala. ‘Entrar no mistério’ requer de nós que não tenhamos medo da realidade: não nos fechemos em nós mesmos, não fujamos perante aquilo que não entendemos, não fechemos os olhos diante dos problemas, não os neguemos, não eliminemos as questões...
‘Entrar no mistério’ significa ir mais além das cômodas certezas, mais além da preguiça e da indiferença que nos freiam, e pôr-se em busca da verdade, da beleza e do amor, buscar um sentido não óbvio, uma resposta não banal às questões que põem em crise nossa fé, nossa fidelidade e nossa razão.
Para ‘entrar no mistério’ é preciso humildade, a humildade de abaixar-se, de descer do pedestal de nosso eu tão orgulhoso, de nossa presunção. A humildade para redimensionar a própria estima, reconhecendo o que realmente somos: criaturas com virtudes e defeitos, pecadores necessitados de perdão. Para entrar no mistério é preciso este abaixamento que é impotência, esvaziando-nos das próprias idolatrias, adoração. Sem adorar, não se pode entrar no mistério” (Papa Francisco – Missa da Vigília Pascal – 2015).
As mulheres buscaram Jesus no lugar equivocado, embora ali aprenderam uma lição inesquecível: é inútil buscá-lo no lugar da morte. Esse espaço está desabitado. O jovem de branco associa a ressurreição a uma tumba vazia: “Ressuscitou, não está aqui” (v.6). O cenário da morte carece de respostas. A busca deverá ser feita no espaço onde se desenvolve a vida. As mulheres entendem que corresponde a elas tomar a iniciativa e tirar da covardia o grupo de discípulos, transmitindo um encargo a todos os que abandonaram Jesus e, em especial, a quem chegou a renegá-Lo: “...dizei a seus discípulos e a Pedro...” (v.7).
Agora, finalmente, Marcos cita os discípulos. Através das mulheres, eles receberão o encargo de Jesus. Elas se converteram em mensageiras da boa notícia; elas assumiram o protagonismo e relançaram o projeto do Reino a partir de sua grande intuição: na Galileia começou a história e ali deverá ser reiniciada. Seguir as pegadas do Galileu confirma que Ele vai adiante guiando os seus seguidores e seguidoras. Percorrer seus passos garante ao grupo a experiência de contar com Ele: “Ele irá à vossa frente, na Galileia; lá vós o vereis, como ele mesmo tinha dito” (v.7).
Para o evangelista Marcos, voltar à Galileia significa retomar e prolongar a mensagem e a proposta do Reino de Jesus. Foi ali na Galileia que Jesus começou sua vida pública e atuou como aquele que veio aliviar o sofrimento humano, com a certeza de que o Reino tinha chegado e que Deus faria mudar a forma de vida dos homens, partindo precisamente dos mais pobres e excluídos. Dessa forma, inicia-se um grande “movimento humanizador”, a partir de baixo, ou seja, dos últimos e pobres, anunciando e preparando a chegada do Reino na Galileia.
Esta volta à Galileia tem, portanto, um sentido teológico, kerigmático e geográfico, marca o começo da nova comunidade dos seguidores e seguidoras de Jesus. Para Marcos, nesse entorno da Galileia está o futuro do Evangelho. A partir desse lugar deve iniciar-se o novo caminho do seguimento. Por isso, os(as) discípulos(as) devem entrar em sintonia com o modo original de ser e de viver de Jesus na Galileia. É ali que se devem encontrar todos os que são de Jesus (Pedro, as mulheres, os discípulos de Jerusalém), para também ali retomar e prolongar o movimento iniciado pelo Mestre de Nazaré.
A partir desse pano de fundo, entende-se a palavra final do evangelho de hoje: “lá vós o vereis”. Ver a Jesus significa aprender a olhar como Ele olhava e a viver como Ele vivia, colocando a vida a serviço dos coxos, mancos, cegos, doentes, expulsos da sociedade... Ver a Jesus significa ver a partir de Jesus (como Ele faria hoje), nas novas condições pessoais e sociais de um mundo que parece condenado à morte, como aquele em que Jesus viveu.
Vendo a Jesus poderemos ver tudo de um modo diferente, vendo o sofrimento das pessoas, ouvindo seus gritos. A missão está aberta. Esse é o caminho do Evangelho, carregando em nossas pobres mãos, como as mulheres da Páscoa, o perfume da Nova vida ressuscitada. E assim como o mau odor repele e afugenta, o bom odor atrai e convida ao seguimento.
Mas é sobretudo através do “modo cristificado de ser e viver” que os(as) seguidores(as) de Jesus exalam um bom odor, criam uma atmosfera perfumada ao seu redor. Assim, às vezes nos encontramos com ambientes que nos cativam e atraem, que desprendem um aroma agradável e prazeroso. São ambientes nos quais reina a acolhida, a afabilidade, o compromisso, a simplicidade. Sempre agrada ficar por mais tempo. Nossa memória parte dali amavelmente carregada com energia salutar e nossos pulmões saem repletos de ar purificado, limpo...
Também existem outros ambientes cujo ar é irrespirável, fétido, com mau odor. São lugares onde há competições, agressividade e violência, onde as pessoas são manipuladas as pessoas; são atmosferas arrogantes, infectadas, orgulhosas, vazias. Saímos dalí meio asfixiados, desejando não querer voltar mais.
Todos nós cristãos fomos ungidos com o óleo santo no batismo, fomos besuntados e massageados com um bálsamo cristificante. Por isso trazemos a força sanadora do perfume de Cristo, para sermos presenças diferenciadas em lugares que cheiram à morte e poder manifestar a beleza da vida cristã com a qualidade do nosso aroma.
Somos uma fragrância que é o símbolo da vida, e que, derramada em favor das pessoas, inunda o mundo, comunicando a salvação.
Páscoa é expandir o perfume da vida que nos envolve.
Desejo uma “Páscoa perfumada” a todos vocês.
Texto bíblico: Mc 16,1-7
Na oração: Como as mulheres “mirróforas”, tomemos consciência dos aromas que levamos para perfumar os ambientes com odor de morte, de rigidez, de indiferença, de medo... para que se transformem em espaços com cheiro de vida, de liberdade, de ternura e acolhida.
- Quê aromas captamos e reproduzimos em nossas casas, em nossas comunidades, em nossos contextos...?
Pe. Adroaldo Palaoro sj
“José comprou um lençol de linho, desceu Jesus da Cruz, envolveu-o no lençol e colocou-o num túmulo escavado na rocha;
depois, rolou uma pedra na entrada do túmulo” (Mc 15,46)
A gravidez é uma metáfora sugestiva e provocadora sobre o Sábado Santo; no silêncio e na obscuridade do sepulcro tem lugar a segunda gestação de Jesus Cristo e o novo parto do homem, da mulher e do cosmos renovados. Assim, o sepulcro é contemplado como o ventre da terra, onde acontecerá o milagre da renovação plena da vida. O amor é mais poderoso que a morte e quem ama não morre nunca, senão que suas sementes são húmus e germe de nova vida, embora não possamos controlar quando nem onde.
É preciso saber acolher este silêncio surdo, que marca a passagem entre duas experiências intensas: a Sexta-feira de dor e o Domingo de Ressurreição. No sepulcro, Jesus se faz solidário com toda a morte humana. E é preciso esperar com Ele. É preciso esperar em nossos projetos e sonhos, na libertação dos povos, em uma nova humanidade. Em nossas vidas teremos muitas sextas-feiras santas de dor e dias de páscoa, mas, teremos muito mais sábados de espera.
Fazer memória do Sábado Santo nos faz compreender que, nos sábados santos da vida não podemos ter a pretensão de querer ver o significado de tudo o que vivemos, no mesmo momento que o vivemos. Muitas vezes, terão que passar muitos anos para poder ver o rosto do Deus vivo em situações vividas de dor e abatimento; além disso, temos que começar a entender que não podemos pretender chegar ao último dia com todas as interrogações resolvidas. Saber viver neste tom vital é o que nos convida o Sábado Santo.
A partir da experiência sabática, a noite pode espantar, mas também pode ser chance para ver melhor; a morte pode ser ameaçadora, mas ela ensina a viver; o sepulcro vazio pode causar dúvida, mas ele aponta para a ressurreição; o infinito pode suscitar inquietação, mas consegue impulsionar para o além, até acender no coração uma chama persistente: a esperança.
A terra, a humanidade, o cosmos... estão todos grávidos de Ressurreição. Assim começa a ressurreição; assim começa essa experiência que alguns chamam “a outra vida”, mas que na realidade não é a “outra vida”, mas a vida “outra”.
Como nos deixou escrito um jornalista guatemalteco, desaparecido sob a ditadura nos anos 80. “Dizem que estou ‘ameaçado de morte’; nem eu nem ninguém estamos ameaçados de morte. Estamos ameaçados de vida, ameaçados de esperança, ameaçados de amor. Estamos ‘ameaçados’ de ressurreição. Porque Jesus, além do Caminho e da Verdade, é a Vida, embora esteja crucificado no alto do lixão do Mundo...”. Ameaçados de vida, ameaçados de esperança, mesmo que a esperança frequentemente seja uma “esperança enlutada”. Há homens e mulheres que se fizeram “experts” em transitar e esperar na noite. São nossos “mestres e mestras do Sábado Santo”.
O ser humano que espera não tem certeza, não fica seguro, não está satisfeito. Mas a esperança tem fundamento; não é uma ilusão e nem uma utopia; não é um sonho impossível e nem uma lembrança irrecuperável; não é só futuro, mas permanece, disfarçadamente, presente; não é uma morada, mas um sentimento sempre inédito. A esperança evita tropeçar no fracasso, no desânimo, na apatia e no silencioso desespero.
A esperança é caminho e meta, posse e dom, destino e encontro, antecipação e cumprimento, expectativa e busca, risco e proteção, nó e liberdade. A esperança é certa, mas não dá “garantias”.
“O coração do cristão é inquieto, está sempre em busca, em espera: esta é a esperança...
porque a esperança é aquela que faz caminhar, faz abrir estradas...” (Massimo Cacciari)
O ser humano-esperança é o peregrino que caminha, é o artífice que tece o existir. Esperança é força prospectiva que suscita passos para a gênese da nova humanidade. Esperança é o ser humano nômade. Desloca-se. Desdobra-se. Inventa-se. Deixa de ser o que era para chegar a ser o que ainda não é. Na noite ela se acende; na impotência, ela vence; na finitude, ela impele a caminhar. A esperança é brasa, é pés, é caminho, é narrativa, é assombro, é antecipação.
Não há esperança na solidão das próprias seguranças e das próprias expectativas. A esperança se realiza no encontro, que impele a sair, a caminhar, a ir ao encontro, narrar aos outros o fogo que se acendeu por dentro. A esperança é o canto que ativa a coragem nos corredores escuros da história.
Poderíamos acrescentar que uma humanidade, incapaz de cultivar a esperança, não merece ser considerada, porque lhe faltaria a única razão pela qual vale a pena existir. Sem a esperança, a humanidade perde a iniciativa. Embota-se.
A vida sem desafios não é real; mas a vida sem espera, sem desejo, sem paixão, sem esperança, não é vida. A esperança mora onde a deixamos entrar: onde lutamos, onde convivemos com o outro diferente de nós, onde a fragilidade e a transição podem desorientar, onde as trevas parecem mais fortes que a luz, onde a vida parece ser ameaçada pela morte, onde a violência pensa levar vantagem, onde o caminho é íngreme, onde a espera se confunde com a angústia... A força da esperança está oculta precisamente na sua impotência e fragilidade.
Mas não basta ter esperança. É preciso ser esperança. O ser humano vive de esperança, acredita na esperança, mas, sobretudo é esperança. A esperança leva a querer algo mais. É “antecipação criadora”; ela tem “rosto novo”. É madrugada e não crepúsculo. Jamais “envelhece”. A esperança pascal antecipa aquilo que ainda não é realidade. É o futuro que ainda pode ser convertido em história nova.
O mal, a injustiça, a violência, o sofrimento, existem em nossa história, mas não tem a última palavra sobre ela. A ternura de Deus é mais poderosa e ela é nossa esperança, ela nos sustenta nos túneis mais escuros da vida a partir de dentro, atravessando-os. Deus é nossa esperança; o Deus da vida que nos ama até o extremo é a esperança que nos ampara contra toda desesperança. Mas a esperança não é uma propriedade privada, mas um presente comunitário, coletivo, um bem comum, como nos diz o Papa Francisco:
“Não vos deixeis roubar a esperança! Talvez a esperança seja como as brasas debaixo das cinzas; ajudemo-nos uns aos outros com a solidariedade, soprando nas cinzas, a fim de que o fogo volte a atear-se mais uma vez. Pois é a esperança que nos faz ir em frente. E isto não é otimismo, mas algo diferente. Todavia, a esperança não é de uma só pessoa, a esperança fazêmo-la todos juntos. Temos que alimentar a esperança entre todos, entre todos nós e todos nós que estamos distantes. A esperança é algo vosso e também nosso. É algo que pertence a todos” (Discurso aos trabalhadores de Cagliari – 22/set/2013).
A Cruz permanece em seu lugar, mas o sepulcro fica vazio para sempre!
É Ressurreição: vida plena antecipada.
Textos bíblicos: Mc. 15,42-47 Jo. 19,38-42
Na oração: Como muitos mestres e mestras, cujas vidas são testemunhas da esperança, como os discípulos de Jesus e como as mulheres que o acompanharam até o final, nos perguntamos:
- É possível esperar quando sentimos que a realidade é um “beco sem saída”?
- Como esperar em meio a tanta violência, preconceito, indiferença...?
- Como esperam os vencidos, os últimos, os excluídos...?
- Como aprendemos a esperar quando nos encontramos tendo que enfrentar situações-limite?
- Qual tem sido nosso suporte e ajuda nesses momentos da vida e como podemos oferecê-lo aos outros?
- Quê aprendizagens vitais fizemos na densidade da noite em nossas vidas?
- Quê e quem nos ajudou a rolar a pedra do sepulcro de nossa vida?
Pe. Adroaldo Palaoro sj
São sete expressões ditas por Jesus na Cruz e recolhidas pelos evangelistas; elas condensam a vida do Crucificado. Nestas expressões revela-se a identidade de Jesus: quem Ele é e sua missão.
Vamos contemplar o significado das “palavras pronunciadas por Jesus na Cruz”, deixando-nos impactar e iluminar por elas. São palavras densas, carregadas de vida; palavras “excêntricas”, onde Jesus sai de si e se dirige aos outros.
1. PERDÂO. “Pai, perdoa-lhes, pois não sabem o que fazem”(Lc 23,34)
Jesus, na sua vida pública, sempre revelou o perdão do Pai; no encontro com os pecadores deixou transparecer a misericórdia reconstrutora de Deus. O perdão foi a marca de sua vida e deve ser também a marca dos seus seguidores.
É difícil perdoar: a dor, o orgulho, a própria dignidade, quando é violentada, grita pedindo “justiça”, buscando “reparação”, exigindo “vingança”... Mas, perdão?
Surpreende-nos que Jesus na Cruz seja capaz de continuar vendo humanidade em seus verdugos; Ele é capaz de continuar crendo que há esperança para aqueles que cravam seus semelhantes na Cruz. Porque, esta palavra de perdão, dita a partir do madeiro, é sobretudo uma declaração eterna: o ser humano, todo homem e toda mulher, conserva sua capacidade de amar nas circunstâncias mais adversas. E todo ser humano, até aquele que é capaz das ações mais atrozes, continua tendo um germe de humanidade em seu interior e que permite que haja esperança para ele. Perdoar é atrever-se a ver o que há de verdadeiro, de beleza em cada um. O perdão é capaz de ver dignidade e faísca de humanidade escondida no coração do verdugo. O perdão abre futuro, destrava a vida e não se deixa determinar pelos erros do passado; ele quebra distâncias, nos faz descer em direção à fragilidade do outro, ao mesmo tempo que revela nossa fragilidade. É enquanto pecadores que somos chamados a perdoar e não enquanto justos. Por isso, no perdão é onde mais nos assemelhamos a Deus, pois só Ele podia inventar o perdão.
Deus também continua me perdoando hoje, pelas atitudes pecaminosas em minha vida que destroem, rompem, ferem os outros e o meu mundo.
- Deixar ressoar esta expressão de Jesus: Fiz experiência de perdão? Sou capaz de perdoar e acolher o perdão?
2. CONTIGO. “Hoje estarás comigo no paraíso” (Lc 23,43)
Jesus sempre viveu “em más companhias” e agora morre entre dois ladrões. Mais uma vez, não assume o papel de juiz sobre dos outros mas oferece uma nova chance de salvação. O moribundo que dá vida: presença solidária, que, mesmo em meio ao pior sofrimento, oferece companhia a outros sofredores. Um dos ladrões, impactado pela serenidade e testemunho de Jesus “rouba o paraíso”.
Jesus revela uma promessa que muitas pessoas precisam ouvir hoje, sobretudo aqueles que carregam cruzes injustas e pesadas, que vivem realidades atravessadas pela dor, pela solidão, dúvida, incompreensão ou pranto... Como soarão estas palavras no interior de cada um de nós: “Hoje estarás comigo no Paraíso”. Hoje: porque as mudanças, a nova criação, a humanidade reconciliada, não tem que esperar mais; hoje, agora, já...; talvez esse “hoje” não chega é por causa de tantas pessoas que não decidem, não optam, esperam sentadas...
Comigo: promessa de viver em sua companhia e desperta ecos de uma plenitude que não conseguimos entender.
No paraiso: que não é um mítico Eden, mas lugar de plenitude de vida, onde não haverá mais pranto, nem dor; realidade já presente onde habitará a justiça e a paz.
- Deixar ressoar esta expressão de Jesus para construir, hoje, o Paraíso em nosso cotidiano.
- Como viver hoje no paraíso? Neste momento, a quem podemos despertar a esperança?
3. APOIO. “Mulher, eis o teu filho; filho, eis a tua mãe” (Jo 19,26)
Maria, mulher do “sim”; “sim” que se prolonga até à Cruz, onde, de pé, revela sua presença materna e consoladora junto a seu Filho Jesus. A presença de Maria na vida de Jesus não é acidental: foi aquela que mais amou, conheceu e seguiu Jesus. Ela agora é nossa referência fiel no seguimento do seu Filho.
Despojado de tudo, Jesus tem um tesouro a nos dar: entrega sua própria mãe para que ela seja presença cuidadora e de ternura junto aos seus filhos sofredores. Jesus não nos deixa órfãos; sempre precisamos dos cuidados e do consolo de uma mãe; alguém para nos acompanhar nas horas mais obscuras e difíceis; alguém que nos sustenta nos momentos trágicos; alguém que compartilha nossas perdas... e que também está presente nas horas boas, que chegarão. É como se Jesus nos dissesse: “Para viver o meu seguimento, inspire-se nela, tenha-a como referência”. Não estamos sozinhos: muitas presenças marianas em nossas vidas – amigos, pais, filhos... São tantas pessoas junto ao pé da cruz, inumeráveis homens e mulheres de Igreja que foram e são companheiros de caminho, de esforço, de apoio, de buscas e de amor. João, também de pé junto à Cruz, representa todo seguidor fiel de Jesus, mesmo nos momentos de crise.
- Deixar ressoar estas palavras de Jesus: ser presença materna e cuidadora junto aos sofredores; prolongar o modo solidário de Maria junto aos crucificados.
4. SOLIDÃO. “Meu Deus, meu Deus, porque me abandonaste?” (Mt 27,46)
O grito de Jesus na Cruz condensa o grito da humanidade sofredora; é o próprio Deus que grita seu abandono.
Esse grito de Jesus revela uma Presença no próprio abandono, embora, de imediato não se sinta esta presença. Grito que não fica no vazio, mas aponta para a Vida.
Todos perguntamos: “Onde está Deus no sofrimento, na violência, na morte...?” E Deus responde, perguntando: “Onde está você no meu sofrimento, na violência que sofro, na morte... de meus filhos/as?”
O sofrimento da humanidade é o sofrimento de Deus; Deus não é insensível e distante da dor dos seus filhos.
Quem não passa por momentos de noite escura, de insegurança, de absoluta incerteza...?
Quem não viveu experiências de abandono, de falta de sentido na vida, de solidão, de rejeição...?
Quem não tem momentos de ceticismo, de amargura, de medo, de dúvida...?
Quem não se pergunta, talvez por um instante fugaz mas pungente, onde está Deus agora?
Nesses momentos temos a impressão de que todas as nossas opções foram equivocadas, que cada decisão nos levou por um caminho sem saída... Nesses tempos nos remorde o fracasso, a miséria, própria e alheia. É do meio desta situação que brota um grito desesperador, como o de Jesus... No entanto, nos atrevemos a seguir adiante, com nossos projetos, compromissos e esforços em seu nome. O desafio está em não ceder, em não crer que tudo tem sido uma mentira. O desafio é não abandonar, não render-se, não capitular nesses momentos. Entende-se, assim, o grande “grito” que brotou das profundezas da dor de Jesus na Cruz e que continua ecoando como clamor angustiado. Não são poucos os gritos dos mais pobres e excluídos. É um clamor forte pela intensidade de suas carências. Um clamor surdo porque não consegue impactar de modo a conseguir respostas prontas e imediatas aos graves problemas que os afligem.
O grito dos sofredores é sempre forte. Forte pela violência das necessidades e das urgências para a garantia de uma vida mais digna. Em Cristo se condensam todos os gritos da humanidade sofredora. Sua força, no entanto, não consegue incomodar a todos os que precisam ser interpelados pela exigência deste clamor. Um grito, pois, é a expressão do mais forte sentimento que está no centro do próprio coração; é, também, a expressão mais concreta do que aflige o coração.
Um grito é, na verdade, um convite a um compromisso solidário. O grande grito de Jesus é a certeza de tudo o que sustenta o seu coração; ao ecoar junto aos crucificados, provocará grandes novidades. Um grito que não fica no vazio mas aponta para a vida.
- Deixar ressoar este grito de Jesus: quais são os gritos surdos que brotam da realidade hoje.
5. SEDE. “Tenho sede...” (Jn 19,28)
Jesus sempre foi um homem “sedento”: fazer a vontade do Pai, realizar o Reino, compromisso com a vida, presença solidária junto aos sofredores, fazer conhecido a Deus como Pai/Mãe...
Agora grita sua derradeira sede: um mundo sem dor, sem exclusão, sem violência
Grita o homem com a garganta ressequida: sede na garganta e sede no coração. Sede expansiva, sede que descentra.
Grito que se multiplica em milhares de gargantas espalhadas pelo mundo: quero “justiça”, clamam os injustiçados deste mundo; quero “pão”, pede a criança com a barriga inchada de ar e de fome; quero “paz”, exclama a testemunha de atrocidades sem fim; quero “amor”, pede o jovem solitário por ser estranho; quero “moradia”, sonha o morador de rua que dorme em um banco da praça; quero “trabalho”, suspira uma jovem que se sente fracassar; quero liberdade escreve o presidiário em seus poemas; quero saúde, recita o enfermo em seu leito... Vozes de compaixão, vozes de pranto, vozes que refletem as dores do mundo.
Há alaridos, e também sussurros, todos carregados de sensibilidade dolorida.
O grito de Jesus na Cruz recolhe todos esses brados da humanidade quebrada. E não há explicação; não há sentido; não há justiça. Só um grito a mais.
A sede de Jesus desperta em nós outras “sedes”: de quê tenho sede? Sede de sonhos, de mundo novo...
Sede mobilizadora que ativa as melhores energias dentro de nós, que desperta nossa criatividade...
Sede que purifica nossa capacidade de escutar os gritos, de perto e de longe. O quê fazer?
“Quem tem sede venha a mim e beba”. Quem não tem sede não busca, não cria.
- Deixar ressoar essa súplica de Jesus: A quem precisamos nos atrever a escutar?
6. COMPROMISSO. “Tudo está consumado” (Jo 19,30)
Parece contradição alguém dependurado na Cruz afirmar que tudo está consumado; tem-se a impressão de fracasso total. Mas na Cruz Jesus leva até às últimas consequências sua Encarnação: mergulha e se faz solidário com todos os crucificados da história. “Desce” até às profundezas do sofrimento humano e ali revela a presença do Deus compassivo.
No alto da Cruz, Jesus tem consciência que não viveu em vão; sua presença fez a diferença; viveu para os outros. Jesus morre com as mãos cheias de vida; gastou a vida a serviço da vida; deixou pegadas nos corações de quem encontrou pela vida. “Jesus morreu de tanto viver”. Morreu de bondade, de compaixão, de justiça.
Jesus teve um “caso de amor” com a vida; viveu intensamente.
Uma vida consumada faz fecunda a morte. Uma história consumada de Amor. Vida consumada quando se consome no serviço aos outros. Jesus desencadeou um movimento de vida.
- Deixar ressoar esta afirmação de Jesus: quão plenificante é poder dizer a cada dia: tudo está consumado. É poder dizer como Pablo Neruda: “Confesso que vivi”.
7. SENTIDO. “Pai, em tuas mãos entrego meu espírito” (Lc 23,46)
Só quem viveu intensamente uma vida expansiva pode acolher a própria morte com paz, confiança, serenidade e abandono nos braços do Pai. Jesus morre como tinha vivido: ancorado na confiança do Pai.
Jesus, que sempre prolongou as mãos do Pai, agora entrega-se confiadamente nos braços do mesmo Pai.
Jesus sempre viveu em profunda sintonia com o Pai; agora Ele dá um “salto vital” nos braços do Pai.
Ao “entregar seu espírito” Jesus é “aspirado” para dentro de Deus.
A morte nos inspira medo; mas na morte, somos todos iguais, sozinho diante de Deus.
A morte é a última ponte que nos conduz ao Pai. Seremos abraçados do outro lado da ponte. Nosso destino é o coração de Deus.
Não só na hora da morte, mas a cada dia somos chamados a “entregar o espírito”; num mundo em que todos buscam seguranças, que em tudo querem ter “salva-vidas”, num mundo que nos convida a ter as costas cobertas... queremos arriscar, apostar pelo Reino; queremos nos sentir confiados, atravessar tormentas ou espaços serenos, sentindo-nos protegidos pelas mãos do Pai. Mãos que curam, acariciam, sustentam...
- Deixar ressoar em nosso interior as palavras de entrega de Jesus: vivemos amparados pelos mãos providentes e cuidadosas do Pai; sentir-nos movidos a prolongar as mãos do Pai.
Estas palavras, proferidas por Jesus no alto da Cruz, causam um profundo impacto em nosso coração.
Tal impacto nos faz ter os olhos fixos no Crucificado; a partir do Crucificado ativar um olhar comprometido com os crucificados da história. Só podemos crer no Crucificado se estivermos dispostos a tirar da Cruz aqueles que estão dependurados nela (Jon Sobrino).
Após a oração universal faremos a chamada “adoração da Cruz”; não se pode contemplar a Cruz isolada daquilo que nela aconteceu. A Cruz nela mesma não tem sentido.
O que vemos ao contemplar o Crucificado?
A Cruz é expressão da máxima compaixão e comunhão, com Jesus e com os sofredores. Ela aponta para Aquele que foi fiel ao Pai e ao Reino. Por isso, a Cruz não é um “peso morto”.
A partir da Cruz de Jesus, iluminamos e damos sentido às nossas cruzes.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
“Estavam tomando a ceia” (Jo 13,2)
Essa foi a prática de Jesus que mais causou espanto e escândalo: a partilha nas mesas com pobres e pecadores. Para Ele, a mesa era para ser compartilhada com todos; a partilha do pão com publicanos e pecadores fazia parte das práticas transgressoras de Jesus. Comendo e bebendo com todos os excluídos, Jesus estava transgredindo e desafiando as formalidades do comportamento social e das regras que estabeleciam a desigualdade, a divisão, a separação...
Jesus revelava uma grande liberdade ao transitar por diferentes mesas; mesas escandalosas que o faziam próximo dos pecadores, pobres e excluídos. Ele não só transitou por outras mesas, mas instituiu a grande mesa para a festa, o encontro, a memória: a “mesa do Lava-pés e da Última Ceia”. Da “mesa eucarística” à “mesa cotidiana”: este é o movimento de vida, inspirado por Jesus.
A pedagogia de Jesus incluiu a “espiritualidade da mesa”. Ele, antes de fundar uma igreja, fundou a “comensalidade”. Ao reunir os seus discípulos para o encontro junto à mesa, Ele revelou o verdadeiro simbolismo deste simples móvel: a lição fundamental da comunhão, como fonte inesgotável de vida. A comunhão que faz sonhar com a mesa eterna no Reino e desafia seus comensais a viver encontros solidários, como hábito e dinâmica que preserva e promove a vida. Do encontro junto à mesa ao encontro com os mais excluídos: este deve ser o movimento inspirador de todo(a) seguidor(a) de Jesus.
A espiritualidade da mesa não pode ser apreendida e mercantilizada por ninguém, pois ela é puro dom da refeição – onde dois ou mais estiverem reunidos por causa do alimento-mesa-ser humano, um novo mundo poderá ser descortinado, revelado. A benção à mesa instaura o horizonte da partilha, em que os alimentos são destinados à necessidade de todos por meio da coresponsabilidade dos participantes, fazendo memória do banquete da Criação, sobre cuja mesa Deus preparou pão e vinho em abundância para todos.
A comunhão bíblica se realiza entre os “distantes e os diferentes”, por meio de um gesto que não é de poder, mas de esvaziamento, não é de apropriação, mas de partilha, não é de fechamento, mas de abertura das mãos que acolhem, que distribuem... “Ninguém considerava propriedade particular as coisas que possuía, mas tudo era posto em comum entre eles”. (Atos. 4,32).
Preparar a mesa e fazer a refeição é todo um ritual. Comer é mais do que ingerir alimentos, é entrar em comunhão com as energias que sustentam o universo e, por meio dos alimentos, garantem nossa vida. Por isso, a mesa, a ceia e o banquete são cercados por uma rica simbologia. O próprio Reino de Deus, a utopia de Jesus, é apresentado como uma ceia ou um banquete na casa do Pai (Lc. 14,15-24; Mt. 21,1-10).
Quando o Criador tirou do húmus o homem e a mulher, Ele pôs, com seu hálito, no coração deles, o desejo do encontro de um com o outro. Esse desejo foi crescendo e configurando-se sob formas sociais diversas, segundo cada cultura e crença. Surgiram refeições comuns, mesas de comensais, mesas festivas.... Para esse centro converge o ser humano em busca do alimento, renovar suas energias, tomar novo impulso... descobrir-se humano. É junto à mesa que se dá o processo de humanização e comunhão; a partir desse ato sagrado, podemos olhar o outro mais de perto, escutá-lo mais de perto, senti-lo mais de perto... pois “a comida, o alimento de nossas refeições, não é somente o que aparenta, mas, remete a algo que está atrás de si, para além de si. Portanto, o gesto de sentar-se à mesa para comer revela um tipo de relação social de um determinado grupo humano” (Manuel Diaz Mateos).
A mesa é um sinal de encontro e comunhão; ao mesmo tempo que sinaliza, ela realiza aquilo que sinaliza, ou seja, a inter-comum-união. A missão da mesa é criar comunhão intra-pessoal (eu comigo mesmo), inter-pessoal (eu-outro) e trans-pessoal (eu-Deus). Ela não é agente passivo, mas construtora de novas possibilidades de vida. Aliás, ela existe enquanto lugar de refeição por causa do ser humano que a modelou.
A refeição em torno da mesa representa um ato comunitário e reforça nos participantes os laços de humanidade, de compaixão, de mútua confiança e de comunhão. Por toda esta carga de simbolismos, a mesa não pode ser posta de qualquer maneira; a sala que ostenta a mesa deve ser um local aconchegante e íntimo, para realizar o milagre do encontro. Ela passa a ser um “altar” que deve ser preparado e ornado com carinho, para ser digno de realizar a sua missão sagrada, pois sagrados são aqueles que dele se aproximam, se apoiam e se reclinam sobre seus dons.
Sentar-se à mesa com o outro é descobrir-se vivo, corpo pulsante, latente, carente. Mas é também descobrir um outro tipo de alimento, que só pode ser colhido na delicadeza da inter-relação, no encontro gratuito com o outro. Nela e com ela aprendemos a acolher o outro como dom. Aprendemos a nos doar, a partilhar, a receber, a escutar e a falar, a contemplar o outro em sua singularidade. A mesa é também o lugar onde acolhemos as alegrias e as tristezas do outro, com quem partilhamos nossa refeição. A mesa-refeição, portanto, é o lugar do suporte das relações, espaço que garante o sustento, que alimenta o corpo, o emocional, o psíquico, o espiritual e o social. Esse lugar humano é revelador de cultura, do inconsciente individual e coletivo. Lugar fecundo, onde o imprevisível pode acontecer.
A mesa da refeição se torna lugar de humanização do ser humano. Espaço de verdadeira reserva de humanidade. Muitos são aqueles que sabem abrir as mãos, partir o pão, saciar a fome do irmão. É nesse universo de mesa-refeição que o ser humano vai se autoconstruindo, autodefinindo como ser que é humano, mas também divino. Diviniza-se humanizando, humaniza-se divinizando.
O simples gesto de passar ao outro o que ele precisa é um gesto despojado de poder, de segundas intenções. Quando alguém passa um prato ou um pedaço de pão ao companheiro, está passando mais do que isso: consome em comum a mesma sorte. “Servir” é o nome do gesto fundamental de estar à mesa. Há necessidades atendidas, o cuidado amoroso perpassa as relações; busca-se o necessário revigoramento físico para a continuidade do caminho, e esforço no trabalho, a preservação da saúde...
O ritual da mesa rompe as distâncias e garante a proximidade, estabelece o estreitamento dos vínculos com o diferente. Junto à mesa, cada um se coloca diante do outro, não importando as diferenças de vida, de opções. A lição da misericórdia é a única que ganha validade e sentido.
A espiritualidade da mesa exala gratidão aos que dela se aventuram em assentar-se. Com isso ela nos interpela a vivermos uma espiritualidade do encontro e do serviço de uns para com os outros. Esta é a prova da autenticidade do verdadeiro seguimento de Jesus. Este é o sentido verdadeiro de toda Eucaristia.
A mesa eucarística se prolonga e se visibiliza na mesa-família.
Texto bíblico: Jo 13,1-15
Na oração: Descubra na sua mesa o seu pão; na sua jornada, o seu chão; no seu cotidiano, o inesperado que vem, o outro em sua fome, em busca de mãos abertas que saibam partilhar.
- Rever o sentido e o lugar da mesa-refeição no seu ambiente familiar: é lugar facilitador de partilha e convivência?
Pe. Adroaldo Palaoro sj
“... quando se aproximaram de Jerusalém” (Mc 11,1)
A experiência espiritual da Quaresma implica a travessia do deserto: tempo de despojamento, de pobreza, de confiança em Deus, de esperança e horizontes abertos... O deserto quaresmal desemboca na cidade. E todos sabemos que a cidade é o contrário do deserto: autossuficiência, segurança, limitação de horizontes, acomodação, conflitos... Cidade moderna, globalizada pela tecnologia fria e sem alma, amordaçada pela funcionalidade e pela utilidade, com uma política submetida ao mercado, à produção e consumo, cidade estendida e sem muros de contorno, mas com horizonte atrofiado, aparentemente sem Reino de Deus à vista...
Hoje temos esvaziado a dimensão do deserto em nossas vidas e nos adaptamos de tal maneira à cidade e às suas exigências técnicas, produtivas, aos seus programas e solicitações... que acabamos nos sentindo passivos diante dela. O tempo quaresmal nos possibilita manter aberto o acesso ao deserto, que cria um espaço interior vazio, onde se faz realidade um encontro surpreendente com Deus; a partir daí, mesmo em nossa atribulada vida na cidade, podemos recuperar a liberdade do chamado profundo e redescobrir o caminho do Seguimento de Jesus, que começa e termina nos “aforas” da cidade.
Jesus entrou na cidade de Jerusalém com seus(suas) seguidores(as) e não foi uma decisão fácil porque implicava o alto risco de ser incompreendido e rejeitado. Como bom judeu, Jesus subiu a Jerusalém, cidade de Davi (do Messias) em nome dos pobres, com um grupo de galileus, para anunciar e preparar o Reino. Subiu na Páscoa, porque era o momento propício (hora do Reino), tempo para que os homens e as mulheres pudessem se encontrar a se comunicar, em gesto de paz, a partir dos mais pobres. Subiu a Jerusalém porque estava convencido de que sua mensagem era de Deus e porque Deus lhe havia confiado a missão de instaurar, com sua palavra e com sua vida, o novo Reino dos pobres, que já havia começado na Galileia e que devia estender-se, desde Jerusalém, passando de novo por Galileia, para todos os homens e mulheres da terra.
Jesus tinha a certeza de que Deus falaria através do que fizessem (ou não fizessem) com Ele em Jerusalém, pois esta era a última oportunidade para a cidade da promessa e do templo. Entrou na cidade santa para que finalmente ela se transformasse na “cidade de Deus”, o lugar de encontro do ser humano com Deus, de Deus com todos os seres humanos, e estes como irmãos.
E pela primeira vez Jesus se deixa aclamar: “Hosana ao filho de Davi”. Desta vez não recusou o papel de liderança, mas deu um outro sentido, porque não se valeu disso para conquistar o poder e sim para desmascará-lo. Não fez pactos militares ou políticos, porque Deus não atua por meio do poder, mas de um modo gratuito. Dessa forma entrou na cidade de Jerusalém, desarmado e cheio de esperança, renunciando todo poder sobre ela, todo domínio, toda força, sem espadas, sem exército... Não entrou montado a cavalo como os grandes, mas num jumentinho; não entrou rodeado das grandes autoridades religiosas e políticas pois Jesus se sentia muito melhor acompanhado das pessoas simples do povo; não usou traje de gala, mas as vestes rudes de um peregrino; não lhe fizeram nenhum arco de flores pois a Ele lhe bastavam os mantos do povo e os ramos cortados das árvores; entrou provocativamente como mensageiro da concórdia e da paz em meio a aplausos e hosanas do povo peregrino que veio à festa. Jerusalém inteira fica alvoroçada. Os donos do poder, político e religioso, sentem-se ameaçados.
Não devemos perder o deserto que carregamos dentro de nós; por isso, só podemos “entrar na cidade” seguindo a Jesus Cristo que é fiel à causa do Reino, com o risco da Cruz (Semana Santa), porque a Cruz assume, radicaliza e eleva o deserto. Jesus vai morrer nos “aforas” da cidade, nesse limite fronteiriço entre o deserto e Jerusalém, nesse espaço que só Deus pode preencher e onde podemos enraizar nossa confiança n’Ele.. A Cruz se eleva e abraça ambas realidades.
O(a) seguidor(a) de Jesus é um(a) apaixonado(a) do deserto e que nunca se “encaixa” nas estruturas da cidade; sua presença sempre rompe com as muralhas, alargando espaços e acolhendo o diferente. Se carregamos o deserto dentro de nós, estaremos vazios de nós mesmos, de nosso ego, de nossas visões fechadas, de nosso monopólio da verdade. Só assim nossa presença na cidade vai se revelar inspiradora e provocativa, como a presença de Jesus em Jerusalém.
Embora muitas realidades urbanas nos queiram impedir o encontro com Deus, devemos reconhecer na cidade a presença d’Ele, muitas vezes de um modo imperceptível, como o sol está presente nos dias nublados. Deus está sempre presente na histórica e na cultura de nosso tempo. Ele continuamente vem ao nosso encontro. O cristianismo é a religião do Deus com rosto humano e urbano que nos busca apaixonadamente em Cristo. Por isso, não é necessário que levemos Deus para a cidade; Ele já está ali presente, em meio às alegrias e dores, esperanças e sofrimentos nela.
A presença de Deus não é percebida à plena luz do dia; uma pessoa pode viver na cidade e perfeitamente ignorar, negar, desmentir ou simplesmente desconhecer a presença divina nela. É preciso buscar a Deus, “descobrir Deus na cidade”, como se estivesse encoberto, oculto, escondido no espaço urbano. Uma aguda sensibilidade religiosa capta a presença de Deus também nos sinais de sua ausência. O “Deus escondido” se apresenta onde é marginalizado. Deus acompanha a todos em seu aparente ocultamento; pronuncia sua voz em seu silêncio; revela sua onipotência em seu despojamento; mostra sua máxima bondade em sua mínima expressão, do presépio à Cruz.
Este é um dos grandes desafios na grande cidade. Romper com o individualismo e o poder que marcam as relações entre os homens e as mulheres, para criar um marco novo, humanizador e aberto a Deus Pai, através de pequenas comunidades. Comunidades daqueles que confessam o seu amor comum pelas mesmas coisas – as mesmas esperanças, os mesmos sonhos, a mesma utopia do Reino.
É, sobretudo, em torno da mesa que as comunidades se constituem; com o gesto do “re-partir”, estabelece-se uma rede de relações entre as pessoas que aceitam conspirar, co-inspirar, em tôrno do fascínio da proposta de Jesus. Na verdade, a Eucaristia vivida é o sal, o fermento, a luz e a alma da cidade. Assim é a cidade que Deus deseja: uma praça de encontro e uma mesa celebrativa para todos.
Texto bíblico: Mc 11,1-10
Na oração: As cidades não são pessoas, mas tem sua identidade e personalidade próprias; algumas tem múltiplas personalidades. Elas existem no espaço e no tempo.
Há cidades acolhedoras, que dão as boas-vindas, que parecem se preocupar com cada habitante, alegram-se com o fato de que os moradores ali se sintam bem; são cidades humanizadoras...
Há cidades indiferentes, aquelas que dá no mesmo que as pessoas estejam ou não nelas; cidades que seguem seu rumo, que ignoram seus habitantes...
Há cidades que são más, violentas, que parecem perdidas, que dão a sensação de que seriam mais felizes em outro lugar... Algumas grandes cidades se propagam como um câncer que devoram tudo em sua passagem, absorvem cidades pequenas e povoados, destroem culturas e hábitos de vida, esvaziam regiões que em outros tempos eram prósperas... Cidades desumanizadoras.
Mas somos nós que damos uma feição às cidades; cada cidade revela o rosto e o coração de seus moradores... Como é sua cidade? É espaço de encontro, de comunhão, de qualidade de vida?
Diante dos dramas de sua cidade (violência, exclusão, divisão...), qual a sua reação? acomodação, alienação? indiferença? ou compromisso? envolvimento em projetos humanizadores? presença inspiradora e facilitadora de encontros?...
Pe. Adroaldo Palaoro sj
“Se o grão de trigo morre, então produz muito fruto” (Jo 12,24)
Caminhamos para o final da Quaresma, e o evangelho deste domingo nos situa diante de uma experiência radical de morte por amor, como o grão de trigo. Esta é uma experiência universal: só o trigo que “entrega” sua vida é fecundo: multiplica-se em sementes na espiga, transforma-se em alimento (pão compartilhado), alimenta vidas.
Estamos no cap. 12 de S. João; depois da unção em Betânia e da entrada triunfal em Jerusalém, e como resposta aos gregos que queriam vê-lo, João põe na boca de Jesus um pequeno discurso sobre a Vida. Vida maiúscula que só pode ser alcançada quando se entrega em favor de tantas vidas feridas e excluídas.
O evangelho deste domingo nos situa diante da lógica inexplicável do Amor: “perder” a vida por amor é a certeza de “ganhá-la”; morrer a si mesmo é a verdadeira maneira de viver, entregar a vida é a melhor forma de recebê-la... Perder-ganhar, morrer-viver, entregar-reter, doar-receber..., parecem dimensões ou realidades contraditórias, mas captar a profundidade da verdade contida nesta “contradição aparente” é descobrir o Evangelho.
A vida é constantemente chamada a ser Páscoa. Porque na vitória da Vida entregue, ela ganha sentido, avança, como uma torrente que rega terras secas, ávidas de água, como um fogo que, na noite mais escura, traz uma luz que permite vislumbrar a vida oculta.
A vida não se conta pelas respirações, mas pelos momentos de assombro, de alegria e encantamento. Ela tem a dimensão do milagre e carrega no seu interior o destino da ressurreição. A vida, desde o mais íntimo da pessoa humana, deseja ser despertada e vivenciada em plenitude. Ela é fruto do amor, mas o egoísmo é a casca que impede o germinar dessa vida, embora ela esteja presente dentro de cada um de nós. Amar é romper a casca para que a vida se expanda na doação. A morte do falso eu é a condição para que a vida se liberte.
Participando da morte de Jesus, podemos também fazer de nossas cotidianas mortes um ato de decisão, de entrega, de oblação. A certeza de nossa fé em Cristo, morto e ressuscitado, nos ajuda a tirar do coração os medos, os impulsos egoístas de busca de segurança e proteção, e encontrar uma paz profunda que nos permita fazer de nossa vida uma oferenda gratuita em favor da vida dos outros.
Por si mesma, toda vida humana é fecunda, é potencialidade, é explosão de criatividade... Assim como na semente do trigo há vida latente esperando a oportunidade de expandir-se, também no ser humano encontram-se ricas possibilidades, esperando a morte do “eu mesquinho”, para se plenificarem.
A condição da fecundidade é saber morrer a muitas coisas: auto-centramento, busca de poder, vaidade... E esse processo de mortes de tudo aquilo que limita, que atrofia e isola..., não é o fim da vida, mas sua plenitude; esse caminho permanente de esvaziamento do ego, para viver a entrega aos outros, não significa a anulação da “pessoa”, mas sua potenciação; pois a vida não deve ser corroída pela tirania do egoísmo mesquinho: vida é encontro, interação, comunhão... Desperdiçar a vida é travar a existência; é trágico que alguém viva na superficialidade sem ter acesso à sua riqueza interior. Quem conhece o valor da vida não se limita a viver de maneira “normótica” (normalidade doentia).
Precisamos abandonar nossas medidas de segurança, ser liberados do domínio cego do ego, para que possa emergir e brilhar o que realmente somos, nossa dignidade mais profunda. “Não é o centrar-se em si mesmo que confere dignidade à existência, mas o descentrar-se, o reestruturá-la em favor dos outros” (L. Boff). “Não sou eu que vivo, é Cristo que vive em mim” (Gal 2,20).
O essencial não é encontrar um caminho para alcançar a imortalidade, mas aprender a “morrer em Cristo”. A vida aumenta quando compartilha e se atrofia quando permanece no isolamento e na comodidade. De fato, aqueles que mais desfrutam da vida são os que deixam a segurança do conhecido e se dedicam apaixonadamente à missão de comunicar vida aos outros.
O Evangelho de hoje(5º dom Quaresma) nos ajuda a descobrir que a preocupação doentia para com a própria vida atenta contra a qualidade humana e cristã dessa mesma vida. Aqui descobrimos outra lei profunda da realidade: alcança-se a maturidade da vida à medida que ela é entregue para possibilitar vida a outros.
“Morre e transforma-te” (Goethe) Somos seres que passamos por contínuas transformações. Tudo muda. Muda o nosso coração, nossa mente se abre ao novo, nossos sentidos se expandem, nossos encontros com os outros revelam-se criativos e inspirados... Reagimos como aquelas pessoas que tiveram uma experiência limite da morte (por enfermidade, acidente ou por ter superado uma morte certa); elas experimentam uma mudança radical em suas vidas. Sua atitude diante da vida é totalmente diferente; vêem-na com olhos novos: captam muitos detalhes que antes escapavam de sua atenção, vivem intensamente, amam com mais paixão, prestam atenção a muitas coisas que lhes passavam desapercebidas; tem um comportamento diferente para com os outros; há, nestas pessoas, mais ternura, são mais sensíveis à dor e à injustiça.
Ao apreciar o presente da vida, vivem como se fossem ressuscitadas; crêem que, amando mais a vida, se afastarão mais da morte e resistirão às hostilidades do mundo presente. E, no entanto, continuam vivendo na mesma casa, fazendo as mesmas coisas..., mas, com outra sensibilidade, com mais criatividade e doação.
Para quem se deixa afetar profundamente pela experiência quaresmal, é impossível não ser movido(a) a viver bem a vida, a valorizá-la e a coloca-la a serviço. O convite de Jesus é para “perder” nossa vida, não afeiçoarmos egoicamente a ela e abrir-nos para receber uma Vida maior, nossa verdadeira vida, a Vida de Deus em nós. Precisamos nos destravar, deixar de apegar-nos a nós mesmos, abrir as mãos, abandonar nossa autoafirmação... para que Deus possa entrar e atuar em nós.
Aquele que “quer salvar sua vida”, ou seja, aquele que quer estar bem, não quer ter compromissos, não quer se envolver com as situações exigentes, quer estar à margem da realidade que pede uma presença diferente..., esse “perderá sua vida”. Quê vida mais atrofiada quando se vive bem comodamente, bem tranquilo, bem instalado, bem relacionado politicamente, economicamente, socialmente...!
Mas aquele que por amor ao Reino se desinstala, acompanha o povo, se solidariza com o sofrimento do pobre, encarna-se e faz sua a dor do outro... esse “ganhará a vida”. Sua vida se transformará em Vida. Libertam o mundo todos aqueles e aquelas que fazem de sua vida uma doação, um oferecimento. Assim deixam passar por eles(elas) o que é Deus, puro Dom de Si, Amor que não se reserva a Si mesmo.
É gratificante fazer memória de tantos homens e mulheres que foram presença compassiva e, à maneira de Jesus, consumiram suas vidas em favor da vida; histórias silenciosas de tantas pessoas que com sua presença ajudaram os outros a viver; pessoas que revelaram a paixão por viver em pequenas paciências cotidianas, que entregaram suas vidas sem brilho algum, sem vozes que a proclamassem; foram como o fermento silencioso que se dissolveram na massa para fazê-la crescer.
Texto bíblico: Jo. 12,20-33
Na oração: Somos grãos de trigo na grande seara do mundo; e o grão de trigo eterniza-se na sua entrega-doação para que outros matem suas fomes e vivam com sentido.
Aprendamos a morrer para nossos interesses mesquinhos; só assim nossa vida terá a dimensão da eternidade.
- “Se a semente do trigo sou eu, a quê devo morrer, para que a vida interior possa se expandir?”
Pe. Adroaldo Palaoro sj
“Pois Deus amou tanto o mundo, que deu o seu Filho unigênito...” (Jo 3,16)
O evangelho indicado para este 4º. dom. da Quaresma nos faz retomar o verdadeiro sentido do Mistério da Encarnação. Pode parecer estranho, uma vez que a liturgia quaresmal nos motiva e nos prepara para viver os mistérios da Paixão, Morte e Ressurreição de Jesus Cristo. Mas os “mistérios” da vida de Jesus não estão separados: trata-se de um só e único “Mistério”, qual seja, do “Deus que se humaniza” para redimir a humanidade perdida.
O que aconteceu no mistério da Encarnação é algo surpreendente e cheio de novidade. Não só Deus ama radicalmente a sua criatura, senão que se “abaixou” e se fez um de nós em Jesus: a carne é digna de Deus, o mundo é digno de Deus, a Encarnação é a expressão mais profunda de que somos de Deus. Com isso, rompe-se o medo do corpo, o medo do humano, o medo do diferente, o medo do mundo, o medo de sentir e experimentar a condição humana, com sua grandeza e fragilidade.
Ao se revelar Manancial e Fonte de nossa humanidade, não é mais possível crer que o Criador seja nosso rival, mas amigo; não é possível mais aceitar que Ele seja insensível, mas providente; que seja nossa ameaça, mas alívio; que seja nossa diminuição, mas plenitude; Ele não é o “juiz distante” mas o “Deus encontro”, fonte de nossa liberdade...
O relato do Evangelho de hoje nos revela a atitude de Deus no seu encontro com o mundo, marcado por uma atitude amorosa. Em Jesus Cristo, nos fazemos conscientes da relação que há entre todos os seres humanos e destes com todas as demais criaturas e com o Criador. Ele não só tornou próximo um Deus cuja essência é encontro (cerne da doutrina cristã da Trindade), mas revelou que o caminho para a plenitude e a transformação humana consiste “entrar no fluxo do encontro intra-trinitário”, fazendo-nos encontro e reconstruindo as relações rompidas. Na verdade, Ele chamou o ser humano a sair de seu mundo fechado, de seu isolamento e padrões alienados de relacionamento para expandir-se em direção a um novo encontro com tudo o que existe; tal encontro é o prolongamento do encontro trinitário e concretização do sonho do Reino de Deus.
Inspirados no evangelho deste domingo, contemplemos, com o olhar do Deus Amor, nosso mundo fragmentado, vendo as diversidades em conflito que geram o sofrimento, a exclusão, a morte... Entrar no fluxo do “amor compassivo e descendente de Deus” ativa também em nós uma maneira cristificada de ser e de estar no mundo; nossa presença e nossa missão fazem do mundo em que vivemos um lugar transparente, santo e luminoso em Deus. O “amor descendente” nos expande e nos lança em direção ao mundo, à humanidade, nos faz mais universais e nos capacita para sermos “contemplativos nos encontros”.
Na espiritualidade cristã, quem experimenta o encontro com o Deus vivo e amoroso, começa a “ver” os homens e as mulheres no mundo como Deus mesmo os vê. Precisamente por ter-se encontrado com o Deus-Amor, a pessoa torna-se mais “encarnada” na realidade e mais comprometida com os irmãos e irmãs no mundo, sobretudo com os mais pobres, os mais sofridos e excluídos; é aquela que mais se compromete com a justiça e é a que mais desenvolve uma criatividade eficaz na história, com obras que nos surpreendem.
O Tempo Quaresmal nos sensibiliza e nos capacita para nos aproximar do nosso mundo com uma visão mais contemplativa. Como “contemplativos nos encontros”, movidos por um olhar novo, entramos em comunhão com a realidade tal como ela é. É olhar o mundo como “sacramento de Deus”; um olhar gratuito e desinteressado, que nos abre a uma atitude acolhedora de tudo que nos rodeia; um olhar que rompe distancias e alimenta encontros instigantes.
O(a) seguidor(a) de Jesus não é aquele(a) que, por medo, se distancia do mundo, mas é aquele(a) que, movido(a) por uma radical paixão, desce ao coração da realidade em que se encontra, aí se encarna e aí revela os traços da velada presença do Inefável; o mundo já não é percebido como ameaça ou como objeto de conquista, mas como dom pelo qual Deus mesmo se faz encontrar. O mundo não é lugar da exploração e da depredação, mas é o lugar da receptividade, da oferenda e do encontro inspirador.
Para realizar esta nobre missão, não podemos permanecer sentados. Seguir Jesus exige de nós uma dinâmica continuada, um colocar-nos a caminho em direção às margens. A disponibilidade, o despojamento e a mobilidade são exigências básicas.
Corremos o risco de viver em mundos-bolha; podemos construir nossa vida encapsulada em espaços feitos de hábito e segurança, convivendo com pessoas semelhantes a nós e dentro de situações estáveis. É difícil romper e sair do terreno conhecido, deixar o convencional. Tudo parece conspirar para que nos mantenhamos dentro dos limites politicamente corretos. Todos podemos terminar estabelecendo fronteiras vitais e sociais impermeáveis ao diferente. Se isso acontece, acabamos tendo perspectivas pequenas, visões atrofiadas e horizontes limitados, ignorando um mundo amplo, complexo e cheio de surpresas. Muitas vezes “vemos” o diferente, mas só como notícia, como o olhar do espectador que sabe das “coisas que acontecem”, mas não sente e nem se compadece por elas.
Encontrar outras vidas, outras histórias, outras situações…; escutar outros relatos que trazem muita luz para a nossa própria vida. Olhar a partir de um horizonte mais amplo, ajuda a relativizar nossos próprios absolutos e deixar-nos impactar pelos valores presentes no outro. Escutar de tal maneira que o que ouvimos penetra na nossa própria vida; isso significa implicar-nos afetivamente, relacionar-nos com pessoas, não com etiquetas. Acolher na nossa própria vida outras vidas; abrir espaços para que as histórias dos excluídos e diferentes encontrem morada nas nossas entranhas, na nossa memória e no nosso coração.
O encontro com o diferente possibilita também o encontro consigo mesmo, ou seja, encontrar a própria verdade. Isso implica em se perguntar pela própria identidade, por aquilo que dá sentido à própria vida, o impulso por viver de uma maneira cristificada, conforme os valores do Reino.
Para que haja verdadeiro encontro com o outro, o deslocamento expõe quem se desloca, deixa-o vulnerável e “contaminado” pela realidade que encontrou. Quando alguém se desloca e se aproxima de realidades diferentes, é para encontrar, encontrar-se e encontrar Aquele que veio iluminar todo encontro.
Como seguidores(as) de Jesus, nosso desafio não é fugir da realidade, mas aproximarmos dela com todos os nossos sentidos bem abertos para olhar e contemplar, escutar e acolher, percebendo no mais profundo dela a presença ativa do Deus que nos ama com criatividade infinita, para encontrar-nos com Ele e trabalhar juntos por seu Reino. O mundo precisa de místicos(as) que descubram onde está Deus criando algo novo, para proclamar esta boa notícia.
É aqui, neste mundo, que Deus nos chama a estender o seu Reinado, trabalhando cada dia como amigos(as) de Jesus que passam, observam, curam, se compadecem, ajudam, transformam, multiplicam os esforços humanos. Apaixonados por Deus, nos apaixonamos pelo mundo que, em sua diversidade, riqueza, simplicidade, profundidade, fragilidade, sabedoria... nos fala do novo rosto do Deus que buscamos com desvelo. E amando e investigando tudo o que é do mundo, adoramos o Deus que habita em tudo.
Texto bíblico: Jo 3,14-21
Na oração: “Pai de bondade, para descobrir tua proposta original, ensina-nos a contemplar o mundo inteiro com o teu próprio olhar, respeitoso e fiel à nossa realidade”. (Benjamin Buelta)
- Evangelizar nossos sentidos, muitas vezes atrofiados e limitados, para que eles sejam mediação cristificada e assim viver encontros verdadeiramente humanizadores.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
“Fez então um chicote de cordas e expulsou todos do Templo…” (Jo 2,15)
A Quaresma nos oferece os grandes sinais da vida e da mensagem de Jesus: das tentações (1º. dom.) e transfiguração (2º. dom.) à expulsão dos comerciantes do Templo (3º. dom.). Este terceiro sinal, vinculado com a construção do novo Templo (formado pela vida dos cristãos, unida à vida de Cristo), está no centro da mensagem de Jesus. E revela-se uma ocasião privilegiada para denunciar a tendência da religião cristã em distanciar-se da mensagem de Jesus e deixar-se contaminar pelo poder, pela riqueza, pela vaidade... Todos devemos nos empenhar em destruir muitas coisas do “velho templo” que fomos construindo ao longo da história.
João, à diferença dos outros evangelistas, situa o relato da expulsão dos comerciantes do Templo no começo do ministério de Jesus. O espaço do Templo tinha se convertido em mercado, e se encontrava dominado pelos comerciantes da religião, vendedores e sacerdotes. Com sua atitude, Jesus combate uma religião que está a serviço do “deus-dinheiro”, deixando de ser mediação de vida, de comunhão e partilha dos bens. Evidentemente, este não é o templo de Jesus, que veio chamar e convocar aqueles que não podem comprar “bois-ovelhas-pombas”. Jesus expulsou os mercadores-vendedores do templo porque estes expulsaram Deus de suas vidas e da realidade cotidiana; queriam ter Deus sob seu controle para se enriquecer com o sagrado.
Por que este gesto violento de Jesus para com aqueles que dominavam o templo e manipulavam Deus em favor de seus interesses? Porque, para eles, o primeiro e o intocável era “o ritual” e “o sagrado” (com todas as suas consequências). Enquanto que, para Jesus, o primeiro e o intocável, era “o humano” (a vida humana, o respeito ao humano, a dignidade de todos os seres humanos por igual). Jesus se situou do lado da vida e da felicidade dos seres humanos. De fato, as preocupações de Jesus não foram nunca nem as observâncias rituais do templo, nem a inviolabilidade do sagrado, nem a dignidade dos sacerdotes, nem os poderes da religião... As preocupações de Jesus foram: a saúde das pessoas (relatos de curas), a mesa da partilha e da inclusão (relatos de refeições), a reconstrução das relações entre os humanos (o sermão da Montanha).
Jesus foi um profeta leigo; não foi sacerdote, nem funcionário da religião, nem mestre da lei, nem nada parecido. Mais ainda, Jesus viveu e falou de tal maneira que logo entrou em conflito com os dirigentes da religião de seu tempo, os sacerdotes e os funcionários do Templo, que eram os representantes oficiais do “religioso” e do “sagrado”.
Se há algo que é claro e é repetido tantas vezes nos Evangelhos é que os “homens da religião” não suportaram o Evangelho de Jesus, centrado na vida e não no Templo. E não o suportaram porque eles viram, em Jesus, um perigo e uma ameaça aos seus privilégios. Enquanto o projeto deles era defender e manter o Templo com seus ritos e normas, com suas dignidades e privilégios, com seus poderes sobre o povo, o projeto de Jesus centrava-se na cura dos enfermos, na proximidade junto aos mais pobres, aos pequenos, aos pecadores e a todo tipo de pessoas desprezadas e rejeitadas pelos dirigentes religiosos. Tudo isto é o que Jesus privilegiou, inclusive transgredindo as normas da religião, enfrentando os escribas, fariseus, os sacerdotes e atuando com violência contra aqueles que utilizavam o templo como negócio, até convertê-lo em “casa de comércio”. O Compassivo não quer sangue, nem incenso, nem ritos...; quer compaixão, ternura, quer justiça, quer que todos vivam e vivam intensamente.
Sabemos que em toda religião o determinante está no sagrado. No projeto de Jesus, o centro de tudo está no humano, na dignidade e na felicidade das pessoas, na vida. Jesus não suprimiu o sagrado, mas o deslocou do religioso ao humano. Este é o verdadeiramente sagrado para Jesus. Seu projeto não é projeto “religioso”, mas a vida humana; o central na sua vida não foi o religioso, mas o humano e a humanidade.
Por isso, Jesus prescindiu do Templo para relacionar-se com Deus. Ele se encontrava com o Pai não no espaço sagrado do Templo, nem no tempo sagrado do culto religioso, mas no espaço cotidiano do encontro com as pessoas. Seu Templo era a convivência com as pessoas, sobretudo as mais excluídas.
Jesus foi um piedoso israelita que teve uma forte experiência de Deus, a quem chamava Pai e que fomentava a oração não no templo, mas no monte, nos lugares solitários e silenciosos. Sua “religiosidade” não estava vinculada ao templo nem aos rituais sagrados.
Frente ao projeto que chamava “Reinado de Deus”, Jesus foi questionando uma religião que desumanizava as pessoas. Ele mesmo foi relativizando os pilares da religião: o sábado, a “pureza” legal, o pecado, o
Templo, o culto, os sacrifícios, as doutrinas... Pouco a pouco, foi colocando tudo em questão, infringindo suas normas e atacando a hipocrisia de um culto a Deus que desprezava as pessoas.
Para aqueles que veem em Jesus o novo Templo onde habita Deus, tudo é diferente. Quem deseja viver a fundo e encontrar-se com Deus (“os verdadeiros adoradores do Pai), não é preciso ir a um templo ou outro, frequentar uma religião ou outra. É necessário aproximar-se de Jesus, entrar em seu projeto, seguir seus passos, viver sob o impulso do seu Espírito.
Neste Novo Templo, que é Jesus, para adorar a Deus não bastam o incenso, as aclamações nem as liturgias solenes. Os verdadeiros adoradores são aqueles que vivem diante de Deus “em espírito e em verdade”. A verdadeira adoração consiste em viver com o “Espírito” de Jesus e na “Verdade” do Evangelho. Sem isto, o culto é “adoração vazia”.
Nós dizemos que a religião é um meio (mediação) para nos relacionar com Deus. Mas nem sempre caímos na conta que a religião com seus rituais (templos, ritos, o sagrado, os sacerdotes, a normativa religiosa...) ocupam tanto espaço e alcançam tanta importância na experiência dos indivíduos e da sociedade que Deus acaba ficando deslocado da vida e desfigurado em sua imagem de Pai/Mãe de misericórdia. O que acontece, com muita frequência, é que a religião, seus ritos, suas hierarquias e suas normas, em lugar de fazer-nos aproximar de Deus e fazer-nos pessoas melhores, na realidade fazem é complicar nossa relação com Deus e, sobretudo, dificultam nossas relações sociais, religiosas ou simplesmente humanas.
No Reino de Deus não se requer “templos” mas corpos vivos. Estes são os santuários de Deus, onde brilha Sua presença e Seu amor, onde as pessoas vivem dignamente. Jesus não veio para continuar a linha religiosa tradicional. Veio para propor uma humanidade restaurada a partir do princípio da centralidade da vida das pessoas que vivem com dignidade. Sobre esta base é possível sonhar e construir outra maneira de viver e outra maneira de ser.
Neste Novo Templo, que é a vida dos(as) seguidores(as) de Jesus, não se faz discriminação alguma, nem se fomenta a desigualdade, a submissão e o medo. Não há espaços diferentes para homens e mulheres. Em Cristo já “ não há varão e mulher”. Não há raças eleitas nem povos excluídos. Os únicos preferidos são os necessitados de amor e de vida.
Necessitamos, sim, de igrejas e templos para celebrar e fazer memória de Jesus como Senhor, mas Ele é nosso verdadeiro Templo. Os templos físicos não podem ser fronteiras que dividem o sagrado do profano, mas espaços onde vivemos a sacralidade de toda a vida.
Texto bíblico: Jo. 2,13-25
Na oração: As portas do “novo Templo”, que é Jesus, estão abertas para todos; ninguém está excluído.
Podem entrar nele os pecadores, os impuros, os excluídos, os marginalizados da religião...
O Deus que habita em Jesus é de todos e para todos.
Somos também o “novo templo”, morada do Espírito, presença que alarga nosso interior para que todos possam ali ter acesso.
- Quem são os “frequentadores” do seu “templo interior”?
Pe. Adroaldo Palaoro sj
“O Espírito levou Jesus para o deserto” (Mc 1,12)
Ao iniciarmos a Quaresma, um lugar que continuamente será citado e que vai aparecer com frequência nos textos, reflexões e orações, é o “deserto”. Deserto que deve fazer parte de nossas vidas em algum momento: espaço de escura e de silêncio, de busca, de despojamento; lugar que nos faz tomar consciência das coisas essenciais que dão sentido à nossa existência; ambiente privilegiado para o encontro tu a tu com o Deus amor que nos habita, ou melhor, em Quem habitamos. Se nos abrirmos à Sua presença amorosa, caminharemos livres dos falsos absolutos que cada dia nos tentam, e nossos desertos existenciais se converterão em um jardim onde florescerá de novo a esperança.
Como seres humanos, de tempos em tempos precisamos passar por experiências de despojamento, de esvaziamento, de vulnerabilidade, de crise..., para poder suavizar nosso coração e, desse modo, fazer-nos mais receptivos e expansivos.
O “deserto” é o lugar das perguntas, do discernimento, da busca de profundidade, o ambiente favorável que nos oferece ferramentas com as quais poder romper as bolhas que nos aprisionam, impedindo-nos sair para a aventura da vida.
O “deserto” nos sacode e nos desnuda, porque desmascara nossas falsas seguranças. Por isso, somos movidos a buscar nossas raízes mais profundas. Quando esse percurso é vivido adequadamente, é provável que no final vamos poder dizer, como Kierkegaard, “eu teria me afundado se não tivesse ido ao Fundo”. Com efeito, antes ou depois, o deserto nos conduzirá para o Fundo estável e sereno, nos conduzirá à “casa”, à nossa verdadeira identidade, à “Terra prometida”.
Num mundo em que a imagem e as redes sociais ocupam, com suas presenças, toda a nossa vida, todos os nossos lares, os espaços públicos, fazendo-nos viver a cultura da superficialidade, muitas pessoas de diferentes condições sociais e religiosas já começam a sentir a urgente necessidade de escapar de tanta solicitação externa que as oprime e alimentam o desejo de se ocupar mais decididamente com o seu mundo interior. Mas, se somos sinceros, adentrar-nos em nosso “eu profundo” e viver a partir de dentro é algo que não sabemos e muitas vezes até sentimos medo. É cada vez mais difícil a criação de um espaço interior, em sintonia e bem integrado com o mundo exterior.
Nesse sentido, a liturgia quaresmal revela-se como uma mediação privilegiada para potencializar nossa interioridade, ou destravá-la, para que a expansão de nossa vida seja possível. Tal experiência resgata-nos do entorpecimento e nos dá um choque de lucidez. Ela oxigena a nossa mente e implode nosso conformismo; revela-se instigadora e provocativa, fonte inspiradora que nos liberta do cárcere da rotina. Ela nos faz lembrar que somos andarilhos, deslocando-nos no traçado da existência em busca de respostas que dêem sentido à nossa existência.
O caminho para Deus passa pela experiência mais profunda e autêntica de si mesmo, convidando cada um a repensar como, em meio às dificuldades de cada tempo, sempre é possível o percurso em direção à própria interioridade.
Buscar o Deus que “está dentro de mim, enquanto eu estou fora” (S. Agostinho), significa entrar em relação direta com nosso interior, com o que nos move, com o que sentimos e pensamos; significa dissolver bloqueios afetivos já solidificados e conflitos não resolvidos; é fazer que se calem muitos ruídos parasitas e que se escute, por fim, o silêncio sonoro que brota do oculto; desentupir os condutos do coração e processar a lava ardente dos grandes desejos significa abrir os olhos para uma paisagem desconhecida.
Foi no deserto onde Jesus descobriu o que move verdadeiramente o coração do ser humano. Foi nessa situação – de solidão – onde também descobriu o que Deus ama no coração humano. Nessa experiência de deserto Jesus tomou consciência de duas forças ou dinamismos que atuam no coração humano: um de expansão, de saída de si, de vida aberta e em sintonia com o Pai e com os outros; outro, de retração, de auto-centração, de busca de poder, prestígio, vaidade...
Jesus viveu impulsionado pelo Espírito, mas sentiu em sua própria carne as forças do mal: “foi tentado por satanás”; satanás significa “o adversário”, a força hostil a Deus e a quem trabalha por seu reinado. Na tentação de Jesus se des-vela o que há em nós de verdade ou de mentira, de luz ou de trevas, de fidelidade a Deus ou de cumplicidade com a injustiça. Qual dos dois dinamismos internos alimentamos?
O evangelista Marcos ressalta que o “deserto” não é só um lugar geográfico; é também o lugar que buscamos para nos silenciar e nos oferecer a oportunidade para reconectar conscientemente com nosso centro. Em todo processo de crescimento, e mais ainda nos períodos críticos do mesmo, vamos nos deparar com a presença dos “animais selvagens” e dos “anjos” em nosso eu profundo.
É assim que nomeamos as experiências que acontecem quando nos adentramos em nosso mundo interior. Os “animais selvagens” são aquelas circunstâncias internas e que nos frustram e, sobretudo, aquele material psíquico que não reconhecemos ou aceitamos em nosso interior: nossas paixões, nossos traumas, nossas feridas, nossos instintos, nossa impotência e fragilidade... É a “sombra” que vamos arrastando, e que continua nos assustando enquanto não a reconhecemos e a abraçamos abertamente em sua totalidade.
Os “anjos” são os consolos – externos e internos – que aparecem em nosso caminho, em forma de paz, de luz, compreensão, de fortaleza, de amor...
“Animais selvagens e anjos” cumprem seu papel, pois nos “obrigam” a avançar para nossa verdade profunda, tirando-nos da superfície de nós mesmos, ou talvez da “zona de conforto” na qual tínhamos nos instalado, conformando-nos com uma vida “normótica” e sem criatividade.
O amadurecimento humano implica abraçar toda nossa verdade, também aquela que nos aparece sob disfarces temerosos, como o medo, a solidão, a tristeza, a angústia... Lidar com tais “feras” requer capacidade de olhá-las de frente, com compreensão, paciência e muito afeto. A espiritualidade cristã nos mostra que exatamente em nossas feridas nós descobrimos o tesouro do nosso verdadeiro “eu”, escondido no fundo de nosso coração.
Tradicionalmente, fomos coagidos a viver uma espiritualidade que nos ensinou a prender os “animais selvagens” e a levantar junto deles um edifício de “grandes ideais”. E com isto, passamos a viver constantemente com medo de que as feras pudessem fugir e nos devorar.
Sabemos que tudo quanto nós reprimimos nos faz falta à nossa vida. Os “animais selvagens” tem muita força. Quando os prendemos, fica nos faltando a sua força, de que temos necessidade para o nosso caminho para Deus, para nós mesmos e para os outros. Somos obrigados a fugir de nós mesmos, ficamos com medo de olhar para dentro de nós, pois poderíamos correr o risco de nos deparar com as feras perigosas.
Quando, graças à presença dos “anjos”, deixarmos de rejeitar e de resistir aos “animais selvagens”, iremos tomando consciência como a luz e a fortaleza vão se expandindo em nosso interior; nós nos perceberemos mais unificados e harmoniosos. E assim, estaremos mais preparados para a “travessia” em direção à Páscoa.
Texto bíblico: Mc 1,12-15
Na oração: Cuidamos da interioridade quando nos questionamos sobre o modo como olhamos a vida, como atuamos diante das situações, como nos relacionamos com os outros, como vivemos nossas convicções e crenças; e, sobretudo, quando nos exercitamos em determinadas “atividades espirituais” que podem nos ajudar a des-velar o nosso “eu original”, como o silêncio, os momentos de oração, o encontro com a Palavra, a partilha em grupo...
- Quê mediações você vai ativar durante a Quaresma para ajudar a des-velar sua própria interioridade?
Pe. Adroaldo Palaoro sj
“Tu, quando jejuares, perfuma a cabeça e lava o rosto…” (Mt 6,17)
Outra Quaresma que chega! E alguém pode, com certo ar de rotina, multiplicar referências ao deserto, ao jejum, à esmola e à oração, com o risco da regularidade de tudo o que, na vida, é habitual, com a tranquila cadência do ano litúrgico, com a normalidade da passagem das estações.
No entanto, a quaresma litúrgica, que nos é dada como tempo para voltar ao essencial, ou seja, ao Evangelho, é tempo pedagógico e terapêutico para preparar as entranhas e mobilizar o nosso coração frente o acontecimento central de nossa fé, a Páscoa. Tempo que provoca uma sacudida em nossa apatia, em nosso andar por inércia...
Antes de empreender o caminho quaresmal, antes de querer fazer a travessia do deserto, é necessário inclinar um pouco a cabeça e receber o perfume de nossas cinzas. Tal e como Jesus nos recomenda no Evangelho de hoje, não se trata de des-figurar nosso rosto, mas de nos deixar trans-figurar.
As “cinzas” são o símbolo daquilo que morreu e foi reduzido à sua expressão mínima. Essa é a nossa garantia: aquilo que passa pelo fogo, é necessariamente renovado. Animar-nos, neste tempo de travessia, a acender o fogo para converter em cinza tudo o que é caduco e ultrapassado em nós; e ao nos ver rodeados de cinzas, sentir-nos-emos esvaziados de nossas falsas seguranças e ilusões, de nossa prepotência e auto-centramento. Das cinzas surgirá a oportunidade de uma nova vida, mais aberta e expansiva; as folhas caídas darão lugar ao novo broto e isto implica atrever-nos a viver com mais intensidade e criatividade, fazendo a dura travessia em direção ao novo que nos humaniza.
Quê podemos cultivar nestas próximas semanas quaresmais?
O deserto como atitude de silêncio, de esvaziamento e de solidão carregada de presença, para não viver de atração em atração, na feira das vaidades.
A oração como busca do Deus compassivo, dificultada pela cultura da superficialidade; isso implica uma escuta verdadeira da Palavra e uma sintonia profunda com Aquele que sempre se revelou Mestre e Guia.
A esmola como amor compassivo, que se expressa não em dar o supérfluo, mas fazer-se presença junto àqueles que mais precisam.
O jejum como resposta austera a um mundo que constantemente excita os apetites.
A conversão como saída da acomodação, deslocando-se em direção a uma vida mais comprometida com a justiça evangélica, ou seja, “ajustar-se” ao modo de ser e de agir de Jesus.
No Evangelho que abre o tempo da Quaresma, Jesus nos convida a praticar de coração as disciplinas espirituais da oração, do jejum e da esmola. Soa estranho falar de “disciplinas” em pleno séc. XXI. Mas a palavra “disciplina” vem da mesma raiz de “discípulo”. Poderíamos defini-la como um modo de proceder proposto por um mestre a seu discípulo para crescer e emadurecer em diferentes aspectos de sua vida. Há disciplinas desportivas, artísticas, científicas... A partir da ótica cristã, ser discípulo de Jesus é segui-lo, escutá-lo, amá-lo e viver as “disciplinas” que nos propõe.
O problema é que as “disciplinas quaresmais” estão muito desgastadas na Igreja porque foram transfor-madas em leis e obrigações, impostas aos fiéis à força. Disfarçadas como penitências, se apresentavam como imprescindíveis para obter o perdão de Deus. Mas podemos redescobrir seu sentido a partir da liberdade e do amor. Assim veremos que são um presente e uma oportunidade privilegiada para nós, não para merecer o amor de Deus (pois Ele ama a todos incondicionalmente), mas para celebrar o amor de Deus. Para poder agradecer seu amor, queremos ser mais livres, mais justos, mais amorosos.
Nesta perspectiva, as três disciplinas espirituais da Quaresma (oração, jejum e esmola) encontram sua relação com as três dimensões do amor: a Deus, ao próximo e a si mesmo.
A oração nos ajuda a amar a Deus e a entrar em sintonia com Sua vontade. A vivência da oração e de todas as disciplinas associadas a ela, como o silêncio, a solidão, a reflexão, a meditação bíblica, a contemplação, a participação na liturgia da comunidade, a leitura de um livro espiritual,... nos preparam e nos ajudam a entrar no fluxo da ação amorosa de Deus, no mais profundo de nosso ser. Quando oramos, conhecemos e amamos mais a Deus, intuímos sua passagem em nosso dia-a-dia, alimentamos nossa vida interior, somos menos superficiais, nos fixamos mais nos dons que Ele nos concede, damos graças por estarmos rodeados de tanta beleza, mesmo em meio a uma terrível situação, alimentamos compaixão com aqueles que sofrem, somos mais conscientes de nossa fragilidade e, ao mesmo tempo, de nossa maravilhosa dignidade de filhos e filhas de Deus. Quê lugar ocupa Deus em minha vida?
Esmola: a palavra “esmola” soa mal. Dá ideia de resto, de poder de quem tem sobre o nada de outros. O termo “esmola” deriva do grego “eleéo”, “ter piedade”, cuja forma imperativa “eleéson” figura no “kyrie” do ato penitencial da celebração eucarística. Antes que possamos ter piedade dos outros é Deus que teve piedade de nós. Precisamente porque brota da piedade divina e se modela sobre ela, a esmola não se reduz a um gesto de ordem apenas material: ela manifesta “um ato que indica o fazer-se companheiro de viagem de quantos se encontram em dificuldade”, participando na sua situação, com ternura. O sentido não está em dar coisas, mas fazer-se dom, oferecer algo de si, importante, significativo. Tem a ver com abertura de coração, sensibilidade e olhos abertos. É resultado de uma atenção permanente e ativa, que vai ao encontro do outro, que toma iniciativa, que se comove. É um estímulo a superar o assistencialismo, que mantém as diferenças, sustenta a dependência e não promove a cidadania.
A esmola nos provoca à solidariedade e ao espírito de compaixão, nos move ao serviço, à presença-qualidade, ao voluntariado, à prática do bem e da justiça.
- O quê prevalece em meu cotidiano: a mística do encontro ou a cultura da indiferença?
Finalmente, o jejum nos leva a amar-nos mais a nós mesmos. Há muitos tipos de jejum, desde aquele que busca fins terapêuticos até políticos (Gandhi) ou solidários. O desafio do jejum espiritual é que, para ser efetivo, necessitamos encontrar uma razão nobre: de quê temos de jejuar ou abster-nos?
Para muitos, o jejum clássico da comida continuará sendo um grande meio, mas para outros o jejum difícil e preciso será, por exemplo, desconectar-se um pouco das redes sociais, livrar-se de um vício ou afeto desordenado, controlar a língua e não falar mal dos outros, recuperar tempos de silêncio... Em definitiva, o jejum e a abstinência nos levam à auto-estima e a ser “senhor de si” e são sinônimos de desintoxicar-se, desconectar-se, desapegar-se, desprender-se...Ou seja, fazer tudo o que nos leva a sermos pessoas mais equilibradas, autônomas e livres..., que tem mais tempo para amar a Deus e ao próximo.
Fazer jejum para despertar outras fomes: de justiça, de partilha, de compaixão...
- Quê outras fomes quero ativar em minha vida?
Texto bíblico: Mt 6,1-6.16-18
Na oração: Da cabeça aos pés, perfumar-nos com o aroma da humildade. Toda a aventura para a Páscoa começará com este gesto de inclinar a cabeça e nos conduzirá, com o Mestre, a nos colocar aos pés dos outros para lavá-los com a água pura do nosso coração e cingidos, como Ele, com a toalha do serviço humilde.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
“Jesus, cheio de compaixão, estendeu a mão, tocou no leproso...” (Mc 1,41)
Como as narrações anteriores do evangelista Marcos, também a deste domingo é concebida como um desvelamento da personalidade de Jesus. Autoridade e compaixão: dois atributos de Deus que Jesus deixa transparecer no encontro com as pessoas, sobretudo as enfermas e excluídas; são as feições divinas que se visibilizam no agir de Jesus. Além disso, Marcos quer também revelar a superioridade de Jesus em relação à Lei. Ele não depende da Lei para fazer o bem às pessoas ou para reintegrar o ser humano no convívio social e religioso. Pois, a Lei é (e deveria ser sempre) para o bem das pessoas; se Ele pode curar alguém pela “autoridade”, não é preciso primeiro consultar os guardiões da Lei. Basta que, depois da cura, o leproso ofereça o sacrifício de agradecimento a Deus, conforme o rito religioso costumeiro.
Jesus não duvida em transgredir a lei quando a vida está em perigo; mesmo sabendo que Ele se fazia “impuro” ao tocar no leproso, atreve-se ao risco do contágio. O motivo de sua atuação é só uma: a compaixão. Frente à situação de extrema exclusão, Jesus experimenta compaixão que faz brotar nele uma resposta amorosa; nascendo de suas entranhas e vencendo as normas rituais, a compaixão se transforma em uma palavra eficaz que devolve a vida ao homem enfermo e marginalizado.
A compaixão era já um dos atributos de Deus no AT. Jesus a faz sua em toda sua trajetória humana. É uma demonstração de que para chegar ao divino não é preciso destruir o humano. A compaixão é a forma mais humana de manifestar amor. Quando alguém sente como seu o sofrimento do outro é quando, de verdade, se fez próximo dele.
A compaixão, que toma conta do coração de Jesus, é fruto do corajoso deslocamento para a margem, para a necessidade do outro. Sua autoridade é sempre percebida como garantia e sustento da vida, pois ela é carregada de compaixão e não de poder. Só tem "autoridade" quem garante a vida e a recupera em todas as circunstâncias. A vida do outro é a razão única da autoridade compassiva.
O outro, sua necessidade e sofrimento, será sempre a alavanca que gera no coração humano a compreensão e o exercício da autoridade como verdadeiro serviço. Só a compaixão desloca cada um para o lugar do outro. Só a compaixão ilumina a realidade do sofrimento do outro. Só a compaixão move na direção da oferta do outro.
No relato do evangelho de hoje(6º Dom TC) pode-se descobrir uma cumplicidade entre o leproso e Jesus. Os dois vão mais além da Lei: um por necessidade imperiosa, o outro por convicção profunda. O leproso, através de seu gesto ousado de se aproximar de Jesus, sabia também que sua vida – e sua libertação da marginalidade – não dependiam do Templo e dos sacerdotes, pois estes só constatavam a cura ou a permanência da doença em seu corpo. Os sacerdotes eram impotentes: não podiam restabelecer a vida.
Diante disso, o leproso toma uma atitude radical: não vai ao sacerdote, e sim a Jesus. Ao invés de ficar à distância e gritar sua marginalização, aproxima-se de Jesus, joelha-se diante dele e pede: “se queres, tens o poder de curar-me”. Reconhece que o poder da cura (que o tira da marginalidade) não vem da religião dos sacerdotes, e sim de Jesus, fonte de libertação e vida. Viola a lei para ser curado.
O leproso, dentro de sua necessidade, reconheceu que o "querer" é de Deus. A súplica que brota do seu coração, toca o centro do coração compassivo de Jesus. Esta escuta direciona a ação terapêutica d'Ele. A lição do coração de Jesus é única: o encontro de dois “quereres” que faz surgir nova vida.
Jesus, terapeuta compassivo do Espírito, revela uma presença que mobiliza o leproso a deixar emergir o Deus que habitava nele. E para isso necessita dar um passo a mais: através de suas mãos, estabelece com o enfermo um contato sanador, libera as fontes do amor que permaneciam ocultas e obstruídas. Sua ferida se converterá para ele no lugar da experiência de Deus.
O significado original do verbo “tocar” vai além de um simples e rápido contato: expressa outros sentidos: atar, enlaçar, envolver... muito mais coerente com a maneira de atuar de Jesus.
Quer dizer que Ele não só tocou o enfermo por um instante, mas que manteve essa postura durante um certo tempo. Tendo em conta o perigo do contágio que a lepra representava, podemos compreender o profundo significado do gesto, suficiente, por si mesmo, para fazer patente a atitude vital de Jesus. Não só demonstra que está acima da Lei quando se trata do bem de um homem, senão que assume o risco de contrair a lepra e tornar-se impuro também ele.
Ao tocá-lo, Jesus destravou a fonte originante da vida do leproso. Não só desapareceu a enfermidade, senão que é reconstruído em sua plena condição humana e reintegrado em seu ambiente social e religioso. De fato, o homem, até então marginalizado, encontrou a reintegração e aproveitou-a para contar o que lhe acontecera. Mas Jesus foi ocupar o lugar do leproso, excluído para os “lugares desertos”.
De acordo com o sistema religioso vigente, ao tocar um leproso, Jesus torna-se impuro: torna-se leproso e fonte de contaminação; torna-se marginalizado e não poderá mais entrar publicamente numa cidade: deverá permanecer fora, em lugares desertos, como os marginalizados. O Filho de Deus foi morar com os excluídos. Aqui o evangelho de Marcos mostra quem é Jesus: é aquele que rompe os esquemas fechados de uma religião elitista e segregadora, indo habitar entre os banidos do convívio social.
A cura do leproso nos revela também que há outros contágios muito piores que desumanizam: preconceito, intolerância, indiferença, suspeita....
Continuamos presos à ideia de que a impureza contagia, mas o evangelho nos está dizendo que a pureza, o amor, a liberdade, a saúde, a alegria de viver..., também podem contagiar. Com sua presença inspiradora Jesus contagia compaixão, bondade, acolhida... Por isso, contágios que salvam e libertam.
Este passo teríamos que dar, se de verdade queremos ser seguidores(as) de Jesus. No entanto, continuamos justificando muito casos de marginalização sob o pretexto de nos permanecer puros.
Quantas leis, civis e religiosas, deveríamos transgredir hoje para ajudar todos os marginalizados a se reintegrarem na sociedade e na Igreja, possibilitando-lhes se sentirem como seres humanos!
Texto bíblico: Mc 1,40-45
Na oração: O Evangelho indica que Jesus “estendeu a mão, tocou no leproso...”
O contato é sinônimo de calor, afeto, atenção, presença e ternura. Também expressa reconhecimento e segurança. Precisamos tocar e ser tocados para viver, necessitamos uma espiritualidade que se enraíze em nossas mãos.
O leproso se abre diante de Jesus que o toca. Quê poder tem nossas mãos quando as estendemos cheias de bênçãos! Quê força sanadora quando aprendemos a tocar com ternura, a tocar despertando essa vida profunda debaixo da pele!...
Todos somos um pouco como o leproso e podemos nos reconhecer em seu desejo de cura e de abundância de vida. E todos podemos também ser como Jesus para os outros, quando nosso olhar está livre de preconceito, nossas mãos se estendem para quebrar distâncias e nossa voz é capaz de tocar com calor a vida profunda e escondida dos outros.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
Ao falar de uma espiritualidade inscrita no quotidiano, o frei Carlos Maria Antunes, no livro "Só o pobre se faz pão", diz que uma das nossas dificuldades é a dispersão. O nosso coração está disperso, dividido por muitas coisas. Somos objeto de múltiplos apelos e necessidades. Um rebuliço sem fim atravessa o nosso interior. E com ele também um cansaço e uma angústia que vamos tentando compensar de várias formas.
O cansaço e a angústia são um terreno fértil para a multiplicação das falsas necessidades e falsos desejos. A dispersão provoca mais dispersão.
Neste quadro, a nossa unidade e vigilância interior, que são fundamentais no nosso interior, tornam-se frágeis. Vamo-nos tornando mais vulneráveis, e acabamos, muitas vezes, num movimento de defesa, por endurecer o nosso coração, fazendo de conta que não vejo, que não oiço. Mas esta atitude também não nos dá a verdadeira unidade de coração.
Precisamos de aprender uma arte do acolhimento da nossa própria vida. Acolhermo-nos, acolher aquilo que somos, acolher o que nos chega como uma oportunidade, mas partindo de um centro, de um núcleo vital que em nós está desperto.
O padre Carlos cita o trecho de um poeta persa, Rumi, que diz o seguinte: «O ser humano é uma casa de hóspedes; cada manhã, um novo recém-chegado, uma alegria, uma tristeza, uma maldade, que vem como um visitante inesperado. Diz-lhes que são bem-vindos, e recebe-os a todos, ainda se são um coro de penúrias que esvaziam a tua casa violentamente. Trata cada hóspede com todas as honras; ele pode estar a criar-te um espaço para uma nova delícia. O pensamento obscuro, a vergonha, a malícia, recebe-os à porta sorrindo e convida-os a entrar. Agradece a quem quer que venha, porque cada um foi enviado como um guia do Além».
Esta arte do acolhimento da vida, de saber abraçar tudo a partir de uma unidade interior, pede de nós a pobreza espiritual, a pobreza de coração.
Aquando da eleição do papa Jorge Mario Bergoglio - todos nós já tivemos a oportunidade de ouvir esta história -, o cardeal Claudio Hummes, arcebispo de S. Paulo, que estava ao lado dele, abraçou-o e disse-lhe: «Não te esqueças dos pobres». Estas palavras ficaram a fazer-lhe caminho no coração, e quando se tratou de escolher o nome, ele optou por Francisco, lembrando-se de Francisco de Assis e da sua espiritualidade universal.
Falando aos jornalistas nos primeiros dias, o papa deixou os papéis e teve um suspiro, a expressão de um desejo, e disse: Quem me dera que a Igreja se tornasse pobre e fosse uma Igreja para os pobres. Uma Igreja que se torna pobre e faz do acolhimento dos pobres a sua razão de ser, a sua missão.
A pobreza espiritual aparece-nos como um conselho evangélico, isto é, como modo de vida, como uma opção que cada cristão é chamado a fazer para se configurar a Cristo, para se tornar mais próximo de Cristo. Há mais dois conselhos evangélicos: a obediência, ou seja, a capacidade de escutar e permanecer fiel à palavra que se recebe; o outro é a pureza de coração, e aí a castidade é muito mais do que uma privação, tornando-se um modo positivo de estar na vida.
Cada um destes conselhos é vivido na Igreja por todos os batizados, embora de modos diferentes. Todos somos chamados à configuração com Cristo, que é pobre, puro de coração e obediente ao Pai.
Como é que podemos concretizar a opção por uma vida pobre, por uma pobreza espiritual? A vida espiritual não é uma técnica, não é uma habilidade, não é um conjunto de ritos. A vida espiritual é um modo de ser. E quando se fala de adotar uma atitude espiritual de pobreza no coração - S. Francisco chamava-lhe a Irmã Pobreza, ou Santa Pobreza -, temos, antes de tudo, de exercitar o nosso ser.
«Numa disciplina constante procuro a lei da liberdade medindo o equilíbrio dos meus passos. Mas as coisas têm máscaras e véus com que me enganam, e, quando eu um momento espantada me esqueço, a força perversa das coisas ata-me os braços e atira-me, prisioneira de ninguém mas só de laços, para o vazio horror das voltas do caminho» (Sophia de Mello Breyner).
Há um momento da nossa vida em que deixamos de saber de nós próprios. Parece que já não há um fundo de ser a marcar aquilo que somos e que nos estrutura, uma decisão fundamental, mas, pelo contrário, somos a dispersão.
A nossa vida não é só um conjunto de inevitabilidades: ela tem de ser uma opção fundamental, isto é, tem de ser algo que eu decido, que eu quero, um caminho que escolho, em diálogo com o Espírito. A minha vida tem de ter fundamento, para não ser uma deriva, um fragmento flutuante no oceano convulso. Precisamos de um centro.
E para ter um centro, precisamos de momentos de recentramento para ouvirmos a nossa voz interior, para nos escutarmos mais profundamente, para perguntarmos: «O que é que eu vivo? O que me enlaça? O que procuro? O que sou?». Estes momentos de recentramento são revitalizadores.
A Quaresma não são 40 dias para tentarmos fazer rituais mais ou menos arcaicos. A Quaresma é um tempo de revitalização, um tempo para nos colocarmos as perguntas-chave que vão favorecer o renascimento do que somos. E Deus sabe como cada um de nós precisa de renascer. Por isso este é o tempo de voltar a si.
P. José Tolentino Mendonça
Redação: SNPC - 04.03.14
“Jesus saiu da sinagoga e foi, com Tiago e João, para a casa de Simão e André” (Mc 1,29)
O Evangelho de Jesus é experiência de casa, de encontro e comunhão, de palavra para todos, lugar aberto à novidade do Reino.
No relato de hoje, Jesus desloca-se da sinagoga, lugar oficial da religião judaica, à casa, onde se vive a vida cotidiana, junto aos entes mais queridos. Nessa casa vai sendo gestada a nova família de Jesus. As comunidades cristãs devem recordar que não são um lugar religioso onde se vive da Lei, mas um lar onde se aprende a viver de maneira nova em torno a Jesus.
A primitiva comunidade dos seguidores e seguidoras de Jesus não começou formando uma nova religião instituída, mas uma federação de casas abertas, a partir dos pobres e para os pobres, criando redes de comunicação e de vida fraterna, casas-família, impulsionadas pelo testemunho e presença do Espírito do mesmo Jesus. “Todos os que abraçavam a fé viviam unidos e possuíam tudo em comum... partiam o pão pelas casas e tomavam a refeição com alegria e simplicidade de coração” (At. 2,44-46).
A casa deve ser escola de encontro e fraternidade. A comunicação (comum união) se celebra entre suas paredes que, em seguida, se expande para além de seus limites, despertando uma sensibilidade solidária. A casa prepara para a vida, pois é ali que os fundamentos de uma personalidade vão se solidificando. Para Jesus, ser “humano” é ser casa aberta e acolhedora.
O evangelho de Marcos apresenta Jesus como “tekton” (6,3), construtor (pedreiro, ferreiro, carpinteiro…), e seu ofício era construir casas. Um dia descobriu que sua missão não era construir mais casas para o sistema injusto; deslocou-se, então, para as periferias, em direção aos sem-teto e iniciou um movimento de transformação, a fim de que todos pudessem ter “casa na terra de Deus”. Quis construir sobre o mundo a nova Casa do Reino, aberta a todos, com pão, com palavra, com amor mútuo. Ele, que não teve onde reclinar a cabeça, quis que todos os homens e mulheres tivessem casa, família... cem vezes mais. Assim, deixando seu trabalho de construtor, se fez “arqui-tekton” do Reino de Deus, onde todos pudessem construir suas casas em bases sólidas, começando pelos excluídos sociais: leprosos, cegos, paralíticos, coxos... Não construiu casinhas para pobres sem teto nas ladeiras e encostas da Galileia, mas moradas com fundamentos na rocha; ou seja, ofereceu-lhes dignidade e consciência, solidariedade e desejo de viver, espírito de comunhão e partilha... para que eles mesmos pudessem criar novas moradas (construí-las e compartilhá-las). A boa nova da “Casa de Deus” (para todos) devia começar pelos mais pobres, excluídos, sem-teto e sem-terra, portadores de uma nova esperança de vida e casa compartilhada.
Em um mundo no qual as relações se estabeleciam através da força, da dominação, de uma maneira de exercer o poder em que o forte se impõe sobre o fraco, o rico sobre o pobre, o que possui informação sobre o ignorante, o relato da mulher curada por Jesus, no evangelho de hoje, nos introduz na nova ordem de relações que devem caracterizar o Reino: nele a vinculação fundamental é a da irmandade no serviço mútuo.
A prática de Jesus desestabiliza todos os padrões e modelos mundanos de poder, desqualificando qualquer manifestação de domínio de uns sobre os outros: inaugura-se um estilo novo no qual o “desenho circular” desloca e dá por superado o “modelo hierárquico”. Sua maneira de se relacionar com as pessoas marginalizadas e excluídas põe em marcha um movimento de inclusão onde, uma casa acolhedora e uma mesa partilhada com os menos favorecidos, invalidavam qualquer pretensão de poder, de prestígio, de situar-se acima dos outros, devolvendo a todos a dignidade perdida.
Do “exorcismo” da sinagoga passamos às “curas” nas casas e a primeira destinatária da ação de Jesus é a sogra de Pedro, erguendo-a da cama e curando-a no dia de sábado. Ela, uma vez curada, respondeu com um gesto de serviço, em sua casa, oferecendo uma refeição a Jesus e seus companheiros, como uma ação que inaugura o primeiro ministério cristão.
Assim está Jesus sempre presente entre os seus: com uma mão estendida que a todos levanta, como um amigo próximo que infunde vida. Jesus só sabe servir, não ser servido. Por isso, a mulher curada por Ele se põe a “servir” a todos; ela foi integrada em seu grupo de seguidores(as) e pode então “servir”, construindo a comunidade de iguais que Jesus queria, rompendo com a mentalidade patriarcal. Seus seguidores e seguidoras deverão viver acolhendo-se e cuidando-se uns dos outros.
Tanto Jesus como a sogra de Pedro superaram uma compreensão atrofiada do sábado, porque Ele curou e ela serviu nesse dia. Ninguém precisou dizer a ela o que deveria ser feito; não aprendeu de nenhuma exegese rabínica. Ela mesma compreendeu, como mulher, o que significa estar a serviço da vida. Com gratidão, correspondeu à ação de Jesus que lhe estendeu a mão para levantá-la de sua enfermidade, precisamente no dia de sábado; seu gesto (deixar-se levantar por Jesus e servir aos outros) marcará, de agora em diante todo o evangelho de Marcos, onde as mulheres serão as protagonistas. Ela superou um tipo de religião farisaica e se vinculou a Jesus de um modo pessoal, como servidora, a “ministra” da comunidade cristã.
Por isso, quando Marcos nos apresenta a sogra de Pedro “servindo”, está nos dizendo: aqui há alguém que entrou no círculo de Jesus, que “alistou-se” no seu movimento, que respondeu ao seu convite para colocar-se aos pés dos outros e começou a “ter parte com Ele” (Jo 13,8). Muitas dificuldades que temos na vida relacional procedem justamente de nossa resistência em nos colocar na atitude básica de um serviço que não pede recompensas, nem exige agradecimentos... Quem busca viver assim, basta-lhe a alegria e o prazer de poder estar, como Jesus, com a mão estendida para erguer o que está prostrado sob o peso da enfermidade.
Quantas distâncias se encurtam quando se toma alguém pela mão! Quantas suspeitas se dissipam quando se toma alguém pela mão! Quantos medos são superados quando se toma alguém pela mão!... As mãos são divinas: expressam ternura, proteção, cuidado. Para Jesus, as mãos são para isso: levantar o outro, ajudar o outro a colocar-se de pé, devolver ao outro a capacidade de dar direção à própria vida.
Graças a muitas pessoas que se deixaram “tomar pela mão” por Jesus para “levantar-se” e “servir”, o cristianismo primitivo foi se constituindo em pequenas comunidades domésticas, reunidas nas casas, onde muitas mulheres assumiram funções eclesiais, ora como missionárias itinerantes e ora como responsáveis pelas igrejas familiares, onde presidiam a oração e a fração do pão.
Texto bíblico: Mc 1,29-39
Na oração: O evangelho convida a nos deslocar e nos aproximar dos lugares onde estão os prostrados da vida, tomá-los pela mão e ajudá-los a levantar-se. Então, todos juntos, nos disporemos a servir, teceremos o manto da solidariedade social e eclesial a partir da cotidianidade; seremos assim testemunhas mobilizadoras numa sociedade cansada de palavras e necessitada de experiências que se façam verdade e vida.
- Você percebe que sua casa é prolongamento da Casa do Reino, desejada e construída por Jesus? Quê sinais você encontra nela que confirmam ser uma “casa cristificada”?
Pe. Adroaldo Palaoro sj
“Cala-te e sai dele” (Mc 1,25)
Estamos fazendo o percurso contemplativo, seguindo o evangelista Marcos. Ele foi o primeiro que escreveu o Evangelho, por isso conserva o calor dos inícios da vida cristã. É o mais conciso. Não apresenta grandes discursos de Jesus nem conta muitas parábolas. Interessa-lhe sobretudo o cotidiano na vida pública de Jesus: sua atitude vital para com os pobres e excluídos, sua presença terapêutica, sua liberdade diante da religião, do templo, das tradições judaicas, a revelação do novo rosto de Deus, o anúncio da Boa Notícia da Salvação…
A intenção de Marcos é que as pessoas se façam a pergunta chave: “quem é Jesus?”. Todo o seu evangelho é revelação progressiva da personalidade e da identidade de Jesus. Jesus não tinha nenhum doutorado na Lei, não tinha nenhum Master em questões do Templo; não era um perito a quem consultar sobre a lei. Jesus era Ele mesmo; seu único título era sua verdade, sua honestidade, sua bondade, sua capacidade de sanar a dor daqueles que sofriam e libertá-los dos maus espíritos que os escravizavam. Era a identidade de si mesmo, plena: a identidade entre o que dizia e fazia, entre o que era e o que ensinava. Podemos afirmar que Jesus era um “profissional da vida”, um “mestre da vida humana digna”. Não havia estudado em outra universidade a não ser a universidade da vida, do amor, da liberdade...
O evangelho deste domingo (4º TC) é o primeiro ato público de Jesus: estamos num dia típico de sua vida e de sua atividade. Seu primeiro contato com as pessoas, depois do batismo e da experiência do deserto, tem lugar na sinagoga. É um sinal de que a primeira intenção de Jesus foi redirecionar a religiosidade do povo que tinha sido deformada por uma interpretação opressora da Lei. Por duas vezes no relato se faz referência ao ensinamento de Jesus, mas não se diz nada do que ensina. Fala-se de suas obras. As curas e a expulsão de demônios, entendidos como libertação, são a chave para compreender a verdadeira mensagem deste evangelho. O que Jesus faz é libertar um homem de um poder opressor, o espírito imundo.
A Boa Notícia que Marcos anuncia é a libertação, em duas direções: da força do mal e da força opressora da Lei, explicada de uma maneira alienante pelos fariseus e letrados. As pessoas reconhecem um novo ensinamento, com autoridade, ou seja, com convicção, com coerência de vida, com profunda fé... O ensinamento de Jesus é novo porque liberta ao mesmo tempo que ensina. Jesus não ensina nada verbalmente: mostra-se a si mesmo. Marcos dá mais importância ao modo de falar de Jesus que ao conteúdo de seu ensinamento.
De Jesus diziam que “ensinava com autoridade” e não como os escribas e fariseus. Ele tinha a graça de conceder autoridade a cada pessoa, de devolver-lhe sua dignidade, de remeter-lhe a si mesma, de ajudá-la a conectar com seu ser profundo, com aquilo que é mais divino no próprio interior.
Ensina com autoridade quem fala a partir de sua própria experiência e quem, com seu ensinamento, “faz crescer” (a palavra “autoridade” provém do verbo latino “augere”, que significa aumentar, fazer crescer, elevar o outro…); em outras palavras, é despertar a autonomia e a autoria do outro para que ele seja capaz de dar direção à própria vida.
O critério para distinguir quando nos encontramos em presença de quem “fala com autoridade” sempre será o mesmo: sua palavra faz as pessoas crescerem em profundidade. A “autoridade” de Jesus, portanto, está em que sua palavra e sua vida formam uma unidade plena, porque não diz nada que não esteja já fazendo; suas palavras brotavam de uma experiência profunda que confirmava com sua vida. Provava com suas obras suas palavras, vivia o que ensinava.
Ao entrar na sinagoga, Jesus se volta para quem não recebia atenção. Ele faz com que o possuído pelo mau espírito se torne o centro das atenções e sua libertação é, ao mesmo tempo, prática e ensino. O homem possuído é o símbolo de todas as pessoas despersonalizadas, impedidas de falar e agir, como sujeitos da própria vida e história. Sua vida e destino dependiam de “outros” que pensavam, falavam e agiam por elas.
Jesus vai curá-lo com sua presença e também com sua voz. Ao lhe dizer: “cala-te e sai dele”, Jesus está desatando uma vida, está devolvendo ao homem possuído o seu ser essencial. Há palavras que tem força reconstrutora, pois, não só restabelecem a saúde mas ativam a dignidade escondida da pessoa. Dizem que há pessoas capazes de serem curados por uma voz, pelo material sonoro de uma voz determinada. Quanto aspira nosso coração escutar este convite: “esteja livre...”! Esteja livre daquilo que os outros possam dizer ou pensar a seu respeito; livre do domínio das suas compulsões; livre para amar sem defesas; livre daquilo que se acredita saber sobre si mesmo e sobre os outros; no fundo, esteja livre para ser você mesmo, para poder entrar em uma relação nova com a realidade.
Somos seres de palavras e somos também seres de silêncios. Em nosso mundo atrofiamos o dom de proferir palavras de vida; elas tem pouco valor e, por isso, precisamos voltar a lapidá-las no silêncio, porque só o silêncio restaura a integridade de nossas palavras. Tais palavras tem força para curar, como aquela que Jesus proferiu diante do homem possuído pelo mau espírito.
Precisamos receber palavras que toquem nossas superfícies endurecidas e nos libertem de tantas ataduras que não nos deixam respirar com profundidade, nem olhar compassivamente, nem considerar a beleza da diversidade e a diferença. Também nós buscamos pessoas que possam nos dizer palavras para viver e somos requisitados a entregar aos outros uma palavra de vida.
Jesus foi o homem que movia com suas palavras. É extraordinário perceber como as palavras ditas com cuidado e amor (pedagogia de Jesus) produzem efeitos benéficos para o ser humano. Essas palavras são bem-aventuradas, pois são capazes de fazer crescer, sustentar, edificar as pessoas para o convívio social, humano-afetivo, espiritual. São palavras que trazem luz e calor, infundem confiança e segurança.
A palavra tem força de ressurreição, é como brisa suave que ativa nossas melhores energias. As palavras jamais deixam as coisas como estão. Elas não se limitam a transmitir uma mensagem; elas tem uma força operativa, desencadeiam um movimento... Quando falamos, algo acontece, muda alguma coisa dentro de nós e ao nosso redor. Aparentemente nada mudou; mas é possível que tudo tenha mudado. A palavra foi além de sua vibração sonora. Ela contribui para criar o clima, o ar que respiramos... um ambiente que nos plenifica, nos nutre, favorece o encontro e o compromisso e abre possibilidade de viver
Texto bíblico: Mc 1,21-28
Na oração: Hoje o evangelho nos convida a sermos sinceros conosco mesmos, a revisar nossa conduta cristã. Devemos expulsar muitos “maus espíritos” interiores (ânsia de poder, riqueza, prestígio, vaidade…) que jogam ao chão nossa dignidade e impedem um testemunho coerente, uma verdadeira autoridade que profere palavras que fazem as pessoas crescer.
- Repassar o repertório das palavras proferidas ao longo do dia: palavras que elevam, que curam, que salvam...?
Pe. Adroaldo Palaoro sj
“O tempo já se completou e o Reino de Deus está próximo” (Mc 1,15)
Apagaram-se as luzes do Natal; os Magos voltaram a seus países; Jesus foi revelado como o “Filho amado” no Batismo. Agora começa o tempo do “chamado”; agora começa o tempo do “fazer caminho com Jesus”; agora começa o “tempo do seguimento”.
Podemos dizer que Jesus irrompe na nossa Galileia cotidiana como um chamado a viver de maneira alternativa, fazendo a experiência de Deus, Mistério último da vida, como uma Força que nos atrai para construir um mundo mais humano e ditoso.
Jesus não começa sua vida pública com ameaças, nem com anúncios de castigos. Começa proclamando a Boa Notícia de Deus; este anúncio original sintetiza toda sua missão: não é em vão que Marcos coloca na boca de Jesus estas primeiras palavras: “O tempo já se completou e o Reino de Deus está próximo”. Trata-se da Boa Nova, ou seja, tudo aquilo que “buscamos”, na realidade, já está próximo. E para acolher esta Boa Nova faz-se necessária uma profunda conversão. O termo “conversão”, traduzido do grego “metanoia” (mais além da mente), nos convida a “outro modo de pensar, de ver, de agir...” Trata-se de sair da perspectiva mental atrofiada para entrar em sintonia com aquela Presença que expande a nossa vida para além de nossos estreitos modos de viver, tanto na perspectiva pessoal quanto social.
Propriamente falando, Jesus não deixou como herança uma nova doutrina religiosa da qual se pode extrair alguns princípios que logo são aplicados à vida. O que Ele nos traz, a partir de sua experiência profética, é um novo horizonte para assumirmos a história, um novo paradigma para humanizar a vida, um marco para construir um mundo mais digno, justo e ditoso, a partir da confiança e da responsabilidade.
Sua mensagem não provém do interior do sistema imperial nem da instituição do Templo. Pelo contrário, desmascara a iniquidade do Império e a conivência do Templo, sacudindo a indiferença de muitos e redefinindo as expectativas de outros.
Jesus não é um escriba judeu, nem um sacerdote do templo de Jerusalém, nem um asceta do deserto. O específico seu não é ensinar uma nova doutrina religiosa, nem explicar a Lei de Deus, nem assegurar o culto de Israel. Jesus é um profeta itinerante, um homem a caminho, aberto às surpresas de Deus. Caminhava pela Galileia, anunciando um acontecimento, algo que já está ocorrendo e que pede ser escutado e atendido, pois pode mudar tudo. Ele desencadeia um novo movimento humanizador, que coloca o ser humano no centro de sua missão. Ele já está experimentando isso e convida a todos a compartilhar esta experiência: Deus está comprometido com a história humana. É preciso mudar e viver tudo de maneira diferente.
Começa um tempo novo, uma história nova. Deus não nos deixa sozinhos frente aos nossos conflitos, sofrimentos e desafios. Quer construir, conosco e junto a nós, uma vida mais humana. Para isso, é preciso mudar a maneira de pensar e de agir; é preciso aprender a viver crendo nesta Boa Notícia.
Isto que Jesus chama “Reino de Deus” não é uma religião. É muito mais. Vai mais além das crenças, preceitos e ritos de qualquer religião. É uma experiência fundante de Deus que resignifica tudo de maneira nova. “Reino de Deus” é o coração de sua mensagem e a paixão que animou toda sua vida
O surpreendente é que Jesus nunca define o que é o Reino de Deus. Ele o encarna em suas palavras e em sua vida; é algo que irrompe, de maneira surpreendente. Podemos dizer que “Reino de Deus” é a vida, tal como Deus deseja que a vivamos.
Se queremos saber o que é o Reino, também nós devemos nos colocar a caminho com Jesus: Ele é o Reino. Ele foi o homem que se definiu, que tinha claro qual era sua missão; por isso, nos apresenta uma causa muito nobre e, com seu chamado, rompe nosso estreito mundo e desperta em nós ricas possibilidades, reacendendo o que de mais nobre há em cada um e ampliando nosso horizonte de vida.
Para Jesus, a vida de uma pessoa vale pela causa à qual se entrega. Por isso, ao anunciar a presença do Reino do Pai, Ele desperta nas pessoas uma garra, uma vibração e um entusiasmo por esta causa tão nobre. Escutar e acolher a proclamação do Reino é uma prova de audácia e coragem, uma provocação à generosidade de cada um.
É preciso sonhar alto, ter ideais, ser uma pessoa corajosa e marcada pela esperança para poder “escutar” o apelo de Jesus; é preciso ser apaixonado(a), deixar-se empolgar, aceitar correr riscos na vida para saber o que significa “estar e fazer caminho com Ele”; é indispensável uma enorme generosidade para se dedicar incondicionalmente a uma grande causa; é preciso forte dose de ousadia e coragem para transcender-se, ir além de si mesmo...
Jesus não só se deixou mobilizar pelo “sonho do Reino”, mas foi também capaz de seduzir e mover outras pessoas a participarem desse mesmo sonho; sua presença inspiradora era capaz de despertar nos outros o melhor de si mesmos e de mobilizá-los. Por isso, os primeiros discípulos deixaram-se impactar pela força do seu chamado e foram capazes de dar uma nova direção às suas vidas.
Não sabemos se o chamado ao seguimento foi assim tão rápido, como relata Marcos; mas, provavelmente, a forma um tanto mecânica em que ele se expressa, é uma maneira de destacar a força mobilizadora da presença e do chamado de Jesus. Todas as narrativas acerca do chamado conservam a marca intencional de um encontro surpreendente, inesperado e expansivo: deixar a vida estreita do lago de Genezaré para entrar no vasto oceano de vida proposto por Jesus.
Há um dado, um tanto quanto estranho no chamado de Jesus: parece ser um chamado que quase não tem programa. Ele afirma simplesmente: “sereis pescadores de homens”. O que isto quer dizer?
Esta frase deve ser lida não no sentido quantitativo, típico dos proselitismos e da mentalidade moderna, mas num sentido mais qualitativo: “pescar homens” é extrair o melhor, a melhor versão humana de cada um, fazer emergir a autêntica qualidade humana desse mar turvo de inumanidade que somos todos.
Isso é “pescar o humano” que todos carregamos dentro. No contexto atual, essa expressão tem uma enorme importância: porque é verdade que nem todos os homens desejam ser cristãos, mas, seguramente, continua sendo verdade que Deus deseja que cada um extraia de si a melhor versão possível.
O convite para “pescar homens”, que pode parecer uma expressão estranha, evoca a imagem de sair de um meio aquático e começar a respirar. Não poderíamos ver aí a possibilidade de ajudar outros em um novo nascimento, de uma saída das águas amnióticas para começar a respirar a vida do Espírito?
O chamado de Jesus, portanto, nos individualiza e nos personaliza de modo irrepetível e inconfundível, confere um sentido completamente novo ao nosso próprio nome. Jesus toma em suas mãos o futuro daqueles(as) que o acompanham: junto d’Ele vão adquirindo nova personalidade, definida pela referência a outros. Responder ao chamado de Jesus inaugura uma nova relação com os(as) seus(suas) seguidores(as): Ele adiante, nós atrás. O encontro com Ele atinge o núcleo de nossa própria autonomia e de nossa consistência pessoal, de nossa vida profissional, familiar e relacional. Há um deslocamento de nossos estreitos mares da vida e passamos a respirar a imensidão de outro oceano.
Texto bíblico: Mc 1,14-20
Na oração: Encontrar-se com Jesus é encontrar-se com o Reino de Deus. Jesus se põe totalmente a serviço da “causa” de Deus; Ele é inseparável de sua obra: o Reino que anuncia e que Ele faz presente.
Somos impulsionados a ser protagonistas de uma história mais ditosa; somos movidos a atrever a pensar e agir “fora do sistema” para entrar na lógica e na dinâmica do Reino de Deus. O Reino condensa e leva à plenitude todas as aspirações humanas.
- Que sonhos você carrega em seu coração?
- Sua vida tem a dimensão do “mar da Galileia” ou do Oceano de vida de Jesus?
Pe. Adroaldo Palaoro sj
A narrativa do Evangelho João 1, 35-42 aponta as características essenciais do itinerário de fé dos discípulos de todos os tempos, inclusive para nós, a partir da pergunta que Jesus dirige aos dois que, impelidos por João Batista, se põem a segui-lo: «Que procurais?».
É a mesma pergunta que, na manhã de Páscoa, o Ressuscitado dirigirá a Maria Madalena: «Mulher, quem procuras?». Cada um de nós, enquanto ser humano, está à procura: à procura de felicidade, de amor, de vida boa e plena. Deus Pai deu-nos tudo isto no seu Filho Jesus.
Nesta procura é fundamental o papel de uma verdadeira testemunha, de uma pessoa que antes fez o caminho e encontrou o Senhor. No Evangelho, João Batista é esta testemunha. Por isso pode orientar os discípulos para Jesus, que os envolve numa nova experiência dizendo: «Vinde e vereis».
E aqueles dois nunca mais poderão esquecer a beleza daquele encontro, ao ponto de o evangelista anotar até a hora: «Eram cerca das quatro da tarde». Só um encontro pessoal com Jesus gera um caminho de fé e de discipulado.
Podemos fazer muitas experiências, realizar muitas coisas, estabelecer relações com muitas pessoas, mas só o encontro com Jesus, naquela hora que Deus conhece, pode dar sentido pleno à nossa vida e tornar fecundos os nossos projetos e as nossas iniciativas.
Não basta construir-se uma imagem de Deus baseada no que se ouve dizer; é preciso ir à procura do Mestre divino e ir onde Ele mora. O pedido dos dois discípulos a Jesus - «onde moras?» - tem um sentido espiritual forte: exprime o desejo de saber onde habita o Mestre, para poder estar com Ele.
A vida de fé consiste no desejo de estar com o Senhor, e portanto numa procura contínua do lugar onde Ele mora. Isto significa que somos chamados a superar uma religiosidade previsível e rotineira.
Para isso, é preciso reavivar o encontro com Jesus na oração, na meditação da Palavra de Deus e na frequência dos sacramentos, para estar com Ele e levar frutos graças a Ele, à sua ajuda, à sua graça. Procurar Jesus, encontrar Jesus, seguir Jesus: este é o caminho.
“Quê estais buscando?” (Jo 1,38)
Um dos temas importantes do quarto evangelho é o da busca-encontro de Jesus. Ao leitor atento não passa desapercebido que a primeira palavra que o autor do evangelho põe na boca de Jesus é uma pergunta: “Quê buscais?”
Na realidade, parece que no ser humano tudo começa com a busca, pois é ela que põe em marcha todo o processo existencial. No princípio, sem saber bem o quê, ele busca “estar bem”, “sentir-se melhor”... E projeta a busca “fora”, naqueles objetos, pessoas, títulos, bens, ocupações..., que poderiam satisfazer sua sensação de carência e conferir-lhe maior segurança.
Mais cedo ou mais tarde, a vida lhe mostrará que nada que está fora é capaz de “plenificá-lo”, fazendo-o suspeitar que é preciso dirigir o olhar para o seu interior. Quem busca, entra em um movimento inspirador, criativo, despertando os melhores recursos da própria interioridade. É a busca que dá sentido e calor à própria vida. Quem não busca, vive um processo continuo de atrofia de sua própria humanidade, pois a busca é o dinamismo que mais nos humaniza.
Viver é desafiador na medida que viver é buscar. A dinâmica da busca marca a caminhada humana e define os rumos da vida. Vive-se em permanente busca e só à medida que se vive para buscar é que a vida se torna, de verdade, vida, com mais sabor e sentido. O que se busca define e determina o que é a vida da pessoa. “Diga-me o que buscas e dir-te-ei quem és”.
No interior de cada um permanece aguçada a dinâmica da busca, aquela que mantém a vida de todo coração e o incita na direção do que vale, do que conta e do que é essencial. Como ser necessitado e carente, o ser humano se sente impulsionado a buscar para conseguir acalmar sua insatisfação existencial. Mas a busca não guarda relação só com a carência, senão que é, ao mesmo tempo, expressão do desejo (aspiração) que parece constituir à pessoa e que se manifesta em forma de dinamismo vital (“buscar o que quero e desejo” – S. Inácio).
A diferença entre ambos movimentos – o que nasce da carência e o que nasce do desejo – poderia se expressar deste modo: pelo primeiro, o ser humano busca apegar-se e apropriar-se de algo que percebe como “bom” para ele e que lhe dá segurança; no segundo, pelo contrário, o que se dá é o impulso a viver e a expressar a própria identidade profunda.
No primeiro caso, falamos do ego e seus movimentos egocentrados; no segundo, de nossa verdadeira identidade, enquanto Plenitude que se transborda. O coração de cada um foi feito para encontrar a razão mais profunda do seu viver; há uma inquietude latente em seu interior que o faz peregrino do sentido. Tão fundamental como é o respirar, toda pessoa precisa assumir sua condição de navegadora do infinito. Somos todos, por natureza, eternos buscadores e garimpeiros do novo. Por isso, buscar torna-se um hábito de vida.
Uma lógica de contínua busca deve permear o coração do(a) seguidor(a) de Jesus, para aprender a viver da busca d’Ele, e da busca de todos os outros, colocando-se a serviço da vida, unicamente por amor. A vida se torna mais vida na medida que se vive para dar razão a essa busca. Uma busca que exercita o coração e o modula na sinfonia amorosa do coração de Deus. Ele é a única e completa razão da busca do coração humano.
Estar em busca é sair de nosso ser atrofiado pelas preocupações individuais para mover-nos num horizonte maior de pré-ocupação pelo Reino; estar em busca é perguntar-nos, é estar abertos para sermos tocados pela mais profunda das graças: a gratidão diante de Deus.
Enquanto estejamos identificados com o eu superficial (ego), nos perceberemos como seres carentes e nos sentiremos compelidos a uma busca ansiosa daquilo que supostamente poderia completar-nos. Quando chegarmos ao reconhecimento de nossa verdadeira identidade, a busca deixa de ser estressante para ser repousante. Cairemos, então, na conta de que a Plenitude não é “algo” que devemos alcançar ou um “prêmio” que nos aguarda mais adiante; é o que já somos e sempre fomos. Quando a pergunta de Jesus – “quê buscais?” ressoa em nós, aí é que descobrimos nossa mais autêntica maneira de ser, nossa originalidade, nossa identidade... Na realidade, o que andamos buscando é o nosso “eu verdadeiro”, o “eu profundo”, a “identidade original”. A busca revela nossa identidade profunda. Com outras palavras: o que buscamos não é diferente do que já somos. O buscador é o buscado.
Com esta chave, podemos voltar ao texto do evangelho de hoje: ao “ver Jesus”, estamos vendo quem somos, pois o encontro com Ele desvela nosso “eu original”. Quando não nos identificamos com o nosso “eu carente”, emerge a plenitude que somos: a semente enterrada se descobre espiga transbordante. Reconhecido em sua identidade, consciente de seu lugar e missão junto ao povo de Deus, o(a) seguidor(a) de Jesus continuamente mantém “fixo seus olhos fixos n’Ele” e deixa ressoar em seu interior sua pergunta radical: “o que vocês estão buscando?”
Jesus não chama para seguir uma religião, uma doutrina, nem faz proselitismo... Ele desencadeia um movimento e o seu modo de viver a todos seduz para identificar-se com Ele e com sua proposta de vida. Aqui não se trata de adesão a um programa nem a um projeto, senão do convite a um seguimento (“vinde e vede”), no calor e intimidade de uma relação pessoal que é dirigida a cada um em particular. Para isso requer-se uma resposta sem reservas, sempre mais criativa e ousada.
João evangelista quer deixar claro que há maneiras de seguir a Jesus que não são as mais adequadas. A pergunta – “onde moras?” - não significa querer saber o lugar ou a casa onde habita Jesus, mas buscar uma identificação com a atitude vital d’Ele.
Poderíamos ampliar a pergunta dos discípulos de João Batista: “Mestre, onde vives, ou seja, onde estão tuas raízes; quê é que te dá Vida; quê é o que te vivifica; diga-nos onde está a Fonte, para que nós possamos permanecer, enraizados, sempre bebendo dela?”
Os dois primeiros discípulos não lhe perguntam por sua doutrina, por sua religião, mas por sua vida. E Jesus não responde com um discurso, mas com um convite à experiência de vida. “Vinde e vêde”, disse Jesus àqueles dois buscadores. “Entrai”, vinde à “Casa”, “reconhecei-vos na Vida que sois...; Vida que continuará se expandindo, movendo-vos a uma contínua busca, pois sois habitados por uma fome e sede de Plenitude”.
“...e permaneceram com Ele naquele dia”: é a mesma expressão que João utiliza para dizer que o Pai permanece no Filho e o Filho permanece no Pai; ou que Jesus e sua Palavra permanecem em nós e nós somos chamados a permanecer n’Ele. Permanecer enraizados somente na pessoa de Jesus e no sonho do Reino como o melhor legado que podemos oferecer aos nossos contemporâneos, sacudidos por tormentas que os afundam sem poderem vislumbrar um novo horizonte e um novo sentido para suas vidas.
Texto bíblico: Jo 1,35-40
Na oração: Ter os olhos centrados em Jesus deixando-se impactar pelo Seu modo de viver, Sua paixão pelo Reino, Sua missão, Seu chamado.
- o que lhe impede de ter um olhar límpido e transparente na tentativa de se configurar ao olhar de Jesus?
- O que você busca ao fixar os olhos em Jesus? O que sente ao perceber os olhos de Jesus fixos em você?
- que consequências tem para sua vida o modo de ser, de viver e de fazer do próprio Jesus?
- quais são seus sonhos? Quê esperanças você carrega no coração?
- a quê você se anima a gastar sua vida? Quê medos o paralisam?
Pe. Adroaldo Palaoro sj
“Os pastores voltaram, glorificando e louvando a Deus por tudo o que tinham visto e ouvido” (Lc 2,20)
A celebração do “Ano novo”, prática vivida em todas as culturas e religiões, parece responder a um desejo humano de “começar de novo”.
“O homem foi criado para que no mundo houvesse um começo”. Este pensamento de S. Agostinho deveria iluminar nossa vida ao longo deste novo ano que se inicia. Desde que o ser humano surgiu da terra e sobre a terra, o mundo criado ganhou um “novo início”. Nós o estamos reconstruindo incessantemente. “O ser humano é criado e é criativo”; pois é exatamente o dom de re-começar, sempre, que nos caracteriza como humanos.
Caminhamos hoje para algo novo; somos convocados pelo futuro a realizar projetos diferentes, possibilidades novas, “coisas” que nos acenam lá de longe e nos fazem uma proposta: “re-criem-nos”; coisas que surgem sob a forma de um desejo, de uma esperança... mas que sempre dependem de nós para se tornarem concretas. Elas exigem empenho, dedicação e criatividade.
Habita em nosso interior uma nostalgia de alguma coisa mais original, de um novo início e da tentativa de outros caminhos. Trata-se de uma aspiração de algo mais humilde e simples, que nasce do “húmus”, da terra que somos. É o desejo de sermos nós mesmos simplesmente, sinceramente, prazerosamente. É a necessidade de viver re-começando, sempre.
A atitude do “recomeçar contínuo” revela-se como oportunidade para ativar outros recursos internos e colocar a vida em outro movimento, mais inspirado e criativo.É inevitável que na existência humana se façam presentes a dor, o cansaço, a frustração, a repetição mecânica..., que ameaçam afogar as melhores expectativas. Frente a essa constatação, compreende-se a voz que brota das nossas entranhas e diz: “comecemos de novo”. A celebração do “ano novo”, neste sentido, significa a oferta de uma nova oportunidade à vida, para que ela tenha um novo sentido.
Somos impulsionados, continuamente, a romper com o formalismo e o convencional, a vida marcada pela ordem, normas claras e recompensas seguras... e caminhar para uma vida mais audaz e incerta, de hori-zontes amplos, de exigências que nos convidam a “começar de novo”, de significado mais universal. Não caminhamos empurrados pelas costas, nem nossa vida é obra da inércia. Fomos feitos para o “mais”.
Ver a novidade em uma simples mudança de datas do calendário não passa de uma mera convenção. O 01 de janeiro não é mais “novo” que o 31 de dezembro. E, depois do rito de “passagem de ano”, tudo continuará sendo como era ontem, ou inclusive pior, porque, a ressaca da celebração será acompanhada pela frustração de comprovar que nada mudou.
É óbvio que a novidade não é “algo” que possamos encontrar “fora” para ser incorporada à nossa existência cotidiana. O máximo que podemos encontrar nesse nível são aparências de novidade que, satisfazendo por um momento nossa curiosidade, rapidamente nos farão voltar ao ritmo da rotina.
O “novo” está dentro de nós. Estamos no tempo para crescer na consciência de nosso verdadeiro ser e descobrir que estamos já na eternidade, que nosso verdadeiro ser não está no “kronos” mas no “kairós” (tempo de plenitude e de sentido). Nosso verdadeiro ser é constituído pelo divino que há em nós, e isso é eterno, é sempre novo. Somos já a plenitude e estamos no eterno.
Nesse sentido, novidade é sinônimo de viçoso, abertura, presença, vida; a vida sempre é nova, e vai acompanhada de atitudes e sentimentos de surpresa, admiração, louvor, gratidão, comunhão e plenitude. “E todos os que ouviram os pastores ficaram maravilhados com aquilo que contavam” (Lc 2,18). Seria um crime transformar a vida num velódromo, dando voltas sempre em torno ao mesmo circuito de 365 dias, sem avançar nada.
Vida expansiva, projetada para todas as direções e sintonizada com as surpresas, grandes e pequenas, que a plenificam e lhe dão um sentido de eternidade. “A vida é demasiado breve para ser mesquinha” (Disraeli). Tudo isto é o que, saibamos ou não, nosso coração aspira. Mas, habitualmente, o buscamos onde não pode encontrar-se. Os pastores, movidos por uma sensibilidade especial, foram capazes de encontrar onde ninguém pensaria encontrar:
Este ano será novo se aprendermos a crer na vida de maneira nova e mais confiada, se encontrarmos gestos novos e mais amáveis para conviver com os outros, se despertarmos em nosso coração uma compaixão nova para com aqueles que sofrem.
Quem sabe, o Evangelho de hoje nos possa inspirar para que, algum dia, aprendamos a viver cada mo-mento como se fosse o último, ou melhor, o mais completo, o mais ditoso: a melhor oportunidade para uma presença inspiradora, para o abraço mais acolhedor, para a palavra melhor pronunciada ou o silêncio mais criativo, para o gesto solidário mais espontâneo... É como se cada momento fosse sagrado e eterno.
O cristão é aquele que, como os pastores de Belém, conserva límpido os seus olhos interiores, prontos para perceber a maravilha que está sendo germinada em sua vida. Movido por um olhar novo, ele acolhe a surpresa de Deus, passa a ser surpresa para os outros, com seu gesto de amor imprevisto, com sua palavra que reanima, com sua visita que consola, com sua atenção para com todos os que levam uma vida obscura e monótona.
“Os pastores voltaram, glorificando e louvando a Deus por tudo que tinham visto e ouvido”. Qual foi o novo e o surpreendente que encontraram: um recém-nascido deitado na manjedoura. Trata-se do “no-vo” despojado de ornamentos, de poder, de riquezas. Tiveram olhos e ouvidos abertos para se deixarem impactar pela imagem, humanamente simples; o encontro com o “Deus que se humanizou” possibilitou o retorno à eterna infância, escondida na própria interi-oridade.
Porque descobriram facilmente o Infinito, passaram a viver humildemente sua condição humana na paz, na alegria e na gratidão.
Texto bíblico: Lc 2,16-21
Na oração: A partir do “olhar” admirado dos pastores, iniciar, ao longo deste ano, um processo minucioso de extirpação das “cataratas” do seu olhar interior: o olhar das lembranças negativas, das suspeitas, dos julgamentos, das comparações... e reacender o olhar contemplativo capaz de expressar a benevolência, a delicadeza, a acolhida, a cortesia, a serenidade, a modéstia, a afabilidade, a alegria simples de estar junto...
- Re-cor-dar todos os “olhares amorosos” que Deus foi depositando sobre você ao longo da vida.
- Coração e olhos espreitam na mesma direção. São os puros de coração os que verão a Deus (Mt. 5,8).
Pe. Adroaldo Palaoro sj
“... Maria e José levaram Jesus a Jerusalém, a fim de apresentá-lo ao Senhor” (Lc 2,22)
Certamente todos já viram um invento recreativo para crianças, composto de um globo inflável que flutua sobre um reservatório de água; ali elas são introduzidas, e ficam se movendo prazerosamente. Tal invento evoca um comportamento frequente nas famílias de hoje. Sem se darem conta, elas mesmas fabricam uma bolha e se fecham nela como num reduzido microcosmo. Elaborado pela mente e inflado pelo ego, esse pequeno globo enclausura as pessoas em um mundo familiar muito definido: o êxito, a vaidade, o dinheiro, os bens materiais, um ambiente raquítico de espaço e tempo, torna-se sua única realidade.
No entanto, para as famílias cristãs, poderíamos perguntar se há algo mais além, por detrás dessa bolha, desse globo fechado no qual todos brincam como crianças inconscientes. Despertar o “eu profundo e universal” é descobrir-se habitante de um universo novo e espaçoso, um “eu sou” com sabor de infinito, onde nem a escassez ou a riqueza, nem a saúde ou a enfermidade, nem a vida curta ou longa..., é o mais essencial, mas a consciência expandida que rompe a bolha e faz a pessoa sentir a liberdade amorosa dos filhos e filhas de Deus.
Deus “se fez diferente” e é na “diferença” que Ele vem ao nosso encontro como chance de enriquecimento vital e de intercâmbio criativo. Deixemo-nos surpreender pelo Deus da vida que rompe esquemas, crenças, legalismos, bolhas...; ou nossa vivência de fé se reduzirá a um ritualismo fechado, impedindo sair de nós mesmos.
Também os muros estão voltando à moda. Não podemos esquecer que os muros foram criados para a segregação dos “diferentes”. O muro econômico que exclui, se visibiliza no muro que segrega os excluídos. Um muro é uma ordem, um silêncio forçado e prolongado, é vontade de poder e domínio sobre os outros. Muros são pedras da vergonha no nosso percurso vital. Como tirá-los do caminho?
Muros não têm semente, embora se multipliquem pelo mundo. O muro é um veneno. Muros são concretos: muros entre ricos e pobres, entre homens e mulheres, entre ignorantes e doutores, entre negros e brancos, entre centro e periferia. Muros são urros. Muros são murros, são muito burros! Todos os muros deviam se envergonhar, pois se os muros pudessem ensinar alguma coisa, desistiriam de serem muros.
A festa da Sagrada Família, que se deslocou a Jerusalém, nos instiga a romper a bolha que asfixia a vida e derrubar os muros que cercam o coração das famílias, atrofiando sua própria existência. A mudança de mente, de coração, de esperança, de paradigmas... exige que todos, de tempos em tempos, revisem suas vidas, conservando umas coisas, alterando outras, derrubando ideias fixas, convicções absolutas, modos fechados de viver... que impedem a entrada do ar para arejar a própria vida.
Há em todo ser humano uma tendência a cercar-se de muros, a encastelar-se, a criar uma rede de proteção. Também as famílias não estão imunes desta tentação. No entanto, nada mais contrário ao espírito cristão que a vida instalada e uma existência estabilizada de uma vez para sempre, tendo pontos de referência fixos, definitivos, tranquilizadores... Numa vida assim faltaria por completo o princípio da criatividade, a capacidade de questionar-se, a audácia de arriscar, a coragem de fazer caminho aberto à aventura.
Se quisermos que a família cristã tenha a marca da Família de Nazaré, é necessário compreender que ela é chamada a um compromisso diferente e mais profundo: sair da reclusão do próprio mundo para entrar na grande “casa” de Deus; romper com o tradicional para acolher a surpresa; deixar a “margem conhecida” para vislumbrar o “outro lado”; desnudar-se de ilusões egocêntricas; afastar a “pedra” da entrada do coração para poder viver com mais criatividade... As respostas do passado às questões atuais já não satisfazem; as velhas razões para fazer coisas novas, simplesmente já não movem os corações num mundo repleto de novos desafios. Não há razão para permanecer nas bolhas e condomínios quando todas as circunstâncias mudaram.
Comprovamos hoje um “déficit de interioridade”. O ser humano “pós-moderno” perdeu a direção do seu coração; dentro dele há um “condomínio” onde portas se fecham, chaves se perdem, segredos são esquecidos... e mergulha na mais profunda solidão estéril. Vive perdido fora de si mesmo e não consegue colocar as grandes perguntas existenciais: “de onde venho? Quem sou? Para onde vou? Quê devo fazer?”
Muitos já não conseguem mais recolher-se e voltar para “dentro” de si, para recuperar o centro gravitacional de sua vida, o ponto de equilíbrio interior. São vítimas da chamada “síndrome da exteriorização existencial”; tem dificuldades de introspecção, silêncio, reflexão, contemplação...; não são capazes de velejar nas águas da interioridade, vivendo uma vida superficial e sem sentido.
Seduzidos pelos estímulos ambientais, envolvidos por apelos vindos de fora, cativados pela mídia, pelas inovações rápidas, magnetizados por ofertas alucinantes... muitos ambientes familiares se esvaziam, perdem a dimensão da interioridade, afastam-se do horizonte de sentido e... se desumanizam. Tudo se torna líquido: o amor, as relações, os valores, a ética, as grandes causas... Longe de um ambiente humano dinâmico, operante, ousado, solidário..., o que elas deixam transparecer é, pelo contrário, um ambiente humano neutro, apático, estagnado.
Inspirando-se em Maria e José, pais e mães convertem-se em fonte de vida nova; e a sua missão mais apaixonante é aquela de poder dar uma profundidade e um horizonte novo aos seus filhos; sabem integrar “vida em Nazaré” (espaço de interioridade) e “presença em Jerusalém” (vida expansiva, aberta ao novo e ao diferente).
“O menino crescia e tornava-se forte, cheio de sabedoria”; esta expressão sugere a atitude básica dos pais e mães: cuidar a vida frágil de quem começa o seu percurso neste mundo. Como seguidores(as) de Jesus e com sua presença humanizadora, eles(elas) são promotores(as) de habilidades na vida de seus filhos: “dão asas” e despertam neles as potencialidades do humano presentes em cada um, levando-os a experimentar condições ousadas de crescimento e realização; na convivência cotidiana, interagem com eles e conseguem extrair deles o melhor, fomentam o papel ativo deles, incentivam-os a desenvolver sua autonomia e dar asas à sua imaginação.
O ambiente familiar, sadio e instigante, torna os filhos conscientes de que são seres em movimento, protagonistas de mudanças, capazes de criar novos modos de existir, de romper com o instituído e buscar o diferente, o novo, o desconhecido... A família é o espaço das inovações, dos riscos, dos experimentos... Nela se encontra o lugar dos sonhos, dos desejos, da liberdade e autonomia.
Texto bíblico: Lc 2,22-40
Na oração: A exortação apostólica “amoris Laetitia”, do Papa Francisco, inspira os casais cristãos a que se convertam em pontes, ponham suas energias, sua formação, dedicação, sua vida a serviço de criar, alimentar e sustentar os laços humanos, relações sociais, estruturas políticas e econômicas que tornem possível a solidariedade entre todos os seres humanos e aponte para um mundo fraterno e justo. A vocação para estender pontes, superando fronteiras, é algo crucial para o mundo de hoje.
- Seu ambiente familiar: risco da aventura ou medo asfixiante? Contínua surpresa ou perene rotina? Espaço de liberdade ou vivências dentro de bolhas asfixiantes e muros de proteção?
Pe. Adroaldo Palaoro sj
«Completaram-se os dias de [Maria] dar à luz e teve o seu filho primogénito, que envolveu em panos e recostou numa manjedoura, por não haver lugar para eles na hospedaria» (Lc 2, 6-7). Com esta afirmação simples mas clara, Lucas leva-nos ao coração daquela noite santa: Maria deu à luz, Maria deu-nos a Luz. Uma narração simples para nos entranhar no acontecimento que muda para sempre a nossa história. Tudo, naquela noite, se tornava fonte de esperança.
Mas recuemos alguns versículos… Por decreto do imperador, Maria e José viram-se obrigados a partir. Tiveram de deixar os parentes, a sua casa, a sua terra e pôr-se a caminho para se recensearem. Uma viagem nada confortável nem fácil para um casal jovem que estava para ter um bebé: viram-se forçados a deixar a sua terra. No coração, transbordavam de esperança e de futuro por causa do filho que chegava; mas sentiam os passos carregados com as incertezas e perigos próprios de quem tem de deixar a sua casa.
E em seguida tocou-lhes enfrentar a coisa talvez mais difícil: chegar a Belém e sentir que era uma terra que não os esperava, uma terra onde não havia lugar para eles.
Mas foi precisamente lá, naquela realidade que se revelava um desafio, que Maria nos presenteou com o Emanuel. O Filho de Deus teve de nascer num curral, porque os seus não tinham espaço para Ele. «Veio para o que era seu, e os seus não O receberam» (Jo1, 11). E lá, no meio da escuridão duma cidade que não tem espaço nem lugar para o forasteiro que vem de longe, no meio da escuridão duma cidade toda em movimento que parecia querer, neste caso, edificar-se voltando as costas aos outros… precisamente lá acende-se a centelha revolucionária da ternura de Deus. Em Belém, criou-se uma pequena abertura para aqueles que perderam a terra, a pátria, os sonhos; mesmo para aqueles que sucumbiram à asfixia produzida por uma vida fechada.
Nos passos de José e Maria, escondem-se tantos passos. Vemos as pegadas de famílias inteiras que hoje são obrigadas a partir. Vemos as pegadas de milhões de pessoas que não escolhem partir, mas são obrigadas a separar-se dos seus entes queridos, são expulsas da sua terra. Em muitos casos, esta partida está carregada de esperança, carregada de futuro; mas, em tantos outros, a partida tem apenas um nome: sobrevivência. Sobreviver aos Herodes de turno, que, para impor o seu poder e aumentar as suas riquezas, não têm problema algum em derramar sangue inocente.
Maria e José, para quem não havia lugar, são os primeiros a abraçar Aquele que nos vem dar a todos o documento de cidadania; Aquele que, na sua pobreza e pequenez, denuncia e mostra que o verdadeiro poder e a autêntica liberdade são os que honram e socorrem a fragilidade do mais fraco.
Naquela noite, Aquele que não tinha um lugar para nascer é anunciado àqueles que não tinham lugar nas mesas e nas ruas da cidade. Os pastores são os primeiros destinatários desta Boa Notícia. Pelo seu trabalho, eram homens e mulheres que tinham de viver à margem da sociedade. As suas condições de vida, os lugares onde eram obrigados a permanecer, impediam-lhes de observar todas as prescrições rituais de purificação religiosa e, por isso, eram considerados impuros. Traía-os a sua pele, as suas roupas, o seu odor, o modo de falar, a origem. Neles tudo gerava desconfiança. Homens e mulheres de quem era preciso estar ao largo, recear; eram considerados pagãos entre os crentes, pecadores entre os justos e estrangeiros entre os cidadãos. A eles – pagãos, pecadores e estrangeiros – disse o anjo: «Não temais, pois anuncio-vos uma grande alegria, que o será para todo o povo: Hoje, na cidade de David, nasceu-vos um Salvador, que é o Messias Senhor» (Lc 2, 10-11).
Eis a alegria que somos convidados a partilhar, celebrar e anunciar nesta noite. A alegria com que Deus, na sua infinita misericórdia, nos abraçou a nós, pagãos, pecadores e estrangeiros, e nos impele a fazer o mesmo.
A fé desta noite leva-nos a reconhecer Deus presente em todas as situações onde O julgamos ausente. Ele está no visitante indiscreto, muitas vezes irreconhecível, que caminha pelas nossas cidades, pelos nossos bairros, viajando nos nossos transportes públicos, batendo às nossas portas.
E esta mesma fé impele-nos a abrir espaço a uma nova imaginação social, não ter medo de experimentar novas formas de relacionamento onde ninguém deva sentir que não tem um lugar nesta terra. Natal é tempo para transformar a força do medo em força da caridade, em força para uma nova imaginação da caridade. A caridade que não se habitua à injustiça como se fosse algo natural, mas tem a coragem, no meio de tensões e conflitos, de se fazer «casa do pão», terra de hospitalidade. Assim no-lo recordava São João Paulo II: «Não tenhais medo! Abri, antes, escancarai as portas a Cristo» (Homilia na Missa de início do Pontificado, 22/X/1978).
No Menino de Belém, Deus vem ao nosso encontro para nos tornar protagonistas da vida que nos rodeia. Oferece-Se para que O tomemos nos braços, para que O levantemos e abracemos; para que n’Ele não tenhamos medo de tomar nos braços, levantar e abraçar o sedento, o forasteiro, o nu, o doente, o recluso (cf. Mt 25, 35-36). «Não tenhais medo! Abri, antes, escancarai as portas a Cristo». Neste Menino, Deus convida-nos a cuidar da esperança. Convida-nos a fazer-nos sentinelas para muitos que sucumbiram sob o peso da desolação, que deriva do facto de encontrar tantas portas fechadas. Neste Menino, Deus torna-nos protagonistas da sua hospitalidade.
Comovidos pelo jubiloso dom, Menino pequenino de Belém, pedimo-Vos que o vosso choro nos desperte da nossa indiferença, abra os olhos perante quem sofre. A vossa ternura desperte a nossa sensibilidade e nos faça sentir convidados a reconhecer-Vos em todos aqueles que chegam às nossas cidades, às nossas histórias, às nossas vidas. Que a vossa ternura revolucionária nos persuada a sentir-nos convidados a cuidar da esperança e da ternura do nosso povo.
Papa Francisco
Homilia da noite do Natal do Senhor
“...pois não havia lugar para eles na hospedaria” (Lc 2,7)
Na noite de Natal, Deus “desce” aos rincões da humanidade; uma intensa Luz brilha no interior de uma gruta e se expande em direção a todo o universo. “Deus se veste de mundo”. As grutas sempre despertaram fascínio nos seres humanos; elas possuem uma força atrativa e guardam segredos em seu interior. Ao mesmo tempo simbolizam o desejo permanente de retornar ao ventre materno, lugar de segurança, de aquecimento...
A contemplação do Nascimento de Jesus nos impulsiona a fazer a travessia para o interior de uma Gruta: ali o Grande Mistério se faz visível e revelador do sentido da existência humana. Trata-se de “entrar” nela com suavidade, de percebê-la e fazê-la descer até o coração, de convertê-la em matéria de consideração, oração silenciosa e surpreendida. É que nada é digno de Deus, nada está à sua altura para poder acolhê-Lo: nenhum tipo de ornamento, nenhum palácio, nenhuma forma de sabedoria humana. Por isso, Deus decidiu escolher um lugar despojado de tudo, onde não há concorrências ridículas: gruta, manjedoura, pobreza...
Acolhido pela natureza, presente na Gruta, Deus se deixou impactar por tudo aquilo que o rodeava. Tudo isso é Deus na nossa carne quente e mortal. Um Deus que “adentrou” na humanidade e de onde nunca mais saiu; um Deus que agora pode ser buscado em nossa interioridade e em tudo o que é humano.
Na pobreza, na humildade da própria gruta pessoal, inserida na grande quantidade de grutas de refugiados e excluídos, torna-se possível acolher o dom do amor de Deus, visível na Criança de Belém.
O Nascimento de Jesus inspira a nos deter para escutar-sentir o significado da gruta, para nossa vida e para a comunidade cristã. A gruta não é um fim em si mesma, não é um fim de trajeto; ela é uma etapa imprescindível para compreender a Encarnação. Ou seja, o cristianismo não passa de uma boa ideologia se não desce da cabeça às entranhas da vivência. A gruta é algo assim como as entranhas da humanidade, onde se sente a vida, porque é um espaço natural, sem cimento nem tijolos, sem paredes divisórias, aberto.
A gruta é essa abertura da natureza que acolhe e abriga: ela é espaço para refúgio, proteção do frio, último recurso diante do despejo. Francisco de Assis, em sua vivência de Natal, no-la encheu de natureza: animais, vegetação, riachos…, tudo em expectativa, tudo em seu estado puro: a nova criação com a chegada do menino que nela encontramos. Temos medo da gruta, das entranhas da vida, da história e de Deus, porque a gruta contém o Deus que se veste de mundo, como o seio materno contém a criança que virá.
A gruta está dentro e fora de nós. Dentro, ou seja, esse lugar marginal de nosso ser que não nos atrai, porque é escuro, frio, não visitado, nos dá medo entrar...; e, fora de nós, a gruta é esse lugar da noite, sem luz artificial, que intimida aproximar-nos porque não sabemos quê ou quem podemos encontrar. Talvez pessoas que nos olham com suspeita ou com carinho, nos acolhem ou nos rejeitam...
De qualquer forma, só uma coisa importa fazer agora: diante da fragilidade de uma criança, ampliar o olhar, afastar o medo, tirar o pó das lembranças não integradas… A gruta interior é uma abertura natural na rocha dura da vida. Nela, se supero os medos e acesso às suas profundezas, descubro-me habitado pelo Amor; entrar na gruta de Belém torna-se uma privilegiada ocasião para soltar as amarras internas, tirar as paredes que separam ou dividem, abrir espaços acolhedores...
E, para entrar, é preciso agachar-se, descer de nosso ego inflado, das vaidades… Só quem se inclina pode acolher uma criança nos braços. Para encontrar Deus é preciso empreender o caminho de “descida”, dirigir o olhar e o coração para o próprio interior e para o mundo da exclusão.
O mundo é uma pousada, lugar de passagem onde homens e mulheres, maiores e menores, devemos ir construindo lugares de encontro. Mas Deus quis vir à pousada dos homens e não encontrou lugar nem na cidade, nem em nenhuma estalagem. Não tinha o que era preciso ter: dinheiro, poder, influências...
Portas e corações se fecharam ao pedido de ajuda de uma família, apesar da evidente necessidade urgente que eles tinham de alojamento. “Para eles não havia lugar na hospedaria” (Lc. 2,7). Uma cocheira de animais funcionou como “centro de acolhimento”.
Assim, a vida de Jesus, desde o início, foi muito semelhante àquela de um “clandestino”: indesejado e incômodo. E Ele continua vindo a nós sob o semblante do clandestino. “É inútil procurá-lo nos prestigiosos palácios do poder onde se decide a sorte da humanidade: não está ali. É vizinho de tenda dos sem casa, dos sem pátria, de todos aqueles que a nossa dureza de coração classifica como intruso, estrangeiro, refugiado” (Tonino Bello)
Mas era Deus e nasceu, ainda que fosse fora, no descampado, no que então era uma gruta de pastores, um lugar para guardar animais. Jung dizia: “somos tão somente o estábulo onde nasce Deus”. A gruta está sem defesa, por isso, entram as chuvas e também o frio; mas é precisamente nas fendas de sua pobreza onde ocorre o nascimento da Vida, onde acontece, desde aquela noite, a manifestação da glória de Deus, o perfume de sua compaixão.
É surpreendente que a pequenez e a vulnerabilidade sejam o cartão de visitas de Deus. O Natal é o memorial desta verdade, sempre esquecida. Deus não nos estende a mão a partir de cima, senão que se mostra necessitado, dentro de uma gruta. Ele nos ajuda a partir da fragilidade. Ele está “envolvido em faixas”, deitado em cima de palhas, como se não houvesse outro modo de se revelar.
Na presença de uma Criança tudo é aceito e acolhido, tudo encontra seu lugar. Nada é rejeitado: o sujo e o que não conta, o desprezível, o mal olhado, perdem seu aspecto desagradável e se ungem de calor e suavidade. Tudo fica transformado pela irradiação da luz que emerge a partir de dentro; há muito mais dignidade e beleza onde sequer poderíamos imaginar.
Na Encarnação e Nascimento de Jesus esvaziou-se o céu; Deus, em sua misericórdia, abandonou o trono altíssimo, exilou-se nas entranhas profundas da humanidade e assumiu tudo o que é radicalmente humano.
Se a história da Encarnação começa lá “embaixo”, na periferia, quer dizer que a fé em Deus implica prestar atenção na manifestação do amor materno e na frágil beleza do recém-nascido. É por esse caminho que podemos chegar à descoberta e à experiência de Deus; é também por este caminho que podemos chegar ao conhecimento de nós mesmos.
No momento em que o Verbo de Deus assume um rosto, todo ser humano chega à plenitude de sua realização: entra em comunhão com o Infinito e recebe uma dignidade infinita.
Textos bíblicos: Lc 2,1-14
Na oração: Contemplar o rosto do recém-nascido... Contemplar nele os rostos desfigurados da história.
A cena do Nascimento de Jesus pede tempo, presença, assombro... para deixar-se afetar por ela; “... como se estivesse ali presente, com todo acatamento e reverência possível” (S.Inácio).
A todos vocês, um Natal feito de promessas, de caminhos... e de ternura infantil.
Minha bênção natalina.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
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